ARQUITETURA NO CINEMA, CRÍTICA E PROPAGANDA
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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE ARQUITETURA E URBANISMO
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ARQUITETURA E URBANISMO
RAIMUNDO LUS FORTUNA CHAGAS
ARQUITETURA NO CINEMA,
CRTICA E PROPAGANDA
SALVADOR 2008
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RAIMUNDO LUS FORTUNA CHAGAS
ARQUITETURA NO CINEMA,
CRTICA E PROPAGANDA
Dissertao apresentada ao Programa de
Ps-Graduao em Arquitetura e Urbanismo,
Universidade Federal da Bahia, como requisito
Parcial para obteno do grau de Mestre.
rea de Concentrao: Restaurao
Orientadora: Profa. Anete Regis Castro Arajo
SALVADOR
2008
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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE ARQUITETURA E URBANISMO PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ARQUITETURA E URBANISMO
RAIMUNDO LUS FORTUNA CHAGAS
ARQUITETURA NO CINEMA, CRTICA E PROPAGANDA
Dissertao para obteno do grau de Mestre em Arquitetura e Urbanismo
Salvador, 30 de setembro de 2008
Banca Examinadora:
Anete Regis Castro de Arajo (UFBA.) Doutora em Arquitetura e Urbanismo
Elyane Lins Correia (UFBA.) Doutora em Arquitetura e Urbanismo
Vra Dantas de Souza Motta (UNEB) Doutora em Artes Cnicas
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memria de Helena, minha me
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AGRADECIMENTOS
A minha orientadora, Profa. Anete Regis Castro de Arajo, pelo inestimvel estmulo e
dedicao.
A Odete Dourado pelo incentivo e ajuda no incio, durante e no fim.
A Vera Motta, pela colaborao indispensvel.
A Elyane Correia Lins pelo apoio e incentivo.
A Any Ivo, pela amizade e colaborao.
s seguintes pessoas que colaboraram durante o processo da realizao deste mestrado:
Prof. Alberto Olivieri
Heitor Reis
Leni Silverstein
Lcia Mello
Margareth Leonelli
Prof. Mrio Mendona
Sylvandira, Secretria do PPGAU
Sahada Mendes - Diretora de Operaes do IRDEB
e ao Programa de Ps-Graduao em Arquitetura e Urbanismo
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Habita-se o real e vive-se o imaginrio.
Carlos Antonio Leite Brando, 2005
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RESUMO
Este trabalho sobre a relao entre cinema e arquitetura. Investiga a representao da arquitetura no cinema, com nfase na crtica e na propaganda arquitetura modernista. Seu principal objetivo compreender, atravs de uma pesquisa baseada em filmes como fonte primria, e na literatura j disponvel sobre o assunto, como essas duas artes se interconectam. Inicialmente, estudado, de uma maneira geral, o papel da arquitetura nos filmes desde o advento do cinema, abordando aspectos como: o arquiteto personagem, espaos reais ou construdos e ainda a utilizao de elementos arquitetnicos na construo simblica da narrativa. Para entender como se deu a propaganda e crtica da arquitetura modernista no cinema, foram analisados quatro filmes: Vontade Indmita, de King Vidor, Lar, Meu Tormento, de H.C. Potter, ambos de 1948 e, Meu Tio (1958) e Playtime, Tempo de Diverso (1967), ambos de Jacques Tati.
Palavras-chave: arquitetura; arquitetura modernista; cinema; crtica; propaganda.
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ABSTRACT
This dissertation deals with the relation between architecture and cinema. It investigates the representation of the architecture within the cinema while emphazing modernist architecture criticism and propaganda. Its principal aim is to understand, through an investigation based into films as primary sources as well as the literature already available on the subject, how these two forms of art interconnect. In the beginning it was necessary to make a general account of the architectural role within the films since the beginning, by approaching aspects like the character-architect; real and constructed spaces as well as the utilization of architectural elements which contributes to the narration symbolism. In order to understand how modernist architectural criticism and propaganda have happened, four films were analysed: The Fountainhead, by King Vidor, Mr. Blandings Builds his Dream House, by H. C. Potter, both dated 1948, and Mon Oncle (1958) and Playtime (1967), both by Jacques Tati.
Keywords: architecture; modernist architecture; cinema; criticism; propaganda.
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SUMRIO
APRESENTAO 11
INTRODUO 14
CAPTULO I ARQUITETURA NO CINEMA 18
A arquitetura seduz o cinema 27
O som chega ao cinema atravs da cidade 36
Os arquitetos so seduzidos pelo cinema 38
Cidades reais e imaginrias 44
Um cinema de escadas, janelas e portas 47
CAPTULO II PROPAGANDA DA ARQUITETURA: VONTADE INDMITA (1948) 54
A inspirao nos arranha-cus 57
Qualquer semelhana mera coincidncia? 60
Inspirao na arquitetura, pastiches e elos de ligao 65
Roark, santo ou fascista? 69
Mr. Simms e Mr. Roark, duas faces de uma mesma moeda 73
Propaganda tardia 78
CAPTULO III CRTICA ARQUITETURA: MEU TIO (1958) E PLAYTIME (1967) 82
O velho e o novo 84
A casa dos Arpel 88
Entre dois mundos 97
Tempo de diverso 100
Elementos recorrentes 106
CONSIDERAES FINAIS 111
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REFERNCIAS 114
FILMOGRAFIA 118
FONTES 121
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APRESENTAO
Meu primeiro contato com o cinema aconteceu na infncia, como acredito com
muitas outras pessoas da minha gerao. Ir ao cinema naqueles anos, quando a televiso ainda
no havia chegado s nossas casas, era uma celebrao. Uma experincia mgica, s
comparada s encenaes na igreja do bairro, durante a coroao da Virgem Maria, quando
anjinhos saiam detrs do altar com suas asas e aurolas. O cheiro do incenso nos embriagava,
um coro cantava msicas sacras e ramos envolvidos e transportados para algum lugar
desconhecido, entre a terra e o cu. O cinema promovia algo parecido, sobretudo quando os
filmes eram do gnero fantasioso como O Ladro de Bagd, de Michael Powell, O Maior
Espetculo da Terra, de Cecil B. de Mille ou ainda os musicais americanos dos anos 50. Mais
tarde, influenciado pelo fascnio que o cinema exercia sobre mim, passei a fazer pequenos
filmes domsticos em oito milmetros, at vir a me profissionalizar nos anos 80, quando
ingressei na TV Educativa para dirigir programas e roteiriz-los. Contudo, antes de me
profissionalizar na rea do udiovisual, fiz estudos de arquitetura e urbanismo, o que
influenciou meu olhar nos trabalhos que vim posteriormente a realizar.
A maneira de trabalhar os espaos, a composio, os movimentos dos planos e
mesmo a geometrizao na narrativa revelava essa formao em arquitetura. Eu me tornara
passageiro daquele trem do filme dos Irmos Lumire que inaugurara o cinema, e nunca mais
saltei dele, fazendo da janela desse trem a minha tela por onde passavam casas, edifcios, ruas
e cidades. Havia trocado de profisso; contudo, a arquitetura estava l, sempre presente,
mesmo que por vezes, semi-oculta esperando para entrar em cena.
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Um dia, visitando a Cinemateca Portuguesa Museu de Cinema, em Lisboa, no ano
2000, encontrei uma publicao luxuosa intitulada Cinema e Arquitetura de Antonio
Rodrigues.. Pela primeira vez, vi a combinao destas duas artes numa publicao. A partir
deste achado, interessei-me por livros e artigos que tratassem deste assunto. Era uma
descoberta fascinante, prxima a que tive ao assistir ao meu primeiro filme. Cinema e
Arquitetura, o livro em questo, com captulos e fotos abordando vrios aspectos desta
combinao, estimulou-me a iniciar uma pesquisa.
Existe muito o que ler sobre cinema. Existe muito muitssimo o que ler
sobre arquitetura. Existe muito pouco o que ler sobre arquitetura no cinema.
Inaceitavelmente pouco. uma rea praticamente inexplorada pelos
pesquisadores, principalmente pelos que deveriam ser os principais
interessados, os da rea de arquitetura e urbanismo 1
A maior parte da bibliografia encontrada est escrita em ingls, seguida de francs e
espanhol. No Brasil, alm de alguns artigos escritos na revista Vitruvius, na publicao Rua,
da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFBA, pude encontrar dois livros publicados:
Imagens do Moderno, O Olhar de Jacques Tati de Meize Regina de Lucenas Lucas, e A
Cidade Imaginria, de vrios autores, organizado por Luiz Nazario. Pouco a pouco outras
publicaes, dissertaes e teses apareceram.
Mergulhar na filmografia de grandes diretores, descobrindo a representao da
arquitetura nos filmes policiais, de fico cientfica ou nos filmes em geral, foi um grande
prazer e uma viagem que pretendo continuar por muito tempo. Havia tambm os filmes
1 CASTELLO. Meu tio era um Blade Runner: ascenso e queda da arquitetura moderna no cinema (2002).
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brasileiros, outro campo fascinante a ser pesquisado, embora ainda existam poucos filmes
antigos no formato DVD, o que facilitaria enormemente o trabalho de investigao, pela
possibilidade de v-los quantas vezes fosse necessrio, repetindo seqncias, congelando
planos, fotografando ou capturando imagens.
As livrarias, bibliotecas, cinemas, locadoras e a Internet passaram a ser locais
obrigatrios na minha nova aventura. A troca de informaes com colegas e amigos, o contato
com alguns professores e finalmente as valiosas sugestes da minha orientadora definiram o
recorte, na profuso de escolhas que eu tinha diante de mim. Assim, comeou a se
materializar Arquitetura no Cinema, Crtica e Propaganda.
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INTRODUO
Quando o espectador mergulha no espao-tempo de um determinado filme,
os cenrios, que fazem parte do seu aspecto visual, so de fundamental importncia para as
sensaes que o roteiro e o diretor pretendem criar junto ao pblico. Assim, a cenografia, seja
ela real, manipulada ou construda, tem relao direta com a arquitetura e com os arquitetos.
Os cengrafos, muitas vezes, tm formao de arquiteto. Poderamos tambm
afirmar que, no cinema, os cenrios construdos fazem parte de uma arquitetura ilusria,
perecvel e descartvel, feita para aquele determinado projeto cinematogrfico. Sabemos que a
maioria destes cenrios desfeito, para que seu material seja reciclado em outros cenrios ou
em novos objetos. J foi dito que a obra arquitetnica a nica forma de arte que muitas
vezes destruda para dar lugar a outra ou ainda segundo Rossi, 2 que a cidade um cenrio,
sempre mutvel, onde se desenrola o drama da vida humana.
A relao entre cinema e arquitetura, que vem sendo estudada com mais
intensidade a partir dos anos 1980 - embora saibamos que textos esparsos j haviam sido
publicados desde os anos 1920 quando o cinema passou a ser considerado como uma nova
forma de expresso artstica resultando em importantes mostras de filmes relacionadas a
esta temtica, por cinematecas e universidades da Europa, Estados Unidos, incluindo o Brasil.
Inicia-se assim, uma profcua discusso entre crticos de cinema, arquitetos e comunicadores
visuais.
2 ROSSI. Arquitetura da Cidade (1995).
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Este trabalho prope-se a uma investigao da relao arquitetura/cinema, mais
especificamente, a crtica e propaganda da arquitetura modernista no cinema. Outros autores
j haviam lanado obras referentes ao tema, como o caso de Donald Albrecht em Designing
dreams, modern architecture in the movies, de 1986, ou Dietrich Neumann em Film
Architecture, From Metropolis to Blade Runner, de 1996, obras em que a representao da
arquitetura modernista tratada ou na sua relao com o cinema hollywoodiano ou ento
como resenha histrica deste tipo de arquitetura na filmografia do perodo compreendido
entre os anos 1920 e 1980. Considera-se assim, que este trabalho venha a abrir novas
possibilidades de relaes e percepes neste campo de pesquisa.
Em se tratando de um trabalho que estuda a arquitetura que se inicia nos anos
1920 e vai at os anos 1960, utiliza-se o termo modernizao como uma srie de processos
tecnolgicos, econmicos e polticos, associados Revoluo Industrial e suas conseqncias,
e como modernidade, as condies sociais e experincias que so vistas como efeitos desses
processos, de acordo com Charles Harrison. 3 Em relao ao conceito de Modernismo ou
modernista, utilizamos a interpretao de Giulio Argan 4 que considera como modernismo as
correntes artsticas que na ltima dcada do sculo XIX e primeira metade do sculo XX se
propem a interpretar, a apoiar e acompanhar o esforo progressista, econmico-tecnolgico,
da civilizao industrial.
Para a realizao deste trabalho, foi consultada uma vasta filmografia e obras que
tm relao direta ou indireta com o tema. Deu-se prioridade aos filmes, onde a presena da
arquitetura modernista se faz presente enquanto deco ou como problemtica discursiva no
3 HARRISON. Modernismo (2000), p. 6.
4 ARGAN. Arte Moderna (1993), p. 185.
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interior do prprio filme. A bibliografia utilizada no s se refere historiografia e crtica da
arquitetura do perodo abordado, como tambm produo literria relativa ao cinema.
O texto foi estruturado em trs captulos: o primeiro trata da arquitetura no
cinema de uma maneira mais ampla: a representao da arquitetura nos primrdios do cinema;
a evoluo dos cenrios e advento do expressionismo no espao flmico; as referncias
pioneiras sobre a relao cinema e arquitetura; a introduo da arquitetura modernista no
cinema europeu e hollywoodiano; o advento do cinema sonoro e as cidades; os elementos
arquitetnicos como suporte da linguagem cinematogrfica e, finalmente, o arquiteto como
personagem nos filmes.
O segundo captulo analisa o filme Vontade Indmita de King Vidor como
veculo de propaganda da arquitetura modernista, nos anos ps-guerra e as crticas, surgidas
na poca do seu lanamento, em relao s posies do personagem principal, Howard Roark,
arquiteto romntico e determinado na luta por seus ideais. ainda estudada, a influncia dos
arquitetos modernistas como Frank Lloyd Wright, Louis Sullivan e Mies van der Rohe na
concepo dos personagens, projetos e maquetes do filme. Alm disso, no mesmo captulo, o
filme Lar, Meu Tormento, de H.C. Potter, produzido na mesma poca que Vontade Indmita,
analisado, levando-se em conta as diferenas existentes entre os personagens arquitetos dos
dois filmes - Howard Roark, do primeiro e Mr. Simms, do segundo - enfatizando suas
posies profissionais em relao ao mercado de trabalho.
O terceiro captulo aborda a crtica arquitetura modernista nos filmes Meu Tio e
Playtime, Tempo de Diverso de Jacques Tati, de 1958 e 1967, respectivamente. Neste
captulo analisada a influncia dos avanos tecnolgicos e industriais na vida do cidado,
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atravs da arquitetura no primeiro e as novas formas de urbanizao e a uniformizao na
arquitetura no segundo. Tambm revisto o universo caricatural que o diretor imprimiu a
essas questes em seus filmes, assim como a crtica s suas crticas e ainda sua antecipao
aos movimentos ou obras que viriam a se opor cristalizao de conceitos no seio da
arquitetura modernista.
Espera-se, assim, contribuir para a pesquisa de um tema que permanece atual e
possui ainda muitos aspectos a serem estudados. A transformao que vem ocorrendo no
mbito do audiovisual, com a expanso da tecnologia digital, tem possibilitado, dentre outros,
a informao instantnea, a construo de realidades virtuais e o fcil acesso produo de
imagens e sua manipulao - a partir de aparelhos como o celular ou cmeras digitais
criando, com isso, um universo onde a representao da arquitetura estar presente, podendo
da surgirem novas combinaes.
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CAPTULO I
ARQUITETURA NO CINEMA
A arquitetura j estava presente na primeira exibio pblica de um filme no final do
sculo XIX, precisamente em 28 de dezembro de 1895, em Paris, mostrando a chegada de um
trem numa estao: LArrive du Train en Gare de La Ciotat, dos irmos Lumire.(Figura1)
O espetculo, que s dura meio minuto, mostra um trecho da plataforma
ferroviria banhada pela luz do sol, damas e cavalheiros caminhando ali, e o
trem que surge do fundo do quadro e avana em direo cmera. medida
que o trem se aproximava, instaurava-se o pnico na sala de projeo, e as
pessoas saam correndo. Foi nesse momento que nasceu o cinema, e no se
tratava apenas de uma questo de tcnica ou de uma nova maneira de
reproduzir o mundo. Surgira, na verdade, um novo princpio esttico 5
Havia ainda pequenas peas flmicas feitas pelos irmos inventores que mostravam
operrios saindo de fbricas, ruas movimentadas, enfim, cenas do dia-a-dia. (Figura 2)
Figura 1: O trem dos irmos Lumire.
Figura 2: Operrios saindo da fbrica.
5 TARKOVSKY. Esculpir o Tempo (1998), p.70.
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Com a popularizao e sucesso do novo invento, os realizadores da poca criaram
vrios outros pequenos filmes, em que a cidade e suas arquiteturas eram elementos
fundamentais para dar veracidade s situaes encenadas. Diversos aspectos da realidade
eram mostrados, como: nmeros de teatro vaudeville, gags, pornografia e prestidigitao,
como relata Arlindo Machado,6 acrescentando ainda que os catlogos dos produtores da poca
classificavam os filmes produzidos como paisagens, notcias, tomadas de vaudeville,
incidentes, quadros mgicos e outros ttulos.
Os primeiros filmes do sec. XX, com suas vises panormicas, nada mais
eram do que incorporaes do desejo moderno de visualizao do mundo,
que por sua vez, tinha relao direta com a atrao exercida pelo
movimento das ruas e a circulao de homens e mulheres na cidade. Nesses
filmes, a cmera praticava movimentos circulares, verticais e horizontais,
oferecendo viagens visuais atravs dos espaos urbanos que variavam das
perspectivas panormicas ao nvel da rua s vistas areas. No apenas as
vistas urbanas se movimentavam, mas a prpria tcnica de representao
aspirava o movimento 7
A vocao da arquitetura como cenrio possibilitou um grande encontro com o
cinema. Vinte anos depois, isto veio a ocorrer de forma mais significativa com a construo
de grandes cenrios para superprodues. Cabria, filme italiano de Giovanni Pastroni, de
1914 ou Intolerncia de David W.Griffith de 1916, utilizaram cenrios grandiosos,
representando Roma Antiga no primeiro e a Babilnia no segundo. O filme de Griffith teria
6 MACHADO. Pr-cinemas & ps-cinemas (2005), p. 80.
7 COSTA. A cidade como cinema existencial (2006), p.34.
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sido influenciado pelo de Pastroni, e at hoje, o cenrio principal de Intolerncia referncia
como marco de grandiosidade no cinema. Os chamados filmes histricos ou pseudo-
histricos tiveram como gnese, Cabria e Intolerncia. Pastroni encomendou os dilogos
escritos (o filme era mudo) ao poeta italiano Gabriele DAnuzzio e introduziu algumas
inovaes, como o uso do travelling. Em Intolerncia, Griffith trabalhou com a diferena de
planos e movimentos de cmera, sendo considerado o inventor da linguagem
cinematogrfica.8 (Figuras 3 e 4)
Figura 3: Cenrios de Cabria.
Figura 4: A Babilnia em Intolerncia.
Ao longo do desenvolvimento do cinema, que mostrava em imagens, alm da vida
cotidiana, lutas, anseios, temores e conquistas da humanidade, a arquitetura passou a ser ento
personagem, tendo uma presena marcante. A arquitetura tambm funcionou como
representao de estados psicolgicos, 9 de pocas passadas ou futuras, nos filmes de fico
cientfica, ou de civilizaes fantsticas inspiradas em literatura do gnero. Os filmes eram
rodados em espaos construdos ou reais, modificados ou no de acordo com as necessidades
8 Ver EWALD FILHO. Dicionrio de Cineastas (2002), p. 303 e SADOUL. Dictionnaire des Cinastes (1977),
ps. 104, 105 e 175. 9 Os filmes fantsticos dos anos vinte e trinta, alguns filmes de Alberto Cavalcanti como Rien Que les Heures
(1926), Le Train Sans Yeux, (1928), ou ainda, filmes expressionistas, a exemplo de O Gabinete do Dr. Caligari, de Robert Wiene, (1920), e Nosferatu, o Vampiro, (1922), de Friedrich Murnau, que utilizaram esse recurso.
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do roteiro, oramento da produo ou estilo do diretor. Os cenrios, que serviam em geral
como fundo para a ao dos atores, em alguns filmes passaram a ser protagonistas. (Figura 5)
Figura 5: 48 Horas (1942). Alberto Cavalcanti.
A partir dos anos 20, o cinema foi reconhecido como uma nova forma de expresso
artstica graas a alguns filmes como O Gabinete do Dr. Caligari, de Robert Wiene, (1920), O
Encouraado Potemkin, de Sergei Einsenstein, (1925) ou ainda Ouro e Maldio, de Erich
Von Strohein, (1925), dentre outros. Muitos intelectuais e artistas escreveram artigos, como a
escritora Virginia Woolf, por exemplo, exaltando o cinema. (Figuras 6, 7 e 8)
Depois de ter visto em 1926, o filme O Gabinete do Dr. Caligari de Robert
Wiene em Londres, Virginia Woolf descreveu entusiasmada a arquitetura
que o novo meio poderia criar, uma arquitetura fantasiosa, feita de arcos e
muralhas recortadas, quedas dgua e fontes crescentes, como as que nos
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visitam s vezes em sonhos ou se formam na semi-obscuridade de aposentos.
Nenhuma fantasia poderia ser to improvvel ou insubstancial 10
Figura 6: Cenrio expressionista em O Gabinete do Dr. Caligari.
Figura 7: Rosto em O Encouraado Potemkin.
Figura 8: O Encouraado Potemkin.
Em sua anlise, Virginia Woof via tambm a possibilidade do encontro entre o
cinema e a arquitetura, quando as intensas e excitantes experincias de vida numa cidade
moderna eram mostradas nos filmes. 11 O arquiteto Adolf Loos, outra personalidade
10 NEUMANN. Film Architecture, From Metropolis to Blade Runner (1996), p.7 (traduo livre).
11 NEUMANN. Film Architecture, From Metropolis to Blade Runner (1996), p. 7 (traduo livre).
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encantada com o cinema, destacou os cenrios do filme O Gabinete do Dr. Caligari como
representao da insanidade do personagem principal, o que demonstrava como aqueles
cenrios participavam estilisticamente de uma importante discusso sobre a tendncia da arte
da poca, no caso, o expressionismo. 12 (Figura 9)
Figura 9: Cartaz de O Gabinete do Dr. Caligari.
Outros arquitetos escreveram sobre filmes, a exemplo de Hugo Hring que, em artigo
intitulado Filmbauen, em 10 de junho de 1924, explicava a diferena entre se construir um
12 (IDEM)
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edifcio verdadeiro e se construir um edifcio para um filme. 13 Ou ainda Bruno Taut em
Knstlerisches Filmprogramm de 1920, criando categorias para os filmes e enumerando
suas contribuies arte.14
Rudolf Arnheim, terico de artes visuais e representante da escola gestaltista de
psicologia, escreveu em 1932 o clssico Film as Art, onde analisa a construo do filme e sua
linguagem. O livro, ainda hoje reeditado, foi um marco na defesa do cinema como meio de
expresso artstica no necessariamente naturalista.
Walter Benjamin, filsofo e socilogo, no captulo A Obra de Arte na Era de Sua
Reprodutibilidade Tcnica, do livro: Magia e Tcnica, Arte e Poltica, escreveu:
Na melhor das hipteses, a obra de arte surge atravs da montagem, na qual
cada fragmento a reproduo de um acontecimento que nem constitui em si
uma obra de arte, nem engendra uma obra de arte, ao ser filmado.15
O cinema passava ento a ser assunto de discusso, de anlise e suas inmeras
combinaes com outras linguagens, como a literatura, a pintura, a psicanlise, a msica, o
teatro, a filosofia ou a poltica eram temas que estimulavam essas discusses nos meios
artsticos, intelectuais e cientficos da poca. dentro desse quadro de vinculaes que a
relao entre a arquitetura e o cinema inspira uma vasta produo de artigos e discusses
durante a Repblica de Weimar, na Alemanha, por arquitetos, escritores e crticos de arte.
13 (IDEM), p.187.
14 (IDEM), p.183.
15 BENJAMIN. Magia e Tcnica, Arte e Poltica (1996), p. 178.
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O cinema, como tambm a arquitetura, trabalha na construo de espaos e ainda na
relao espao/tempo, fator essencial nessas duas formas de expresso. Numa obra
arquitetnica, o observador necessita de tempo para percorrer o espao da obra, enquanto no
cinema o observador, na sua poltrona, percorre virtualmente o mesmo espao atravs da
montagem dos planos, estticos ou em movimentos, que vo dar a impresso daquela
arquitetura. Existem filmes onde o diretor cria com o montador espaos mentais, referncias a
memrias espaciais ou mesmo memria de algo que s existiu em sua fantasia num
determinado instante.
Exemplos dessas experincias so encontrados em filmes do cineasta francs Alain
Resnais, especialmente em Hiroshima, Mon Amour, de 1959, O Ano Passado em Marienbad,
de 1961 ou ainda em Muriel ou O Tempo de um Retorno, de 1963. Em Hiroshima, Mon
Amour, a personagem, uma atriz francesa de cinema, relembra seu sofrimento durante a
segunda guerra, em espaos onde viveu um amor proibido com um soldado alemo, fazendo
paralelos com a destruio de Hiroshima, onde ela atua em um filme. Curiosamente, seu novo
amante, um arquiteto japons. O cinema e a arquitetura se entrelaam nesse filme, atravs da
profisso dos personagens principais. Em O Ano Passado em Marienbad, percorremos
imensos corredores e jardins de um castelo barroco onde trs personagens formam um
tringulo amoroso: uma mulher, seu marido e um suposto amante. Os espaos, por ns
visitados, so imprecisas lembranas de um passado e fantasias mentais da personagem
interpretada por Delphine Seyrig. Muriel uma experincia mais radical. O cineasta cria
cortes no decorrer das aes, para que o espectador complete mentalmente esse lapso espao-
temporal. Para o espectador comum e no acostumado a certas experincias, tudo isso pode
parecer erros de montagem ou emendas na pelcula, embora ele se esforce para completar as
lacunas deixadas propositalmente pelo diretor. (Figuras 10 e 11)
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Figura 10: O espao mental em O Ano Passado em Marienbad.
Figura 11: Hiroshima Mon Amour: o cinema e a arquitetura.
No cinema, pode-se ainda usufruir da simultaneidade, atravs da montagem paralela
ou quando diversas aes se passam ao mesmo tempo dentro da mesma tela. Para o arquiteto
cubano Ricardo Porro, os arquitetos do sculo XX, especialmente Frank Lloyd Wright,
tambm trabalham com a simultaneidade, e um exemplo significativo a Casa da Cascata
(The Falling Water House). (Figura 12)
Se eu falo de Frank Lloyd Wright, que ele trabalha tambm sobre o tema
do espao-tempo. Na sua Casa da Cascata existe uma srie de movimentos
que so simultneos: o movimento da chamin que sobe, o movimento dos
balces que saem, o movimento dos visitantes que fazem um caminho
contornando a casa. O movimento da chamin se ope ao movimento da
cascata, ao movimento da gua, ao movimento dos visitantes que circulam
em torno da casa cujo interior e exterior se projetam ou se distanciam
alternadamente 16
16 PORRO. Parole darchitectes in architecture, dcor et cinma (1995), p. 97 (traduo livre).
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Figura 12: A simultaneidade na arquitetura de Frank Lolyd Wright.
A arquitetura seduz o cinema
Nos anos 1920, a arquitetura passava por um momento de grandes mudanas e um
dos seus mais conhecidos representantes, Le Corbusier, fazia viagens para aprender,
experienciar a vida urbana, construindo sua teoria e apresentando seus princpios de
arquitetura e urbanismo, a fim de difundi-los e defend-los. Uma de suas obras mais famosas,
Les Terrasses construda em 1927 para Gabrielle de Monzie, em Garches, nos arredores de
Paris, serviu como cenrio do filme A Tragdia do Fim do Mundo, de 1931, em uma cena
onde ocorre uma festa de despedida, realizada em um jardim em frente referida casa, por um
grupo de burgueses. (Figuras 13 e 14)
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Figura 13: Villa Garches: o real.
Figura 14: Villa Garches: a representao.
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Tido como um dos primeiros filmes sonoros franceses, A Tragdia do Fim do
Mundo, foi dirigido pelo aclamado diretor Abel Gance (1989-1981). 17 Essa casa, um dos
cones do International Style, da famosa exposio sobre arquitetura realizada no Museu de
Arte Moderna de Nova York, e idealizada por Henry Russel e Phillip Johnson 18 foi tambm
cenrio de mais um filme: LArchitecture dAujourdhui, de 1930, dirigido pelo diretor
francs de origem belga, Pierre Chenal (1904-1990), que mostra tambm a Ville Savoye. Les
Terrasses apresentada no filme como uma mquina de morar, bem ao gosto de Le
Corbusier, que ainda participou do roteiro e faz uma apario. Todas as idias do arquiteto so
expostas nesse pequeno documentrio como material de propaganda sua arquitetura. 19 Paris
naquela poca funcionava como uma caixa de ressonncia para as novas tendncias artsticas,
embora em outros pases existissem movimentos importantes, como a Bauhaus na Alemanha,
o Construtivismo na Rssia ou o Neo-Plasticismo na Holanda.
A arquitetura modernista foi para o cinema um cenrio ideal, pois trazia uma nova
imagem para suas estrias. O cinema era novidade e reconhecido como uma nova forma de
arte, feito para as massas. Walter Benjamin, ainda em seu livro Magia e Tcnica, Arte e
Poltica, escreveu:
O filme serve para exercitar o homem nas novas percepes e reaes
exigidas por um aparelho tcnico cujo papel cresce cada vez mais em sua
vida cotidiana. Fazer do gigantesco aparelho tcnico do nosso tempo o
17 Abel Gance (1889-1981) foi um dos pioneiros do cinema, sendo um dos criadores, junto a D.W.Griffith, da
linguagem cinematogrfica. Seu filme mais famoso, Napoleo, realizado em 1927, introduziu a tcnica de projeo em tela trplice, chamada de Polyvision, precursora do Cinerama. EWALD FILHO. Dicionrio dos Cineastas (2002), p. 275. 18
WARD. Les Terrasses (1985), p.65 (traduo livre). 19
Segundo James Ward, no seu artigo Les Terrasses, publicado na Architecture Review em maro de 1985, existem duas cpias conhecidas do filme de Chenal, uma no Centre National de La Cinematographie in Bois dArcy na Frana e outra no Museum of Modern Art em Nova York. Ainda segundo ele, nessas verses constam a data do filme como de 1927, que seria incorreto, pois a Ville Savoye s foi terminada em 1930, o que faz concluir que o filme deva ter comeado a ser produzido em 1927, da a razo em ter essa data nos crditos.
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objeto das inervaes humanas essa a tarefa histrica cuja realizao d
ao cinema o seu verdadeiro sentido 20
O grande sucesso do cinema junto s massas fez com que produtores e diretores
buscassem nas novas correntes artsticas materiais para introduzir nas suas realizaes. Foi
sobretudo nos filmes de fico cientfica, filmes de gngster, espaos onde aconteciam
transaes financeiras, hotis de luxo ou nos dramas onde os personagens eram bomios ou
frvolos, ou ainda nas moradias dos viles ou num mundo totalitrio e opressivo que essa
arquitetura foi aproveitada, sobretudo por Hollywood. Ela aparecia em lugares de natureza
impessoal, enquanto nas residncias dos heris e heronas, com algumas excees, a
arquitetura era mais tradicional ou mesmo ecltica. (Figura 15)
A introduo da arquitetura moderna no cinema americano, sem
ornamentos e anti-historicista, foi bem mais tardia. Seria um erro supor que
os cengrafos estivessem desatualizados. Algumas idias arquitetnicas de
vanguarda no foram divulgadas nos Estados Unidos antes do final dos anos
1920 e quanto aos precursores locais do moderno (Escola de Chicago,
Wright...) devemos lembrar que foram episdios marginais num contexto
geral decididamente ecltico e conservador. O cinema mostrava coisas muito
variadas e o que no era aceito na vida comum podia se expressar bem num
ambiente ou personalidade fictcias. Ningum na Amrica dos anos 1930
queria viver no castelo do Drcula, mas o cinema o construiu. Do mesmo
modo a extrema sofisticao do moderno que poucos desejariam para si
mesmos, pode se-ver na tela, primeiro do que na vida ordinria 21
20 BENJAMIN. Magia e Tcnica, Arte e Poltica (1996), p.174.
21 RAMIREZ. La arquitectura em El cine, Hollywood, La Edad de Oro (1993), p.243 (traduo livre).
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Figura 15: O espao em Hitchcock, O Correspondente Estrangeiro (1940).
Havia por parte da crtica da poca, a idia de que os cenrios dos filmes eram
carregados de objetos e ornamentos, o que saturava a imagem. Propunham ento o
despojamento na construo desses cenrios, no como um programa arquitetnico de
vanguarda, mas sim no desejo de buscar maior eficcia dramtica. 22
As comdias musicais de Hollywood usaram cenrios grandiosos inspirados nas
linhas da nova arquitetura. Seria talvez uma necessidade de utilizar a imagem de algo novo e
luxuoso em tempos de ps-depresso americana. Havia, porm uma tendncia em adaptar de
maneira mais suave, as tendncias ultramodernistas. (Figuras 16 e 17)
... havia muitas pessoas influentes opinando nesta direo. Allen W. Porter,
diretor da biblioteca de cinema do poderoso MOMA de Nova York, escrevia
22 (IDEM), p.244.
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em 1941 que a modernidade extrema (...) muitas vezes impraticvel... A
arquitetura e o desenho no tm que revelar somente uma nostalgia pelo
passado, mas devem oferecer uma entusiasta recepo ao presente.
Hollywood, com o mais valioso de todos os instrumentos ao seu alcance para
transmitir informaes, pode exercer influncia na propagao de novas
idias que no tenham outras formas de expresso mais venerveis 23
Figura 16: Musicais de Hollywood Belezas em Revista, Lloyd Bacon (1933).
Figura 17: Musical hollywoodiano Mordedoras de 1935, Busby Berkeley (1935).
Outra tendncia nos filmes americanos a partir dos anos 1930 era a inspirao na
esttica da mquina, que estava ento em voga na teoria da arquitetura. Um exemplo disso o
cenrio que representa a arquitetura naval em Nasci para Danar (Born to Dance), de Roy
Del Ruth, (1936), elementos aerodinmicos na decorao do clube dos aviadores em Voando
23 RAMIREZ. La arquitectura em El cine, Hollywood, La Edad de Oro (1993), p.260 (traduo livre).
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para o Rio (Flying Down to Rio), de Thornton Freeland, (1933) ou Palm Days, de A. Edward
Southerland (1932), s para citar alguns. (Figuras 18 e 19).
Los Angeles foi a primeira cidade do mundo concebida por e para o
automvel. O trfego martimo foi incrementado consideravelmente na costa
do Pacfico, sobretudo aps a abertura do canal do Panam... O carro
individual fabricado em srie, o avio, o transatlntico, vo fornecer os
ingredientes iconogrficos fundamentais para uma arquitetura que simboliza
o progresso, a higiene e a velocidade... Le Corbusier fez uma defesa
apaixonada da mquina em Vers une Architecture (primeira edio 1923). 24
Figura 18: Nasci para Danar: musical na era da mquina.
24 (IDEM), p. 260.
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Figura 19: Palmy Days, de A.Edward Sutherland (1932).
A mesma inspirao da esttica da mquina era introduzida em outros filmes
europeus. Um exemplo significativo foi no filme futurista Daqui a Cem Anos (Things to
Come), de William Cameron Menzies, (1936), onde as formas de grandes usinas se
misturavam com outros gneros arquitetnicos, incluindo o expressionismo e projetos
utpicos russos dos anos vinte.25 (Figura 20)
Figura 20: Daqui a Cem Anos de Menzies (1936).
25 RAMIREZ. La arquitectura en el cine, Hollywood, la Edad de Oro (1993), p.263/264 (traduo livre).
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Hollywood, no entanto com seu imenso poder de influncia, ajudava a divulgar a
arquitetura modernista, propagando novas idias, mesmo que muitas vezes de maneira
ambgua ou com elementos tradicionais para introduzir ao grande pblico o que ainda no
havia sido totalmente assimilado.
Em alguns casos havia referncias curiosas, como num filme de Edgard G. Ulmer,
de 1934, O Gato Preto, um grande sucesso da Universal Filmes. O vilo, um arquiteto, mora
numa manso de linhas modernistas, onde um casal procura abrigo aps um acidente com seu
carro e vem a descobrir uma srie de horrores praticados por ele. A manso, com largas
janelas de vidro que vo de uma extremidade a outra das paredes, e os traados de linhas
puras e geomtricas, remetem aos projetos de Le Corbusier. Ela est situada sobre um
cemitrio da primeira guerra mundial, uma obra prima de construo sobre uma obra prima
de destruio, segundo Dietrich Neumann. 26 O nome do vilo, Hjalmar Poelzig, muito
semelhante a Hans Poelzig, um dos mais respeitados arquitetos alemes da poca.
Provavelmente uma provocao do diretor Ulmer, que o havia conhecido quando foi
assistente de cenarista do filme O Golem, Como Veio ao Mundo, de Paul Wegener e Carl
Boese, de 1920. 27 (Figura 21 e 22)
No momento em que filmes freqentemente promoviam a arquitetura
moderna como o maior atributo do progresso e vida moderna, aqui, ela
simbolizava a decadncia europia, resultado direto dos horrores da grande
guerra 28
26 NEUMANN. Film Architecture, From Metropolis to Blade Runner (1996), p.116 (traduo livre).
27 (IDEM)
28 NEUMAN. Film Architecture, From Metropolis to Blade Runner (1996), p.116 (traduo livre).
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Figura 21: Cartaz de O Gato Preto de Edgard G. Ulmer (1934).
Figura 22: O Golem, Como Veio ao Mundo: cenrios expressionistas dos anos 20. Paul Wegener (1920).
Existe ainda nesse filme, um crematrio para animais domsticos dentro das linhas
da nova arquitetura, talvez mais uma referncia sarcstica arquitetura praticada pelo
arquiteto Hans Poelzig... Edgar G. Ulmer realizou muitos filmes em Hollywood, apreciados
pelos crticos e pblico, embora considerados filmes B. Como cengrafo, apesar dessas
referncias aparentemente negativas arquitetura modernista no filme O Gato Preto, ele
sempre introduziu elementos dessa arquitetura nas suas criaes, o que refora a idia de que
sua crtica tenha sido direcionada ao arquiteto alemo, transformado, por ele, em vilo no
filme.
O som chega ao cinema atravs da cidade
Em 1927, o cineasta alemo Friedrick Wilhelm Murnau introduziu o som no cinema,
numa seqncia do filme Aurora. Um casal, vindo do interior, se perde no centro de uma
cidade grande, e todos os elementos visuais e sonoros prprios de uma metrpole, como
trfego intenso, buzinas, apitos de guardas e luminosos, so mostrados com grande fora. A
representao da cidade participava do comeo do cinema falado. A escolha de uma cidade e
de sua arquitetura importante na criao do clima adequado histria que se quer contar.
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Construes arquitetnicas de diversas pocas e estilos so a todo tempo utilizadas como
cenrios de filmes, sejam eles, futuristas, histricos, policiais, de terror. Cidades como Nova
York, Paris ou Rio de Janeiro tm servido de cenrio para um nmero incontvel de filmes.
Veneza, com sua arquitetura caracterstica, utilizada no s em filmes romnticos, como em
muitos outros gneros. A cidade e sua arquitetura passam a ser elementos indissociveis na
construo da imagem de um filme. (Figuras 23 e 24)
... as belas imagens de uma cidade histrica, decadente, macabra, romntica
e secreta s quais associamos a Veneza imaginada pela literatura e pelo
cinema so desconstrudas pela Veneza real, que no cessa, porm, de
inspirar o cinema e a literatura a construir novas imagens da cidade para que
possamos, a cada viagem Itlia, novamente desconstruir Veneza de
nosso imaginrio 29
Figura 23: Imagem de Aurora, de Murnau (1927), em cartaz de palestras.
Figura 24: Veneza em Quando o Corao Floresce, David Lean. (1955).
29 FALCIONI. Desconstruindo Veneza (2005), p.148.
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Os arquitetos so seduzidos pelo cinema
Muitos diretores de cinema foram influenciados pela arquitetura e alguns deles eram
arquitetos ou tinham arquitetos na famlia. Fritz Lang, que realizou Metrpolis, (1926)
- considerada uma obra emblemtica - tem na representao da arquitetura seus pontos mais
significativos. Ele era filho de um urbanista e estudou arquitetura. Sua obra foi influenciada
por sua formao e, segundo alguns crticos, seria ele o mais arquiteto dos cineastas ou o
arquiteto da imagem, dentre tantos ttulos que lhe atriburam ao longo de sua carreira. A
geometria na construo dos elementos nos planos dos seus filmes, assim como na sua
narrativa cinematogrfica e a importncia que a arquitetura possui nas suas imagens
justificavam todas essas denominaes dadas a ele. Lang conhecia a evoluo dos
movimentos na arquitetura, sabia do papel social desempenhado por ela e sua projeo no
futuro. (Figuras 25 e 26)
Figura 25: A cidade futurista em Metrpolis, Fritz Lang (1926).
Figura 26: Os arranha-cus de Metrpolis de Fritz Lang (1926).
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Quando se fala da conjuno cinema/arquitetura, uma das primeiras referncias diz
respeito a filmes como Metrpolis, viso de uma cidade futurista, fortemente opressora,
dividida entre senhores e escravos e inspirada, visualmente, em Nova York, cidade que o
diretor havia visitado alguns anos antes, em 1924, e descoberto seus arranha-cus. (Figuras 27
e 28)
... j no final do sculo passado o arranha-cu o elemento caracterizador da
paisagem urbana americana... 30
Figura 27: Metropolis e seus arranha-cus, Fritz Lang (1926).
30 ARGAN. Arte Moderna (1993), p. 195.
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Figura 28: Os arranha-cus em East Side, West Side de Allan Dwan (1927).
A nova cidade ento passa a ser desumana nesse filme e o expressionismo do
diretor, incorpora tambm uma viso futurista. Metropolis marcou a representao dos
volumes verticalizados das construes modernas nos filmes de fico cientfica. 31 Os
desenhos da cidade futurista, assim como os efeitos com maquetes e jogos de espelho para
nos dar a sensao da cidade em ebulio, at hoje ainda nos surpreendem. Os arranha-cus
de inspirao moderna, de linhas retilneas e os pores sombrios onde trabalham e vivem os
operrios se contrapem aos jardins neoclssicos, espcie de den, onde os filhos das classes
abastadas se divertem. (Figura 29 e 30). A casa do inventor Rotwang, o vilo da estria, tem
sua configurao inspirada no gtico, como se algo malfico, tendo a cincia como suporte,
emergisse de um passado medieval para manipular a massa de indivduos. Metrpolis
31 Modernidade verticalizao... in CASTELO. Meu tio era um Blade Runner:ascenso e queda da
arquitetura moderna no cinema (2002), p.3.
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considerado, por esta e outras razes, como o triunfo mecnico da civilizao industrial, num
filme proftico, que previu o que mais tarde viria a acontecer na Alemanha.
Figura 29: O lazer das elites em Metrpolis de Fritz Lang (1926).
Figura 30: Subterrneos em Metrpolis, Fritz Lang (1926).
Alberto Cavalcanti (1897-1982), famoso diretor brasileiro que realizou grande parte
de sua obra na Inglaterra e na Frana, era arquiteto e comeou como cengrafo. Utilizou
algumas vezes o cenrio de seus filmes para expressar o estado psicolgico dos personagens,
como tetos rebaixados para criar a sensao de opresso. Nicholas Ray, diretor americano que
realizou filmes marcantes entre os anos quarenta e sessenta, como Johnny Guitar, Juventude
Transviada e O Rei do Reis, tambm estudou arquitetura e de alguma forma, sua viso do
espao flmico sofreu esta influncia, como escreveu Paulo Yassuhide Fujioka:
... o grande diretor Nicholas Ray (1911-1979), de Johnny Guitar, (1954) e
Juventude Transviada, (1955), tambm estudou em Taliesin... 32 Ray
manteve com Frank Lloyd Wright uma amizade duradoura que ia alm dos
interesses arquitetnicos comuns. A influncia dos ensinamentos wrightianos
32 A famosa escola de arquitetura fundada em 1932 pelo famoso arquiteto Frank Lloyd Wright.
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determinante para o jovem Ray, que recordar principalmente como estes
tinham ensinado um modo todo particular de pr o olhar sobre as coisas 33
Outros diretores trabalharam em estreita colaborao com arquitetos na construo
dos cenrios dos seus filmes ou mesmo tiveram arquitetos como personagens. Poderamos
enumerar uma srie de filmes em que arquitetos fazem parte do enredo. 34 Muitos so partes
importantes da trama. Em Terra dos Faras, de Howard Hawks, de 1955, um arquiteto
judeu (James Robertson Justice) prisioneiro de guerra, que dever construir a pirmide onde o
fara (Jack Hawkins) dever ser enterrado, porm o arquiteto dever morrer tambm para
guardar o segredo desta obra. O projeto mostrado no filme em maquete, incluindo o
dispositivo que selar a pirmide aps o funeral, para que ningum mais tenha acesso a seu
interior.
Os filmes O Tigre de Bengala e Sepulcro Indiano, primeira e segunda parte de uma
mesma estria, dirigidos por Fritz Lang em 1958, tm como personagem principal um
arquiteto que vai ndia para construir um palcio, projeto que se transformar finalmente em
um tmulo. Embora a ao se concentre no romance proibido do arquiteto com a bailarina
prometida ao Maraj que havia encomendado o projeto, o filme mostra a construo do
projeto, tambm em maquete, e o roteiro, bem ao gosto de Lang, seguir uma rota labirntica
com construes geomtricas no seu desenvolvimento.
Michelangelo Antonioni, outro diretor que, fascinado pela arquitetura, a utilizou em
filmes como A Aventura, de 1959, A Noite, de 1960, O Eclipse, de 1961 ou ainda O Deserto
Vermelho, de 1963. procura de identidade do homem contemporneo, na imensido das
33 FUJIOKA. Presena da arquitetura de Frank Lloyd Wright no cinema (2008).
34 O arquiteto espanhol Jorge Gorostiza fez uma extensa pesquisa sobre filmes com personagens arquitetos
no livro La Imagen Supuesta, Arquitectos en El Cine. Barcelona: Fundacin Caja de Arquitectos, 1998.
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grandes cidades, o olhar do diretor italiano contrape a perplexidade e solido de seus
personagens com edifcios modernistas ou os insere perdidos na desolao da paisagem dos
novos bairros da periferia das grandes cidades italianas nos anos 1960. Os arquitetos ora so
personagens principais como em A Aventura, ora coadjuvantes como em As Amigas, de 1955.
H ainda a estudante de arquitetura (Maria Schneider) em O Passageiro, Profisso Reprter,
de 1975, que acompanha um Jack Nicholson em busca de uma nova identidade, passando
pelos telhados da Casa Mil, obra de Gaudi, em Barcelona, ou em novos conjuntos
habitacionais de Londres.
Diferentemente de Antonioni, os primeiros filmes de Pasolini se passam nos
conjuntos habitacionais de ps-guerra da periferia romana, povoados pela classe proletria. J
em suas ltimas obras, voltou-se para histrias, tendo runas arcaicas como cenrio.
O arquiteto Jean Nouvel, em entrevista publicao CinmaAction, comenta a
relao entre cinema e arquitetura, citando Pasolini.
Creio que o cinema traz muito coisa arquitetura e a arquitetura
algumas, ao cinema, pois o cinema uma forma de escritura e de traduo da
realidade. Muitos filmes so realizados no a partir de um cenrio, mas de
uma arquitetura. o caso de As Mil e uma Noites, de Pasolini que coloca
muito bem em cena a cidade rabe. A contribuio da arquitetura ao cinema
sua presena como tela de fundo em todos os filmes 35
A arquitetura parte importante da nossa realidade e ela no atua somente como
elemento de fundo em todos os filmes. Ela fundo e figura porque em alguns momentos ela ,
35 NOUVEL. Parole darchitects in architecture, dcor et cinma (1995), p. 104 (traduo livre).
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como j vimos, coadjuvante, mas em outros momentos ela assume o papel principal. O
cinema reflete a realidade, mesmo que essa realidade sejam projees dos nossos desejos.
Cidades reais e imaginrias
No cinema, os diretores manipulam as imagens j existentes ou mesmo criam novas
imagens a partir de fantasias. Para isto, contribuem os roteiristas, cengrafos e especialistas
em efeitos especiais. Eles podem criar uma cidade imaginria a partir de uma cidade real ou
mesmo atravs da digitalizao recriar uma cidade real e seus habitantes. Em O Show de
Truman, de Peter Weir, de 1998, um homem criado, desde que nasceu, em uma cidade-
cenrio de um programa de TV, acreditando ser uma cidade real. A cidade-cenrio, chamada
no filme de Seahaven, nada mais do que Seaside, uma cidade real, inaugurada em 1981 na
Flrida, e segundo Lineu Castello, um dos pilares do new urbanism de Andrs Duany e
Elizabeth Plater-Zyberk.36 (Figura 31)
Em termos de arquitetura, o que Duany e Plater-Zyberk esto fazendo
reconstruir, na realidade, alguns dos velhos ideais arquitetnicos norte-
americanos, bem semelhantes queles que eram representados nas pinturas
de Norman Rockwell encomendadas por The Saturday Evening Post, e que
se coadunam perfeio com o iderio do new urbanism. Ou, mais
precisamente, com os sonhos fantasiosos que a Disney Imagineering
Division desenhou quando criou o congraamento de cones que deu forma
s main streets dos ambientes Disney 37
36 CASTELLO. Meu tio era um Blade Runner: ascenso e queda da arquitetura moderna no cinema (2002).
37 CASTELLO. Meu tio era um Blade Runner: ascenso e queda da arquitetura moderna no cinema (2002).
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Figura 31: Seaside em O Show de Truman (1998): real ou cenrio?
O que era real passa a representar fico em O Show de Truman. Outros diretores
criaram cidades imaginrias a partir de duas ou vrias cidades reais. Em Luar Sobre Parador,
de Paul Mazursky, de 1987, Ouro Preto e Salvador passam a ser uma nica cidade. Sonia
Braga, a intrprete principal, ao dobrar uma esquina de Salvador, chega a uma praa de Ouro
Preto como se estivesse em uma mesma cidade. A montagem dos espaos no filme faz com
que o espectador passe de uma cidade a outra, imaginando estar em uma s. O diretor passa
ento a construir e a interconectar espaos, como faz um arquiteto.
Em Blade Runner, O Caador de Andrides, de Ridley Scott, de 1981, mostra uma
Los Angeles do futuro, como uma cidade repleta de estilos arquitetnicos, decorada por
anncios luminosos e com ruas povoadas por uma populao multirracial. Mais uma vez, a
cidade alterada para servir s necessidades da histria do filme ou s escolhas do diretor.
Segundo Lineu Castello, o diretor Ridley Scott, profissional em desenho, pintura e
artes grficas, controlou pessoalmente os elementos visuais do filme, concentrando sua
preocupao sobre a representao da arquitetura da cidade na cinematografia, concluindo
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tambm, que as imagens foram desenhadas pelo diretor para que a aparncia da cidade
remetesse a um futuro de quarenta anos. 38 Vale assinalar que, dentro da mistura de estilos
arquitetnicos de diversas pocas existente no filme, h uma obra de Frank Lloyd Wright, o
exterior da Ennis-Brown House. (Figuras 32 e 33)
Figura 32: Ennis Brown House, de Frank Lloyd Wright (1924).
Figura 33: Esboo dos cenrios de Blade Runner, O Caador de Andrides (1981).
No artigo Presena da Arquitetura de Frank Lloyd Wright no Cinema, Paulo
Yassuhide Fujioka, citando Filippo Fici, 39 diz:
Em Blade Runner, o consultor cenogrfico Syd Mead (veterano e premiado
cengrafo e designer) decidiu ambientar partes inteiras do filme em prdios
histricos de Los Angeles. Os interiores da Ennis-Brown House (que j
tinham sido utilizados em Female 40) foram escolhidos para formar parte do
apartamento do R. Tyrrel e do hall do prdio de apartamentos do
protagonista Decarkd 41
38 CASTELLO. Meu tio era um Blade Runner: ascenso e queda da arquitetura moderna no cinema (2002).
39 FICI. Frank Lloyd Wright e Il cinema, Il cinema e Frank Lloyd Wright (2003). (Traduo Livre).
40 Female, no Brasil, Tu s Mulher, foi dirigido por Michael Curtiz (1888-1962), produo da Warner de 1933.
Curtiz o diretor do famoso filme Casablanca, de 1942. 41
FUJIOKA. Presena da arquitetura de Frank Lloyd Wright no cinema (2008).
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Cinema de escadas, janelas e portas
O cinema utiliza freqentemente elementos arquitetnicos nas suas histrias. De
grande efeito cnico, esses elementos se repetem em inmeros filmes como recurso de
expresso.
As aberturas nas paredes, janelas, portas e corredores por onde se vislumbram outros
espaos ou sucesses deles nos do, na arquitetura, profundidade de campo. Orson Welles
utilizou a com maestria no seu primeiro filme, Cidado Kane, de 1941.
As janelas, recortando uma paisagem, funcionam como telas de cinema. Atravs
delas vemos as nuvens, o vento balanando a vegetao, a tempestade sobre a rua, pessoas
passando ou mesmo outras janelas por onde vemos seus moradores em atividades domsticas.
A prpria tela de cinema uma janela que nos transporta a outra dimenso, seja ela prxima
de nossa realidade, dos nossos desejos, dos nossos medos ou da concretizao de arqutipos
escondidos no fundo do nosso inconsciente. A televiso outra janela, digamos, irm mais
nova do cinema e o computador, ainda mais recente, projetou, com suas incontveis
possibilidades, inmeras janelas para o mundo.
No cinema como na vida real, a janela usada para fugas, situaes romnticas ou
mesmo voyeurismo. Quem no se lembra de A Janela Indiscreta, de Alfred Hitchcock, de
1954, atravs da qual, o fotgrafo interpretado por James Stewart, observa a vida dos seus
vizinhos, descobrindo um assassinato que acontece por detrs de outra janela em frente sua?
Ou um personagem percebendo que algum o est vigiando do outro lado da rua? (Figura 34)
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Figura 34: Janela Indiscreta, de Hitchcock (1954). Elemento recorrente no cinema.
Figura 35: A janela marca a passagem do tempo em Festim Diablico, de Hitchcock (1948).
Lembremos mais uma obra de Hitchcock, Festim Diablico, de 1948 - rodado como
se fora em um s plano seqncia - toda a ao do filme se passa em algumas horas dentro de
um apartamento. Na sala onde esto os convidados existe uma imensa janela de vidro.
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Atravs dela, vemos o cu, as nuvens e a mudana de cores, que nos indica a passagem do
tempo. A janela, mais uma vez, tem funo decisiva como suporte temporal no filme. (Figura
35) No final de Meu Tio, de Jacques Tati, de 1958, a cmera retrocede, deixando ver a cortina
e o caixilho de uma janela, revelando ao espectador o voyeurismo que est implcito ao se
assistir a um filme. 42 Ainda em Meu Tio, o Senhor e a Sra. Arpel, durante a noite, se colocam,
cada um, em uma das janelas redondas no alto da casa, fazendo com que parea que a casa
tenha olhos, vigiando seu exterior.
A porta, outro elemento imprescindvel nas construes arquitetnicas, tambm um
elemento simblico e de grande expressividade no cinema. John Ford inicia um dos seus
melhores filmes, Rastros de dio, de 1956, com a abertura de uma porta para o exterior, por
onde passa o personagem de John Wayne em busca da sobrinha raptada por ndios anos atrs.
A histria, que no caberia contar aqui, termina com o mesmo plano do incio, mas com a
porta se fechando, depois que o mesmo personagem sai outra vez da casa, aps ter resgatado
sua sobrinha. (Figura 36)
Figura 36: A porta em Rastros de dio. John Ford (1956).
42 GOROSTIZA. A Arquitetura Segundo Tati: Natureza Versus Artifcio (1992), p.54.
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Portas, portes e prticos esto presentes em cenas chaves do cinema. Elas delimitam
espaos, cmodos de uma casa ou seu interior com o exterior. Atravess-las significa partida,
invaso, e no poder atravess-las pode significar confinamento ou interdio. Abertas ou
fechadas elas j definem uma situao. Um dos filmes da fase americana do diretor Fritz
Lang, de 1948, chama-se O Segredo da Porta Cerrada. O ttulo indica o papel da porta na
ocultao de um segredo, mostrando seu papel simblico. Vale ainda assinalar que o
personagem principal um arquiteto. Mais uma ligao do diretor com o universo da
arquitetura.
Figura 37: Escada, elemento cinematogrfico (Vaticano).
A escada outro importante elemento arquitetnico desde os primrdios da
civilizao. (Figura 37) Quem teria inventado a escada? A resposta se perde no tempo. Ela
utilizada para alcanar alturas, tem funo religiosa e sobretudo cenogrfica, a respeito da
qual a arquitetura barroca tirou bastante proveito. O estudo de suas funes e utilizao como
elemento simblico atravs dos tempos daria um interessante trabalho. Por sua vocao
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cenogrfica, o teatro a utiliza com freqncia e o cinema a incorporou, criando cenas
antolgicas onde ela exerce papel fundamental.
O drama pico, O Encouraado Potemkin, de Sergei Eisenstein, de 1925, tem na
seqncia das escadarias de Odessa, uma matriz que por muitos anos foi copiada e
reinventada, de Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha, de 1964, a Os Intocveis,
de Brian de Palma, de 1987, passando pelo O Chefo, Parte III, de Francis Ford Coppola, de
1990. Mais uma vez, Hitchcock utiliza outro elemento arquitetnico em uma seqncia
essencial de Um Corpo Que Cai, de 1958, quando James Stewart sobe uma escada em
caracol, tentando impedir o suicdio da personagem de Kim Novak. A construo de uma
maquete da escada e os efeitos criados para a sensao de vertigem do personagem durante a
perseguio so relatados em entrevista concedida ao diretor a Franois Truffaut no famoso
livro Hitchcock Truffaut - Entrevistas. 43 (Figuras 38 e 39)
Figura 38: A escada, palco da tragdia em O Encouraado Potemkin. Sergei Einsenstein (1925).
43 TRUFFAUT. Hitchcock Truffaut, Entrevistas (1986), p. 146.
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Figura 39: A escada e a vertigem em Um Corpo que Cai. Hitchcock (1958).
O cultuado cineasta Pedro Almodvar escreveu sobre a escada como elemento
simblico no cinema:
A escada tem sido um elemento arquitetnico que indica poder e seria
inimaginvel a famlia Amberson em Soberba, de Orson Welles, sem a
presena dessas escadas que comunicam os diversos nveis do drama
familiar. Tambm o mistrio que se refugia nas partes altas de uma escada
(Psicose) ou servem para que as heronas das comdias em preto e branco
dos anos 1940 e 1950 corram de cima para baixo com trajes divinos e gals
de sonhos... 44
44 ALMODVAR. Notas sobre actrices de la familia (2008). (Traduo livre)
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Os elementos da arquitetura utilizados pelo cinema, por si s, dariam uma
dissertao e no pretenso deste trabalho se prolongar neste interessante universo. A
arquitetura como arte do espao-tempo, mas tambm como funo social, foi e ainda
freqentemente utilizada nos filmes. A observao desse universo abre um imenso campo de
pesquisa. O arquiteto como personagem flmico teve poucas vezes discutidas, questes
relativas sua profisso e a sua relao com o mercado de trabalho. Vontade Indmita de
King Vidor, de 1948, filme propaganda da arquitetura modernista, uma das poucas
excees, embora tenha sofrido severas crticas, como veremos no captulo seguinte.
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CAPTULO II
PROPAGANDA DA ARQUITETURA: VONTADE INDMITA
Vontade Indmita (1948) representou, de certa maneira, o primeiro filme a abordar a
questo da arquitetura moderna no cinema de Hollywood, embora desde os anos 1930 esse
tipo de arquitetura tenha sido introduzido nos cenrios dos filmes americanos, ainda que
utilizando elementos decorativos remanescentes do estilo ecltico. Neste filme, o arquiteto e a
arquitetura so os protagonistas principais, e at hoje um dos poucos casos existentes na
histria do cinema. Muitos filmes, como j foi dito antes, tm como protagonista um
arquiteto, mesmo que sua profisso no seja determinante no desenrolar da estria.45
Coube ao famoso diretor americano King Vidor (1895-1982) a realizao do filme.
Vidor, nascido no Texas, estudou inicialmente em uma academia militar, foi projecionista,
cmera de cine jornais e tambm dirigiu alguns curtas-metragens para a religio Cincia
Crist. Comeou no cinema mudo e realizou algumas obras marcantes na histria do cinema.
Seus filmes, segundo os crticos, abordam o tema recorrente do indivduo solitrio na luta
contra um inimigo, seja a sociedade, elementos da natureza ou sua prpria vida.
Quem viu o filme mudo A Turba (The Crowd) jamais o esquecer e olhar
para sempre com respeito para este diretor que, se nunca chegou a ser o que
chamavam de um autor, mas certamente foi um grande profissional de
cinema. Essa opinio conflita com a de alguns crticos que simplesmente o
45 A exemplo de Lar, Meu Tormento, de H.C. Potter, de 1948, filme que ser comentado adiante, em razo de
algumas analogias com Vontade Indmita.
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acham o melhor diretor de Hollywood (teve inclusive cinco indicaes ao
Oscar, ganhando finalmente um honorrio em 1979) 46
O filme A Turba, de 1928, considerado uma das suas obras-primas e, em 1929,
realizou Aleluia, s com atores negros, um dos primeiros filmes falados. A famosa seqncia
da msica Over the Rainbow no filme O Mgico de Oz, de Victor Fleming, 1939, foi dirigida
por Vidor, embora seu nome no conste nos crditos. Foi em 1948 que dirigiu Vontade
Indmita, um dos poucos filmes a alar o arquiteto a uma categoria nunca antes mostrada no
cinema. A vida de um arquiteto modernista e suas vicissitudes dentro de uma sociedade
americana conservadora constitui o eixo central do enredo.
Poderamos resumir o filme da seguinte maneira: Howard Roark (Gary Cooper) um
arquiteto idealista que defende suas idias contra os projetos tradicionais da poca em que se
passa a histria, nos anos 1940. Aps uma srie de derrotas no campo profissional, devido s
suas idias radicais, resolve trabalhar como operrio em uma pedreira, onde conhece a
personagem - Dominique Francon - interpretada por Patricia ONeal, uma crtica de
arquitetura, com quem vem a ter uma intensa histria de amor. Com grande dificuldade,
Roark consegue voltar a fazer pequenos projetos modernistas, como postos de gasolina e
residncias. Aceita tambm projetar um conjunto habitacional para outro arquiteto, Peter
Keating, antigo colega de faculdade que assumir a autoria desse projeto. Ao contrrio de
Roark, Keating se curva s exigncias do mercado e seu ideal fazer fortuna. Roark impe
uma condio ao aceitar a proposta, de que o projeto seja construdo sem modificaes, o que
na prtica no ocorre. Ao ver as transformaes descaracterizarem o projeto original, Roark
dinamita-o, com a ajuda de Dominique. Condenado, ele faz a sua prpria defesa no tribunal.
46 EWALD FILHO. Dicionrio de Cineastas (2002), p. 739.
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De forma convincente, defendendo a liberdade de criao do artista e o respeito integridade
da obra, ele absolvido. 47 (Figuras 40 e 41)
Figura 40: Cartaz do filme Vontade Indmita.
Figura 41: Gary Cooper, famoso gal de Hollywood, interpreta o arquiteto Howard Roark.
Muitos acharam semelhanas deste personagem com o protagonista de Cidado
Kane (1941), de Orson Welles, um self-made man americano. Uma forma pica de fora
interior, onde a condio material do mundo externo pouca importncia teria. 48 Cidado
Kane estaria para o mundo da imprensa assim como Vontade Indmita estaria para o mundo
da arquitetura. No primeiro, o protagonista teria sido inspirado no magnata da imprensa
americana, William Randolph Hearst e, no segundo, o personagem Howard Roark, no
47 Tambm em A Aventura, de Michelangelo Antonioni, 1959, o personagem principal, um arquiteto vivido pelo
ator Gabrile Ferzetti, revela em alguns momentos do filme seu desencanto pela profisso, num mundo capitalista. O mercantilismo e o idealismo na profisso do arquiteto tambm so discutidos em O Sonho do Arquiteto, de Peter Greenaway, de 1987. O personagem desse filme tambm arquiteto e chega a Roma para montar uma grande exposio sobre o arquiteto francs Etiene Louis Boull (1728-1799). 48
GADANHO. Vontades Indmitas ou o Romantismo do Olhar Moderno (1999), p. 216.
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arquiteto Frank Lloyd Wright. 49 O personagem principal, que seria interpretado pelo ator
Humphrey Bogart, como queria o diretor King Vidor, acabou sendo substitudo pelo gal
Gary Cooper.
A inspirao nos arranha-cus
O roteiro de Vontade Indmita, baseado num best-seller da escritora Ayn Rand,
grande sucesso desde seu lanamento em 1943, ainda hoje reeditado e vendido. Ayn, alis,
Aline Rosenbaum, de origem judaica, nasceu em So Petersburgo, na Rssia Czarista.
Imigrou para os Estados Unidos, em 1925, fugindo do comunismo, durante um perodo de
relaes renovadas entre o Ocidente e a Rssia, deixando para trs uma vida de dureza e
privaes. Segundo a crtica da poca, utilizou a mstica do mundo arquitetural modernista, o
arquiteto como profissional visionrio e de criatividade marcante, alm de sua importncia na
reconstruo das cidades entre as duas grandes guerras, para inserir a sua ideologia pr
capitalista, glorificando os valores individualistas contra qualquer forma de coletivismo,
dentro de antigos padres patriticos americanos, explicado talvez por suas origens. 50
Segundo o escritor Otto Friedrich em seu livro A Cidade das Redes, Hollywood nos
Anos 40, a inspirao da escritora ocorreu quando viu, ainda na Rssia, fotografias dos
arranha-cus de Nova York. Quis escrever sobre os homens que tinham construdo aquilo. 51Ayn Rand passou trs anos pesquisando para o romance, chegando a trabalhar como
datilgrafa num escritrio de arquitetura. Aps vrios anos reescrevendo o livro, o mesmo foi
finalmente publicado em 1943, por um editor conservador, j que outras editoras o haviam
49 No artigo LOmniprsence de lArchitecture chez King Vidor, Franoise Zamour cita que Richard Neutra
reivindicou toda sua vida um parentesco com o personagem Howard Roark do filme de King Vidor. ZAMOUR (1995), p. 58. 50
LEVINSON. Tall Buildings, Tall Tales (2000), p. 29. 51
FRIEDRICH. A Cidade das Redes, Hollywood nos Anos 40 (1988), p.391.
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recusado. O romance tornou-se um best-seller, apesar das crticas, na maioria, hostis. A
publicao do romance, para Donald Albrecht, anunciou ao pblico americano o novo status
da arquitetura modernista como estilo do establishment. 52 (Figura 42)
Figura 42: King Vidor, Ayn Rand e Gary Cooper durante as filmagens.
O romance, 53 de aproximadamente setecentas pginas, foi adaptado pela
prpria autora do livro para um filme de 112 minutos, ou seja, quase duas horas de projeo,
tempo padro para os moldes do cinema comercial. Nos anos quarenta, Hollywood vivia um
perodo glorioso e foram criados vrios clssicos do cinema. Os estdios possuam grandes
profissionais. Muitos diretores europeus, fugidos da segunda guerra, foram contratados nessa
dcada. Muitos escritores tambm trabalhavam como roteiristas. A preciso, o poder de
sntese e o domnio da linguagem do cinema puderam ser exemplificados na adaptao do
52 ALBRECHT. Designing dreams modern architecture in the movies (1986), p.168 (traduo livre).
53 Friedrich assinala que Rand, com o dinheiro obtido com o sucesso do livro, compra um rancho em San
Fernando Valley, com uma casa em ao e vidro projetada por Richard Neutra. In FRIEDRICH (1988), pg. 391-392.
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extenso romance de Ayn Rand para o filme. Os primeiros dois teros do romance, por
exemplo, cerca de duzentas pginas, foram reduzidos a poucos minutos, quando o perfil de
alguns personagens e situaes importantes para o desenvolvimento da trama so
apresentados. Exemplo: a expulso de Roark, personagem principal, da escola de arquitetura,
devido s suas idias contrrias academia; sua relao com um colega, Peter Keating,
tambm arquiteto, mas a servio dos interesses do mercado; o encontro com o personagem
que vir a ser o seu mentor, Henry Cameron, arquiteto mais velho, com idias e projetos que
vo de encontro ao pensamento da poca e que iro reforar as posies de Roark mais
adiante. (Figura 43)
Figura 43: O personagem Roark e seu mentor, Henry Cameron.
As crticas, porm, no foram favorveis tambm ao filme na poca do seu
lanamento. Houve unanimidade entre os crticos ao apontar falta de aprofundamento dos
personagens, exagero na imagem do arquiteto, cuja radicalidade o leva a um comportamento
duvidoso. Apesar de todas essas crticas, pela primeira vez, um filme provocava uma
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discusso de idias sobre a arquitetura modernista e a posio do arquiteto enquanto criador
na sociedade da poca.
Qualquer semelhana mera coincidncia?
Para muitos crticos e arquitetos que viram Vontade Indmita, Howard Roark foi sem
dvida inspirado em Frank Lloyd Wright, e seu mentor, Henry Cameron, em Louis Sullivan,
mestre de Wright no final do sculo XIX e com quem trabalhou no incio da sua carreira.
Henry Cameron, no momento de sua morte, cita para Roark a frase de Sullivan: A
forma segue a funo, deixando-a como legado, o que mostra o carter do pensamento dos
personagens. Ainda na seqncia em que Roark leva o seu mentor numa ambulncia, vemos
uma srie de edifcios passarem atravs da janela, enquanto Cameron fala para Roark que o
arranha-cu uma das maiores invenes do homem e, no entanto, ainda so construdos
como templos gregos, catedrais gticas e mistura de todos os estilos que puderam copiar,
concluindo que os materiais novos exigem novas formas. 54 Mais uma vez, a fala de Cameron
defende as idias que definem seu trabalho e de que Roark ser seguidor. (Figura 44)
... a seqncia em que Roark encontra Cameron doente e leva-o de
ambulncia ao hospital lembra os ltimos momentos de Sullivan
(acompanhado por Wright e alguns companheiros), tal como descrito por
Frank Lloyd Wright em An Autobiography. Alm disso, Wright tambm no
chegou a completar a faculdade (como Roark), mas por motivos bem menos
dramticos do que o mostrado no filme 55
54 Henry Cameron para Howard Roark em Vontade Indmita (1948), aos 5 e 53.
55 No filme, o personagem Roark expulso da Faculdade por insistir em suas idias contrrias aos acadmicos.
FUJIOKA. Presena da arquitetura de Frank Lloyd Wright no cinema (2008).
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Figura 44: Roark acompanha seu mentor numa ambulncia. Ao fundo, os arranha-cus.
Apesar de a escritora Ayn Rand negar vrias vezes ter-se inspirado em Frank Lloyd
Wright para criar seu personagem, nutria uma grande admirao por ele, tentando por vrias
vezes promover um encontro, o que aconteceu rapidamente durante uma palestra em Nova
York. Depois, ela teria enviado a Wright trs captulos do seu romance, que respondeu
mostrando desagrado em relao ao personagem Roark.56 Havia diferenas ideolgicas entre a
escritora e o arquiteto e ela parecia no entender as idias dele.
Segundo Friedrich, Rand era uma polemista de direita. J Wright
condenava os excessos do capitalismo (principalmente por parte dos bancos).
Rand era cosmopolita e amava a vida urbana. Mas as razes do mestre
estavam no campo e ele criticava as grandes cidades (estava inclusive de
mudana para o deserto do Arizona). Rand sentia-se atrada pelos arranha-
cus de Nova York desde sua juventude em So Petersburgo (o que explica a
cena final do filme) Frank Lloyd Wright - na poca considerava o
56 FUJIOKA. Presena da arquitetura de Frank Lloyd Wright no cinema (2008).
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skyscraper como smbolo da corrupo capitalista (mais tarde mudou de
idia) 57
Rand chegou a encomendar a Wright o projeto de sua residncia em 1946, que ela
disse ter adorado, mas o custo (U$ 35.000) era muito alto. Parece que, na poca, Wright,
disse-lhe que ento ganhasse mais dinheiro. 58 Evidente que a casa nunca foi construda 59 e a
escritora acabou comprando a casa que Richard Neutra havia projetado para o diretor do filme
O Anjo Azul, de Joseph Sternberg em 1935, por U$ 24.000, que foi demolida em 1972. 60
(Figuras 45 e 46)
Figura 45: Projeto de Frank Lloyd Wright para a casa da escritora Ayn Rand.
Figura 46: Cartaz com figura da escritora Ayn Rand.
Rand no desistia de Wright. Finalmente, ele escreveu que a tese de Rand contida no
livro era importante, especialmente naquela poca, e que observaes a respeito da
degenerao profissional que existia dentro do metier o deixavam espantado. Quando, porm,
o filme foi exibido e o personagem Roark criticado por dinamitar seu projeto, Wright afirmou
57 FUJIOKA. Presena da arquitetura de Frank Lloyd Wright no cinema (2008).
58 GEBHARD. Romanza the California architecture of Frank Lloyd Wright (1988), p.127 (traduo livre).
59 NEUMANN. Film Architecture, From Metropolis to Blade Runner (1996), p. 130 (traduo livre).
60 FUJIOKA. Presena da arquitetura de Frank Lloyd Wright no cinema (2008).
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que no queria ser identificado com aquilo. Concordava com a tese de o artista ter o direito de
preservar sua obra em todos os detalhes da concepo, mas a autora havia exagerado e
deturpado esse conceito, por isso no endossava o livro. 61
A luta travada por Roark, personagem principal do filme, na defesa da integridade de
sua criao artstica, tinha relao direta com a experincia anterior do diretor na realizao de
Duelo ao Sol, de 1946, produzido por David O. Selznick, um dos maiores produtores da poca
urea de Hollywood, que realizara filmes de sucessos, dentre os quais, E o Vento Levou, de
1939. Selznick interferia em todas as fases de produo dos seus filmes e a ele era dada a
palavra final.
O conflito entre King Vidor e Selznick aconteceu justamente no que dizia respeito
liberdade de criao do artista. Na realizao do filme Duelo ao Sol, em 1946, houve muitos
problemas e a participao de vrios co-diretores resultou num trabalho em que no se sabe
exatamente quem fez o qu.
Antes disso, Vidor j havia tido problemas com Amrica (1944), quando seus
produtores cortaram quarenta e cinco minutos do filme porque no havia agradado ao pblico
em sesses-teste, antes da estria comercial. Sabe-se que na indstria do cinema americano os
donos dos estdios e os produtores exerciam e ainda exercem um forte poder de deciso,
controlando passo a passo o desenrolar do processo da realizao dos filmes e seu resultado.
King Vidor, logo aps essas duas experincias, decidiu fazer um filme em que pudesse
trabalhar sem tantas interferncias, mantendo seu projeto tal como concebeu, e a escolha do
tema refletia a questo da liberdade de criao no trabalho do artista.
61 NEUMANN. Film Architecture, From Metropolis to Blade Runner (1996), p.130 (traduo livre).
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A luta perpetrada pelo realizador e o personagem arquiteto ser, no fundo, a mesma:
garantir a todo custo a integridade da sua obra. Garanti-la contra tudo, contra todas as
imposies tpicas do sistema em que se move o indivduo e assumir riscos pessoais at a
quase demencialidade. 62 Vidor afirmou a Luc Mollet e Michel Delahaye, em entrevista
concedida aos dois crticos franceses na revista Cahiers du Cinema, em outubro de 1962, que
amava o heri de Vontade Indmita porque ele ia at o fim, fazendo o que deveria fazer.
Dinamitar os estdios, fazendo aluso sua experincia em Duelo ao Sol, e destruir o filme,
para dez anos mais tarde no dizer: foi culpa do senhor Selznick! Est claro que o senhor
Roark sou eu, acrescenta. 63
Em Vontade Indmita, o personagem Roark, com seu idealismo romntico e
exacerbado, o oposto do seu colega arquiteto, Peter Keating, que cede a todas as exigncias
dos poderosos do mercado imobilirio, como dito anteriormente. Keating fala para Roark, no
incio do filme, que ele, Keating, ter sucesso profissional porque dar ao pblico o que este
quer. Os professores de Roark, tambm na abertura do filme, contestando seus projetos,
perguntam se ele quer enfrentar o mundo, concluindo que na arquitetura no h lugar para a
originalidade e que ningum poder melhorar os edifcios do passado, s copi-los. Para eles,
Roark insiste em projetar edifcios que ningum ir construir e acabam por expuls-lo da
escola de arquitetura.
Nesse prlogo do filme, fica bem definida a luta do criador diante das reaes s suas
obras, cujas concepes so de uma arquitetura feita de formas puras, sem adornos ou
revivalismos, diferente do gosto corrente na poca. No entanto, experincias ligadas a novas
62 GADANHO. Vontades Indmitas ou o Romantismo do Olhar Moderno (1999), p.216.
63 ZAMOUR. Lomniprsence de larchitecture chez King Vidor (1995), p.65 (traduo livre)
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concepes arquiteturais j haviam acontecido dcadas atrs, aps o final da primeira guerra
mundial. Segundo Argan, 64 as tendncias mais destacadas que surgiram neste perodo foram:
o racionalismo formal, tendo a frente Le Corbusier, o racionalismo metodolgico didtico na
Alemanha, com Walter Gropius frente, o racionalismo ideolgico do Construtivismo
sovitico, o formalista do Neo-plasticismo holands, o emprico escandinavo, cujo expoente
A. Aalto, e o racionalismo orgnico americano, com a personalidade dominante de Frank
Lloyd Wright.
Inspirao na arquitetura, pastiches e elos de ligao
Os projetos arquitetnicos mostrados no filme deveriam, a princpio, ser desenhados
pelo arquiteto Frank Lloyd Wright, mas o valor pedido por ele, 250.000 dlares, considerado
muito caro pelos produtores dos estdios da Warner, fez com que o trabalho fosse entregue ao
diretor artstico do estdio, o cengrafo Edward Carrere. (Figura 47)
Figura 47: Edward Carrere, Gary Cooper e King Vidor.
Carrere nasceu no Mxico, mas estudou na Polytechnic High School em Los
Angeles. Foi cengrafo dos estdios da Warner de 1932 a 1969. Dentre seus trabalhos mais
famosos, figuram os cenrios feitos para Disque M para Matar, 1954, de Alfred Hitchcock e
64 ARGAN. Arte Moderna (1993), p. 264.
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particularmente Vontade Indmita, 1948, de King Vidor, em que desenhou os projetos do
personagem Roark e do seu mentor, Henry Cameron. Para o primeiro, a inspirao veio
sobretudo do trabalho do arquiteto Frank Lloyd Wright e, para o segundo, projetos inspirados
no proto-brutalismo. 65 O cengrafo criou maquetes e esboos inspirados tambm na obra
de Mies van der Rohe e Alvar Aalto. 66 Isso causou a indignao de arquitetos, na poca do
lanamento do filme, sobretudo dos crticos da revista americana Interiors, que viram muita
semelhana entre a Casa da Cascata (The Falling Water House), de Frank Lloyd Wright 67 e
a Casa Wynand, (Figuras 48 e 49) projeto que o personagem Roark concebe para o editor
Gail Wynand (Raymond Massey), poderoso dono de um jornal popular.
Figura 48: Casa Wynand projeto do personagem Roark , semelhanas com a Casa da Cascata de
Wright.
Figura 49: Casa da Cascata de Frank Lloyd Wright.
Segundo os crticos, o projeto mostrado no filme era uma caricatura da obra de
Wright, como tambm o personagem principal seria uma caricatura de um arquiteto
modernista mas, segundo D. Albrecht, em Desinging Dreams Modern Architecture in the
65 NEUMANN. Film Arquitechture, From Metropolis to Blade Runner (1996), p.196 (traduo livre).
66 ZAMOUR. Lomniprsence de larchitecture chez King Vidor (1995), p.58 (traduo livre).
67 (IDEM)
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Movies, Carrere, como todos os caricaturistas fazem, exagerou apenas o essencial: a relao
dinmica entre interior e exterior conseguida atravs de balanos generosos. 68
Fujioka, em seu artigo Presena da Arquitetura de Frank Lloyd Wright no Cinema,
assinala:
... o que vemos no filme uma amostra de elementos que reportam a
diferentes vertentes do Movimento Moderno. O discurso de Roark
modernista, mas seus projetos transitam entre o organicismo wrightiano
(como na Wynard Residence) e o tradicionalismo do International Style (na
torre de apartamentos Enright House). Apesar das lajes delgadas em balano,
o curtain-wall, a leveza das formas e a disposio dos volumes aludem mais
Bauhaus, embora de forma quase caricatural. Nada a ver, portanto com o
conceito wrightiano de arranha-cu, baseado no principio da estrutura
rvore 69
Mais, radical, o Journal of the Amer