ARQUITETURA NO CINEMA, CRÍTICA E PROPAGANDA

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ARQUITETURA NO CINEMA,CRÍTICA E PROPAGANDA

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE ARQUITETURA E URBANISMO

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ARQUITETURA E URBANISMO

    RAIMUNDO LUS FORTUNA CHAGAS

    ARQUITETURA NO CINEMA,

    CRTICA E PROPAGANDA

    SALVADOR 2008

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    RAIMUNDO LUS FORTUNA CHAGAS

    ARQUITETURA NO CINEMA,

    CRTICA E PROPAGANDA

    Dissertao apresentada ao Programa de

    Ps-Graduao em Arquitetura e Urbanismo,

    Universidade Federal da Bahia, como requisito

    Parcial para obteno do grau de Mestre.

    rea de Concentrao: Restaurao

    Orientadora: Profa. Anete Regis Castro Arajo

    SALVADOR

    2008

  • 3

    UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE ARQUITETURA E URBANISMO PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ARQUITETURA E URBANISMO

    RAIMUNDO LUS FORTUNA CHAGAS

    ARQUITETURA NO CINEMA, CRTICA E PROPAGANDA

    Dissertao para obteno do grau de Mestre em Arquitetura e Urbanismo

    Salvador, 30 de setembro de 2008

    Banca Examinadora:

    Anete Regis Castro de Arajo (UFBA.) Doutora em Arquitetura e Urbanismo

    Elyane Lins Correia (UFBA.) Doutora em Arquitetura e Urbanismo

    Vra Dantas de Souza Motta (UNEB) Doutora em Artes Cnicas

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    memria de Helena, minha me

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    AGRADECIMENTOS

    A minha orientadora, Profa. Anete Regis Castro de Arajo, pelo inestimvel estmulo e

    dedicao.

    A Odete Dourado pelo incentivo e ajuda no incio, durante e no fim.

    A Vera Motta, pela colaborao indispensvel.

    A Elyane Correia Lins pelo apoio e incentivo.

    A Any Ivo, pela amizade e colaborao.

    s seguintes pessoas que colaboraram durante o processo da realizao deste mestrado:

    Prof. Alberto Olivieri

    Heitor Reis

    Leni Silverstein

    Lcia Mello

    Margareth Leonelli

    Prof. Mrio Mendona

    Sylvandira, Secretria do PPGAU

    Sahada Mendes - Diretora de Operaes do IRDEB

    e ao Programa de Ps-Graduao em Arquitetura e Urbanismo

  • 6

    Habita-se o real e vive-se o imaginrio.

    Carlos Antonio Leite Brando, 2005

  • 7

    RESUMO

    Este trabalho sobre a relao entre cinema e arquitetura. Investiga a representao da arquitetura no cinema, com nfase na crtica e na propaganda arquitetura modernista. Seu principal objetivo compreender, atravs de uma pesquisa baseada em filmes como fonte primria, e na literatura j disponvel sobre o assunto, como essas duas artes se interconectam. Inicialmente, estudado, de uma maneira geral, o papel da arquitetura nos filmes desde o advento do cinema, abordando aspectos como: o arquiteto personagem, espaos reais ou construdos e ainda a utilizao de elementos arquitetnicos na construo simblica da narrativa. Para entender como se deu a propaganda e crtica da arquitetura modernista no cinema, foram analisados quatro filmes: Vontade Indmita, de King Vidor, Lar, Meu Tormento, de H.C. Potter, ambos de 1948 e, Meu Tio (1958) e Playtime, Tempo de Diverso (1967), ambos de Jacques Tati.

    Palavras-chave: arquitetura; arquitetura modernista; cinema; crtica; propaganda.

  • 8

    ABSTRACT

    This dissertation deals with the relation between architecture and cinema. It investigates the representation of the architecture within the cinema while emphazing modernist architecture criticism and propaganda. Its principal aim is to understand, through an investigation based into films as primary sources as well as the literature already available on the subject, how these two forms of art interconnect. In the beginning it was necessary to make a general account of the architectural role within the films since the beginning, by approaching aspects like the character-architect; real and constructed spaces as well as the utilization of architectural elements which contributes to the narration symbolism. In order to understand how modernist architectural criticism and propaganda have happened, four films were analysed: The Fountainhead, by King Vidor, Mr. Blandings Builds his Dream House, by H. C. Potter, both dated 1948, and Mon Oncle (1958) and Playtime (1967), both by Jacques Tati.

    Keywords: architecture; modernist architecture; cinema; criticism; propaganda.

  • 9

    SUMRIO

    APRESENTAO 11

    INTRODUO 14

    CAPTULO I ARQUITETURA NO CINEMA 18

    A arquitetura seduz o cinema 27

    O som chega ao cinema atravs da cidade 36

    Os arquitetos so seduzidos pelo cinema 38

    Cidades reais e imaginrias 44

    Um cinema de escadas, janelas e portas 47

    CAPTULO II PROPAGANDA DA ARQUITETURA: VONTADE INDMITA (1948) 54

    A inspirao nos arranha-cus 57

    Qualquer semelhana mera coincidncia? 60

    Inspirao na arquitetura, pastiches e elos de ligao 65

    Roark, santo ou fascista? 69

    Mr. Simms e Mr. Roark, duas faces de uma mesma moeda 73

    Propaganda tardia 78

    CAPTULO III CRTICA ARQUITETURA: MEU TIO (1958) E PLAYTIME (1967) 82

    O velho e o novo 84

    A casa dos Arpel 88

    Entre dois mundos 97

    Tempo de diverso 100

    Elementos recorrentes 106

    CONSIDERAES FINAIS 111

  • 10

    REFERNCIAS 114

    FILMOGRAFIA 118

    FONTES 121

  • 11

    APRESENTAO

    Meu primeiro contato com o cinema aconteceu na infncia, como acredito com

    muitas outras pessoas da minha gerao. Ir ao cinema naqueles anos, quando a televiso ainda

    no havia chegado s nossas casas, era uma celebrao. Uma experincia mgica, s

    comparada s encenaes na igreja do bairro, durante a coroao da Virgem Maria, quando

    anjinhos saiam detrs do altar com suas asas e aurolas. O cheiro do incenso nos embriagava,

    um coro cantava msicas sacras e ramos envolvidos e transportados para algum lugar

    desconhecido, entre a terra e o cu. O cinema promovia algo parecido, sobretudo quando os

    filmes eram do gnero fantasioso como O Ladro de Bagd, de Michael Powell, O Maior

    Espetculo da Terra, de Cecil B. de Mille ou ainda os musicais americanos dos anos 50. Mais

    tarde, influenciado pelo fascnio que o cinema exercia sobre mim, passei a fazer pequenos

    filmes domsticos em oito milmetros, at vir a me profissionalizar nos anos 80, quando

    ingressei na TV Educativa para dirigir programas e roteiriz-los. Contudo, antes de me

    profissionalizar na rea do udiovisual, fiz estudos de arquitetura e urbanismo, o que

    influenciou meu olhar nos trabalhos que vim posteriormente a realizar.

    A maneira de trabalhar os espaos, a composio, os movimentos dos planos e

    mesmo a geometrizao na narrativa revelava essa formao em arquitetura. Eu me tornara

    passageiro daquele trem do filme dos Irmos Lumire que inaugurara o cinema, e nunca mais

    saltei dele, fazendo da janela desse trem a minha tela por onde passavam casas, edifcios, ruas

    e cidades. Havia trocado de profisso; contudo, a arquitetura estava l, sempre presente,

    mesmo que por vezes, semi-oculta esperando para entrar em cena.

  • 12

    Um dia, visitando a Cinemateca Portuguesa Museu de Cinema, em Lisboa, no ano

    2000, encontrei uma publicao luxuosa intitulada Cinema e Arquitetura de Antonio

    Rodrigues.. Pela primeira vez, vi a combinao destas duas artes numa publicao. A partir

    deste achado, interessei-me por livros e artigos que tratassem deste assunto. Era uma

    descoberta fascinante, prxima a que tive ao assistir ao meu primeiro filme. Cinema e

    Arquitetura, o livro em questo, com captulos e fotos abordando vrios aspectos desta

    combinao, estimulou-me a iniciar uma pesquisa.

    Existe muito o que ler sobre cinema. Existe muito muitssimo o que ler

    sobre arquitetura. Existe muito pouco o que ler sobre arquitetura no cinema.

    Inaceitavelmente pouco. uma rea praticamente inexplorada pelos

    pesquisadores, principalmente pelos que deveriam ser os principais

    interessados, os da rea de arquitetura e urbanismo 1

    A maior parte da bibliografia encontrada est escrita em ingls, seguida de francs e

    espanhol. No Brasil, alm de alguns artigos escritos na revista Vitruvius, na publicao Rua,

    da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFBA, pude encontrar dois livros publicados:

    Imagens do Moderno, O Olhar de Jacques Tati de Meize Regina de Lucenas Lucas, e A

    Cidade Imaginria, de vrios autores, organizado por Luiz Nazario. Pouco a pouco outras

    publicaes, dissertaes e teses apareceram.

    Mergulhar na filmografia de grandes diretores, descobrindo a representao da

    arquitetura nos filmes policiais, de fico cientfica ou nos filmes em geral, foi um grande

    prazer e uma viagem que pretendo continuar por muito tempo. Havia tambm os filmes

    1 CASTELLO. Meu tio era um Blade Runner: ascenso e queda da arquitetura moderna no cinema (2002).

  • 13

    brasileiros, outro campo fascinante a ser pesquisado, embora ainda existam poucos filmes

    antigos no formato DVD, o que facilitaria enormemente o trabalho de investigao, pela

    possibilidade de v-los quantas vezes fosse necessrio, repetindo seqncias, congelando

    planos, fotografando ou capturando imagens.

    As livrarias, bibliotecas, cinemas, locadoras e a Internet passaram a ser locais

    obrigatrios na minha nova aventura. A troca de informaes com colegas e amigos, o contato

    com alguns professores e finalmente as valiosas sugestes da minha orientadora definiram o

    recorte, na profuso de escolhas que eu tinha diante de mim. Assim, comeou a se

    materializar Arquitetura no Cinema, Crtica e Propaganda.

  • 14

    INTRODUO

    Quando o espectador mergulha no espao-tempo de um determinado filme,

    os cenrios, que fazem parte do seu aspecto visual, so de fundamental importncia para as

    sensaes que o roteiro e o diretor pretendem criar junto ao pblico. Assim, a cenografia, seja

    ela real, manipulada ou construda, tem relao direta com a arquitetura e com os arquitetos.

    Os cengrafos, muitas vezes, tm formao de arquiteto. Poderamos tambm

    afirmar que, no cinema, os cenrios construdos fazem parte de uma arquitetura ilusria,

    perecvel e descartvel, feita para aquele determinado projeto cinematogrfico. Sabemos que a

    maioria destes cenrios desfeito, para que seu material seja reciclado em outros cenrios ou

    em novos objetos. J foi dito que a obra arquitetnica a nica forma de arte que muitas

    vezes destruda para dar lugar a outra ou ainda segundo Rossi, 2 que a cidade um cenrio,

    sempre mutvel, onde se desenrola o drama da vida humana.

    A relao entre cinema e arquitetura, que vem sendo estudada com mais

    intensidade a partir dos anos 1980 - embora saibamos que textos esparsos j haviam sido

    publicados desde os anos 1920 quando o cinema passou a ser considerado como uma nova

    forma de expresso artstica resultando em importantes mostras de filmes relacionadas a

    esta temtica, por cinematecas e universidades da Europa, Estados Unidos, incluindo o Brasil.

    Inicia-se assim, uma profcua discusso entre crticos de cinema, arquitetos e comunicadores

    visuais.

    2 ROSSI. Arquitetura da Cidade (1995).

  • 15

    Este trabalho prope-se a uma investigao da relao arquitetura/cinema, mais

    especificamente, a crtica e propaganda da arquitetura modernista no cinema. Outros autores

    j haviam lanado obras referentes ao tema, como o caso de Donald Albrecht em Designing

    dreams, modern architecture in the movies, de 1986, ou Dietrich Neumann em Film

    Architecture, From Metropolis to Blade Runner, de 1996, obras em que a representao da

    arquitetura modernista tratada ou na sua relao com o cinema hollywoodiano ou ento

    como resenha histrica deste tipo de arquitetura na filmografia do perodo compreendido

    entre os anos 1920 e 1980. Considera-se assim, que este trabalho venha a abrir novas

    possibilidades de relaes e percepes neste campo de pesquisa.

    Em se tratando de um trabalho que estuda a arquitetura que se inicia nos anos

    1920 e vai at os anos 1960, utiliza-se o termo modernizao como uma srie de processos

    tecnolgicos, econmicos e polticos, associados Revoluo Industrial e suas conseqncias,

    e como modernidade, as condies sociais e experincias que so vistas como efeitos desses

    processos, de acordo com Charles Harrison. 3 Em relao ao conceito de Modernismo ou

    modernista, utilizamos a interpretao de Giulio Argan 4 que considera como modernismo as

    correntes artsticas que na ltima dcada do sculo XIX e primeira metade do sculo XX se

    propem a interpretar, a apoiar e acompanhar o esforo progressista, econmico-tecnolgico,

    da civilizao industrial.

    Para a realizao deste trabalho, foi consultada uma vasta filmografia e obras que

    tm relao direta ou indireta com o tema. Deu-se prioridade aos filmes, onde a presena da

    arquitetura modernista se faz presente enquanto deco ou como problemtica discursiva no

    3 HARRISON. Modernismo (2000), p. 6.

    4 ARGAN. Arte Moderna (1993), p. 185.

  • 16

    interior do prprio filme. A bibliografia utilizada no s se refere historiografia e crtica da

    arquitetura do perodo abordado, como tambm produo literria relativa ao cinema.

    O texto foi estruturado em trs captulos: o primeiro trata da arquitetura no

    cinema de uma maneira mais ampla: a representao da arquitetura nos primrdios do cinema;

    a evoluo dos cenrios e advento do expressionismo no espao flmico; as referncias

    pioneiras sobre a relao cinema e arquitetura; a introduo da arquitetura modernista no

    cinema europeu e hollywoodiano; o advento do cinema sonoro e as cidades; os elementos

    arquitetnicos como suporte da linguagem cinematogrfica e, finalmente, o arquiteto como

    personagem nos filmes.

    O segundo captulo analisa o filme Vontade Indmita de King Vidor como

    veculo de propaganda da arquitetura modernista, nos anos ps-guerra e as crticas, surgidas

    na poca do seu lanamento, em relao s posies do personagem principal, Howard Roark,

    arquiteto romntico e determinado na luta por seus ideais. ainda estudada, a influncia dos

    arquitetos modernistas como Frank Lloyd Wright, Louis Sullivan e Mies van der Rohe na

    concepo dos personagens, projetos e maquetes do filme. Alm disso, no mesmo captulo, o

    filme Lar, Meu Tormento, de H.C. Potter, produzido na mesma poca que Vontade Indmita,

    analisado, levando-se em conta as diferenas existentes entre os personagens arquitetos dos

    dois filmes - Howard Roark, do primeiro e Mr. Simms, do segundo - enfatizando suas

    posies profissionais em relao ao mercado de trabalho.

    O terceiro captulo aborda a crtica arquitetura modernista nos filmes Meu Tio e

    Playtime, Tempo de Diverso de Jacques Tati, de 1958 e 1967, respectivamente. Neste

    captulo analisada a influncia dos avanos tecnolgicos e industriais na vida do cidado,

  • 17

    atravs da arquitetura no primeiro e as novas formas de urbanizao e a uniformizao na

    arquitetura no segundo. Tambm revisto o universo caricatural que o diretor imprimiu a

    essas questes em seus filmes, assim como a crtica s suas crticas e ainda sua antecipao

    aos movimentos ou obras que viriam a se opor cristalizao de conceitos no seio da

    arquitetura modernista.

    Espera-se, assim, contribuir para a pesquisa de um tema que permanece atual e

    possui ainda muitos aspectos a serem estudados. A transformao que vem ocorrendo no

    mbito do audiovisual, com a expanso da tecnologia digital, tem possibilitado, dentre outros,

    a informao instantnea, a construo de realidades virtuais e o fcil acesso produo de

    imagens e sua manipulao - a partir de aparelhos como o celular ou cmeras digitais

    criando, com isso, um universo onde a representao da arquitetura estar presente, podendo

    da surgirem novas combinaes.

  • 18

    CAPTULO I

    ARQUITETURA NO CINEMA

    A arquitetura j estava presente na primeira exibio pblica de um filme no final do

    sculo XIX, precisamente em 28 de dezembro de 1895, em Paris, mostrando a chegada de um

    trem numa estao: LArrive du Train en Gare de La Ciotat, dos irmos Lumire.(Figura1)

    O espetculo, que s dura meio minuto, mostra um trecho da plataforma

    ferroviria banhada pela luz do sol, damas e cavalheiros caminhando ali, e o

    trem que surge do fundo do quadro e avana em direo cmera. medida

    que o trem se aproximava, instaurava-se o pnico na sala de projeo, e as

    pessoas saam correndo. Foi nesse momento que nasceu o cinema, e no se

    tratava apenas de uma questo de tcnica ou de uma nova maneira de

    reproduzir o mundo. Surgira, na verdade, um novo princpio esttico 5

    Havia ainda pequenas peas flmicas feitas pelos irmos inventores que mostravam

    operrios saindo de fbricas, ruas movimentadas, enfim, cenas do dia-a-dia. (Figura 2)

    Figura 1: O trem dos irmos Lumire.

    Figura 2: Operrios saindo da fbrica.

    5 TARKOVSKY. Esculpir o Tempo (1998), p.70.

  • 19

    Com a popularizao e sucesso do novo invento, os realizadores da poca criaram

    vrios outros pequenos filmes, em que a cidade e suas arquiteturas eram elementos

    fundamentais para dar veracidade s situaes encenadas. Diversos aspectos da realidade

    eram mostrados, como: nmeros de teatro vaudeville, gags, pornografia e prestidigitao,

    como relata Arlindo Machado,6 acrescentando ainda que os catlogos dos produtores da poca

    classificavam os filmes produzidos como paisagens, notcias, tomadas de vaudeville,

    incidentes, quadros mgicos e outros ttulos.

    Os primeiros filmes do sec. XX, com suas vises panormicas, nada mais

    eram do que incorporaes do desejo moderno de visualizao do mundo,

    que por sua vez, tinha relao direta com a atrao exercida pelo

    movimento das ruas e a circulao de homens e mulheres na cidade. Nesses

    filmes, a cmera praticava movimentos circulares, verticais e horizontais,

    oferecendo viagens visuais atravs dos espaos urbanos que variavam das

    perspectivas panormicas ao nvel da rua s vistas areas. No apenas as

    vistas urbanas se movimentavam, mas a prpria tcnica de representao

    aspirava o movimento 7

    A vocao da arquitetura como cenrio possibilitou um grande encontro com o

    cinema. Vinte anos depois, isto veio a ocorrer de forma mais significativa com a construo

    de grandes cenrios para superprodues. Cabria, filme italiano de Giovanni Pastroni, de

    1914 ou Intolerncia de David W.Griffith de 1916, utilizaram cenrios grandiosos,

    representando Roma Antiga no primeiro e a Babilnia no segundo. O filme de Griffith teria

    6 MACHADO. Pr-cinemas & ps-cinemas (2005), p. 80.

    7 COSTA. A cidade como cinema existencial (2006), p.34.

  • 20

    sido influenciado pelo de Pastroni, e at hoje, o cenrio principal de Intolerncia referncia

    como marco de grandiosidade no cinema. Os chamados filmes histricos ou pseudo-

    histricos tiveram como gnese, Cabria e Intolerncia. Pastroni encomendou os dilogos

    escritos (o filme era mudo) ao poeta italiano Gabriele DAnuzzio e introduziu algumas

    inovaes, como o uso do travelling. Em Intolerncia, Griffith trabalhou com a diferena de

    planos e movimentos de cmera, sendo considerado o inventor da linguagem

    cinematogrfica.8 (Figuras 3 e 4)

    Figura 3: Cenrios de Cabria.

    Figura 4: A Babilnia em Intolerncia.

    Ao longo do desenvolvimento do cinema, que mostrava em imagens, alm da vida

    cotidiana, lutas, anseios, temores e conquistas da humanidade, a arquitetura passou a ser ento

    personagem, tendo uma presena marcante. A arquitetura tambm funcionou como

    representao de estados psicolgicos, 9 de pocas passadas ou futuras, nos filmes de fico

    cientfica, ou de civilizaes fantsticas inspiradas em literatura do gnero. Os filmes eram

    rodados em espaos construdos ou reais, modificados ou no de acordo com as necessidades

    8 Ver EWALD FILHO. Dicionrio de Cineastas (2002), p. 303 e SADOUL. Dictionnaire des Cinastes (1977),

    ps. 104, 105 e 175. 9 Os filmes fantsticos dos anos vinte e trinta, alguns filmes de Alberto Cavalcanti como Rien Que les Heures

    (1926), Le Train Sans Yeux, (1928), ou ainda, filmes expressionistas, a exemplo de O Gabinete do Dr. Caligari, de Robert Wiene, (1920), e Nosferatu, o Vampiro, (1922), de Friedrich Murnau, que utilizaram esse recurso.

  • 21

    do roteiro, oramento da produo ou estilo do diretor. Os cenrios, que serviam em geral

    como fundo para a ao dos atores, em alguns filmes passaram a ser protagonistas. (Figura 5)

    Figura 5: 48 Horas (1942). Alberto Cavalcanti.

    A partir dos anos 20, o cinema foi reconhecido como uma nova forma de expresso

    artstica graas a alguns filmes como O Gabinete do Dr. Caligari, de Robert Wiene, (1920), O

    Encouraado Potemkin, de Sergei Einsenstein, (1925) ou ainda Ouro e Maldio, de Erich

    Von Strohein, (1925), dentre outros. Muitos intelectuais e artistas escreveram artigos, como a

    escritora Virginia Woolf, por exemplo, exaltando o cinema. (Figuras 6, 7 e 8)

    Depois de ter visto em 1926, o filme O Gabinete do Dr. Caligari de Robert

    Wiene em Londres, Virginia Woolf descreveu entusiasmada a arquitetura

    que o novo meio poderia criar, uma arquitetura fantasiosa, feita de arcos e

    muralhas recortadas, quedas dgua e fontes crescentes, como as que nos

  • 22

    visitam s vezes em sonhos ou se formam na semi-obscuridade de aposentos.

    Nenhuma fantasia poderia ser to improvvel ou insubstancial 10

    Figura 6: Cenrio expressionista em O Gabinete do Dr. Caligari.

    Figura 7: Rosto em O Encouraado Potemkin.

    Figura 8: O Encouraado Potemkin.

    Em sua anlise, Virginia Woof via tambm a possibilidade do encontro entre o

    cinema e a arquitetura, quando as intensas e excitantes experincias de vida numa cidade

    moderna eram mostradas nos filmes. 11 O arquiteto Adolf Loos, outra personalidade

    10 NEUMANN. Film Architecture, From Metropolis to Blade Runner (1996), p.7 (traduo livre).

    11 NEUMANN. Film Architecture, From Metropolis to Blade Runner (1996), p. 7 (traduo livre).

  • 23

    encantada com o cinema, destacou os cenrios do filme O Gabinete do Dr. Caligari como

    representao da insanidade do personagem principal, o que demonstrava como aqueles

    cenrios participavam estilisticamente de uma importante discusso sobre a tendncia da arte

    da poca, no caso, o expressionismo. 12 (Figura 9)

    Figura 9: Cartaz de O Gabinete do Dr. Caligari.

    Outros arquitetos escreveram sobre filmes, a exemplo de Hugo Hring que, em artigo

    intitulado Filmbauen, em 10 de junho de 1924, explicava a diferena entre se construir um

    12 (IDEM)

  • 24

    edifcio verdadeiro e se construir um edifcio para um filme. 13 Ou ainda Bruno Taut em

    Knstlerisches Filmprogramm de 1920, criando categorias para os filmes e enumerando

    suas contribuies arte.14

    Rudolf Arnheim, terico de artes visuais e representante da escola gestaltista de

    psicologia, escreveu em 1932 o clssico Film as Art, onde analisa a construo do filme e sua

    linguagem. O livro, ainda hoje reeditado, foi um marco na defesa do cinema como meio de

    expresso artstica no necessariamente naturalista.

    Walter Benjamin, filsofo e socilogo, no captulo A Obra de Arte na Era de Sua

    Reprodutibilidade Tcnica, do livro: Magia e Tcnica, Arte e Poltica, escreveu:

    Na melhor das hipteses, a obra de arte surge atravs da montagem, na qual

    cada fragmento a reproduo de um acontecimento que nem constitui em si

    uma obra de arte, nem engendra uma obra de arte, ao ser filmado.15

    O cinema passava ento a ser assunto de discusso, de anlise e suas inmeras

    combinaes com outras linguagens, como a literatura, a pintura, a psicanlise, a msica, o

    teatro, a filosofia ou a poltica eram temas que estimulavam essas discusses nos meios

    artsticos, intelectuais e cientficos da poca. dentro desse quadro de vinculaes que a

    relao entre a arquitetura e o cinema inspira uma vasta produo de artigos e discusses

    durante a Repblica de Weimar, na Alemanha, por arquitetos, escritores e crticos de arte.

    13 (IDEM), p.187.

    14 (IDEM), p.183.

    15 BENJAMIN. Magia e Tcnica, Arte e Poltica (1996), p. 178.

  • 25

    O cinema, como tambm a arquitetura, trabalha na construo de espaos e ainda na

    relao espao/tempo, fator essencial nessas duas formas de expresso. Numa obra

    arquitetnica, o observador necessita de tempo para percorrer o espao da obra, enquanto no

    cinema o observador, na sua poltrona, percorre virtualmente o mesmo espao atravs da

    montagem dos planos, estticos ou em movimentos, que vo dar a impresso daquela

    arquitetura. Existem filmes onde o diretor cria com o montador espaos mentais, referncias a

    memrias espaciais ou mesmo memria de algo que s existiu em sua fantasia num

    determinado instante.

    Exemplos dessas experincias so encontrados em filmes do cineasta francs Alain

    Resnais, especialmente em Hiroshima, Mon Amour, de 1959, O Ano Passado em Marienbad,

    de 1961 ou ainda em Muriel ou O Tempo de um Retorno, de 1963. Em Hiroshima, Mon

    Amour, a personagem, uma atriz francesa de cinema, relembra seu sofrimento durante a

    segunda guerra, em espaos onde viveu um amor proibido com um soldado alemo, fazendo

    paralelos com a destruio de Hiroshima, onde ela atua em um filme. Curiosamente, seu novo

    amante, um arquiteto japons. O cinema e a arquitetura se entrelaam nesse filme, atravs da

    profisso dos personagens principais. Em O Ano Passado em Marienbad, percorremos

    imensos corredores e jardins de um castelo barroco onde trs personagens formam um

    tringulo amoroso: uma mulher, seu marido e um suposto amante. Os espaos, por ns

    visitados, so imprecisas lembranas de um passado e fantasias mentais da personagem

    interpretada por Delphine Seyrig. Muriel uma experincia mais radical. O cineasta cria

    cortes no decorrer das aes, para que o espectador complete mentalmente esse lapso espao-

    temporal. Para o espectador comum e no acostumado a certas experincias, tudo isso pode

    parecer erros de montagem ou emendas na pelcula, embora ele se esforce para completar as

    lacunas deixadas propositalmente pelo diretor. (Figuras 10 e 11)

  • 26

    Figura 10: O espao mental em O Ano Passado em Marienbad.

    Figura 11: Hiroshima Mon Amour: o cinema e a arquitetura.

    No cinema, pode-se ainda usufruir da simultaneidade, atravs da montagem paralela

    ou quando diversas aes se passam ao mesmo tempo dentro da mesma tela. Para o arquiteto

    cubano Ricardo Porro, os arquitetos do sculo XX, especialmente Frank Lloyd Wright,

    tambm trabalham com a simultaneidade, e um exemplo significativo a Casa da Cascata

    (The Falling Water House). (Figura 12)

    Se eu falo de Frank Lloyd Wright, que ele trabalha tambm sobre o tema

    do espao-tempo. Na sua Casa da Cascata existe uma srie de movimentos

    que so simultneos: o movimento da chamin que sobe, o movimento dos

    balces que saem, o movimento dos visitantes que fazem um caminho

    contornando a casa. O movimento da chamin se ope ao movimento da

    cascata, ao movimento da gua, ao movimento dos visitantes que circulam

    em torno da casa cujo interior e exterior se projetam ou se distanciam

    alternadamente 16

    16 PORRO. Parole darchitectes in architecture, dcor et cinma (1995), p. 97 (traduo livre).

  • 27

    Figura 12: A simultaneidade na arquitetura de Frank Lolyd Wright.

    A arquitetura seduz o cinema

    Nos anos 1920, a arquitetura passava por um momento de grandes mudanas e um

    dos seus mais conhecidos representantes, Le Corbusier, fazia viagens para aprender,

    experienciar a vida urbana, construindo sua teoria e apresentando seus princpios de

    arquitetura e urbanismo, a fim de difundi-los e defend-los. Uma de suas obras mais famosas,

    Les Terrasses construda em 1927 para Gabrielle de Monzie, em Garches, nos arredores de

    Paris, serviu como cenrio do filme A Tragdia do Fim do Mundo, de 1931, em uma cena

    onde ocorre uma festa de despedida, realizada em um jardim em frente referida casa, por um

    grupo de burgueses. (Figuras 13 e 14)

  • 28

    Figura 13: Villa Garches: o real.

    Figura 14: Villa Garches: a representao.

  • 29

    Tido como um dos primeiros filmes sonoros franceses, A Tragdia do Fim do

    Mundo, foi dirigido pelo aclamado diretor Abel Gance (1989-1981). 17 Essa casa, um dos

    cones do International Style, da famosa exposio sobre arquitetura realizada no Museu de

    Arte Moderna de Nova York, e idealizada por Henry Russel e Phillip Johnson 18 foi tambm

    cenrio de mais um filme: LArchitecture dAujourdhui, de 1930, dirigido pelo diretor

    francs de origem belga, Pierre Chenal (1904-1990), que mostra tambm a Ville Savoye. Les

    Terrasses apresentada no filme como uma mquina de morar, bem ao gosto de Le

    Corbusier, que ainda participou do roteiro e faz uma apario. Todas as idias do arquiteto so

    expostas nesse pequeno documentrio como material de propaganda sua arquitetura. 19 Paris

    naquela poca funcionava como uma caixa de ressonncia para as novas tendncias artsticas,

    embora em outros pases existissem movimentos importantes, como a Bauhaus na Alemanha,

    o Construtivismo na Rssia ou o Neo-Plasticismo na Holanda.

    A arquitetura modernista foi para o cinema um cenrio ideal, pois trazia uma nova

    imagem para suas estrias. O cinema era novidade e reconhecido como uma nova forma de

    arte, feito para as massas. Walter Benjamin, ainda em seu livro Magia e Tcnica, Arte e

    Poltica, escreveu:

    O filme serve para exercitar o homem nas novas percepes e reaes

    exigidas por um aparelho tcnico cujo papel cresce cada vez mais em sua

    vida cotidiana. Fazer do gigantesco aparelho tcnico do nosso tempo o

    17 Abel Gance (1889-1981) foi um dos pioneiros do cinema, sendo um dos criadores, junto a D.W.Griffith, da

    linguagem cinematogrfica. Seu filme mais famoso, Napoleo, realizado em 1927, introduziu a tcnica de projeo em tela trplice, chamada de Polyvision, precursora do Cinerama. EWALD FILHO. Dicionrio dos Cineastas (2002), p. 275. 18

    WARD. Les Terrasses (1985), p.65 (traduo livre). 19

    Segundo James Ward, no seu artigo Les Terrasses, publicado na Architecture Review em maro de 1985, existem duas cpias conhecidas do filme de Chenal, uma no Centre National de La Cinematographie in Bois dArcy na Frana e outra no Museum of Modern Art em Nova York. Ainda segundo ele, nessas verses constam a data do filme como de 1927, que seria incorreto, pois a Ville Savoye s foi terminada em 1930, o que faz concluir que o filme deva ter comeado a ser produzido em 1927, da a razo em ter essa data nos crditos.

  • 30

    objeto das inervaes humanas essa a tarefa histrica cuja realizao d

    ao cinema o seu verdadeiro sentido 20

    O grande sucesso do cinema junto s massas fez com que produtores e diretores

    buscassem nas novas correntes artsticas materiais para introduzir nas suas realizaes. Foi

    sobretudo nos filmes de fico cientfica, filmes de gngster, espaos onde aconteciam

    transaes financeiras, hotis de luxo ou nos dramas onde os personagens eram bomios ou

    frvolos, ou ainda nas moradias dos viles ou num mundo totalitrio e opressivo que essa

    arquitetura foi aproveitada, sobretudo por Hollywood. Ela aparecia em lugares de natureza

    impessoal, enquanto nas residncias dos heris e heronas, com algumas excees, a

    arquitetura era mais tradicional ou mesmo ecltica. (Figura 15)

    A introduo da arquitetura moderna no cinema americano, sem

    ornamentos e anti-historicista, foi bem mais tardia. Seria um erro supor que

    os cengrafos estivessem desatualizados. Algumas idias arquitetnicas de

    vanguarda no foram divulgadas nos Estados Unidos antes do final dos anos

    1920 e quanto aos precursores locais do moderno (Escola de Chicago,

    Wright...) devemos lembrar que foram episdios marginais num contexto

    geral decididamente ecltico e conservador. O cinema mostrava coisas muito

    variadas e o que no era aceito na vida comum podia se expressar bem num

    ambiente ou personalidade fictcias. Ningum na Amrica dos anos 1930

    queria viver no castelo do Drcula, mas o cinema o construiu. Do mesmo

    modo a extrema sofisticao do moderno que poucos desejariam para si

    mesmos, pode se-ver na tela, primeiro do que na vida ordinria 21

    20 BENJAMIN. Magia e Tcnica, Arte e Poltica (1996), p.174.

    21 RAMIREZ. La arquitectura em El cine, Hollywood, La Edad de Oro (1993), p.243 (traduo livre).

  • 31

    Figura 15: O espao em Hitchcock, O Correspondente Estrangeiro (1940).

    Havia por parte da crtica da poca, a idia de que os cenrios dos filmes eram

    carregados de objetos e ornamentos, o que saturava a imagem. Propunham ento o

    despojamento na construo desses cenrios, no como um programa arquitetnico de

    vanguarda, mas sim no desejo de buscar maior eficcia dramtica. 22

    As comdias musicais de Hollywood usaram cenrios grandiosos inspirados nas

    linhas da nova arquitetura. Seria talvez uma necessidade de utilizar a imagem de algo novo e

    luxuoso em tempos de ps-depresso americana. Havia, porm uma tendncia em adaptar de

    maneira mais suave, as tendncias ultramodernistas. (Figuras 16 e 17)

    ... havia muitas pessoas influentes opinando nesta direo. Allen W. Porter,

    diretor da biblioteca de cinema do poderoso MOMA de Nova York, escrevia

    22 (IDEM), p.244.

  • 32

    em 1941 que a modernidade extrema (...) muitas vezes impraticvel... A

    arquitetura e o desenho no tm que revelar somente uma nostalgia pelo

    passado, mas devem oferecer uma entusiasta recepo ao presente.

    Hollywood, com o mais valioso de todos os instrumentos ao seu alcance para

    transmitir informaes, pode exercer influncia na propagao de novas

    idias que no tenham outras formas de expresso mais venerveis 23

    Figura 16: Musicais de Hollywood Belezas em Revista, Lloyd Bacon (1933).

    Figura 17: Musical hollywoodiano Mordedoras de 1935, Busby Berkeley (1935).

    Outra tendncia nos filmes americanos a partir dos anos 1930 era a inspirao na

    esttica da mquina, que estava ento em voga na teoria da arquitetura. Um exemplo disso o

    cenrio que representa a arquitetura naval em Nasci para Danar (Born to Dance), de Roy

    Del Ruth, (1936), elementos aerodinmicos na decorao do clube dos aviadores em Voando

    23 RAMIREZ. La arquitectura em El cine, Hollywood, La Edad de Oro (1993), p.260 (traduo livre).

  • 33

    para o Rio (Flying Down to Rio), de Thornton Freeland, (1933) ou Palm Days, de A. Edward

    Southerland (1932), s para citar alguns. (Figuras 18 e 19).

    Los Angeles foi a primeira cidade do mundo concebida por e para o

    automvel. O trfego martimo foi incrementado consideravelmente na costa

    do Pacfico, sobretudo aps a abertura do canal do Panam... O carro

    individual fabricado em srie, o avio, o transatlntico, vo fornecer os

    ingredientes iconogrficos fundamentais para uma arquitetura que simboliza

    o progresso, a higiene e a velocidade... Le Corbusier fez uma defesa

    apaixonada da mquina em Vers une Architecture (primeira edio 1923). 24

    Figura 18: Nasci para Danar: musical na era da mquina.

    24 (IDEM), p. 260.

  • 34

    Figura 19: Palmy Days, de A.Edward Sutherland (1932).

    A mesma inspirao da esttica da mquina era introduzida em outros filmes

    europeus. Um exemplo significativo foi no filme futurista Daqui a Cem Anos (Things to

    Come), de William Cameron Menzies, (1936), onde as formas de grandes usinas se

    misturavam com outros gneros arquitetnicos, incluindo o expressionismo e projetos

    utpicos russos dos anos vinte.25 (Figura 20)

    Figura 20: Daqui a Cem Anos de Menzies (1936).

    25 RAMIREZ. La arquitectura en el cine, Hollywood, la Edad de Oro (1993), p.263/264 (traduo livre).

  • 35

    Hollywood, no entanto com seu imenso poder de influncia, ajudava a divulgar a

    arquitetura modernista, propagando novas idias, mesmo que muitas vezes de maneira

    ambgua ou com elementos tradicionais para introduzir ao grande pblico o que ainda no

    havia sido totalmente assimilado.

    Em alguns casos havia referncias curiosas, como num filme de Edgard G. Ulmer,

    de 1934, O Gato Preto, um grande sucesso da Universal Filmes. O vilo, um arquiteto, mora

    numa manso de linhas modernistas, onde um casal procura abrigo aps um acidente com seu

    carro e vem a descobrir uma srie de horrores praticados por ele. A manso, com largas

    janelas de vidro que vo de uma extremidade a outra das paredes, e os traados de linhas

    puras e geomtricas, remetem aos projetos de Le Corbusier. Ela est situada sobre um

    cemitrio da primeira guerra mundial, uma obra prima de construo sobre uma obra prima

    de destruio, segundo Dietrich Neumann. 26 O nome do vilo, Hjalmar Poelzig, muito

    semelhante a Hans Poelzig, um dos mais respeitados arquitetos alemes da poca.

    Provavelmente uma provocao do diretor Ulmer, que o havia conhecido quando foi

    assistente de cenarista do filme O Golem, Como Veio ao Mundo, de Paul Wegener e Carl

    Boese, de 1920. 27 (Figura 21 e 22)

    No momento em que filmes freqentemente promoviam a arquitetura

    moderna como o maior atributo do progresso e vida moderna, aqui, ela

    simbolizava a decadncia europia, resultado direto dos horrores da grande

    guerra 28

    26 NEUMANN. Film Architecture, From Metropolis to Blade Runner (1996), p.116 (traduo livre).

    27 (IDEM)

    28 NEUMAN. Film Architecture, From Metropolis to Blade Runner (1996), p.116 (traduo livre).

  • 36

    Figura 21: Cartaz de O Gato Preto de Edgard G. Ulmer (1934).

    Figura 22: O Golem, Como Veio ao Mundo: cenrios expressionistas dos anos 20. Paul Wegener (1920).

    Existe ainda nesse filme, um crematrio para animais domsticos dentro das linhas

    da nova arquitetura, talvez mais uma referncia sarcstica arquitetura praticada pelo

    arquiteto Hans Poelzig... Edgar G. Ulmer realizou muitos filmes em Hollywood, apreciados

    pelos crticos e pblico, embora considerados filmes B. Como cengrafo, apesar dessas

    referncias aparentemente negativas arquitetura modernista no filme O Gato Preto, ele

    sempre introduziu elementos dessa arquitetura nas suas criaes, o que refora a idia de que

    sua crtica tenha sido direcionada ao arquiteto alemo, transformado, por ele, em vilo no

    filme.

    O som chega ao cinema atravs da cidade

    Em 1927, o cineasta alemo Friedrick Wilhelm Murnau introduziu o som no cinema,

    numa seqncia do filme Aurora. Um casal, vindo do interior, se perde no centro de uma

    cidade grande, e todos os elementos visuais e sonoros prprios de uma metrpole, como

    trfego intenso, buzinas, apitos de guardas e luminosos, so mostrados com grande fora. A

    representao da cidade participava do comeo do cinema falado. A escolha de uma cidade e

    de sua arquitetura importante na criao do clima adequado histria que se quer contar.

  • 37

    Construes arquitetnicas de diversas pocas e estilos so a todo tempo utilizadas como

    cenrios de filmes, sejam eles, futuristas, histricos, policiais, de terror. Cidades como Nova

    York, Paris ou Rio de Janeiro tm servido de cenrio para um nmero incontvel de filmes.

    Veneza, com sua arquitetura caracterstica, utilizada no s em filmes romnticos, como em

    muitos outros gneros. A cidade e sua arquitetura passam a ser elementos indissociveis na

    construo da imagem de um filme. (Figuras 23 e 24)

    ... as belas imagens de uma cidade histrica, decadente, macabra, romntica

    e secreta s quais associamos a Veneza imaginada pela literatura e pelo

    cinema so desconstrudas pela Veneza real, que no cessa, porm, de

    inspirar o cinema e a literatura a construir novas imagens da cidade para que

    possamos, a cada viagem Itlia, novamente desconstruir Veneza de

    nosso imaginrio 29

    Figura 23: Imagem de Aurora, de Murnau (1927), em cartaz de palestras.

    Figura 24: Veneza em Quando o Corao Floresce, David Lean. (1955).

    29 FALCIONI. Desconstruindo Veneza (2005), p.148.

  • 38

    Os arquitetos so seduzidos pelo cinema

    Muitos diretores de cinema foram influenciados pela arquitetura e alguns deles eram

    arquitetos ou tinham arquitetos na famlia. Fritz Lang, que realizou Metrpolis, (1926)

    - considerada uma obra emblemtica - tem na representao da arquitetura seus pontos mais

    significativos. Ele era filho de um urbanista e estudou arquitetura. Sua obra foi influenciada

    por sua formao e, segundo alguns crticos, seria ele o mais arquiteto dos cineastas ou o

    arquiteto da imagem, dentre tantos ttulos que lhe atriburam ao longo de sua carreira. A

    geometria na construo dos elementos nos planos dos seus filmes, assim como na sua

    narrativa cinematogrfica e a importncia que a arquitetura possui nas suas imagens

    justificavam todas essas denominaes dadas a ele. Lang conhecia a evoluo dos

    movimentos na arquitetura, sabia do papel social desempenhado por ela e sua projeo no

    futuro. (Figuras 25 e 26)

    Figura 25: A cidade futurista em Metrpolis, Fritz Lang (1926).

    Figura 26: Os arranha-cus de Metrpolis de Fritz Lang (1926).

  • 39

    Quando se fala da conjuno cinema/arquitetura, uma das primeiras referncias diz

    respeito a filmes como Metrpolis, viso de uma cidade futurista, fortemente opressora,

    dividida entre senhores e escravos e inspirada, visualmente, em Nova York, cidade que o

    diretor havia visitado alguns anos antes, em 1924, e descoberto seus arranha-cus. (Figuras 27

    e 28)

    ... j no final do sculo passado o arranha-cu o elemento caracterizador da

    paisagem urbana americana... 30

    Figura 27: Metropolis e seus arranha-cus, Fritz Lang (1926).

    30 ARGAN. Arte Moderna (1993), p. 195.

  • 40

    Figura 28: Os arranha-cus em East Side, West Side de Allan Dwan (1927).

    A nova cidade ento passa a ser desumana nesse filme e o expressionismo do

    diretor, incorpora tambm uma viso futurista. Metropolis marcou a representao dos

    volumes verticalizados das construes modernas nos filmes de fico cientfica. 31 Os

    desenhos da cidade futurista, assim como os efeitos com maquetes e jogos de espelho para

    nos dar a sensao da cidade em ebulio, at hoje ainda nos surpreendem. Os arranha-cus

    de inspirao moderna, de linhas retilneas e os pores sombrios onde trabalham e vivem os

    operrios se contrapem aos jardins neoclssicos, espcie de den, onde os filhos das classes

    abastadas se divertem. (Figura 29 e 30). A casa do inventor Rotwang, o vilo da estria, tem

    sua configurao inspirada no gtico, como se algo malfico, tendo a cincia como suporte,

    emergisse de um passado medieval para manipular a massa de indivduos. Metrpolis

    31 Modernidade verticalizao... in CASTELO. Meu tio era um Blade Runner:ascenso e queda da

    arquitetura moderna no cinema (2002), p.3.

  • 41

    considerado, por esta e outras razes, como o triunfo mecnico da civilizao industrial, num

    filme proftico, que previu o que mais tarde viria a acontecer na Alemanha.

    Figura 29: O lazer das elites em Metrpolis de Fritz Lang (1926).

    Figura 30: Subterrneos em Metrpolis, Fritz Lang (1926).

    Alberto Cavalcanti (1897-1982), famoso diretor brasileiro que realizou grande parte

    de sua obra na Inglaterra e na Frana, era arquiteto e comeou como cengrafo. Utilizou

    algumas vezes o cenrio de seus filmes para expressar o estado psicolgico dos personagens,

    como tetos rebaixados para criar a sensao de opresso. Nicholas Ray, diretor americano que

    realizou filmes marcantes entre os anos quarenta e sessenta, como Johnny Guitar, Juventude

    Transviada e O Rei do Reis, tambm estudou arquitetura e de alguma forma, sua viso do

    espao flmico sofreu esta influncia, como escreveu Paulo Yassuhide Fujioka:

    ... o grande diretor Nicholas Ray (1911-1979), de Johnny Guitar, (1954) e

    Juventude Transviada, (1955), tambm estudou em Taliesin... 32 Ray

    manteve com Frank Lloyd Wright uma amizade duradoura que ia alm dos

    interesses arquitetnicos comuns. A influncia dos ensinamentos wrightianos

    32 A famosa escola de arquitetura fundada em 1932 pelo famoso arquiteto Frank Lloyd Wright.

  • 42

    determinante para o jovem Ray, que recordar principalmente como estes

    tinham ensinado um modo todo particular de pr o olhar sobre as coisas 33

    Outros diretores trabalharam em estreita colaborao com arquitetos na construo

    dos cenrios dos seus filmes ou mesmo tiveram arquitetos como personagens. Poderamos

    enumerar uma srie de filmes em que arquitetos fazem parte do enredo. 34 Muitos so partes

    importantes da trama. Em Terra dos Faras, de Howard Hawks, de 1955, um arquiteto

    judeu (James Robertson Justice) prisioneiro de guerra, que dever construir a pirmide onde o

    fara (Jack Hawkins) dever ser enterrado, porm o arquiteto dever morrer tambm para

    guardar o segredo desta obra. O projeto mostrado no filme em maquete, incluindo o

    dispositivo que selar a pirmide aps o funeral, para que ningum mais tenha acesso a seu

    interior.

    Os filmes O Tigre de Bengala e Sepulcro Indiano, primeira e segunda parte de uma

    mesma estria, dirigidos por Fritz Lang em 1958, tm como personagem principal um

    arquiteto que vai ndia para construir um palcio, projeto que se transformar finalmente em

    um tmulo. Embora a ao se concentre no romance proibido do arquiteto com a bailarina

    prometida ao Maraj que havia encomendado o projeto, o filme mostra a construo do

    projeto, tambm em maquete, e o roteiro, bem ao gosto de Lang, seguir uma rota labirntica

    com construes geomtricas no seu desenvolvimento.

    Michelangelo Antonioni, outro diretor que, fascinado pela arquitetura, a utilizou em

    filmes como A Aventura, de 1959, A Noite, de 1960, O Eclipse, de 1961 ou ainda O Deserto

    Vermelho, de 1963. procura de identidade do homem contemporneo, na imensido das

    33 FUJIOKA. Presena da arquitetura de Frank Lloyd Wright no cinema (2008).

    34 O arquiteto espanhol Jorge Gorostiza fez uma extensa pesquisa sobre filmes com personagens arquitetos

    no livro La Imagen Supuesta, Arquitectos en El Cine. Barcelona: Fundacin Caja de Arquitectos, 1998.

  • 43

    grandes cidades, o olhar do diretor italiano contrape a perplexidade e solido de seus

    personagens com edifcios modernistas ou os insere perdidos na desolao da paisagem dos

    novos bairros da periferia das grandes cidades italianas nos anos 1960. Os arquitetos ora so

    personagens principais como em A Aventura, ora coadjuvantes como em As Amigas, de 1955.

    H ainda a estudante de arquitetura (Maria Schneider) em O Passageiro, Profisso Reprter,

    de 1975, que acompanha um Jack Nicholson em busca de uma nova identidade, passando

    pelos telhados da Casa Mil, obra de Gaudi, em Barcelona, ou em novos conjuntos

    habitacionais de Londres.

    Diferentemente de Antonioni, os primeiros filmes de Pasolini se passam nos

    conjuntos habitacionais de ps-guerra da periferia romana, povoados pela classe proletria. J

    em suas ltimas obras, voltou-se para histrias, tendo runas arcaicas como cenrio.

    O arquiteto Jean Nouvel, em entrevista publicao CinmaAction, comenta a

    relao entre cinema e arquitetura, citando Pasolini.

    Creio que o cinema traz muito coisa arquitetura e a arquitetura

    algumas, ao cinema, pois o cinema uma forma de escritura e de traduo da

    realidade. Muitos filmes so realizados no a partir de um cenrio, mas de

    uma arquitetura. o caso de As Mil e uma Noites, de Pasolini que coloca

    muito bem em cena a cidade rabe. A contribuio da arquitetura ao cinema

    sua presena como tela de fundo em todos os filmes 35

    A arquitetura parte importante da nossa realidade e ela no atua somente como

    elemento de fundo em todos os filmes. Ela fundo e figura porque em alguns momentos ela ,

    35 NOUVEL. Parole darchitects in architecture, dcor et cinma (1995), p. 104 (traduo livre).

  • 44

    como j vimos, coadjuvante, mas em outros momentos ela assume o papel principal. O

    cinema reflete a realidade, mesmo que essa realidade sejam projees dos nossos desejos.

    Cidades reais e imaginrias

    No cinema, os diretores manipulam as imagens j existentes ou mesmo criam novas

    imagens a partir de fantasias. Para isto, contribuem os roteiristas, cengrafos e especialistas

    em efeitos especiais. Eles podem criar uma cidade imaginria a partir de uma cidade real ou

    mesmo atravs da digitalizao recriar uma cidade real e seus habitantes. Em O Show de

    Truman, de Peter Weir, de 1998, um homem criado, desde que nasceu, em uma cidade-

    cenrio de um programa de TV, acreditando ser uma cidade real. A cidade-cenrio, chamada

    no filme de Seahaven, nada mais do que Seaside, uma cidade real, inaugurada em 1981 na

    Flrida, e segundo Lineu Castello, um dos pilares do new urbanism de Andrs Duany e

    Elizabeth Plater-Zyberk.36 (Figura 31)

    Em termos de arquitetura, o que Duany e Plater-Zyberk esto fazendo

    reconstruir, na realidade, alguns dos velhos ideais arquitetnicos norte-

    americanos, bem semelhantes queles que eram representados nas pinturas

    de Norman Rockwell encomendadas por The Saturday Evening Post, e que

    se coadunam perfeio com o iderio do new urbanism. Ou, mais

    precisamente, com os sonhos fantasiosos que a Disney Imagineering

    Division desenhou quando criou o congraamento de cones que deu forma

    s main streets dos ambientes Disney 37

    36 CASTELLO. Meu tio era um Blade Runner: ascenso e queda da arquitetura moderna no cinema (2002).

    37 CASTELLO. Meu tio era um Blade Runner: ascenso e queda da arquitetura moderna no cinema (2002).

  • 45

    Figura 31: Seaside em O Show de Truman (1998): real ou cenrio?

    O que era real passa a representar fico em O Show de Truman. Outros diretores

    criaram cidades imaginrias a partir de duas ou vrias cidades reais. Em Luar Sobre Parador,

    de Paul Mazursky, de 1987, Ouro Preto e Salvador passam a ser uma nica cidade. Sonia

    Braga, a intrprete principal, ao dobrar uma esquina de Salvador, chega a uma praa de Ouro

    Preto como se estivesse em uma mesma cidade. A montagem dos espaos no filme faz com

    que o espectador passe de uma cidade a outra, imaginando estar em uma s. O diretor passa

    ento a construir e a interconectar espaos, como faz um arquiteto.

    Em Blade Runner, O Caador de Andrides, de Ridley Scott, de 1981, mostra uma

    Los Angeles do futuro, como uma cidade repleta de estilos arquitetnicos, decorada por

    anncios luminosos e com ruas povoadas por uma populao multirracial. Mais uma vez, a

    cidade alterada para servir s necessidades da histria do filme ou s escolhas do diretor.

    Segundo Lineu Castello, o diretor Ridley Scott, profissional em desenho, pintura e

    artes grficas, controlou pessoalmente os elementos visuais do filme, concentrando sua

    preocupao sobre a representao da arquitetura da cidade na cinematografia, concluindo

  • 46

    tambm, que as imagens foram desenhadas pelo diretor para que a aparncia da cidade

    remetesse a um futuro de quarenta anos. 38 Vale assinalar que, dentro da mistura de estilos

    arquitetnicos de diversas pocas existente no filme, h uma obra de Frank Lloyd Wright, o

    exterior da Ennis-Brown House. (Figuras 32 e 33)

    Figura 32: Ennis Brown House, de Frank Lloyd Wright (1924).

    Figura 33: Esboo dos cenrios de Blade Runner, O Caador de Andrides (1981).

    No artigo Presena da Arquitetura de Frank Lloyd Wright no Cinema, Paulo

    Yassuhide Fujioka, citando Filippo Fici, 39 diz:

    Em Blade Runner, o consultor cenogrfico Syd Mead (veterano e premiado

    cengrafo e designer) decidiu ambientar partes inteiras do filme em prdios

    histricos de Los Angeles. Os interiores da Ennis-Brown House (que j

    tinham sido utilizados em Female 40) foram escolhidos para formar parte do

    apartamento do R. Tyrrel e do hall do prdio de apartamentos do

    protagonista Decarkd 41

    38 CASTELLO. Meu tio era um Blade Runner: ascenso e queda da arquitetura moderna no cinema (2002).

    39 FICI. Frank Lloyd Wright e Il cinema, Il cinema e Frank Lloyd Wright (2003). (Traduo Livre).

    40 Female, no Brasil, Tu s Mulher, foi dirigido por Michael Curtiz (1888-1962), produo da Warner de 1933.

    Curtiz o diretor do famoso filme Casablanca, de 1942. 41

    FUJIOKA. Presena da arquitetura de Frank Lloyd Wright no cinema (2008).

  • 47

    Cinema de escadas, janelas e portas

    O cinema utiliza freqentemente elementos arquitetnicos nas suas histrias. De

    grande efeito cnico, esses elementos se repetem em inmeros filmes como recurso de

    expresso.

    As aberturas nas paredes, janelas, portas e corredores por onde se vislumbram outros

    espaos ou sucesses deles nos do, na arquitetura, profundidade de campo. Orson Welles

    utilizou a com maestria no seu primeiro filme, Cidado Kane, de 1941.

    As janelas, recortando uma paisagem, funcionam como telas de cinema. Atravs

    delas vemos as nuvens, o vento balanando a vegetao, a tempestade sobre a rua, pessoas

    passando ou mesmo outras janelas por onde vemos seus moradores em atividades domsticas.

    A prpria tela de cinema uma janela que nos transporta a outra dimenso, seja ela prxima

    de nossa realidade, dos nossos desejos, dos nossos medos ou da concretizao de arqutipos

    escondidos no fundo do nosso inconsciente. A televiso outra janela, digamos, irm mais

    nova do cinema e o computador, ainda mais recente, projetou, com suas incontveis

    possibilidades, inmeras janelas para o mundo.

    No cinema como na vida real, a janela usada para fugas, situaes romnticas ou

    mesmo voyeurismo. Quem no se lembra de A Janela Indiscreta, de Alfred Hitchcock, de

    1954, atravs da qual, o fotgrafo interpretado por James Stewart, observa a vida dos seus

    vizinhos, descobrindo um assassinato que acontece por detrs de outra janela em frente sua?

    Ou um personagem percebendo que algum o est vigiando do outro lado da rua? (Figura 34)

  • 48

    Figura 34: Janela Indiscreta, de Hitchcock (1954). Elemento recorrente no cinema.

    Figura 35: A janela marca a passagem do tempo em Festim Diablico, de Hitchcock (1948).

    Lembremos mais uma obra de Hitchcock, Festim Diablico, de 1948 - rodado como

    se fora em um s plano seqncia - toda a ao do filme se passa em algumas horas dentro de

    um apartamento. Na sala onde esto os convidados existe uma imensa janela de vidro.

  • 49

    Atravs dela, vemos o cu, as nuvens e a mudana de cores, que nos indica a passagem do

    tempo. A janela, mais uma vez, tem funo decisiva como suporte temporal no filme. (Figura

    35) No final de Meu Tio, de Jacques Tati, de 1958, a cmera retrocede, deixando ver a cortina

    e o caixilho de uma janela, revelando ao espectador o voyeurismo que est implcito ao se

    assistir a um filme. 42 Ainda em Meu Tio, o Senhor e a Sra. Arpel, durante a noite, se colocam,

    cada um, em uma das janelas redondas no alto da casa, fazendo com que parea que a casa

    tenha olhos, vigiando seu exterior.

    A porta, outro elemento imprescindvel nas construes arquitetnicas, tambm um

    elemento simblico e de grande expressividade no cinema. John Ford inicia um dos seus

    melhores filmes, Rastros de dio, de 1956, com a abertura de uma porta para o exterior, por

    onde passa o personagem de John Wayne em busca da sobrinha raptada por ndios anos atrs.

    A histria, que no caberia contar aqui, termina com o mesmo plano do incio, mas com a

    porta se fechando, depois que o mesmo personagem sai outra vez da casa, aps ter resgatado

    sua sobrinha. (Figura 36)

    Figura 36: A porta em Rastros de dio. John Ford (1956).

    42 GOROSTIZA. A Arquitetura Segundo Tati: Natureza Versus Artifcio (1992), p.54.

  • 50

    Portas, portes e prticos esto presentes em cenas chaves do cinema. Elas delimitam

    espaos, cmodos de uma casa ou seu interior com o exterior. Atravess-las significa partida,

    invaso, e no poder atravess-las pode significar confinamento ou interdio. Abertas ou

    fechadas elas j definem uma situao. Um dos filmes da fase americana do diretor Fritz

    Lang, de 1948, chama-se O Segredo da Porta Cerrada. O ttulo indica o papel da porta na

    ocultao de um segredo, mostrando seu papel simblico. Vale ainda assinalar que o

    personagem principal um arquiteto. Mais uma ligao do diretor com o universo da

    arquitetura.

    Figura 37: Escada, elemento cinematogrfico (Vaticano).

    A escada outro importante elemento arquitetnico desde os primrdios da

    civilizao. (Figura 37) Quem teria inventado a escada? A resposta se perde no tempo. Ela

    utilizada para alcanar alturas, tem funo religiosa e sobretudo cenogrfica, a respeito da

    qual a arquitetura barroca tirou bastante proveito. O estudo de suas funes e utilizao como

    elemento simblico atravs dos tempos daria um interessante trabalho. Por sua vocao

  • 51

    cenogrfica, o teatro a utiliza com freqncia e o cinema a incorporou, criando cenas

    antolgicas onde ela exerce papel fundamental.

    O drama pico, O Encouraado Potemkin, de Sergei Eisenstein, de 1925, tem na

    seqncia das escadarias de Odessa, uma matriz que por muitos anos foi copiada e

    reinventada, de Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha, de 1964, a Os Intocveis,

    de Brian de Palma, de 1987, passando pelo O Chefo, Parte III, de Francis Ford Coppola, de

    1990. Mais uma vez, Hitchcock utiliza outro elemento arquitetnico em uma seqncia

    essencial de Um Corpo Que Cai, de 1958, quando James Stewart sobe uma escada em

    caracol, tentando impedir o suicdio da personagem de Kim Novak. A construo de uma

    maquete da escada e os efeitos criados para a sensao de vertigem do personagem durante a

    perseguio so relatados em entrevista concedida ao diretor a Franois Truffaut no famoso

    livro Hitchcock Truffaut - Entrevistas. 43 (Figuras 38 e 39)

    Figura 38: A escada, palco da tragdia em O Encouraado Potemkin. Sergei Einsenstein (1925).

    43 TRUFFAUT. Hitchcock Truffaut, Entrevistas (1986), p. 146.

  • 52

    Figura 39: A escada e a vertigem em Um Corpo que Cai. Hitchcock (1958).

    O cultuado cineasta Pedro Almodvar escreveu sobre a escada como elemento

    simblico no cinema:

    A escada tem sido um elemento arquitetnico que indica poder e seria

    inimaginvel a famlia Amberson em Soberba, de Orson Welles, sem a

    presena dessas escadas que comunicam os diversos nveis do drama

    familiar. Tambm o mistrio que se refugia nas partes altas de uma escada

    (Psicose) ou servem para que as heronas das comdias em preto e branco

    dos anos 1940 e 1950 corram de cima para baixo com trajes divinos e gals

    de sonhos... 44

    44 ALMODVAR. Notas sobre actrices de la familia (2008). (Traduo livre)

  • 53

    Os elementos da arquitetura utilizados pelo cinema, por si s, dariam uma

    dissertao e no pretenso deste trabalho se prolongar neste interessante universo. A

    arquitetura como arte do espao-tempo, mas tambm como funo social, foi e ainda

    freqentemente utilizada nos filmes. A observao desse universo abre um imenso campo de

    pesquisa. O arquiteto como personagem flmico teve poucas vezes discutidas, questes

    relativas sua profisso e a sua relao com o mercado de trabalho. Vontade Indmita de

    King Vidor, de 1948, filme propaganda da arquitetura modernista, uma das poucas

    excees, embora tenha sofrido severas crticas, como veremos no captulo seguinte.

  • 54

    CAPTULO II

    PROPAGANDA DA ARQUITETURA: VONTADE INDMITA

    Vontade Indmita (1948) representou, de certa maneira, o primeiro filme a abordar a

    questo da arquitetura moderna no cinema de Hollywood, embora desde os anos 1930 esse

    tipo de arquitetura tenha sido introduzido nos cenrios dos filmes americanos, ainda que

    utilizando elementos decorativos remanescentes do estilo ecltico. Neste filme, o arquiteto e a

    arquitetura so os protagonistas principais, e at hoje um dos poucos casos existentes na

    histria do cinema. Muitos filmes, como j foi dito antes, tm como protagonista um

    arquiteto, mesmo que sua profisso no seja determinante no desenrolar da estria.45

    Coube ao famoso diretor americano King Vidor (1895-1982) a realizao do filme.

    Vidor, nascido no Texas, estudou inicialmente em uma academia militar, foi projecionista,

    cmera de cine jornais e tambm dirigiu alguns curtas-metragens para a religio Cincia

    Crist. Comeou no cinema mudo e realizou algumas obras marcantes na histria do cinema.

    Seus filmes, segundo os crticos, abordam o tema recorrente do indivduo solitrio na luta

    contra um inimigo, seja a sociedade, elementos da natureza ou sua prpria vida.

    Quem viu o filme mudo A Turba (The Crowd) jamais o esquecer e olhar

    para sempre com respeito para este diretor que, se nunca chegou a ser o que

    chamavam de um autor, mas certamente foi um grande profissional de

    cinema. Essa opinio conflita com a de alguns crticos que simplesmente o

    45 A exemplo de Lar, Meu Tormento, de H.C. Potter, de 1948, filme que ser comentado adiante, em razo de

    algumas analogias com Vontade Indmita.

  • 55

    acham o melhor diretor de Hollywood (teve inclusive cinco indicaes ao

    Oscar, ganhando finalmente um honorrio em 1979) 46

    O filme A Turba, de 1928, considerado uma das suas obras-primas e, em 1929,

    realizou Aleluia, s com atores negros, um dos primeiros filmes falados. A famosa seqncia

    da msica Over the Rainbow no filme O Mgico de Oz, de Victor Fleming, 1939, foi dirigida

    por Vidor, embora seu nome no conste nos crditos. Foi em 1948 que dirigiu Vontade

    Indmita, um dos poucos filmes a alar o arquiteto a uma categoria nunca antes mostrada no

    cinema. A vida de um arquiteto modernista e suas vicissitudes dentro de uma sociedade

    americana conservadora constitui o eixo central do enredo.

    Poderamos resumir o filme da seguinte maneira: Howard Roark (Gary Cooper) um

    arquiteto idealista que defende suas idias contra os projetos tradicionais da poca em que se

    passa a histria, nos anos 1940. Aps uma srie de derrotas no campo profissional, devido s

    suas idias radicais, resolve trabalhar como operrio em uma pedreira, onde conhece a

    personagem - Dominique Francon - interpretada por Patricia ONeal, uma crtica de

    arquitetura, com quem vem a ter uma intensa histria de amor. Com grande dificuldade,

    Roark consegue voltar a fazer pequenos projetos modernistas, como postos de gasolina e

    residncias. Aceita tambm projetar um conjunto habitacional para outro arquiteto, Peter

    Keating, antigo colega de faculdade que assumir a autoria desse projeto. Ao contrrio de

    Roark, Keating se curva s exigncias do mercado e seu ideal fazer fortuna. Roark impe

    uma condio ao aceitar a proposta, de que o projeto seja construdo sem modificaes, o que

    na prtica no ocorre. Ao ver as transformaes descaracterizarem o projeto original, Roark

    dinamita-o, com a ajuda de Dominique. Condenado, ele faz a sua prpria defesa no tribunal.

    46 EWALD FILHO. Dicionrio de Cineastas (2002), p. 739.

  • 56

    De forma convincente, defendendo a liberdade de criao do artista e o respeito integridade

    da obra, ele absolvido. 47 (Figuras 40 e 41)

    Figura 40: Cartaz do filme Vontade Indmita.

    Figura 41: Gary Cooper, famoso gal de Hollywood, interpreta o arquiteto Howard Roark.

    Muitos acharam semelhanas deste personagem com o protagonista de Cidado

    Kane (1941), de Orson Welles, um self-made man americano. Uma forma pica de fora

    interior, onde a condio material do mundo externo pouca importncia teria. 48 Cidado

    Kane estaria para o mundo da imprensa assim como Vontade Indmita estaria para o mundo

    da arquitetura. No primeiro, o protagonista teria sido inspirado no magnata da imprensa

    americana, William Randolph Hearst e, no segundo, o personagem Howard Roark, no

    47 Tambm em A Aventura, de Michelangelo Antonioni, 1959, o personagem principal, um arquiteto vivido pelo

    ator Gabrile Ferzetti, revela em alguns momentos do filme seu desencanto pela profisso, num mundo capitalista. O mercantilismo e o idealismo na profisso do arquiteto tambm so discutidos em O Sonho do Arquiteto, de Peter Greenaway, de 1987. O personagem desse filme tambm arquiteto e chega a Roma para montar uma grande exposio sobre o arquiteto francs Etiene Louis Boull (1728-1799). 48

    GADANHO. Vontades Indmitas ou o Romantismo do Olhar Moderno (1999), p. 216.

  • 57

    arquiteto Frank Lloyd Wright. 49 O personagem principal, que seria interpretado pelo ator

    Humphrey Bogart, como queria o diretor King Vidor, acabou sendo substitudo pelo gal

    Gary Cooper.

    A inspirao nos arranha-cus

    O roteiro de Vontade Indmita, baseado num best-seller da escritora Ayn Rand,

    grande sucesso desde seu lanamento em 1943, ainda hoje reeditado e vendido. Ayn, alis,

    Aline Rosenbaum, de origem judaica, nasceu em So Petersburgo, na Rssia Czarista.

    Imigrou para os Estados Unidos, em 1925, fugindo do comunismo, durante um perodo de

    relaes renovadas entre o Ocidente e a Rssia, deixando para trs uma vida de dureza e

    privaes. Segundo a crtica da poca, utilizou a mstica do mundo arquitetural modernista, o

    arquiteto como profissional visionrio e de criatividade marcante, alm de sua importncia na

    reconstruo das cidades entre as duas grandes guerras, para inserir a sua ideologia pr

    capitalista, glorificando os valores individualistas contra qualquer forma de coletivismo,

    dentro de antigos padres patriticos americanos, explicado talvez por suas origens. 50

    Segundo o escritor Otto Friedrich em seu livro A Cidade das Redes, Hollywood nos

    Anos 40, a inspirao da escritora ocorreu quando viu, ainda na Rssia, fotografias dos

    arranha-cus de Nova York. Quis escrever sobre os homens que tinham construdo aquilo. 51Ayn Rand passou trs anos pesquisando para o romance, chegando a trabalhar como

    datilgrafa num escritrio de arquitetura. Aps vrios anos reescrevendo o livro, o mesmo foi

    finalmente publicado em 1943, por um editor conservador, j que outras editoras o haviam

    49 No artigo LOmniprsence de lArchitecture chez King Vidor, Franoise Zamour cita que Richard Neutra

    reivindicou toda sua vida um parentesco com o personagem Howard Roark do filme de King Vidor. ZAMOUR (1995), p. 58. 50

    LEVINSON. Tall Buildings, Tall Tales (2000), p. 29. 51

    FRIEDRICH. A Cidade das Redes, Hollywood nos Anos 40 (1988), p.391.

  • 58

    recusado. O romance tornou-se um best-seller, apesar das crticas, na maioria, hostis. A

    publicao do romance, para Donald Albrecht, anunciou ao pblico americano o novo status

    da arquitetura modernista como estilo do establishment. 52 (Figura 42)

    Figura 42: King Vidor, Ayn Rand e Gary Cooper durante as filmagens.

    O romance, 53 de aproximadamente setecentas pginas, foi adaptado pela

    prpria autora do livro para um filme de 112 minutos, ou seja, quase duas horas de projeo,

    tempo padro para os moldes do cinema comercial. Nos anos quarenta, Hollywood vivia um

    perodo glorioso e foram criados vrios clssicos do cinema. Os estdios possuam grandes

    profissionais. Muitos diretores europeus, fugidos da segunda guerra, foram contratados nessa

    dcada. Muitos escritores tambm trabalhavam como roteiristas. A preciso, o poder de

    sntese e o domnio da linguagem do cinema puderam ser exemplificados na adaptao do

    52 ALBRECHT. Designing dreams modern architecture in the movies (1986), p.168 (traduo livre).

    53 Friedrich assinala que Rand, com o dinheiro obtido com o sucesso do livro, compra um rancho em San

    Fernando Valley, com uma casa em ao e vidro projetada por Richard Neutra. In FRIEDRICH (1988), pg. 391-392.

  • 59

    extenso romance de Ayn Rand para o filme. Os primeiros dois teros do romance, por

    exemplo, cerca de duzentas pginas, foram reduzidos a poucos minutos, quando o perfil de

    alguns personagens e situaes importantes para o desenvolvimento da trama so

    apresentados. Exemplo: a expulso de Roark, personagem principal, da escola de arquitetura,

    devido s suas idias contrrias academia; sua relao com um colega, Peter Keating,

    tambm arquiteto, mas a servio dos interesses do mercado; o encontro com o personagem

    que vir a ser o seu mentor, Henry Cameron, arquiteto mais velho, com idias e projetos que

    vo de encontro ao pensamento da poca e que iro reforar as posies de Roark mais

    adiante. (Figura 43)

    Figura 43: O personagem Roark e seu mentor, Henry Cameron.

    As crticas, porm, no foram favorveis tambm ao filme na poca do seu

    lanamento. Houve unanimidade entre os crticos ao apontar falta de aprofundamento dos

    personagens, exagero na imagem do arquiteto, cuja radicalidade o leva a um comportamento

    duvidoso. Apesar de todas essas crticas, pela primeira vez, um filme provocava uma

  • 60

    discusso de idias sobre a arquitetura modernista e a posio do arquiteto enquanto criador

    na sociedade da poca.

    Qualquer semelhana mera coincidncia?

    Para muitos crticos e arquitetos que viram Vontade Indmita, Howard Roark foi sem

    dvida inspirado em Frank Lloyd Wright, e seu mentor, Henry Cameron, em Louis Sullivan,

    mestre de Wright no final do sculo XIX e com quem trabalhou no incio da sua carreira.

    Henry Cameron, no momento de sua morte, cita para Roark a frase de Sullivan: A

    forma segue a funo, deixando-a como legado, o que mostra o carter do pensamento dos

    personagens. Ainda na seqncia em que Roark leva o seu mentor numa ambulncia, vemos

    uma srie de edifcios passarem atravs da janela, enquanto Cameron fala para Roark que o

    arranha-cu uma das maiores invenes do homem e, no entanto, ainda so construdos

    como templos gregos, catedrais gticas e mistura de todos os estilos que puderam copiar,

    concluindo que os materiais novos exigem novas formas. 54 Mais uma vez, a fala de Cameron

    defende as idias que definem seu trabalho e de que Roark ser seguidor. (Figura 44)

    ... a seqncia em que Roark encontra Cameron doente e leva-o de

    ambulncia ao hospital lembra os ltimos momentos de Sullivan

    (acompanhado por Wright e alguns companheiros), tal como descrito por

    Frank Lloyd Wright em An Autobiography. Alm disso, Wright tambm no

    chegou a completar a faculdade (como Roark), mas por motivos bem menos

    dramticos do que o mostrado no filme 55

    54 Henry Cameron para Howard Roark em Vontade Indmita (1948), aos 5 e 53.

    55 No filme, o personagem Roark expulso da Faculdade por insistir em suas idias contrrias aos acadmicos.

    FUJIOKA. Presena da arquitetura de Frank Lloyd Wright no cinema (2008).

  • 61

    Figura 44: Roark acompanha seu mentor numa ambulncia. Ao fundo, os arranha-cus.

    Apesar de a escritora Ayn Rand negar vrias vezes ter-se inspirado em Frank Lloyd

    Wright para criar seu personagem, nutria uma grande admirao por ele, tentando por vrias

    vezes promover um encontro, o que aconteceu rapidamente durante uma palestra em Nova

    York. Depois, ela teria enviado a Wright trs captulos do seu romance, que respondeu

    mostrando desagrado em relao ao personagem Roark.56 Havia diferenas ideolgicas entre a

    escritora e o arquiteto e ela parecia no entender as idias dele.

    Segundo Friedrich, Rand era uma polemista de direita. J Wright

    condenava os excessos do capitalismo (principalmente por parte dos bancos).

    Rand era cosmopolita e amava a vida urbana. Mas as razes do mestre

    estavam no campo e ele criticava as grandes cidades (estava inclusive de

    mudana para o deserto do Arizona). Rand sentia-se atrada pelos arranha-

    cus de Nova York desde sua juventude em So Petersburgo (o que explica a

    cena final do filme) Frank Lloyd Wright - na poca considerava o

    56 FUJIOKA. Presena da arquitetura de Frank Lloyd Wright no cinema (2008).

  • 62

    skyscraper como smbolo da corrupo capitalista (mais tarde mudou de

    idia) 57

    Rand chegou a encomendar a Wright o projeto de sua residncia em 1946, que ela

    disse ter adorado, mas o custo (U$ 35.000) era muito alto. Parece que, na poca, Wright,

    disse-lhe que ento ganhasse mais dinheiro. 58 Evidente que a casa nunca foi construda 59 e a

    escritora acabou comprando a casa que Richard Neutra havia projetado para o diretor do filme

    O Anjo Azul, de Joseph Sternberg em 1935, por U$ 24.000, que foi demolida em 1972. 60

    (Figuras 45 e 46)

    Figura 45: Projeto de Frank Lloyd Wright para a casa da escritora Ayn Rand.

    Figura 46: Cartaz com figura da escritora Ayn Rand.

    Rand no desistia de Wright. Finalmente, ele escreveu que a tese de Rand contida no

    livro era importante, especialmente naquela poca, e que observaes a respeito da

    degenerao profissional que existia dentro do metier o deixavam espantado. Quando, porm,

    o filme foi exibido e o personagem Roark criticado por dinamitar seu projeto, Wright afirmou

    57 FUJIOKA. Presena da arquitetura de Frank Lloyd Wright no cinema (2008).

    58 GEBHARD. Romanza the California architecture of Frank Lloyd Wright (1988), p.127 (traduo livre).

    59 NEUMANN. Film Architecture, From Metropolis to Blade Runner (1996), p. 130 (traduo livre).

    60 FUJIOKA. Presena da arquitetura de Frank Lloyd Wright no cinema (2008).

  • 63

    que no queria ser identificado com aquilo. Concordava com a tese de o artista ter o direito de

    preservar sua obra em todos os detalhes da concepo, mas a autora havia exagerado e

    deturpado esse conceito, por isso no endossava o livro. 61

    A luta travada por Roark, personagem principal do filme, na defesa da integridade de

    sua criao artstica, tinha relao direta com a experincia anterior do diretor na realizao de

    Duelo ao Sol, de 1946, produzido por David O. Selznick, um dos maiores produtores da poca

    urea de Hollywood, que realizara filmes de sucessos, dentre os quais, E o Vento Levou, de

    1939. Selznick interferia em todas as fases de produo dos seus filmes e a ele era dada a

    palavra final.

    O conflito entre King Vidor e Selznick aconteceu justamente no que dizia respeito

    liberdade de criao do artista. Na realizao do filme Duelo ao Sol, em 1946, houve muitos

    problemas e a participao de vrios co-diretores resultou num trabalho em que no se sabe

    exatamente quem fez o qu.

    Antes disso, Vidor j havia tido problemas com Amrica (1944), quando seus

    produtores cortaram quarenta e cinco minutos do filme porque no havia agradado ao pblico

    em sesses-teste, antes da estria comercial. Sabe-se que na indstria do cinema americano os

    donos dos estdios e os produtores exerciam e ainda exercem um forte poder de deciso,

    controlando passo a passo o desenrolar do processo da realizao dos filmes e seu resultado.

    King Vidor, logo aps essas duas experincias, decidiu fazer um filme em que pudesse

    trabalhar sem tantas interferncias, mantendo seu projeto tal como concebeu, e a escolha do

    tema refletia a questo da liberdade de criao no trabalho do artista.

    61 NEUMANN. Film Architecture, From Metropolis to Blade Runner (1996), p.130 (traduo livre).

  • 64

    A luta perpetrada pelo realizador e o personagem arquiteto ser, no fundo, a mesma:

    garantir a todo custo a integridade da sua obra. Garanti-la contra tudo, contra todas as

    imposies tpicas do sistema em que se move o indivduo e assumir riscos pessoais at a

    quase demencialidade. 62 Vidor afirmou a Luc Mollet e Michel Delahaye, em entrevista

    concedida aos dois crticos franceses na revista Cahiers du Cinema, em outubro de 1962, que

    amava o heri de Vontade Indmita porque ele ia at o fim, fazendo o que deveria fazer.

    Dinamitar os estdios, fazendo aluso sua experincia em Duelo ao Sol, e destruir o filme,

    para dez anos mais tarde no dizer: foi culpa do senhor Selznick! Est claro que o senhor

    Roark sou eu, acrescenta. 63

    Em Vontade Indmita, o personagem Roark, com seu idealismo romntico e

    exacerbado, o oposto do seu colega arquiteto, Peter Keating, que cede a todas as exigncias

    dos poderosos do mercado imobilirio, como dito anteriormente. Keating fala para Roark, no

    incio do filme, que ele, Keating, ter sucesso profissional porque dar ao pblico o que este

    quer. Os professores de Roark, tambm na abertura do filme, contestando seus projetos,

    perguntam se ele quer enfrentar o mundo, concluindo que na arquitetura no h lugar para a

    originalidade e que ningum poder melhorar os edifcios do passado, s copi-los. Para eles,

    Roark insiste em projetar edifcios que ningum ir construir e acabam por expuls-lo da

    escola de arquitetura.

    Nesse prlogo do filme, fica bem definida a luta do criador diante das reaes s suas

    obras, cujas concepes so de uma arquitetura feita de formas puras, sem adornos ou

    revivalismos, diferente do gosto corrente na poca. No entanto, experincias ligadas a novas

    62 GADANHO. Vontades Indmitas ou o Romantismo do Olhar Moderno (1999), p.216.

    63 ZAMOUR. Lomniprsence de larchitecture chez King Vidor (1995), p.65 (traduo livre)

  • 65

    concepes arquiteturais j haviam acontecido dcadas atrs, aps o final da primeira guerra

    mundial. Segundo Argan, 64 as tendncias mais destacadas que surgiram neste perodo foram:

    o racionalismo formal, tendo a frente Le Corbusier, o racionalismo metodolgico didtico na

    Alemanha, com Walter Gropius frente, o racionalismo ideolgico do Construtivismo

    sovitico, o formalista do Neo-plasticismo holands, o emprico escandinavo, cujo expoente

    A. Aalto, e o racionalismo orgnico americano, com a personalidade dominante de Frank

    Lloyd Wright.

    Inspirao na arquitetura, pastiches e elos de ligao

    Os projetos arquitetnicos mostrados no filme deveriam, a princpio, ser desenhados

    pelo arquiteto Frank Lloyd Wright, mas o valor pedido por ele, 250.000 dlares, considerado

    muito caro pelos produtores dos estdios da Warner, fez com que o trabalho fosse entregue ao

    diretor artstico do estdio, o cengrafo Edward Carrere. (Figura 47)

    Figura 47: Edward Carrere, Gary Cooper e King Vidor.

    Carrere nasceu no Mxico, mas estudou na Polytechnic High School em Los

    Angeles. Foi cengrafo dos estdios da Warner de 1932 a 1969. Dentre seus trabalhos mais

    famosos, figuram os cenrios feitos para Disque M para Matar, 1954, de Alfred Hitchcock e

    64 ARGAN. Arte Moderna (1993), p. 264.

  • 66

    particularmente Vontade Indmita, 1948, de King Vidor, em que desenhou os projetos do

    personagem Roark e do seu mentor, Henry Cameron. Para o primeiro, a inspirao veio

    sobretudo do trabalho do arquiteto Frank Lloyd Wright e, para o segundo, projetos inspirados

    no proto-brutalismo. 65 O cengrafo criou maquetes e esboos inspirados tambm na obra

    de Mies van der Rohe e Alvar Aalto. 66 Isso causou a indignao de arquitetos, na poca do

    lanamento do filme, sobretudo dos crticos da revista americana Interiors, que viram muita

    semelhana entre a Casa da Cascata (The Falling Water House), de Frank Lloyd Wright 67 e

    a Casa Wynand, (Figuras 48 e 49) projeto que o personagem Roark concebe para o editor

    Gail Wynand (Raymond Massey), poderoso dono de um jornal popular.

    Figura 48: Casa Wynand projeto do personagem Roark , semelhanas com a Casa da Cascata de

    Wright.

    Figura 49: Casa da Cascata de Frank Lloyd Wright.

    Segundo os crticos, o projeto mostrado no filme era uma caricatura da obra de

    Wright, como tambm o personagem principal seria uma caricatura de um arquiteto

    modernista mas, segundo D. Albrecht, em Desinging Dreams Modern Architecture in the

    65 NEUMANN. Film Arquitechture, From Metropolis to Blade Runner (1996), p.196 (traduo livre).

    66 ZAMOUR. Lomniprsence de larchitecture chez King Vidor (1995), p.58 (traduo livre).

    67 (IDEM)

  • 67

    Movies, Carrere, como todos os caricaturistas fazem, exagerou apenas o essencial: a relao

    dinmica entre interior e exterior conseguida atravs de balanos generosos. 68

    Fujioka, em seu artigo Presena da Arquitetura de Frank Lloyd Wright no Cinema,

    assinala:

    ... o que vemos no filme uma amostra de elementos que reportam a

    diferentes vertentes do Movimento Moderno. O discurso de Roark

    modernista, mas seus projetos transitam entre o organicismo wrightiano

    (como na Wynard Residence) e o tradicionalismo do International Style (na

    torre de apartamentos Enright House). Apesar das lajes delgadas em balano,

    o curtain-wall, a leveza das formas e a disposio dos volumes aludem mais

    Bauhaus, embora de forma quase caricatural. Nada a ver, portanto com o

    conceito wrightiano de arranha-cu, baseado no principio da estrutura

    rvore 69

    Mais, radical, o Journal of the Amer