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046 arq | a Fevereiro 2009 Conversa com Inês Lobo «Tentar gerir a complexidade com muita clareza» LUÍS SANTIAGO BAPTISTA MARGARIDA VENTOSA ENTREVISTA arquitectura Inês Lobo é uma arquitecta com uma consciência clara das tarefas da profissão e da sua relação com a realidade concreta. No entanto, esse pragmatismo e lucidez com que encara a sua actividade não a afasta de uma vincada concepção disciplinar. Para a arquitecta, o desafio da arquitectura contemporânea passa pela confluência entre uma resposta positiva a um problema concreto e a possibilidade de uma apropriação pura do espaço. Por isso, defende a “clareza” da intervenção arquitectónica que concilie a complexidade da realidade existente com o silêncio da experiência espacial.

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  • 046 arq|a Fevereiro 2009

    Conversa com Ins LoboTentar gerir a complexidade com muita clareza

    LUS SANTIAGO BAPTISTAMARGARIDA VENTOSA

    ENTREVISTAarquitectura

    Ins Lobo uma arquitecta com uma conscincia clara das tarefas da profisso e da sua relao com a realidade concreta. No entanto, esse pragmatismo e lucidez

    com que encara a sua actividade no a afasta de uma vincada concepo disciplinar. Para a arquitecta, o desafio da arquitectura contempornea passa pela confluncia entre

    uma resposta positiva a um problema concreto e a possibilidade de uma apropriao pura do espao. Por isso, defende a clareza da interveno arquitectnica que concilie

    a complexidade da realidade existente com o silncio da experincia espacial.

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    arq|a: Frequentou a Faculdade de Arquitectura de Lisboa na dcada de oitenta. O que retirou dessa experincia formativa?Ins Lobo: A minha formao passou pela FAUP e depois pela FAUTL. Iniciei o curso no Porto e, infelizmente, estive l s um ano por razes pessoais. De qualquer maneira esse ano foi fundamental para a minha formao. Tive o Henrique Carvalho, que era um ptimo professor de projecto, o Fernando Tvora, o Srgio Fernandez, etc. ramos muito poucos, alguns como eu de fora do Porto, todos dentro da mesma sala ainda na Faculdade de Belas Artes. Acho que aquele ano era muito bem dado e muito importante para quem passava por l. Foram tempos de grande intensidade e com muito empenho por parte dos professores. Acabei por manter sempre uma relao bastante prxima com a Escola do Porto, porque voltava a ir l frequentemente. O meu ano est cheio de pessoas que agora esto a trabalhar e que tm feito coisas interessantes como o Francisco Campos, a Cristina Guedes, o Nuno Grande, o Pedro Mendes, etc. Depois vim para Lisboa e durante algum tempo no foi fcil. Na altura, a Faculdade de Arquitectura de Lisboa no era muito interessante. Tentvamos cruzar-nos com bons professores. s vezes conseguamos inscrever-nos nas suas turmas, outras no. Costumo resumir o meu percurso escolar ao primeiro e ltimo anos, eventualmente com alguma injustia para os anos intermdios. Foram os dois momentos fundamentais do meu percurso acadmico. O primeiro no Porto e o ltimo em Lisboa com o arquitecto Joo Lus Carrilho da Graa, que foi novamente um perodo de descoberta. Era uma pessoa extremamente empenhada a dar aulas e que marcava a diferena na Faculdade de Arquitectura de Lisboa. Aquele ltimo ano, onde estavam os arquitectos Carrilho da Graa e Manuel Graa Dias, era uma lufada de ar fresco quando se chegava ao fim do curso.

    arq|a: Parece evidente a influncia de Carrilho da Graa na sua obra, arquitecto com quem colaborou desde muito cedo. De que forma foi marcada por essa experincia no seu atelier?IL: bvio que me marcou brutalmente. uma coisa que nunca nego. O arquitecto Carrilho da Graa um arquitecto fabuloso e uma pessoa fascinante. A forma dele estar na arquitectura marca qualquer pessoa que passa pelo atelier. Trabalhei l 9 anos, logo a seguir a ter acabado o curso. Tinha trabalhado antes com o arquitecto Teixeira Guerra, mas a minha experincia profissional foi realizada essencialmente no seu atelier. Penso que muito importante um arquitecto estagiar durante um tempo longo num atelier como aquele, tendo a possibilidade de passar por experincias determinantes. O atelier do arquitecto Carrilho da Graa um atelier com grande abertura, em que as pessoas so, se quiserem, logo postas em contacto directo com a profisso a todos os nveis, desde o contacto com o cliente at assinatura de um contrato, passando pelo trabalho projectual e o acompanhamento de obra. uma experincia muito completa, que no pode ser realizada na escola, e isso fundamental para a formao de um arquitecto. Por outro lado, a passagem pelo seu atelier foi uma aprendizagem na forma do fazer, no modo de gerir um atelier e pr os trabalhos a funcionar. O arquitecto Gonalo Byrne dizia

    do atelier do arquitecto Carrilho da Graa. Dizia que cada vez que ele tinha um projecto novo, mudava o atelier para encenar esse novo trabalho. No atelier o projecto era posto em palco, era tornado visvel. Toda a gente, inclusive ele, tinha a possibilidade de o ver e discutir. O objectivo ver as coisas a acontecer e poder estar permanentemente a intervir. Hoje h uma tendncia enorme em estarmos todos atrs do computador a trabalhar isoladamente.

    arq|a: Em 1996, forma atelier prprio com o arquitecto Pedro Domingos, tambm colaborador de Carrilho da Graa. O que motivou esse passo?IL: No lhe sei bem dizer. Hoje em dia tenho uma opinio um pouco contraditria em relao que tinha na altura. A verdade que a profisso e a actividade do arquitecto mudou muito desde que comecei a trabalhar no atelier do arquitecto Carrilho da Graa. Acho que quase todos os arquitectos que saem da escola vivem com a iluso de quererem ser arquitectos por conta prpria. Se calhar no meu tempo isto era mais evidente porque ramos menos. As escolas apontam claramente esse caminho e acho que isso completamente mentiroso nos dias de hoje. Alis, farto-me de dizer isso aos meus alunos e aos meus colaboradores. A questo no est em formar um atelier sozinho mas em poder fazer projectos para stios estimulantes. Cada vez mais tenho a sensao que para conseguir dar resposta aos trabalhos e aos desafios que tenho preciso de ter um atelier com pessoas em continuidade. Acho que no funciona ter um atelier cheio de estagirios que se vo embora amanh. Em termos gerais, o trabalho adquire uma responsabilidade tal, envolve algo to complexo e completo, que no se pode confiar no saber de uma pessoa s. A perspectiva dos ateliers completamente centrados na figura do arquitecto, do mestre, uma coisa que para a minha gerao j no existe. Por outro lado, sempre gostei de trabalhar com o arquitecto Carrilho da Graa e, mesmo depois de formar atelier prprio, continuo a trabalhar com ele. Uma coisa engraada que costumo dizer que continuo a fazer os trabalhos com ele exactamente da mesma maneira.

    arq|a: A verdade que comeou a promover parcerias, desde logo com Pedro Domingos, depois tambm com Bak Gordon e Carlos Vilela. Curiosamente, participam em diversos concursos com equipas com constituies variveis, sendo premiados num conjunto significativo deles. Como se desenvolveu esse processo intenso de parcerias?IL: De facto, na altura, para alm do arquitecto Pedro Domingos, montmos atelier com os arquitectos Ricardo Gordon e Carlos Vilela. Foi, sem dvida, uma experincia intensa. Quando montei o meu atelier, no tinha um nico trabalho. Fizemos concursos no que se revelou um momento muito interessante. Por exemplo, no concurso dos Aores tivemos dois ou trs meses para fazer o concurso, algo que nunca mais se voltou a repetir. ramos duas duplas de arquitectos, todos muitos novos, e a melhor maneira de rentabilizar o espao e o trabalho era juntarmo-nos e ir formando equipas para responder s solicitaes. Portanto era mesmo uma espcie de atelier inteligente, tentando optimizar as capacidades

    Chancelaria e Residncia da Embaixada de Portugal em Berlim, Berlim, 1998 -

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    que estavam ali reunidas. Outra coisa muito importante era a possibilidade de fomentar a discusso. Tnhamos sado de um atelier onde as coisas se passavam com bastante intensidade e de repente estvamos algo isolados. Assim, para enfrentar essa sensao negativa de quando se inicia o trabalho por conta prpria, juntmo-nos os quatro, o que permitiu desenvolver massa crtica. Penso que nenhum de ns tinha ou tem feitio para estar fechado a trabalhar, precisamos de proximidade com outras pessoas. A verdade que, pessoalmente, gosto bastante de fazer trabalhos com outras pessoas. Por exemplo, quando tnhamos o atelier trabalhei em parceria com o Joo Mendes Ribeiro. Ainda recentemente fiz um projecto com o arquitecto Joo Maria Trindade. Gosto de parcerias porque nos obrigam a mudar a forma de trabalhar. Acabamos por montar uma mquina de produo e, quando entram pessoas novas, isto agita-se um bocadinho e esse confronto bastante interessante e positivo. Em termos gerais, essas parcerias so fruto das circunstncias e dos momentos, embora as pessoas sejam sempre mais ou menos as mesmas. Com o arquitecto Carrilho da Graa diferente, ele normalmente traz um trabalho para fazer connosco, normalmente relacionado com situaes de trabalhos anteriores que acabam por originar novos trabalhos. Tenho uma certa tendncia para estar sempre a fazer alguma coisa com ele para no perder aquela relao.

    arq|a: Depois de um processo to intenso de partilha, porque decide avanar em 2002 com atelier prprio?IL: O atelier cresceu, mudmos da rua de So Paulo para a Rua do Alecrim, um stio que todos gostvamos muito. Penso que esteve tambm relacionado com questes pessoais entre os vrios grupos que formavam o atelier. Houve um determinado momento em que achmos que era mais interessante seguir caminhos prprios. uma espcie de crescimento. H duas figuras muito importantes neste atelier, e que na altura j existiam e com quem partilhava intensamente a empresa: o Joo Rosrio, que actualmente o meu scio, e o Gilberto Reis. Portanto, j nesse enquadramento que decido abrir atelier com eles e parto para uma estrutura autnoma. No entanto, j nessa altura isto no partia da necessidade de ter um atelier em nome prprio, Ins Lobo Arquitectos Lda. Na verdade, eles que insistiram porque como h poucas mulheres arquitectas isso sempre podia resultar. Podia-se ter chamado outra coisa qualquer. No havia, de facto, essa vontade de autor individual. J discuti, com o Ricardo Gordon, que seria interessante a possibilidade de voltarmos a montar uma empresa juntos. Alis, acho que hoje em dia a unio dos esforos volta a ser extremamente importante.

    arq|a: Por outro lado, estabelece parcerias continuadas com reas complementares da arquitectura, como no caso do artista Gilberto Reis e do paisagista Joo Gomes da Silva. Estabelece estas parcerias por afinidade? IL: Por afinidade evidentemente, mas no s. Hoje em dia, o trabalho que fazemos intenso, pesado e complexo, pelo que temos conscincia que no dominamos todos os saberes e precisamos de nos juntar a pessoas que os dominem. Portanto, isso leva a desenvolver relaes muito intensas

    com outras reas disciplinares, que acabam por se concretizar em parcerias permanentes. Desde que comecei a trabalhar individualmente, tenho uma espcie de equipa constituda, com pessoas que conheci no atelier do arquitecto Carrilho da Graa, com quem tenho uma relao de amizade e partilha de uma forma de fazer arquitectura a todos os nveis. uma espcie de relao com a profisso que comum entre todas estas pessoas. Est tambm relacionado com formas de trabalhar propriamente ditas, que se vo transmitindo de trabalho para trabalho, tornando-se cada vez mais interessantes e completas. Tem a ver com questes de fidelidade prtica.

    arq|a: Pedro Gadanho e Lus Tavares Pereira, na exposio Metaflux, diferenciaram duas geraes recentes da arquitectura portuguesa, incluindo-a na mais velha, a dita gerao X. Como interpreta essa diferena geracional na arquitectura portuguesa contempornea? IL: Sinceramente acho que aquela diviso um pouco prematura porque somos todos muito novos. S daqui a uns anos que se vai ver como se divide essa gerao ou ento j ningum consegue dividi-la porque se perdeu toda. Por outro lado, no deixa de ter uma certa pertinncia. Eles associam muito as duas geraes a percursos ligeiramente diferentes durante a faculdade e que tem a ver com a emergncia do programa Erasmus. A gerao mais nova teve, por isso, experincias formativas fora de Portugal, o que ainda no acontecia na minha. Eles diferenciam uma primeira gerao, de continuidade, muito ligada ainda formao dos ateliers portugueses, de uma outra mais nova que funciona mais por ruptura com o contexto portugus. No entanto, estas perspectivas correm o risco de distorcer a realidade, porque trabalham realidades muito prximas. Penso que, daqui a uns anos, vamos ter uma viso completamente diferente. arq|a: Mas essa internacionalizao das experincias formativas tem naturalmente consequncias IL: Acho que isso uma das realidades que temos hoje em dia. Mas no est circunscrita aos estudantes. Uma das coisas mais fascinantes do nosso tempo a mobilidade. Passmos a poder viajar para todo o lado, a conhecer pessoas em todo o mundo, a confrontarmo-nos com tudo e mais alguma coisa. Era uma coisa que antes no acontecia. As coisas eram vistas distncia, demoradas no tempo, talvez mais esperadas ou at sonhadas. Deixmos de estar to circunscritos ao nosso universo nacional e passmos a estar abertos ao mundo inteiro e a olharmos para a arquitectura que se produz l fora. Antigamente falava-se muito do arquitecto perdido, escondido do mundo. Hoje, as revistas so imensas, fazendo-nos chegar tudo e isto tem coisas positivas e negativas. Desde logo positivo a quantidade de informao a que todos tm acesso. No entanto, penso que as coisas vo mudar e que essa relao mais prxima, que a minha gerao tinha com os arquitectos que nos antecederam, e que acho que importante, tender a desaparecer um pouco. No deixo de ter pena que isso acontea, porque acho que importante num pas haver uma certa coeso entre os arquitectos das vrias geraes. Creio que isso est demonstrado em Portugal,

    Requalificao da Frente Martima da Pvoa do Varzim, 2001 -

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    por aquilo que a Escola do Porto representa e pela visibilidade que adquiriu. Agora se calhar estas relaes vo passar a estabelecer-se a outra escala, j no escala do pas mas escala da Europa ou do Mundo.

    arq|a: Mas como pode manter-se a coeso de uma tradio moderna portuguesa perante a pluralizao de um mundo globalizado? IL: Sobre isso tenho uma opinio clara. Acho que a relao do modo de fazer com o lugar , acima de tudo, um acto de inteligncia. E isto uma coisa que sempre aconteceu em todo o mundo, em todos os tempos. algo de intemporal, que depois origina aquilo que, mais tarde, se vai denominar de arquitectura portuguesa, holandesa, etc. Tem a ver com as pessoas que esto a construir terem a inteligncia de o fazer com aquilo que aquele lugar lhes d. Isto antes era uma coisa evidente. Na Beira construamos com granito, nos Aores construamos com basalto, e por a fora, porque no havia outra hiptese. Hoje em dia, isto no bem assim, tendo

    em conta a crescente mobilidade de pessoas, mercadorias e informao. Mas no deixa de haver um contexto especfico em cada projecto que estamos a fazer. a isso que chamo acto de inteligncia. No fundo, isso que constri uma espcie de denominador comum entre o stio e a sua arquitectura. Evidentemente, acho que somos informados e influenciados por tudo o que se vai produzindo e, quando chega a hora de projectar temos de saber o que que se pode fazer neste preciso momento e para este projecto especfico. J no falo deste lugar especfico porque acho que ele est l na mesma. Penso que isto tem a ver, de alguma maneira, com a arquitectura portuguesa de que gosto e com a qual me identifico. Aquela que passa pela capacidade de responder, de uma forma simples e muito intensa, a um determinado problema, composto por uma srie de coisas, como o stio, o programa, etc. bvio que podemos estar num momento em que alguma identidade se possa vir a perder. Acho que no se pode perder essa inteligncia de actuao.

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    Anfiteatro do Campus Universitrio da Universidade dos Aores, Ponta Delgada, Aores, 1998 - 2003

    Para saber se se constri ou no, se se subtrai ou adiciona preciso reconhecer aquele territrio, no como realidade numrica, mas enquanto estrutura fsica. Reconhec-lo a todos os nveis, como estrutura construda

    implantada no territrio e como realidade infra-estrutural em constante mudana.

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    arq|a: Seja nas motivaes ideolgicas, seja na expresso esttica, a sua obra parece reelaborar o legado da arquitectura moderna. Que leitura faz da modernidade arquitectnica, depois das crticas ao modernismo? IL: Comecei a estudar arquitectura numa altura em que o ps-modernismo estava no fim. Abria-se assim um espao para voltar a olhar para a histria da arquitectura de uma forma muito generosa e aberta. Penso que isso fez voltar a olhar para duas coisas com grande intensidade. Por um lado, olhar transversalmente para a histria da arquitectura, sem limitaes nos tempos e sem rejeio de coisas que tinham sido feitas. Olhar para a histria de uma forma intemporal, afastando-nos da vertente mais historicista do ps-moderno, que era ainda uma forma de ir contra qualquer coisa. No meu tempo j no se ia contra nada, havia uma espcie de aceitao da ideia de que a partir de tudo se podia aprender e formar um conhecimento sobre a arquitectura. Por outro lado, como o ps-modernismo tinha rejeitado o incio do modernismo, a tendncia era voltar a olhar para ele. Mas desta vez a partir dos prprios autores. Em vez de se falar do modernismo em geral, como movimento, falava-se de arquitectos e olhava-se para o seu trabalho. E essa perspectiva permitia perceber que era evidente que o movimento moderno no entrava em ruptura com nada, pelo contrrio, continuava a histria da arquitectura. Elegiam-se como referncia figuras mais conhecidas, como o Mies ou o Corbusier, mas tambm desconhecidas, como os brasileiros, que so extremamente importantes para ns, como o Niemeyer, a Lina Bo Bardi, o Mendes da Rocha, etc. Estes brasileiros aparecem com o seu modernismo vernacular, mais ligado quele lugar particular. Perante um stio fortssimo e altamente condicionado, essas experincias demonstravam que a arquitectura moderna no era um movimento sem stio, mas que podia responder a cada lugar. Por fim, h uma figura incontornvel em Portugal, e no mundo, que o Siza. Apesar de j estar a trabalhar h muitos anos, comeou a ser mais divulgado quando comecei a estudar. Cada proposta dele um ponto de confluncia de todas essas coisas. No possvel escapar a Siza, tal como no possvel copi-lo.

    arq|a: Disse numa entrevista o que me faz mais confuso a forma como gerimos o nosso territrio e a falta de conscincia que existe em relao a isso, criticando a separao brutal entre a arquitectura e o planeamento. So hoje os problemas da arquitectura e do urbanismo compatveis numa mesma abordagem projectual?IL: Acho que as questes do territrio so as questes mais importantes para ns. No se consegue evitar que o mundo se transforme numa coisa bastante menos interessante do que hoje, ou mesmo do que j foi, se for cada um a desenhar sozinho o seu edifcio. A arquitectura no feita por uma pessoa e o urbanismo muito menos. So trabalhos de equipa que envolvem todos os saberes. Faz-se com arquitectos, paisagistas, engenheiros, socilogos, etc. Como toda a gente sabe, o problema que, h muito tempo, o urbanismo responde acima de tudo a questes econmicas, envolvendo dinheiro e custos, e questes polticas, relacionadas com os calendrios eleitorais. Isso uma prtica que tem que mudar. Defendo sempre que a aco sobre o territrio um trabalho a dois tempos. Por um lado, um trabalho lento e a grande escala, que implica uma reflexo sria, que v ditando regras mnimas de interveno. Por outro, intervenes num tempo curto, porque so necessrias respostas a problemas concretos. Esses dois trabalhos e esses dois tempos tm de coexistir. Mas o problema que o trabalho no tempo lento no feito e por isso no existe. Cada vez que queremos actuar sobre um determinado lugar sob presso de uma srie de coisas, sem tempo para uma reflexo sria e conjunta sobre as vrias questes envolvidas. Precisamos de uma estratgia global para cada territrio, que possibilite criar e inventar conjuntamente um stio, para alm dos interesses prprios e estabelecidos. Agregar um grupo de pessoas, a quem sejam dados os meios para fazer essa reflexo de modo aberto. Isto deveria ser uma espcie de encomenda primria. No existe actualmente nenhum organismo governamental ou institucional que possa pr isto em prtica, tendo em conta o caos territorial em que vivemos. Talvez a Ordem dos Arquitectos ou a Ordem dos Engenheiros.

    Biblioteca Pblica e Arquivo Regional de Angra do Herosmo, Aores, 2006 - Faculdade de Cincias do Desporto da Universidade de Coimbra, Coimbra, 2004 -

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    arq|a: Mas como compatibilizar os factores quantitativos do planeamento com um desenho qualitativo escala territorial?IL: um tema, hoje em dia, muito complicado. No consigo distinguir arquitectura de planeamento. No consigo dizer at onde estou no mbito do planeamento e a partir de onde estou a fazer arquitectura. Estamos sempre a trabalhar a mesma coisa que o espao, embora a diferentes escalas. Existe uma coisa que complica tudo isto, mas inevitvel. O planeamento tornou-se cada vez mais complexo, ligado a leis, ndices, etc. No tanto um problema mas um tema com o qual temos de saber lidar e de responder. Apesar da crescente especializao do planeamento, penso que isso no se pode sobrepor ideia fundamental que estamos a transformar um lugar, um stio, um espao, e que essa discusso do foro da arquitectura no sentido lato. O problema que se discutem ndices antes do problema daquele espao ou daquele territrio, respondendo a questes meramente pragmticas, relacionadas com economia, sociologia, etc. Habitualmente, parte-se para o planeamento a partir de um programa. A sensao que tenho que se faz planeamento como se fizssemos arquitectura, respondendo nica e exclusivamente a uma espcie de organograma. A verdade que o arquitecto desapareceu desta discusso, mais por vontade prpria do que por desejo dos outros saberes. A culpa tambm por isso dos arquitectos que se retiraram desse processo. E essa discusso deve envolver o que queremos fazer deste lugar. Lembro-me do Siza dizer que antes de discutir a arquitectura para um determinado lugar, eu gostava de discutir se se constri ou no. Isto talvez seja actualmente o mais determinante, uma vez que o planeamento feito sobre lugares extremamente complexos e informados. Para saber se se constri ou no, se se subtrai ou adiciona preciso reconhecer aquele territrio, no como realidade numrica, mas enquanto estrutura fsica. Reconhec-lo a todos os nveis, como estrutura construda implantada no territrio e como realidade infra-estrutural em constante mudana.

    arq|a: Afirmou que a arquitectura tem uma certa violncia, no suave. muito transformadora. a simplicidade e amplitude do gesto arquitectnico sobre o territrio uma forma de ordenar o que denomina de pas informe?

    IL: Penso que isso sempre um objectivo. engraado que muitas vezes tenho a sensao contrria, que o que estou a fazer complicado demais e estou sempre a tentar encontrar formas mais simples de conseguir dizer a mesma coisa. Acho que isto est muito associado quilo que definia como um certo acto de inteligncia a responder a um problema. Acho que, quanto mais simples for a forma como conseguirmos responder, mais perfeito aquilo se torna. Gosto de associar esta simplicidade at ao modo de fazer, de chegar obra e aquilo ser simples de construir, de executar, de ser muito claro. isso que me fascina na arquitectura, porque ela sofre hoje da tendncia oposta de se complicar muitssimo. Como acredito que ela j , partida, extremamente complicada, prefiro eleger a clareza.

    arq|a: Curiosamente, Joo Rodeia referiu a sbia clareza e espessa complexidade dos seus projectosIL: A complexidade, hoje em dia, mesmo muita. Como no consigo responder a essa complexidade pela complexidade, prefiro a clareza. Outra coisa que tambm me leva a fazer isso , possivelmente, no dominar caminhos mais complexos. Assumo isso perfeitamente. Acho que temos de ter conscincia daquilo que somos. No fazemos todos arquitectura da mesma maneira e as nossas capacidades so diferenciadas. O esforo que fazemos, do princpio ao fim do projecto, tentar gerir essa complexidade com muita clareza. No tenho dvida nenhuma que s vezes conseguimos, outras ficamos a meio caminho. Mas o objectivo exactamente esse, tentar encontrar a forma mais simples de ordenar o problema. Tenho uma certa obsesso em ordenar e organizar tudo, ao ponto de, por momentos, correr o risco de me perder. Essa excessiva tentativa de ordenao pode travar um projecto e depois preciso aliviar um bocadinho e moldar as coisas. Mas enquanto no organizar tudo no consigo responder. Acho que s com o tempo e com a experincia que se consegue isso.

    arq|a: Os seus projectos parecem realmente atingir um nvel de simplicidade perante a complexidade do lugar. A sua arquitectura procura ordenar silenciosamente um determinado lugar?IL: Acho que aqui esto envolvidas duas coisas. Por um lado, dar uma certa ordem. Mas, por outro, quando no conseguimos criar essa ordem,

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    Parque Urbano Camillo Tarello Brscia, Itlia, 2003 - 2007

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    optamos por construir espaos abertos dentro dessa complexidade, uma espcie de espaos de paragem. Por exemplo, gosto imenso de um projecto, o Parque das Camlias, para o Porto 2001, que fiz h muito tempo. Aqui o mais importante era desenhar espaos, desenhar o vazio que o projecto ia produzir. Passava por acrescentar actividade a este espao de paragem, de silncio, um espao claro que as pessoas experimentassem e depois conseguissem descrever. Costumo dizer que os projectos de arquitectura que mais me fascinam so exactamente aqueles onde consigo chegar, parar e, passado algum tempo, quando me perguntam por eles, consigo descrev-los. No num sentido exacto, mas como uma espcie de sensao que aquele momento me produziu. Mais do que ordenar o mundo isto criar momentos em que as pessoas possam parar e usufruir ou experimentar um determinado espao. Isso talvez das coisas que mais me fascina e, para isso, preciso a tal clareza. Mas algo que acontece desde sempre na arquitectura e, se calhar, at mais claramente na arquitectura da antiguidade do que na arquitectura actual.

    arq|a: Projectos como os Anfiteatros de Ponta Delgada, a Chancelaria de Berlim, a Biblioteca de Angra, a Faculdade de Coimbra ou mesmo a Casa do Magoito, os seus edifcios parecem apresentar-se como presenas silenciosas nos lugares, objectos de certa forma puros e mudos. Poderamos dizer que as suas obras procuram reduzir a linguagem arquitectnica ao silncio?IL: Adorava conseguir isso, esses momentos nicos que so aquilo que se pode atingir de mais alto na arquitectura. exactamente isso que acontece quando a linguagem no se sobrepe experincia do espao. No que o espao no tenha linguagem, eu que no tenho que estar a interpret--lo. H arquitectos como Mies que so mestres nisso. Quando ele diz que Deus est nos detalhes, o interessante que ns no vemos de facto o detalhe, mas percebemos aquele espao.

    arq|a: Interessa-lhe a experincia de momentos de suspenso de pura arquitectura? Podemos falar aqui de uma potica do silncio?IL: Creio que sim. por isso que dizia para me descreverem esse espao. Acho que h dois momentos muito difceis para o fazer. O antes do projecto e o depois dele estar construdo. So dois momentos muito complicados em que podemos descrev-lo no atravs da sua forma, mas da experincia mais fenomenolgica, falando do silncio, da luz, da escala, etc. Isso, no entanto, acontece poucas vezes. Penso que na vida temos essa tendncia de tentar construir um espao onde possamos viver com qualidade, Se ele no existe, temos mesmo que nos forar a invent-lo. Sinto um pouco essa necessidade quando estamos a fazer projectos. Tambm pode estar relacionado com o facto do trabalho que temos tido, mais do que casas, so escolas, bibliotecas, etc. E estes so lugares onde a sensao de suspenso de silncio, de mundo protegido, um dado programtico bastante importante.

    arq|a: Por outro lado, fala-se muito da influncia do minimalismo na arquitectura e na questo da abstraco

    IL: Acho que o minimalismo um tema que se esgotou um pouco. Foi to usado, to absorvido para a nossa vida que acabmos por rejeit-lo e mat--lo. H coisas, hoje em dia, que me interessam mais, como a questo do conforto e que de certa forma se perdeu com a ideia do minimalismo. No quero dizer que o minimalismo no possa ser extremamente confortvel. Mas no estamos to preocupados em investigar nesse sentido.

    arq|a: Mas interessam-lhe as experincias da arte contempornea como meio de investigao do espao arquitectnico?IL: Interessa-me bastante e no por acaso que temos um artista plstico a trabalhar connosco. Alis, a arte tem a grande vantagem, em relao arquitectura, de ter partida um programa menos pesado e de poder reflectir de uma forma mais directa e, muitas vezes mais intensa, sobre as questes que levaram a conseguir o tal silncio que procuramos. Interessam-me particularmente as questes ligadas directamente experincia de percepo do espao que esto muito presentes na arte actual e que no esto directamente relacionadas com o minimalismo ou com a abstraco.

    arq|a: Gerrit Confurius falou de anti-monumentalidade para caracterizar os seus projectos. Tendo em conta as suas propostas afirmativas, a sensibilidade escala de interveno uma questo central na sua obra?IL: e muito. uma das coisas que mais sinto dificuldade e que mais me preocupa hoje em dia. No tenho nada contra a monumentalidade, acho que tem momentos muito especficos para existir. Esta tentativa de no monumentalidade uma espcie de reaco nossa forma de projectar. Para construir com esta clareza h uma certa tendncia para se criar situaes de gestos muito simples e, s vezes, de escalas excessivas. Depois existe a tentativa de domar essa escala. Isso talvez das coisas que me parece que ainda temos um longo caminho a percorrer. s vezes tenho a sensao de que chego s obras e tudo grande demais. Tenho uma luta sempre aqui no atelier, porque h sempre duas escalas quando comeamos a fazer o projecto. H a grande escala, que uma coisa muito clara e muito simples. Mas a tentativa de chegar a essa simplicidade pode fazer com que nos concentremos unicamente naquela escala. Depois h a outra escala mais pequena, que preciso coordenar. Achei muito interessante, e aprendi imenso, quando trabalhei com o Joo Mendes Ribeiro. ramos quase complementares porque se eu tenho a grande tendncia em trabalhar com a grande escala, ele trabalha com a pequena. Ele tem esse controlo dessa escala que uma coisa muito difcil, que lhe vem da experincia da cenografia e do trabalho com o corpo. A questo de controlar a escala muito importante na arquitectura e exige tempo. Por outro lado, as exigncias temporais de resposta no ajudam. Tenho tido discusses com o Ricardo Gordon acerca disso, e ele diz que a presso muito grande e que no tem tempo. Mas esse controlo da escala exige tempo para experimentar e para voltar atrs. Isto tambm tem a ver com a dimenso, com o nmero. Esse domnio da escala pelo nmero uma coisa que s vezes nos falha e extremamente importante.

    18 habitaes em banda no Bom Sucesso, bidos, 2004 -

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    arq|a: Qual a sua abordagem ao programa? IL: Gosto bastante da reflexo que se faz sobre o programa. Alis, temos uma certa tendncia para virar sempre tudo ao contrrio, para virar o programa todo e tentar p-lo em discusso. Acredito que uma das funes do arquitecto exactamente demonstrar como que um determinado programa se pode pr em prtica. O programa, em si, enuncia coisas, mas no arquitectura, no sequer um projecto. As formas de pr aquele programa de p so variadssimas e por isso implicam uma atitude crtica. Por exemplo, neste trabalho que estamos a fazer da reabilitao das escolas, o programa um dos temas fundamentais. Uma das coisas que acho bastante interessantes neste processo a possibilidade de discusso O programa tem sido muito construdo em conversase reunies, com muita gente que est envolvida neste processo. E isso uma mais-valia para o projecto. O arquitecto Carrilho da Graa dizia uma coisa muito interessante para explicar a importncia do programa

    na arquitectura. Ele dizia que o programa em arquitectura era como o tema para os pintores do Renascimento. uma espcie de primeiro motor da inveno e no um entrave ou uma limitao.

    arq|a: A sua obra atravessada pela temtica da paisagem, desde a frente martima da Pvoa do Varzim at ao parque urbano em Brescia, passando pela Faculdade de Coimbra, ou mesmo a Casa do Magoito. Como definiria a relao dos seus projectos com a paisagem?IL: Mais do que com a paisagem essa relao com o territrio. Digo territrio porque comea a ser uma questo muito fsica. Isto porque, quando estamos a construir num determinado territrio, temos que prepar-lo, para depois construir nele. o primeiro acto do projecto. por isso que digo aos meus alunos que construir no uma coisa doce e frgil mas uma coisa muito interventiva e transformadora. Ns cavamos buracos, muitas vezes maiores do que aquilo que vamos

    Foto: Leornado FinottiRequalificao de Armazns para Produtora Garage Films, Lisboa, 2006

    Costumo dizer que os projectos de arquitectura que mais me fascinam so exactamente aqueles onde consigo chegar, parar e, passado algum tempo, quando me perguntam por

    eles, consigo descrev-los. No num sentido exacto, mas como uma espcie de sensao que aquele momento me produziu. Mais do que ordenar o mundo isto criar momentos

    em que as pessoas possam parar e usufruir ou experimentar um determinado espao.

  • 054 arq|a Fevereiro 2009

    construir, e portanto estamos a destruir o territrio para o refazer. E se queremos repor a situao inicial temos que o perceber. Portanto, existe uma espcie de continuidade. Por outro lado, existem trabalhos de paisagismo muito ligados ao arquitecto Joo Gomes da Silva, que so de outro tipo, e para mim funcionam acima de tudo como fonte de aprendizagem. So trabalhos onde, muitas vezes, se inverte o papel, ele coordena e eu participo. O que interessante que ele no me convida propriamente para fazer os edifcios para o parque que ele est a desenhar. Desenhamos o espao em conjunto, mesmo tendo em conta a complementaridade dos nossos saberes. Cruzar estes saberes vai com certeza produzir parques um bocadinho diferentes daquilo que seria se trabalhssemos sozinhos. A Faculdade de Desporto de Coimbra foi, a este nvel, interessante. O programa tinha a particularidade da rea de construo dos espaos exteriores ser maior do que a dos espaos interiores. Portanto, os espaos exteriores eram determinantes. A certa altura estvamos completamente perdidos com o trabalho, e cheguei a um ponto em que disse que o espao mais importante de tudo isto era a pista de atletismo. Este que era o espao de representao deste edifcio e isso construiu mais ou menos tudo aquilo que o projecto acabou por ser: uma srie de plats para pousar espaos exteriores. Este trabalho permitiu-me perceber que estamos sempre a construir espao.

    arq|a: Costuma afirmar que os projectos so to mais interessantes quanto maior for essa primeira fase para equacionar o problema, defendendo uma investigao muito mais alargada e produtiva. Como caracterizaria o seu processo criativo e o que motiva a abertura e intensidade dessa pesquisa inicial?IL: Quando digo que esse momento inicial importante, estou a referir a obrigao de conseguir pr tudo em cima da mesa, o programa, o stio, as questes econmicas, as construtivas, etc. Procuro reunir toda a gente numa fase em que ainda no existe projecto. Isto permite reduzir

    as variveis atravs do confronto com outras pessoas. Portanto, h muito mais uma espcie de seleco conjunta das variveis a que vamos responder. Acho que extremamente importante no processo do projecto. Depois a partir da que preciso experimentar. Pressupe uma experincia aberta, ou seja, experimentar sabendo que vou voltar continuadamente a repetir. Luto bastante, quando dou aulas, porque tenho uma certa sensao, talvez devido presena dos computadores, de que os alunos acham que quando se concretiza se fecham as coisas. Pelo contrrio, gosto de concretizar para poder dizer que no est certo e voltar ao princpio. Podemos imaginar que por vezes se torna um pouco cansativo mas, na verdade, no o desde que a concretizao no seja mais do que aquilo que necessrio para poder testar alguma coisa. Por outro lado, tambm luto imenso contra essa tendncia das mquinas de produo, de fazer desenhos muito acabados de algo que ainda no tem maturidade. Isso o pior que pode acontecer. De repente houve imenso esforo para concretizar aquilo e bvio que aquilo no est bem e a ideia no seria concretiz-lo j. por isso que digo que concretizar mais experimentar do que finalizar. Da o meu gosto de trabalhar com maquetas e de desenhar mo, quase sem recorrer ao computador. S quando chegarmos a um caminho que comeamos a desenhar com outro tipo de rigor e informao. At l, tenho uma certa tendncia para travar o processo. Mas, quando a soluo est encontrada j no tenho tendncia de pr tudo em causa a meio do processo de realizao. Nessa altura, gosto de levar as hipteses o mais longe possvel para poder aperfeio-las.

    arq|a: Torna-se quase impossvel perceber os seus projectos a partir de uma leitura bidimensional dos desenhos tcnicos. Diramos mesmo que s tridimensionalmente se conseguem perceber os Anfiteatros ou a Chancelaria. a maqueta o elemento crucial na formalizao dos vossos projectos? IL: Acho que o desenho um instrumento muito perigoso, pelo menos para mim. Gosto imenso de desenhar a rigor e at gosto de desenhar no computador. Mas este um processo um pouco vertiginoso e que tem a ver com questes grficas, de acertos, de dimenso, etc., em que, por vezes, sinto que me posso perder. Tenho uma certa tendncia, e uma luta comigo prpria, de pr tudo em jogo de uma vez s atravs do experimentar da maqueta. Este processo exige uma ginstica mental, que acho extremamente importante, que se realiza no mbito da tridimensionalidade. A situao mais grave dessa impossibilidade de leitura bidimensional foi num projecto para bidos. A casa tem dois pisos e fizemos contas com meios pisos, e j ningum percebia nada. Depois fizemos uma maqueta que clarificou a leitura do projecto. Ns resolvemos os projectos na maqueta e no nos desenhos. Fazemos uma srie de maquetas a diferentes escalas e os desenhos vo apenas aferindo escalas e dimenses. A maqueta est sempre frente da representao. Os desenhos finais so a representao daquilo que j est definido.

    arq|a: A complexidade dos sistemas de circulao e acesso dos projectos de facto uma caracterstica definidora do seu trabalho

    Requalificao de Edifcio para o Ncleo Museolgico e Residncias da Ordem So Joo de Deus em Portugal, Telhal, Sintra, 2003 - 2009

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  • 055Fevereiro 2009 arq|a

    IL: verdade. Eu acho que a forma como se circula determinante para encontrar os tais espaos. Tenho um certo fascnio pelas escadas. A forma de chegar sempre extremamente interessante. As escadas dos Anfiteatros foram a coisa mais difcil de desenhar, e creio que nos tomaram 90% do tempo de trabalho.

    arq|a: As suas maquetas so muito puras e recorrem a poucos materiais. Como que d esse passo entre a tridimensionalidade e a matria?IL: Li h algum tempo algo do Peter Zumthor, creio que no Thinking Architecture, onde ele diz que nunca faz maquetas brancas. Ele passa logo para o sistema construtivo, para a matria. E acho que ele tem razo, a matria fundamental. Venho de uma escola, a do Carrilho da Graa, onde a maqueta branca um tema. Essa ausncia da matria no desenho das coisas no uma coisa assumida, pelo contrrio, acho que a matria nos seus projectos extremamente importante, mas o processo de trabalho retira, muitas vezes, a materialidade das coisas. Tambm sinto isso aqui quando estamos a trabalhar. Ns temos uma certa tendncia para, ao mesmo tempo que estamos a produzir as tais maquetas e a trabalhar escala do todo, fazer ao lado desenhos quase de pormenor dos sistemas construtivos que estamos a pensar que vo construir o edifcio. Muitas vezes, fazer chegar uma coisa outra, no evidente. Depende um bocadinho das situaes, por exemplo, no edifcio de vora a estrutura metlica, estrutura que nunca tinha feito na vida, aparece simplesmente por se tratar de um sistema barato. Portanto, esse trabalho tornou-se muito interessante porque houve participao desde o incio das estruturas e ns tivemos que fazer um esforo enorme para conjugar essas duas formas de pensar. Por um lado, estar aqui permanentemente a discutir e a reflectir sobre como vamos construir um edifcio em estrutura metlica e, ao mesmo tempo, com as nossas maquetas,

    simplificadas e brancas, conjugar as duas coisas e ir de encontro queles dois universos. O caso de vora foi o primeiro em que o sistema construtivo se tornou muito presente. Nos Aores, isso tambm aconteceu quando decidimos construir aquela cobertura em vidro na biblioteca. Temos tambm uma certa tendncia para inventar ou descrever coisas que ainda no sabemos como que se constroem. Talvez a esse nvel arrisquemos um bocadinho. s vezes, passamos momentos de grande angstia, porque afinal no sabemos como isto se pode construir. Mas tambm gosto desse desafio, de inventar esses universos e depois ter de ir perceber como que eles podem ser materializados.

    arq|a: Afirmou acerca dos males da formao dos arquitectos em Portugal: Somos formados e educados para ser arquitectos autores. Qual , no seu entender, o campo de actuao do arquitecto na contemporaneidade?IL: Tem de ser o mais alargado possvel. Ns somos muitos e isso uma coisa que, hoje em dia, est a ser discutida a nvel legal. Esto--se a fazer novas leis para no perdermos espao de actuao. E esse espao de actuao amplo, o de projectista, de fiscal de obra, de tcnico camarrio, etc. No podemos perder espao de actuao e temos que fazer passar a mensagem de que a qualidade da arquitectura est dependente de todas estas actuaes. Faz uma diferena brutal, chegar-se a uma obra e ter um ptimo coordenador, como ptimo ter um bom preparador de obra, e por a fora. Tudo isto so trabalhos onde o arquitecto deve estar presente, para contribuir para a qualidade de construo em Portugal. Um arquitecto a trabalhar num atelier no menos importante do que um arquitecto a fazer preparao de obra. Aqui, no atelier, os melhores arquitectos que colaboram comigo so os que acompanham as obras. isso que interessa e fundamental. a que se est a definir tudo.

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    Requalificao do Conjunto de Habitao Municipal Rainha D. Leonor, 2005 - 2009