ARRAIS, Joubert de Albuquerque - Dissertaçao - PPGDanca - UFBA

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIAESCOLA DE DANA

    PROGRAMA DE PS-GRADUAAO EM DANA

    JOUBERT DE ALBUQUERQUE ARRAIS

    PROCESSOS CO-EVOLUTIVOS ENTRE DANA E CRTICA:DE UM CONTEXTO CEARENSE A UMA CRTICA CONTEMPORNEA DE DANA

    Salvador2008

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    JOUBERT DE ALBUQUERQUE ARRAIS

    PROCESSOS CO-EVOLUTIVOS ENTRE DANA E CRTICA:DE UM CONTEXTO CEARENSE A UMA CRTICA CONTEMPORNEA DE DANA

    Dissertao de Mestrado apresentada ao Programade Ps-Graduao em Dana - PPGDanca, Escolade Dana, da Universidade Federal da Bahia -UFBA, como requisito parcial para a obteno dottulo de Mestre em Dana.

    Orientadora: Prof Dr Fabiana Dultra Britto

    Salvador2008

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    Biblioteca Central Reitor Macdo Costa - UFBA

    A773 Arrais, Joubert de Albuquerque.Processos co-evolutivos entre dana e crtica : de um contexto cearense a uma crtica

    contempornea de dana / Joubert de Albuquerque Arrais. - 2008.125 f.

    Inclui anexos.Orientadora : Prof Dr Fabiana Dultra Britto.Dissertao (mestrado) - Universidade Federal da Bahia, Escola de Dana, 2008.

    1. Dana - Criao e crtica. 2. Crtica de arte. 3. Evoluo. 4. Dana - Aspectos polticos.5. Poltica na arte. I. Britto, Fabiana Dultra. II. Universidade Federal da Bahia. Escola de Dana.III.Ttulo.

    CDD - 793.3CDU - 793.3

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    JOUBERT DE ALBUQUERQUE ARRAIS

    PROCESSOS CO-EVOLUTIVOS ENTRE DANA E CRTICA:DE UM CONTEXTO CEARENSE A UMA CRTICA CONTEMPORNEA DE DANA

    Dissertao apresentada como requisito parcial para obteno do grau de Mestre

    em Dana pelo Programa de Ps-Graduao em Dana PPGDanca, da Escola de

    Dana, da Universidade Federal da Bahia.

    Aprovada em 30 de junho de 2008.

    Banca Examinadora

    FABIANA DULTRA BRITTO Orientadora _________________________________

    Docente-orientadora institucional PPGDanca/UFBA

    Doutora em Comunicao e Semitica PUC/SP

    HELENA TANIA KATZ _________________________________________________

    Docente convidada do Departamento de Artes do Corpo PUC/SP

    Doutora em Comunicao e Semitica PUC/SP

    JUSSARA SOBREIRA SETENTA_________________________________________

    Docente do Programa de Ps Graduao em Dana PPGDanca/UFBA

    Doutora em Comunicao e Semitica PUC/SP

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    A

    Minha me, (Dona) Terezinha, pelo amor incondicional e por sempre possibilitar a

    complexificao das minhas aes e meus anseios profissionais e humanos.

    Meus sobrinhos, Artur e Ana Beatriz, pela renovao dos sonhos, planos e

    horizontes.

    Meu pai, Alberone (in memorian), pela maturidade boemia dos chorinhos, apesar

    das incompatibilidades do destino.

    Meu irmo, Adjalme (in memorian), pela juventude imortalizada nas lembranas dosque aqui ficaram.

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    AGRADECIMENTOS

    A mim, JOUBERT DE ALBUQUERQUE ARRAIS, pela pacincia e coragem comigo

    mesmo, de assumir sonhos realizveis.

    minha orientadora, FABIANA DULTRA BRITTO, pela cumplicidade e reflexo de

    me fazer perceber que eu posso muito. E eu posso mesmo!

    Ao PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM DANA PPGDANCA, pelo

    acolhimento e pelo ambiente artstico e acadmico que me fez co-evoluir, sem o

    qual esta pesquisa no teria sido possvel.

    Aos meus amigos-professores-gurus, FRANCISCO GILMAR DE CARVALHO(Cultura Popular), ANTONIO WELLIGTON DE OLIVEIRA JNIOR (ex-orientador de

    monografia de graduao, performer e artista visual), HELENA TANIA KATZ (Dana

    e Crtica de Dana) e RONALDO SALGADO (Jornalismo Opinativo).

    Aos professores do PPGDanca, cada um em sua singularidade, pelo desafio juntos

    de ser primeiro programa e primeira turma, por me acolherem e me darem condies

    de existncia ajustadas s especificidades da dana, tudo isso para eu ser quem, de

    fato, eu sou, artstica e academicamente humano: DULCE AQUINO, JUSSARASETENTA, ELOISA DOMENICI, LEDA MUHANA E ADRIANA BITTENCOURT.

    Aos meus grandes amigos do Cear, alguns deles j feito-passarim que nem eu:

    CAROLINA DO VALE Carol (que me faz sereno e inquieto), CRISTINA

    CARNEIRO Kika Sobral (que me faz bomio), LACIO RICARDO Lalas (que

    me faz cult), RAIMUNDO NONATO JNIOR O Junssimo (que me faz pacfico),

    ISABEL ANDRADE Bel (que me faz me sentir o melhor), GRAZIELE

    ALBUQUERQUE Grazzie (que me faz guerreiro), MARCIO CHAVES Redshoes (que me faz in, nunca out). E as recprocas so bem verdadeiras.

    A duas amizades cearenses que se fortaleceram pelo e no mestrado-travessia:

    ANGELA SOUSA (ngeu / Dana), que me faz sensato, e MARIA AURINVEA DE

    ASSIS (Nvea / Literatura), que faz ser audaz e navegante.

    Aos meus amigos colegas de mestrado, do Brasil e do Mundo, que fiz e que me

    escolheram: GLADIS TRIDAPALLI (Curitiba - PR), MARA GUERRERO (So Paulo

    SP), KARIME NIVOLONI (So Paulo SP), GABRIELA SANTANA (Viosa Minas

    Gerais), CLOTILDES CAZ (Salvador BA), THALITA REIS TEODORO (Viosa

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    MG), LUCA NASER (Uruguai), VERONICA DE MORAES (Salvador BA,

    Uberlndia MG), ALESSANDRO LIPPE (Salvador BA, Itlia), GABRIELLE

    GENEROSO (MG).

    Aos meus amigos artistas da dana do Cear, em especial, ANDREA BARDAWIL,

    pelas oportunidades e afetos, FAULLER FREITAS, pelo amor condicional, e

    WILEMARA BARROS, pela maturidade e serenidade admirveis.

    Aos colegas-jornalistas, ANA CLUDIA PERES, MAGELA LIMA, AMANDA

    QUEIRS, ANA MARY CAVALCANTE, DEMITRI TLIO, TERESA MONTEIRO E

    REGINA RIBEIRO, que me deram possibilidades crticas para um jornalismo cultural

    mais reflexivo e menos mercadolgico.

    Aos meus trs roomates: FBIO FREIRE DA COSTA (CE), no primeiro ano do

    mestrado; e TALES LOBOSCO (RJ) e CAROLINA FONSECA (GO), no segundo ano

    de mestrado.

    UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA, pelo apoio com bolsa emergencial de

    demanda social nos ltimos meses do primeiro semestre letivo de 2006.

    FUNDAO DE AMPARO PESQUISA DO ESTADO DA BAHIA FAPESB, pelo

    apoio de bolsa regular de mestrado, sem o qual essa pesquisa nem todo o vasto

    conhecimento experimentado e experenciado teriam sido possveis, pois foram sim

    possveis.

    RITA FERREIRA DE AQUINO, pelo apoio e cumplicidade recprocos no primeiro

    ano de mestrado.

    Ao CONEXO DANA 2007 ENCONTRO DE ARTISTAS CONTEMPORNEOS

    DO SUL, em especial, a ROSEMARI ROCHA (PR), CINTHIA KUNIFAS (PR) ESANDRA MEYER (SC), pelo convite e pela oportunidade de me fazer representar o

    Cear e a Bahia como jovem pesquisador e jovem crtico de dana.

    ENFIM . . . A todos que, em algum momento, por um instante sequer, por um

    instante talvez, partilharam idias, afetos e angstias nesses mais de dois anos de ir

    e vir, l acol, aqui e agora, sins, nos e talvezes; e que, nas sutilezas do cotidiano,

    ensinaram-me tambm a ouvir e aprender mais um pouquinho. Sobre dana,principalmente. E, decisivamente, sobre a natureza humana.

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    vista quando h vento e grande vaga

    Ela faz o ninho no rolar da fria

    E voa firme e certa como bala

    As suas asas empresta

    tempestade,

    Quando os lees do mar rugem nas grutas

    Sobre os abismos, passa e vai em frente

    Ela no busca a rocha, o cabo, o cais.

    Mas faz da insegurana sua fora,

    E do risco de morrer, seu alimento

    Por isso lhe parece imagem justa

    Para quem vive e canta [e dana] no mau tempo.

    Sophia de Mello Breyner Anderson*

    * Do poema Procelria, na voz de Maria Bethnia em Dona do Raio, msica do disco Mar deSophia (2007).

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    ARRAIS,Joubert de Albuquerque. Processos co-evolutivos entre dana e crtica: deum contexto cearense a uma crtica contempornea de dana. Programa de PsGraduao em Dana PPGDanca, Escola de Dana, Universidade Federal daBahia UFBA. Salvador, 2008.

    RESUMO

    PROCESSOS CO-EVOLUTIVOS ENTRE DANA E CRTICA:DE UM CONTEXTO CEARENSE A UMA CRTICA CONTEMPORNEA DE DANA

    O presente estudo tem por objetivo apresentar uma outra moldura terica eindisciplinar sobre o exerccio da crtica especializada, com uma anlise da dinmica

    operativa da dana contempornea em Fortaleza (CE), a partir do conceito evolutivode "corrida armamentista", do cientista Richard Dawkins, e com o pressuposto deque a "dana um sistema co-evolutivo", desenvolvido pela pesquisadora FabianaDultra Britto. O perodo escolhido inicia-se na segunda metade dos anos noventa atmeados do sculo XXI, justificado pela importncia da ocorrncia das trs primeirasedies da Bienal Internacional de Dana do Cear (1997, 1999, 2001) e dosaproximados quatro anos de existncia do Colgio de Dana do Cear (1999-2002),aqui entendidos como fatores co-evolutivos de difuso e ensino, respectivamente.Por se tratar de um estudo de processos, discorremos sobre o exerccio da crticacomo fator de difuso de informao especializada e co-responsvel pelo processoevolutivo da produo de conhecimento de dana no contexto da capital cearense.Compreendemos que o ato de criticar uma ao regular tanto deacompanhamento como de contextualizao histrica e esttico-cultural de umaproduo artstica. Nesse sentido, a pesquisa sinaliza para um vis no somenteepistemolgico, mas tambm poltico. Configura-se como um protocolocontemporneo de atuao para a crtica especializada, de uma crtica que "contextual" e "co-implicada" nos fazeres e saberes da dana nacontemporaneidade. Para tanto, referenciamo-nos em algumas discusses tericasdos socilogos Zigmunt Bauman e Boaventura de Sousa Santos, e ainda, dopsiclogo evolucionista Steven Pinker.

    Palavras-chave: dana, crtica de dana, co-evoluo, corrida armamentista,produo de conhecimento, poltica.

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    ARRAIS,Joubert de Albuquerque. Processos co-evolutivos entre dana e crtica: deum contexto cearense a uma crtica contempornea de dana. Programa de PsGraduao em Dana PPGDanca, Escola de Dana, Universidade Federal daBahia UFBA. Salvador, 2008.

    Abstract

    The present study aims at offering an alternative theoretical and undisciplinedapproach on the exercise of specialized critique. I draw an analysis of the dynamicsof contemporary dance in the city of Fortaleza, Cear, by taking into account theevolutional concept of "arms race" put forth by the scientist Richard Dawkins and theteses of the dance is a coevolutional system, presents by the research and critiqueof dance Fabiana Dultra Britto. The period under investigation comprises the late1990s and the two first years of the present century. Within such period, tree editionsof the International Biennial of Dance of Cear occurred (1997, 1999 e 2001), andthe Dance School of Cear existed for four years (1999-2002). These factors shouldbe understood as coevolutional processes of diffusion and education, respectively.Once this is a study of processes, I look at the exercise of critique as the factor ofdiffusion of specialized information, which is co-responsible for the evolution processof knowledge production of dance in the context of the capital city of Cear. As a firstresult, I figured out that the period at stake is endemic of critical-reflexive situations,although the performance of dance and the critique itself were not in sync. Iunderstand that the act critique is a regular act of both following up and framing anartistic production in historical and cultural-aesthetical terms. In this sense direction,

    the research indicates not signals for not only an epistemological avenue way, butalso a political one. It thereby politician too, configuring its shapes itself as acontemporary protocol of the protocol contemporary of specialized performance ofthe critiquecism: a critique which is implied in both (co-implied) and contextual onmaking the performance and the knowledge and knowing of the dance. For this,others authors were important to discuss with like the sociologists Zigmunt Baumanand Boaventura de Sousa Santos, and too the evolutional psychologist StevenPinker

    Keywords: dance, critique, coevolution, arms race, knowledge production, politics

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    SOBRE O AUTOR

    Joubert de Albuquerque Arrais jornalista cultural, crtico de dana, artistaindependente (danarino autodidata e performer), bacharel em Comunicao Social

    Jornalismo, pela Universidade Federal do Cear (UFC - 2003) e mestre em Dana

    pelo Programa de Ps-Graduao em Dana, da Universidade Federal da Bahia

    (PPGDanca/UFBA - 2008).

    Atua prioritariamente em projetos colaborativos e autorais, de natureza artstico-

    cientfica, com destaque para o coletivo Balbucio (Fortaleza/Cear), o Ncleo de

    Dana do Alpendre (Fortaleza/Cear), o Centro de Experimentaes em Movimento CEM (Fortaleza/Cear), o Projeto Teorema (Estdio Nave - So Paulo/SP) e a

    pesquisa Partes Sem Roteiros (2008, Grupo His Contemporneo de Dana

    (Salvador/Bahia).

    Como crtico de dana, colaborador no-remunerado dos jornais cearenses O

    POVO e Dirio do Nordeste, alm de ser editor e redator do blog

    www.umjovemcriticodedancabrasileiro.blogspot.com.

    Como solista de dana, desenvolve as pesquisas independentes Meu canto tem

    trilha (2007) e Sambarrox, um experimento bruto (2008).

    Na rea do audiovisual, concebeu e produziu a videodana Cavalo Marinho V ou

    No meu serto tem mar (2007), selecionada para o Festival Internacional Dana Em

    Foco 2008 (Rio de Janeiro/RJ), Encontro Terceira Margem / Bienal de Par em Par

    2008 (Fortaleza/Cear) e 7. FRAME Festival de Vdeo-Dana 2008

    (Porto/Portugal).

    Como primeira experincia de intercmbio fora do Pas, foi o nico brasileiro

    selecionado para II workshop para Jovens Crticos, encontro de artistas e crticos

    promovido pela Transdisciplinary European Arts Magazines- TEAM Network, com o

    Alkantara Festival 2008 (Lisboa/POR).

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    PROCESSOS CO-EVOLUTIVOS ENTRE DANA E CRTICA:DE UM CONTEXTO CEARENSE A UMA CRTICA CONTEMPORNEA DE DANA

    SUMRIO

    INTRODUO Arte & Cincia: Dana e Crtica em co-evoluo.....................12

    Pressupostos ..........................................................................................................14

    O problema...............................................................................................................17

    A justificativa............................................................................................................20

    Objetivos ................................................................................................................. 22

    Hipteses................................................................................................................. 22

    A declarao de mtodo......................................................................................... 23

    CAPITULO I Modus operandi: o contexto das relaes .................................. 25

    1.1 Fatores co-evolutivos & corrida armamentista ........................................... 30

    1.2. O "problema do contexto"............................................................................... 36

    CAPITULO II Modus probandi: Fortaleza, um contexto co-evolutivo............. 422.1 Difuso & Ensino: Bienal, "Colgio de Dana" e Fendafor .......................... 45

    2.2 Produo artstica & Publicao especializada: dana contempornea

    fortalezense e "crtica" jornalstica local ............................................................. 54

    2.3 Fortaleza (que insiste em) dana(r): estratgias de sobrevivncia.............. 62

    CAPITULO III Modus faciendi: dana, crtica & contemporaneidade ............. 68

    3.1 Causalidades cambiantes da crtica................................................................ 703.2 Dilogos crticos em ambientes acadmicos................................................. 74

    CONSIDERAES FINAIS Modus vivendi: corpo crtico, corpo que dana...87

    REFERNCIAS ....................................................................................................... 90

    ANEXOS ...................................................................................................................94

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    INTRODUO

    ARTE & CINCIA: DANA E CRTICA EM CO-EVOLUO

    Enquanto artista incapaz,quero que a minha imaginao

    suba ou desa ao nvel da de todos,no para ser acessvel,

    mas para antes no se distinguir.

    Boaventura de Sousa Santos

    Quem trabalha com dana de forma crtica tem de estar atento a isso:

    aproximar cultura e biologia como um outro jeito capaz de esmiuar as velhas

    fortalezas tericas que colocam a dana como algo inefvel ou universal. Isso

    possibilita outros modos, segundo outros parmetros, de organizao dos atos derefletir sobre dana, principalmente quando se tem um jeito de lidar com senso

    comumque a empedra, que trat-la como a arte do passinho-aqui-passinho-acol.

    Alguns cuidados preventivos so necessrios nessa aproximao

    paradigmtica entre o jargo cientfico e outros ditos no-cientficos. O risco das

    imposturas intelectuais, em referncia ao livro homnimo,1existe e sempre vai existir

    quando se est, diz Katz (1998), na turbulncia das zonas de fronteira2, condio de

    Os fsicos Alain Sokal e Jean Brickmont publicaram o livro Imposturas Intelectuais, onde divulgamum dossi com usos errneos de importantes nomes da intelectualidade francesa e americana.Segundo eles, muitas das citaes desses tericos dentre eles, Gilles Deleuze e Jacques Lacan eram absurdas e, muitas vezes, carente de algum sentido, alertando para o fato de ser urgente adiscusso sobre as circunstncias culturais que tais imposturas foram cometidas e como as ditasalcanaram tamanha repercusso, sem que fossem, at hoje, elucidadas ou desmascaradas (2006).No se trata de ser contra o radicalismo poltico, mas de ser contra a confuso intelectual, como bemenunciaram os citados fsicos do Caso Sokal.2 A autora define "zonas de fronteiras" como o que ocorre entre duas posturas cientficas do"reducionismo interterico" (CHURCHLAND apudGREINER, 2006; KATZ: 1998, 11), de um lado, os

    que o tm como melhor deciso, do outro, os que a consideram uma ao que empobrece a pesquisacientfica. Partindo desse entendimento, compreendo a expresso "zonas de fronteira" como osespaos onde ocorrem interseces de fenmenos que criam reas de certa indistino e que sorepresentativas de um modo especfico de ocorrncia. Homi Bhaba entende esse espao de

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    existncia das artes do nosso tempo e dos discursos sobre elas. Discutir a relao

    dana artstica e crtica especializada est esse interstcio conceitual e indisciplinar3.

    Trabalhamos com autores vindos de reas da biologia pela boa contribuiobibliogrfica que tm dado no que se refere construo de olhares indisciplinares.

    So publicaes de carter interdisciplinar, algumas tidas como livros de divulgao

    cientfica, que vo alm da mera divulgao ou novidade editorial para o grande

    pblico, pois dizem respeito a questes culturais relacionadas, principalmente, com

    a natureza humana. Ao darem tal contribuio, configuram-se como abordagens

    tericas que discorrerem sobre cultura, conhecimento e evoluo, transformando-se

    em bibliografia bsica para pesquisadores que buscam uma oxigenao de idias. O

    que eles escrevem possibilita-nos outros instrumentos tericos para "ler" os

    fenmenos culturais, desvinculados de idias universalistas e dualistas, como as

    que separam corpo e mente, enfatizando apenas o aspecto motor na dana e, por

    conseguinte, fortalecendo a crena de que qualquer pessoa pode danar.

    Afirma Katz (1998), quem trabalha com dana e pretende escolher outro

    modo (o indisciplinar) de lidar teoricamente com a dana, potencialmente mais

    ajustado natureza cognitiva do corpo que dana, tem de estar alerta, pois h umaefervescncia nas reas da biologia que dificulta a atualizao de quem ,

    tradicionalmente, de outra rea. Tais precaues tm a perspectiva conceitual e

    balizadora de que a dana uma arte do corpo4, cuja relao com o pblico e com o

    indistino fronteirstica como "entre-lugar" (1998), j Zigmunt Bauman abrange esse conceito quandodiscorre sobre ambivalncia nas suas discusses sobre modernidade lquida .3 A postura "indisciplinar" refere-se outra construo terica (GREINER, 2005) no trnsito entrebibliografias que problematizam as relaes corpo-ambiente e mdia&cultura. Assim, o que definimos

    como interstcio indisciplinar desfaz o sentido coloquial de um trabalho pouco rigoroso por conta dodescumprimento de regras. Indisciplinar noutro sentido, que indisciplina como um aplicativo doreducionismo interterico, cujo dito descumprimento est no transitar por outras reas deconhecimento e fazer a travessia destas para outra.4Em 1998, na Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo (PUC/SP), foi empregada a expresso"artes do corpo" que se relaciona com os to polmicos cruzamentos entre dana, teatro eperformance, como tambm a discusso sobre suas especificidades. Segundo Christine Greiner, umadas criadoras do curso, "O conceito desafiava a definio que propunha o nascimento do teatro apartir da palavra e da dana com base no corpo, sugerindo que, aps tantas experincias teatraisnascidas do corpo e o prprio reconhecimento da inevitvel corporificao da palavra, no poderiamais ser o critrio soberano de diferenciao. (...) Afinal, por serem distintos, so os prpriosprocessos que exigem formao especfica". (In: Cartografia Rumos Dana 2003. Instituto ItaCultural. So Paulo, SP. CD-ROM, 2003). Em Portugal, o pesquisador Antonio Pinto Ribeiro define

    "artes do corpo" como a relao entre dana, teatro-fsico e performance corporal, diferenciando-sedas outras artes pelo fato de usar "o corpo como experincia de criao artstica que, comeando porquestionar as prticas experimentais do prprio corpo as estetizantes includas nos remete parauma zona artstica explicitada pela corporeidade". (RIBEIRO, 1997, p.93).

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    artista de uma arte performativa5, porque ambas nomenclaturas levam em

    considerao a complexidade das prticas artsticas de dana na

    contemporaneidade.

    Pressupostos

    O pressuposto que engenha o presente estudo de processos6 a co-

    evoluo7, no sentido da biologia contempornea, associado idia de

    transformaona relao dana e crtica, e no simplesmente de progresso. Tal

    deciso apresenta a dana como um sistema co-evolutivo (BRITTO, 2002), cujasinstncias de ocorrncia esto relacionadas com os parmetros sistmicos

    evolutivos da Teoria Geral dos Sistemas (VIEIRA, 2006). Segundo este autor, tais

    parmetros caracterizam as condies que surgem ao longo do tempo evolutivo

    (no-cronolgico) e que representam a temporalidade de um sistema cultural: um

    contnuo processo de transformaes de como se configura no mundo, ou seja, ante

    estabilidades e instabilidades, a dana cria materialidades artsticas e educativas

    que so indcios do fazer dana.

    A crtica especializada uma dessas instncias de ocorrncia da dana. Co-

    evolutivamente, ela pode se relacionar de forma no-hierrquica, mas sistmica,

    5 O termo "arte performativa" mais habitual no contexto contemporneo da dana portuguesa,especificamente em Lisboa, buscando desestabilizar terminologias j ultrapassadas, como tambmfoi a inteno do "artes do corpo" (ver nota 3). Tanto que um de seus mais importantes festivais, oAlkantara Festival (antigo Danas da Cidade) define sua curadoria como um festival de artesperformativas. Tal conceito no Brasil tem a tese de doutorado de Jussara Sobreira Setenta (2006)

    como referncia, ao tratar a dana segundo o conceito de performatividade da Lingstica, sob o titulo"o saber-fazer do corpo: dana e performatividade", j editado como livro pela EDUFBA Editora(2008).6Estudos de processos uma das linhas de pesquisa do Programa de Ps Graduao em Dana(PPGDana / UFBA), a qual a presente dissertao est vinculada, sendo definida por ele como oestudo dos modos de articulao entre as informaes envolvidas nos processos corporais, histrico-culturais e evolutivos. Nessa linha, podero ser abrigados os projetos de estudo voltados para acaracterizao e anlise crtica dos procedimentos relacionais ativados pelas situaes de gerao,transmisso e articulao do conhecimento de dana, e para a caracterizao e anlise crtica dadinmica operativa desses procedimentos e das suas respectivas implicaes.7Como definio de base, vinda das novas cincias, isto , das cincias tcnicas ou tecnocincias edas cincias da complexidade, tem-se que: Co-evoluo: fenmeno de um sistema complexo em queseus componentes se redefinem mutuamente e cada um dos componentes impe certas condies

    para o xito do outro. A evoluo do sistema e a evoluo dos seus componentes so entendidascomo co-evoluo das partes e do todo, dos subsistemas e do sistema em suas interaes eredefinies ou reestruturaes. (CASANOVA, 2006, p. 326). Temos ainda o que sugere a TeoriaGeral dos Sistemas e o conceito de Evolon(Mario Bunge), a ser explicitado nas pginas posteriores.

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    com as realidades que pretende enunciar enquanto anlise delinguagemou anlise

    de configuraes8, distinta do habitual tratamento meramente descritivo e

    personalista. Uma dinmica co-evolutiva onde cada instncia de ocorrncia refere-se

    a um modo de existncia da dana no mundo (espetculo, workshop, residncia

    artstica, editais, festivais, etc) e que cada uma dessas instncias impe certas

    condies de continuidade (xito evolutivo) para a outra. Nesse sentido, tais

    relaes engendram contextos crticos, situaes onde a crtica especializada pode

    colaborar na reflexo e desenvolvimento das prticas artsticas e educacionais.

    O uso do pressuposto co-evolutivo, na problematizao de contextos culturais

    e artsticos de dana, objetiva a descrio das coisas humanas (idias e pessoas)

    como resultado das configuraes que adquirem circunstancialidade ao longo do

    processo de assimilao entre agentes biolgicos e sociais em que esto

    duplamente implicados. Parafraseando o cientista Ilya Prigogine (2002), todo

    fenmeno cultural no acontece de forma isolada do mundo, mas de modo

    processual, contnuo e compartilhado, de que estamos implicados naquilo que

    observamos, naquilo que lanamos um olhar especulativo procura de evidncias.

    Tal pressuposto colabora para que lidemos com a dana, a partir de seusnexos evolutivos, de como as coisas adquirem permanncia ao longo do tempo e

    que tm a ver com as ocorrncias e as no-ocorrncias das danas no e pelo

    exerccio crtico. Lana luz outra sobre o que tem sido dito e reproduzido como

    dana e sobre o corpo que dana, ao possibilitar que tratemos os fatos histricos

    como fatores co-evolutivos 9. O olhar da ao crtica sobre as coisas mundanas

    8Uma das disciplinas do mestrado em dana que trata dessa questo Anlise de configuraes da

    Dana no Brasil, ministrada pela profa. Dra. Fabiana Britto no semestre 2006.2, e tem relao diretacom a segunda linha de pesquisa do referido curso de ps-graduao, que Estudos deConfiguraes, definido como estudo das formas resultantes de processos ou dos formatosorganizativos que as informaes processadas adquirem. Nesta linha de pesquisa, podero serabrigados os projetos de estudo voltados para a caracterizao e anlise crtica das estruturasorganizativas geradas processualmente na rea de conhecimento de dana, sejam elas de naturezacoreogrfica, editorial, imagtica, scio-cultural. Incluem-se nesse campo, os estudos acerca dasobras coreogrficas propriamente ditas; de produtos artsticos e culturais de dana, tais como textos,discursos, filmes, manifestaes populares e religiosas, festivais, exposies, vdeo-clipes, etc.9 Segundo o projeto original do Rumos Dana Ita Cultural, lanado em 2000, as informaes dabase de dados compem um mapa de dinmicas culturais dos lugares em que obras coreogrficasso criadas. Sua organizao contribui para esta pesquisa ao propor instncias relevantes numestudo de processo de um contexto em mapeamento, instncias que tm nfases diferentes em cada

    contexto e que so aqui entendidas como fatores co-evolutivos. No entanto, esse procedimento vemse modificando, com desdobramentos negativos para o projeto e, principalmente, para a danacontempornea. O motivo que seu andamento contradiz o que, inicialmente, foi concebida porFabiana Dultra Britto, consultora idealizadora do projeto do Rumos Dana: "Trata-se de um modo de

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    passa ser outro, quando aciona conceitos cientficos que remetem teoria

    darwiniana com sua Origem das espcies10, como o da seleo natural, tornando

    evidente que nosso mundo resultado de ocorrncias evolutivas. Isso possibilita

    iniciar processos de articulao entre corpo, dana e mundo. Que, objetivamente,

    possvel refletir sobre evoluo cultural como um processo equivalente ao que

    acontece na evoluo biolgica (DAWKINS, 2007; KATZ, 2005; BRITTO, 2003),

    cujas transformaes so cumulativas, ganham certa estabilidade e se expandem,

    segundo estratgias adaptativasde sobrevivncia em um ambiente de existncia.

    As anlises e experincias mais pontuais sobre o corpo e suas

    transformaes ao longo do tempo evolutivo fortalecem esse entendimento, de que

    a dana ao cognitiva do corpo no sentido da evoluo humana. Sendo a dana

    o pensamento do corpo (KATZ, 2005), ela processo co-evolutivo do corpo que

    dana, bem menos livre da ao evolutivaque qualquer outra arte que lide com o

    corpo, pois envolve seleo natural, adaptao, cooperao e competio.

    Falar de co-evoluo significa dizer que no apenas o ambienteque constri o corpo, nem tampouco o corpo que constri oambiente. Ambos esto ativos o tempo todo. A informao

    internalizada no corpo no chega imune (GREINER, 2006, p.43).

    Por conta disso, o pressuposto co-evolutivo configura-se como uma escolha

    que tem desdobramentos epistemolgicos e polticos na relao entre dana

    artstica e crtica especializada como instncias que se relacionam e se definem

    nesse relacionamento. A crtica de dana entendida como uma atividade

    profissional de mediao, no que se refere ao jornalismo cultural opinativo em

    veculos impressos configura-se como uma ao de carter co-implicado ereplicadornos processos relacionais que articulam teoria e prtica, em revezamento.

    lidar com a coisa mapeada, sem julg-la pelo que , mas apenas reconhecendo-a como exemplo depossibilidades viveis ao seu contexto e no como amostra do que existe. (2000, Ita Cultural).Assim, o almejado mapeamento hoje se restringe a um procedimento curatorial descontextualizado.Sua atualizao no vem dando conta, minimamente, de servir de base de informaes parapesquisadores e artistas, por omisso de dados importantes e pelo tratamento descontextualizado,como por exemplo, sobre o profissional "crtico de dana". Sua ltima atualizao ocorreu em 2006 e2007, devido sua 3. edio, porm, ainda permanecem as imprecises nas informaes. Apenas ainstncia "produo crtica" foi destacada dentro da categoria "publicaes", dada sua naturezajornalstica impressa, como tambm por entender que a atuao do crtica no se restringe ao meio

    jornalstico, como pressupe a citada base de dados, que considera "crtico" aquele que tem umacoluna com periodicidade semanal ou quinzenal em algum jornal, e no a regularidade condizentecom as condies contextuais de cada localidade mapeada. (www.itaucultural.org.br)10Inspirada no livro Sobre a origem das espcies(1859), de Charles Darwin.

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    Seu intuito deveria ser de tecer discursos promotores de novos

    relacionamentos entre as obras artsticas de dana e o ambientecultural com o qual

    se dinamizam, ao invs de estar apenas vinculado a um jornalismo cultural de

    carter noticioso, de apenas informar o que vai acontecer (agenda cultural), sem

    nenhuma reflexo do acontecido. Nosso estudo parte dessa problemtica para

    engenhar outros modos de se relacionar criticamente come peladana.

    O problema

    A elaborao desse estudo de processos partiu de evidncias no contexto da

    "dana contempornea" cearense relacionadas produo de textos de carter

    reflexivo sobre dana pelo jornal O POVO um dos dois principais jornais de

    Fortaleza (CE) e na imprensa de outras capitais no perodo de 1997 a 2002. No

    final da segunda metade dos anos noventa (90's), a presena desses textos e a

    ausnciade outros, representam o incio do processo de especializao da dana

    em suas vrias instncias no referido estado brasileiro, inclusive o do exerccio

    crtico de dana. Neles, evidenciam-se nexos evolutivos entre produo de dana e

    produo crtica, cuja relao endmica caracteriza-se por um descompasso de

    ocorrncias, como se pretende demonstrar.

    Boa parte dos casos coletados e analisados entre 1997 e 2002 representa

    ainda circunstncias onde o texto crtico, como crtica de dana possvel, era

    mobilizador de aes polticas e de difuso de acontecimentos, tanto pelo carter

    documental como intelectual. Uma das evidncias emblemticas a publicao dos

    primeiros textos jornalsticos sobre a articulao poltica para a criao do Colgiode Dana do Cear (1999-2002) e tambm sobre a cobertura jornalstica da primeira

    edio da Bienal Internacional de Dana do Cear (1997).

    Sem entrar no mrito da estrutura conceitual utilizada nos referidos textos, o

    exerccio crtico jornalstico desse perodo possibilitou a injeo de informaes para

    o fomento do debate e da ao pblica, segundo as necessidades locais na poca,

    configurando-se como recorte histrico endmico para as relaes de transformao

    entre dana e crtica no contexto fortalezense. Foi, pois, um processo desensibilizao poltica.

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    Dentro do recorte histrico citado, os anos de realizao das primeiras

    edies da bienal cearense (1997, 1999, 2001), por estarem em consonncia com a

    atuao do "Colgio de Dana" (1999 - 2002) configuram-se como o perodo onde

    houve uma produo significativa de textos jornalsticos de reportagem e de

    "opinio" por parte de um dos dois principais veculos impressos locais, o jornal O

    POVO, especificamente, no seu caderno cultural Vida & Arte. So textos que

    oscilam entre a descrio resenhstica e a reflexo crtica, e que funcionam como

    variveis emblemticas do processo evolutivo da dana na capital cearense em

    relao s outras duas edies da bienal (2005 e 2007).

    Nota-se, em tais textos, um vnculo direto com a agenda de divulgao

    (eventos culturais), como habitual na prtica do jornalismo cultural contemporneo,

    alm do incipiente acompanhamento e fraca regularidade de cobertura. Por isso,

    certamente, que a realizao da segunda edio da Bienal veio como reforo para a

    dana ser pauta jornalstica (assunto para reportagem), com alguma regularidade no

    jornal cearense supracitado. Um dos motivos mais relevantes foi o aumento no fluxo

    de espetculos nacionais na capital cearense, colocando outras informaes de

    dana no cotidiano urbano e artstico da cidade.

    Neste caso, o caderno cultural citado configura-se como o veculo que, num

    processo de especializao, buscou tratar a dana de um modo especfico e

    buscando algum tipo de especializao. certo que no havia propriamente a figura

    do crtico de dana. No entanto, a linha editorial do referido jornal mostrava-se

    preocupada com a especificidade de rea quando buscava interlocuo nas

    reportagens e colaborao mediante artigos e ensaios reflexivos, prioritariamente,

    de artistas das chamadas artes cnicas e, principalmente, os de dana.

    Enquadram-se, nessa perspectiva, os textos da jornalista e bailarina Rosa

    Primo, atualmente doutoranda em sociologia pela Universidade Federal do Cear,

    Tais publicaes somam treze textos 11no total, boa parte publicada em 1999. H

    tambm trs textos do pesquisador cearense radicado em So Paulo, Bergson

    11Eis os textos em anexo: "Diversidade coreogrfica", 1999; "A Bienal veio para ficar", 1999; "Casa

    cheia, programao fraca", 1999; "Para enxergar movimento na imobilidade", 1999; "Academicismoanacrnico", 1999; "Passeio capenga pela dana", 1999; "Livros, dana e teorias", 1999; "II Bienalaposta na pluralidade", 1999; "Teatro e Dana", 2000; "Para pensar a dana", 2001; "Irreverncia eestranhamento", 2001; "Sutil delicadeza na Quinta com Dana", 2002; "Exerccios do corpo", 2002.

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    Queiroz12. Os outros casos, referentes ainda ao perodo, so de jornalistas de

    cultura que exerciam a funo de reprter de dana. Noutra perspectiva, nosso

    mapeamento constatou a existncia de textos analticos de profissionais vinculados

    ao teatro (artes cnicas), como Oswaldo Barroso (teatrlogo)13 e Tiago Arrais 14

    (crtico teatral e dramaturgo).

    Dessas inquietaes, vieram os primeiros questionamentos referentes s

    circunstncias da produo de crtica de dana na imprensa cearense. Estas que se

    relacionam com a existncia e a inexistncia de coberturas jornalsticas de cunho

    crtico-reflexivo. Que revelam situaes "crticas" importantes no processo de

    produo de conhecimento na dana local. E que consideram o corpo que dana

    como produto de seus agentes e do ambiente ao qual esto se relacionando, sendo

    a crtica, uma das instncias do processo evolutivo da dana em Fortaleza.

    O que nos permite aproximar esses primeiros questionamentos de um

    problema fundamental e conjunto para a atividade crtica como anlise de

    linguagens e contextos artsticos:

    Quais as implicaes epistemolgicas e polticas das ocorrncias impressas de

    textos jornalsticos especializados nos processos histrico-culturais e evolutivos de

    produo artstica e intelectual da dana local? Em que sentido evolutivo tais

    ocorrncias possibilitaram outras condies de existncia e de validao para a

    crtica de dana poder exercitar o acompanhamento regular da produo artstica

    local e, assim, efetivar alguma contextualizao esttica dessa produo? E,

    fundamentalmente, como se processam os nexos co-evolutivos de replicao,

    adaptao e de cooperao / competio evidenciados na relao circunstancial e

    transitria entre dana e crtica?

    Relacionar o exerccio crtico com a produo de conhecimento em dana

    vislumbra ainda um protocolo de atuao mais eficiente para a crtica, em termos de

    uma complexificao de dilogos que o desvincula do status prescritivo,

    aproximando-o do colaborativo e do co-implicado. Esse outro protocolo relaciona-se

    12Textos em anexo: "No centro da trama", 2001; "A linguagem dos corpos", 2001; e "Dana-teatro ehumor", 2001.13Texto em anexo: "guas passadas no mar do Drago", 1999.14Texto em anexo: "Intenes de primeira", 2002.

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    com a compreenso das especificidades da dana, afastando-se do meramente

    cnico e se dilatando para os horizontes tericos sobre cognio humana que

    privilegiam o entendimento processual do corpo que dana, na perspectiva terica

    das artes do corpo e das artes performativas.

    Tais prerrogativas contribuem para compreender que a produo artstica de

    dana e o exerccio da crtica especializada existem de forma relacional no sistema

    de conhecimento e pensamento Dana. Tais instncias possuem nexos evolutivos

    determinantes no processo de especializao da dana e do tratamento da dana

    como rea de investigao tanto artstica como acadmica. Ambas vo ao encontro

    das especificidades da dana e das singularidades de seus processos. Convergem,

    portanto, para as hipteses do nosso estudo.

    A justificativa

    O ato de escrever uma crtica implica reconhecer o carter especfico da

    dana e buscar uma reorganizao dos assuntos na rea em seus ambientes

    especficos. Um esforo para reconhecer a dana como espao de produo de

    conhecimento de distintas naturezas, desvinculando-a do mero entretenimento

    desportivo, e ainda dos modelos descritivos e personalistas que cristalizam a

    produo de dana em achismos, clichs e preconceitos, negando a construo de

    uma intelectualidade dae naDana.

    A crtica de dana no Brasil passou por tal entrave nos anos 80. "At hoje

    (1990), a dana no dispe de um corpus terico sistematizado e difundido, que

    responda a questes prementes para seu desenvolvimento e reconhecimento de sua

    existncia como arte autnoma, bem como fornea apoio estruturante de suas

    formulaes conceituais prtica da crtica". (BRITTO, 1993, p.08). Essa crtica,

    segundo a autora, "sofria de uma inadequao" por no cumprir o papel

    contextualizador que sua funo mediadora pressupe.

    Na dcada seguinte (90s), no entanto, a crtica de dana conseguiu encontrar

    um caminho mais ajustado, menos vtima dos crticos no-especializados e maisprxima do cumprimento das "funes" de sua atividade profissional. A escrita da

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    crtica de dana dispunha agora do subsdio importante pelas novas publicaes,

    mesmo que ainda insuficientes. E ainda, a continuidade de iniciativas localizadas de

    discusso poltica e terica na rea, tanto formal quanto informal, como fruns

    nacional e estaduais, grupos de pesquisa universitria, estdios de formao e

    intercmbio, num contexto local e nacional.

    Refletir sobre a crtica de dana , nesse sentido, uma estratgia de

    sobrevivncia quando se percebe a sua quase inexistncia em nosso contexto atual,

    marcadamente mais comprometido com o apenas informar e bem distante do que

    vem a ser uma reflexo especializada. Junto com essa ao de resistncia poltica,

    busca-se tambm construir um outro entendimento de dana que sirva de base para

    os possveis textos crticos, caracterizada por modelos de conjugao entre teoria e

    dana mais eficientes, no apenas neologismos e nem somente em relao

    apresentao propriamente dita.

    Busca sim entender a crtica como um exerccio de acompanhamento do

    processo evolutivo (de transformaes) das aes locais de fomento da produo

    artstica em suas vrias instncias (ensino, difuso, publicaes, organizao de

    classe, entre outras). De pensar a crtica de dana como ato de reflexo queexpande a compreenso do objeto artstico, no que lhe singular, que combina

    vrios universos referenciais e diferentes lgicas de concepo de um discurso.

    Isso porque os fazeres artsticos da dana na contemporaneidade revelam

    lgicas de pensamento e, por conta disso, revelam outras necessidades na

    elaborao de suas escritas estticas e crticas. Eis, no entanto, um cuidado

    preventivo, que estar longe de posies fixas e estanques, muito menos de

    entender tal reflexo como ao autoritria ou que se baste numa opinio pessoal.

    Alm disso, o estudo realizado poder servir a outros jornalistas como

    danarinos e bailarinos iniciantes ou iniciados, junto com leitores simpticos ao

    tema, queles pesquisadores ou curiosos, todos que, de alguma forma, quiserem

    explorar outras possibilidades de entendimento da dana. E melhor, ser til para

    conhecer um pouco mais sobre o que as transitrias e circunstanciais palavras da

    crtica de dana tm a revelar ou a obscurecer.

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    Objetivos

    O objetivo principal contribuir para a construo de uma outra epistemologia

    da crtica especializada de dana, a partir da compreenso dos processos co-evolutivos entre dana e crtica, tendo a relao com a crtica como um dos fatores

    implicados no contexto da "dana contempornea" em Fortaleza (CE) entre 1997 e

    2002, perodo de intensa articulao poltica para a criao do Colgio de Dana do

    Cear (1999-2002), correlacionado com a realizao das primeiras edies da

    Bienal Internacional de Dana do Cear (1999, 2001 e 2003).

    A partir de uma perspectiva epistemolgica e poltica, pretende-se

    sistematizar discusses tericas sobre o ato de criticar, rumo a transitrias

    generalizaes que contribuam para o entendimento do exerccio crtico na dana

    como fator de contextualizao histrica e esttico-cultural, logo, co-implicado nos

    processos de produo de conhecimento artstico e acadmico em dana. Nosso

    intuito , por conseguinte, entender o grau de importncia de textos jornalsticos

    sobre dana na construo de um pensamento local de dana pelo desenvolvimento

    do exerccio crtico especializado de dana na capital cearense.

    Como objetivo secundrio, almeja-se contribuir para a continuidade e o

    fortalecimento da atividade crtica como profisso especializada tanto no jornalismo

    cultural como na dana, por ser fator co-evolutivo da dana. Tal desejo vislumbra a

    construo de discursos crticos mais ajustados natureza cognitiva e performativa

    sobre as configuraes estticas da produo de dana local e nacional.

    Hipteses

    O presente trabalho dissertativo sinaliza em defesa de uma crtica de dana

    como fator co-evolutivo, partindo do que foi exposto na contextualizao do

    problema, dos pressupostos e do problema propriamente dito. Pretende, com isso,

    demonstrar que a relevncia da crtica de dana como uma das instncias do

    processo de especializao da dana como rea de conhecimento.

    Para tanto, engendra-se nessa hiptese geral que, para a crtica

    especializada ser co-responsvel pela articulao (gerao e transferncia) de

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    conhecimento, necessrio um acompanhamento regular e uma contextualizao

    histrico-cultural e esttica da produo artstica local, ambos comprometidos com

    as especificidades da dana como campo de investigaes cientfica e artstica, e

    tambm como campo de ao cognitiva e performativa.

    Tal co-responsabilidade significa companhia, estar junto, estar com,

    contigidade, logo, co-participao, co-relao, co-existncia, co-implicao. Logo,

    as ocorrncias do exerccio crtico, como ainda as no-ocorrncias, colaboram para

    a defesa de uma crtica co-evolutiva: uma crtica co-implicada nos processos de

    produo de conhecimento em dana, segundo lgicas organizativas que se

    redefinem nessa relao co-evolutiva.

    Complementando, o presente estudo de processos sinaliza para um protocolo

    contemporneo no programtico de atuao da crtica. Esse protocolo contribui

    para entender que uma crtica, para ser contempornea, e no uma crtica de dana

    contempornea, necessita ser compreendida como um exerccio de anlise crtica

    das configuraes (linguagens e contextos artsticos) da dana e que, para tanto,

    deve se estruturar no dilogo entre lgicas distintas da dana e da critica, onde cada

    um vai desvendando a outra, em revezamento, co-evolutivamente.

    Mais que isso, para ser contempornea, a critica precisa buscar no contexto

    e lgica organizativa da obra o instrumental para tecer seu dilogo crtico.

    A declarao de mtodo

    Por se tratar de um estudo de processos, o carter circunstancial levado em

    conta na elaborao das discusses tericas e na anlise da lgica contextual dos

    textos que foram desenvolvidas, bem como na compreenso das informaes

    contextuais levantadas.

    Enquanto comprometimento metodolgico, o mapeamento de textos de

    carter reflexivo realizado pensado como deteco de dados(BRITTO, 2001) que

    sejam relevantes para entender a dinmica operativa da dana, sendo a crtica

    especializada uma de suas instncias. J a anlise da lgica contextual como

    exame crtico das ocorrncias dos textos coletados. Tais textos referem-se s

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    configuraes culturais e estticas da "dana contempornea" em Fortaleza, junto

    com as aes polticas de fomento no perodo demarcado entre 1999 e 2002.

    As condies de existncia e de operacionalizao (modus operandi) dacrtica no processo de especializao e produo de conhecimento de dana

    determinaram o que se definiu por "dinmica operativa da crtica", segundo a lgica

    co-evolutiva. A inteno tecer anlises que revelem nexos evolutivos entre os

    fatores mais significativos para a realidade histrico-contextual da capital cearense,

    que englobam a produo artstica, aes de ensino, publicao especializada e

    produo de eventos. Em segundo plano, faremos meno a outros fatores

    importantes, mas fora de nossas pretenses, como editais, projetos de formao de

    platia, licenciaturas e cursos livres.

    As anlises, enquanto situaes "crticas" diagnosticadas em Fortaleza,

    partem de textos jornalsticos (artigos, reportagens e ensaios), publicados no

    caderno Vida & Arte, do jornal O POVO, na segunda metade da dcada de 90 at

    2002. Tais situaes sero problematizadas a partir da dinmica operativa da dana

    contempornea, contextualizadas pelas trs edies da bienal cearense de dana

    (1997, 1999, 2001) e os quase quatro anos de atividade do "Colgio de Dana".

    Os textos mapeados so representativos de uma preocupao com a

    especificidade de rea, em termos de ao crtica reflexiva, aspecto pertinente s

    nossas discusses. Estatisticamente, o total de vinte e um textos crticos locais

    publicados e de dois nacionais (artigos, ensaios, comentrios), alm de resenhas e

    notas informativas nas agendas culturais. Em especial, houve uma boa repercusso

    da dana contempornea de Fortaleza em 2000, vinda de textos crticos e seleo

    de trs projetos pelo Programa Rumos Dana (Ita Cultural).

    So dados relevantes, tendo em vista um certo desconhecimento do que era

    produzido na capital cearense e em que processo estava essa produo artstica.

    Este recorte, portanto, serviu para melhor contextualizar o problema apresentado,

    fundamentar o primeiro captulo e direcionar os questionamentos tericos do

    segundo captulo. Para o terceiro, ficamos com os desdobramentos contemporneos

    para a atuao da crtica especializada em nosso tempo, partindo de um contextocearense, sua capital Fortaleza.

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    CAPITULO I MODUS OPERANDI15

    O CONTEXTO DAS RELACES

    "Nascer j caminhar".Joo Cabral de Melo Neto

    "Somos mquinas de sobrevivncia".Richard Dawkins

    Entendemos que olhar para uma realidade cultural um exerccio relacional,

    de um olhar que se particulariza, cria alguma estabilidade, mas que no pode ser

    estanque e necessita ser bssola.

    Nesse horizonte, o presente trabalho configura-se como um estudo de

    processosque pretende articular as informaes envolvidas nos processos histrico-

    culturais e evolutivos da dana em Fortaleza, iniciados na segunda metade dos anos

    noventa do sculo XX. Justamente para compreender como se processam certosnexos evolutivos evidenciados na relao circunstancial e transitria entre dana

    artstica e crtica especializada. Tais nexos referem-se s idias de replicao,

    adaptao, cooperao e competio, partindo da perspectiva historiogrfica co-

    evolutiva para a dana pelo vis da biologia contempornea (Britto, 2003).

    Para consolidar a anlise crtica da dinmica operativa, temos trs

    pressupostos bsicos, segundo os vieses sociolgico, epistemolgico e,

    fundamentalmente, co-evolutivo 16.Primeiro, que a dana uma rea de produo

    de conhecimento que como campo epistemolgico e ao cognitiva do corpo

    discute, prope e soluciona, sempre provisoriamente, as questes que so

    15Modus Operandi modo de fazer, de operar. Por exemplo, a polcia investigativa estuda o modusoperandi para identificar elementos comuns a vrios crimes aparentemente desconexos e, atravsdesses elementos comuns, deduzir que a mesma pessoa estava por trs das diversas acescriminosas. Quer dizer, o termo policial significa o modo de ao / operao e, no mundo jurdico, aexpresso utilizada para caracterizar a forma peculiar do agir de um criminoso (ou vrios). O termo

    habitual no s em questes jurdicas (do Direito), mas tambm na rea das cincias naturais eexatas, como a biologia e a administrao.16Ver nota 7 na introduo. Temos ainda o que sugere a Teoria Geral dos Sistemas e o conceito deEvolon(Mario Bunge), a ser explicitado nas pginas posteriores.

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    especficas do seu fazer-dizer artsticos (SETENTA, 2007). Segundo, que "todo

    conhecimento contextual, mas o contexto uma construo social, dinmica,

    produto de uma histria que nada tem a ver com o determinismo arbitrrio da

    origem" (SANTOS, 2006, p.45). Terceiro, que a complexidade inerente a todo e

    qualquer contexto no mundo, segundo a nova cincia 17, vem justamente pelo fato

    de as coisas e os fenmenos criaremseu prprio contexto relacional.

    Com tais pressupostos, apresentaremos a dana como "sistema" 18cultural.

    Pois, quando falarmos dana, estamos nos referindo ao "sistema dana", que

    engloba outras instncias como produo artstica, ensino, fomento, memria

    documental, crtica especializada, entre outras, inter-relacionadas. O que torna a

    descoberta da diversidade de experincias processos artsticos(idias, pesquisa,

    proposies, projetos) e configuraes estticas(espetculos, apresentaes, aulas-

    ensaio) algo fascinante quando "compreendemos que nenhuma organizao,

    nenhuma estabilidade, como tal, garantida ou legtima, nenhuma se impe por

    direito; todas so produtos das circunstncias e esto merc delas". (PRIGOGINE;

    STENGERS, 1997, p. 226).

    Sendo a dana um sistemacultural e, como tal, possui especificidades nosimplesmente relacionadas corriqueira competncia atltica exigida, que privilegia

    os atributos motores do corpo. De um modo mais eficiente, o corpo ao

    neuromotora e no mero veculo onde se registra, acessa e se grava informaes.

    Tem a ver com a Teoria Corpomdia, que apresenta o corpo como mdia de si

    mesmo (GREINER & KATZ, 2005). Nessa teoria, com base nos recentes estudos

    das cincias cognitivas, corpo e ambiente mantm comunicao incessante e esto

    implicados mutuamente segundo um processo co-evolutivo de trocas deexperincias e informaes; estas que, num fluxo constante, transformam-se em

    corpo para construir novas possibilidades de movimento e de enunciados corporais:

    17Os pressupostos da nova cinciaso a cincia como prtica cultural e a concepo das relaesdos homens com a natureza que eles descrevem. Foram apresentados e definidos no livro NovaAliana, escrito pelo prmio Nobel de Qumica Ilya Prigogine e pela filsofa Isabelle Stengers, vindosde ramos diferenciados da pesquisa cientifica como fsica quntica, a qumica e a biologia molecular.18Admitimos duas definies de sistema, partindo da hiptese ontolgica de uma realidade sistmica,

    segundo uma proto-teoria (a Teoria dos Sistemas): a de que, segundo Avanir Uyemov, "um sistema um conjunto ou agregado de elementos relacionados o suficiente para que haja a partilha depropriedades" ou, de acordo com Edgar Morin, a que concebe "sistema como unidade globalorganizada de inter-relaes entre elementos, aes ou indivduos". (VIEIRA, 2006, p. 41)

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    O corpo no um meio onde a informao simplesmente passa, poistoda informao que chega entra em negociao com as que jesto. O corpo resultado desses cruzamentos, e no simplesmenteum lugar onde as informaes so apenas abrigadas. (idem, p. 131)

    Sendo a dana o pensamento do corpo (KATZ, 2005), logo, temos que corpo

    que dana corpomdia. Segundo esse aspecto terico, corpo que dana lugar de

    elaborao e re-elaborao de informaes e questes, nele processadas

    circunstancialmente segundo vises de mundo singulares e nicas. Uma

    complexidade inerente aos contextos artsticos de corpos que daname que na

    ao cognitiva de um processamento mental e corporal produzem conhecimentos,

    testam hipteses, formulam problemas. Da que corpo e dana no esto

    dissociados e tal vnculo nos possibilita uma melhor compreenso do mundo em que

    vivemos, da produo artstica (e tambm crtica) que busca dilogo com ele. Nesse

    sentido, a perspectiva sistmica configura-se como uma boa hiptese ontolgica19.

    Um bom exemplo vem das artes visuais (artes plsticas). Os distintos

    perodos artsticos, de acordo com Naves (2007), impem para si mesmos certos

    ideais estticos, sendo praticamente impossvel compreender sua dinmicaoperativa sem que tenhamos que considerar, conjuntamente, a dinmica da

    produo de seus artistas e do contexto cultural que estes alimentam e dele tambm

    se alimentam. O referido autor faz meno ao percurso das artes visuais no sculo

    passado, em especial, aos movimentos artsticos engenhados nesse perodo.

    Colabora para nossas discusses quando, mesmo no explicitamente, defende que

    invivel entender a dinmica de um contexto artstico sem considerar a lgica

    organizativade suas obras:

    Um artista bizantino - praticamente alheio noo de indivduocriador - movia-se em funo de objetivos muito distintos dos de umrenascentista e algo semelhante deve ocorrer entre artistasmodernos e contemporneos. Portanto seria intil medi-los com omesmo metro, embora me parea possvel cortejar a grandezaartstica de diferentes pocas justamente pela capacidade deestabelecer com seu tempo relaes significativas, pertinentesqueles perodos histricos. (idem, p. 02)

    19A Ontologia um setor da Filosofia que estuda as caractersticas mais gerais do ser, do ente, como

    substncia e matria, espao e tempo, mudana e possibilidade, etc. Tais conceitos aplicam-se totalidade das coisas, tal que a Ontologia tem um carter extremamente geral, consistindo no corpoconceitual que necessrio para disparar a produo do conhecimento e precede qualquerconhecimento mais especfico. (VIEIRA, 2006, p. 36)

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    Tal aproximao entre dana e artes visuais mostra-se como um bom

    exerccio de equivalncia. Os modos como a dana organiza-se na

    contemporaneidade no podem ser entendidos sem ser considerado o vnculo com

    nossa sociedade. Obras de dana, como configuraes estticas de um contexto,

    indicam temporalidades (BRITTO, 2003), no esto isoladas do mundo. Mais que

    apenas produtos, so indcios histricos e evolutivos que colaboram, se tratados

    desse jeito, para a construo de discursos artsticos e crticos. Isso nos leva a

    compreender que a dinmica dos acontecimentos no acontece de forma linear,

    como uma trajetria retilnea. Pelo contrrio, a relao co-evolutiva entre ao

    artstica e discurso crtico na dana determina condies de existncia e de

    validao de cada um deles, no que diz respeito tambm s condies de difuso(jornais, revistas, blog, sites, etc) e de troca informativas (festivais, mostras, etc).

    Segundo Bauman (2001), partindo da sua defesa argumentativa do conceito

    de modernidade lquida 20, somos uma sociedade de indivduos livres que faz da

    crtica da realidade do que est no mundo uma parte inevitvel e obrigatria dos

    afazeres da vida (p. 30-31). Mas diz tambm o referido autor que a grande

    quantidade de informao, cientifica ou no, que circula e est disponvel em nosso

    mundo praticamente inviabiliza sua total manipulao e reflexo pela ao humana.

    Isso nos coloca em uma situao ambgua que nos faz mais predispostos crtica

    (idem) que, de fato, crticos efetivos no sentido de justificar ou mesmo provar a

    validade de nossas opinies pessoais nossas suposies tcitas e declaradas.

    Um mundo de indivduos livres para fazer e pensar o que quisermos torna

    ainda mais complexos os ditos contextos scio-culturais e, fundamentalmente, as

    possveis estratgias discursivas de dialogar com eles. Tem a ver com as situaesde confronto no sentido de possibilidades de encontros em um mundo estranho, ou

    melhor, de encontrar suas ambivalncias e ambigidades, afirmando-se um

    profundo desejo de solidariedade social (BHABHA, 1998, p.42). Disso emerge a

    complexidade das relaes e de onde advm a ao de formular adequadas

    20O termo lquido, que o socilogo polons Zigmunt Bauman apropria-se, remete bem ao sentido

    vulgar, porm, utilizado por ele como conceito para refletir sobre a nossa modernidade e como seestruturam em nosso tempo as relaes ditas humanas. Segundo tal conceito, as relaes sofluidas, maleveis, flexveis, moldveis, onde os laos so frouxos e que, mesmo desejados, podemser facilmente desfeitos.

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    representaes do contexto que se pretende descrever sem desmerecer as

    singularidades individuais e as especificidades coletivas.

    Como prope Santos (2007), nosso agora um mundo em que se vive deexcessos determinados e indeterminados que oscilam entre dois comportamentos,

    um no sentido da desestabilizao das expectativase outro da acelerao da rotina.

    Isso nos coloca o desafio, ainda segundo este autor, de transformar o que existe no

    que existe de modo ausente, ou seja, de buscar alternativas para elucidar o que

    est no mundo sem a visibilidade necessria para se fazer presente, de idias e

    pessoas existentes como inexistentes. Agrada a muitos enunciar que a dana

    uma lngua universal do homem, uma vez que todos danam desde que se

    entendem por homens, em todas as regies do planeta (KATZ, 2005, p. 43). Da a

    necessidade de desenvolver estratgias de ao crtica que sinalizem para um outro

    jeito de lidar com o que tem sido dito sobre as experincias humanas na arte e na

    dana, que lidar com ambigidadee ambivalnciadessas experincias.

    Em seu escopo, a especificidade de rea mostra-se como boa estratgia de

    ao na produo de conhecimento de dana, como tambm de atuao crtica e

    poltica, justamente para perceber como o "sistema dana" no contexto fortalezensefaz-se co-evolutivamente. Tal entendimento de que as coisas no acontecem

    sozinhas protege-se, de certo modo, do risco da hiper-especializao, de um se

    fechar em si mesmo. Nesse horizonte, o aspecto demonstrativo tende a prevalecer e

    nos fazer questionar a respeito de quais aes foram implementadas, como estas se

    desenvolveram, como foram pensadas pela ao reflexiva do jornalismo opinativo,

    quais processos iniciaram e que balano parcial podemos fazer para que haja a

    continuidade de sobrevivncias na dana.

    Para isso, partimos do conceito de "corrida armamentista", defendida pelo

    cientista evolucionista Richard Dawkins e que, em especial, discorre sobre a relao

    competio-cooperao nas experincias humanas, ou seja, do aparente sentido

    negativo de tal relao. O que fortalece a afirmativa de que a "dana um sistema

    co-evolutivo", desenvolvido pela pesquisadora Fabiana Britto, e que est no cerne

    da nossa argumentao.

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    1.1 Fatores co-evolutivos & "corrida armamentista"

    Nesse enlace sistmico e co-evolutivo, as ditas instncias da dana referem-

    se s instncias de ocorrncia da dana. Como fatores estruturantes do processoco-evolutivo entre dana e crtica em Fortaleza, tem-se a produo artstica

    (profissionais e companhias), a publicao (informao especializada, no caso, a

    produo de textos crticos), a difuso (festivais, bienais e mostras) e o ensino

    (instituies, cursos e qualificao profissional). Fortalece e amplia a premissa de

    que a dana um produto histrico e evolutivo da ao humana (BRITTO, 2003).

    O quadro relacional no se restringe aos quatro fatores supracitados. Ao

    invs disso, expande-se para iniciar a complexificao desse contexto, sendo tais

    fatores estruturantes como ponto de partida para ampliar as conexes e correlaes.

    Tanto que sero considerados outros fatores como as iniciativas de apoio (bolsas,

    leis, editais e prmios) e estudo(produo terica e prtica). A partir tambm deles,

    ser tecida a rede de relaes que constitui o contexto cearense em investigao,

    fortalecendo a premissa de que os referidos aspectos co-evolutivos so fatos

    histricos e sero tratados como fatores co-evolutivos 21.

    Nessa rede que se constitui por fatores co-evolutivos de instncias de

    ocorrncia da dana , um aspecto tem a funo de fortalecer os enlaces, que a

    idia de "corrida armamentista" defendida por Richard Dawkins. O bilogo

    evolucionista explica que a corrida armamentista uma vez no confundida com

    uma apologia guerra nem mera competio desportiva alerta-nos para como se

    configuram as relaes de co-existncia entre indivduos da mesma espcie e de

    espcies distintas. Os fatores, por serem evolutivos entre si, no esto isolados,

    porque no possvel evoluir sozinho. Entend-los sob a lgica armamentista faz

    aguar o olhar para aquilo que aparentemente no tinha inter-relao, que o que faz

    21 Esta relao sistmica dos fatores co-evolutivos caracteriza as condies quesurgem ao longo do tempo e que representam a temporalidade de um sistemacultural, como a dana, em suas diversas, distintas e inter-relacionadas instncias,relao esta desenvolvida a partir dos parmetros sistmicos evolutivos da TeoriaGeral dos Sistemas (VIEIRA, 2006). Como referncia, temos a Base de Dados do

    Programa Rumos Dana, do Instituto Ita Cultural, lanada em 2000 e concebidapela Profa. Dra. Fabiana Dultra Britto. A organizao dessa base contribui paraentender as instncias relevantes num estudo de processo de um contexto. Vertambm nota 9 da Introduo.

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    algo competir ou cooperar est diretamente envolvido na ao relacional de tentar

    sobreviver, permanecer. Ou melhor, que a competio no necessariamente leva a

    perda, extino, e pode causar tambm o aperfeioamento; que a cooperao no

    tende continuidade, ao progresso, e pode criar estabilidades que estancam e

    enfraquecem.

    Alis, ser co-evolutivo, e no apenas evolutivo, como algo em andamento,

    vinculado as idias de confronto e continuidade nos mbitos comperativos e

    competitivos que caracterizam a dita "corrida" pela sobrevivncia. Configura-se

    como uma proposta de contigidade de correlaes. Nem s cultural, nem s

    biolgico, mas de trocas incessantes e, segundo a viso sistmica, de interao e de

    possibilidades. Caminha tambm para a compreenso, e no crena, de como as

    informaes no mundo encarnamem ns, transformam-se em ns e conosco. Isso

    porque "a hiptese de que a co-evoluo regula nossa permanncia nesse mundo"

    sinaliza para outra peculiaridade, a de que "nosso corpo no passa de uma forma

    circunstancial que as muitas informaes espalhadas pela vida tomam ao logo do

    tempo". (KATZ, 2002, p.31)

    Os desdobramentos do pressuposto co-evolutivo so epistemolgicos epolticos, e colaboram para um melhor entendimento das possveis relaes entre

    dana e crtica como duas instncias que se definem a cada relacionamento. Assim,

    os processos chamados co-evolutivos tm o carter de conscientizao, cuja ao

    envolve a concepo darwiniana de seleo natural, que se desdobra em

    entendimentos sobre adaptao, mutao, desenvolvimento, cooperao,

    competio, sobrevivncia, continuidade, culminando na aplicao do conceito de

    corrida armamentista para se compreender os contextos das relaes nos processosco-evolutivos artsticos estticos, polticos e sociais da dana. "A seleo natural

    no s explica a vida toda; ela tambm nos conscientiza para o poder que a cincia

    tem para explicar como a complexidade organizada pode surgir de princpios

    simplrios, sem nenhuma orientao deliberada". (DAWKINS, 2007, p.158)

    A plena compreenso do que seja a seleo natural j nos ajuda a prosseguir

    e se enveredar por outras reas 22, pois aproxima cultura e biologia, logo, revela um

    22 Para quem trabalha com dana e pretende escolher esse outro modo, potencialmente maisajustado, tem de estar alerta, pois h uma efervescncia nas reas da biologia que dificulta a

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    outro jeito capaz de esmiuar as velhas fortalezas tericas em torno da dana.

    "Quem, antes de Darwin, poderia ter imaginado que algo to aparentemente

    projetado quanto a asa de uma liblula ou o olho de uma guia na verdade o

    resultado de uma longa seqncia de causas no aleatrias, mas puramente

    naturais?" (idem, p.159)

    Ns seres humanos somos, segundo a teoria da evoluo, as coisas mais

    complexas que j existiram em nosso planeta talvez encontremos outros com nivel

    de complexidade maior em outros planetas, e que estes saibam da nossa existncia

    , mas at ento, somos assim. E como tais, carecemos e merecemos um tipo

    especial de explicao, que no se baste em investigaes simplrias que pouco

    ampliam os dilogos. Questes, do tipo, como viemos a existir e por que somos to

    complexos, so providenciais e bem-vindas, rumo a alguns dos princpios geraisde

    como as coisas vivas funcionam e por que existem.

    Coisas mundanas, relacionado ao que acontece no mundo dito material e

    terreno, so coisas complexas, logo, no h pretenso de uma descrio totalitria e

    em detalhes, por esta ser ainda impossvel. Porm, ao trat-las como complexas,

    podemos perceber as vrias instncias que as engenham, segundo uma visosistmica. De acordo com Dawkins (2001), esse tipo especial de explicao" deve

    ser, de modo geral, a mesma para todas as coisas complexas, para qualquer coisa,

    no s de qualquer local, mas tambm de qualquer lugar do universo, como ns,

    chimpanzs, estes assuntos da biologia. Esse modo geral a "teoria da evoluo",

    talvez. Porm, no ser a mesma, de modo mais especifico, para o que ele define

    como "coisas simples" as rochas, pedras, galxias, objetos de estudo da fsica. "A

    diferena est na complexidade do design". (idem, p.18) Uma diferena que no de um designconsciente, como se tivssemos sido projetados por um engenheiro

    experiente, resultante de uma m compreenso e uso histricos da teoria da

    evoluo de Darwin.

    Ao invs disso, o darwinismo revela que a mudana evolutiva sistemtica,

    mas que no prev, no planeja conseqncias, no tem propsito em vista. Os

    atualizao de quem , tradicionalmente, de outra rea menos afim (KATZ, 1998). Para tanto, necessrio estar atento seduo das analogias e tentar se livrar do caminho cmodo e fcil dasmetforas, entre outras importantes ressalvas (SOKAL & BRICMONT, 1998, 2006; KATZ, 1998).

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    resultados vivos de sua ao no mundo, no entanto, deixam-nos boquiabertos

    porque nos parecem estruturados por um expert, dando-nos uma iluso de desgnio

    e planejamento:

    A seleo natural, o processo cego, inconsciente e automtico queDarwin descobriu e que agora sabemos ser a explicao para aexistncia e para a forma aparentemente premeditada de todos osseres vivos, no tem nenhum propsito em mente. Ela no tem nemmente nem capacidade de imaginao. No planeja com vistas aofuturo. No tem viso nem anteviso. Se que se pode dizer que eladesempenha o papel de relojoeiro, o papel de um relojoeiro cego."(DAWKINS, 2001, p. 24)

    O uso do pressuposto co-evolutivo na problematizao de fenmenos

    culturais colabora para a descrio do comportamento humano como resultado do

    mundo social-cultural e biolgico. As anlises e experincias mais pontuais sobre o

    corpo fortalecem essa empreitada co-evolutiva, compreendendo o sistema dana

    como ao cognitiva do corpo e tambm pensamento do corpo (KATZ, 2005), ela

    tambm processo co-evolutivo do corpo que dana. Com isso, caminhamos com a

    proposta de alimentar perguntas novas sobre questes j tidas como universais

    "dana indizvel" e "crtica de gosto" , evitando explicaes causais que impedem

    explorar a complexidade das coisas e idias humanas. Que falar de co-evoluo

    pressupor que corpo e ambientes se constroem na relao, pois o que chega no

    corpo transforma e se transforma, e vice-versa.

    Outro cuidado que, ao falarmos de mudana histrica e evolutiva, estamos

    mostrando tambm um outro jeito de lidar com o tempo, pois se trata de um "tempo

    evolutivo". Primeiro, a noo de tempo evolutiva distinta da cronolgica. No

    existe um antes que determina um depois, nem um depois que conseqncia de

    um antes. O que h um dilogo incessante de informaes. Essa outra noo de

    tempo possibilita verificar no s uma srie de co-relaes, mas tambm efetivar

    redefinies com o olhar do nosso tempo. Segundo, , pois, somente com esse

    olhar do nosso tempo, acreditemos, e no com o de outrora, desconfiemos, que

    podemos co-relacionar e redefinir, por exemplo, fenmenos ocorridos em pocas

    histricas diferentes ou de naturezas distintas. Co-evolutivamente, o tempo algo

    que no se retoma e que fala da aliana do homem com a natureza que ele

    descreve. (PRIGOGINE, 1996; 2002)

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    Corriqueiramente, as pessoas falam que, quando algum foi promovido de

    cargo na empresa ou est bem de vida, esse algum "evoluiu". No entanto, esse uso

    no inocente. A prpria palavra progresso implica direo, e mais, o avano em

    direo a um objetivo, mas nem direo e nem objetivo so fornecidos pelos

    mecanismos de evoluo. Muito menos, apesar das concepes populares, pode a

    evoluo ser concebida como estando dirigida emergncia da espcie humana. A

    errnea representao da evoluo como progresso era to marcante para Darwin

    que ele escreveu em seu caderno de notas nunca dizer superior ou inferior (apud

    Dawkins, 2001), em referncia s diferentes formas de vida, ainda que nem sempre

    seguisse sua prpria recomendao / repreenso.

    A mudana evolutiva no sinnimo de progresso porque se caracteriza por

    escalas de tempobem distintas daquelas que habitualmente estamos acostumados

    a lidar com os eventos. Nosso crebro equipado para observar processos em

    perodos bem curtos, que acontecem em segundos, minutos, dias, meses e, no

    mximo, anos. J a mudana evolutiva, segundo a teoria da evoluo de Darwin

    (Darwinismo), desenrola-se ao longo de milhares e milhes de anos e caracteriza-se

    por processos cumulativos difceis de mensurar somente pela escala de tempo

    familiar (recente) e material (aquilo que podemos ver ou tocar).

    Junto com o tempo evolutivo, tem-se a seleo natural e seus (des)usos.

    "Essencialmente, ela se resume idia de que a reproduo no aleatria,

    conjugada variao hereditria, ter conseqncias de grande alcance uma vez

    que estas tenham tempo para ser cumulativas" (DAWKINS, 2001, p.13) Tal

    simplicidade notvel e, por sua vez, enganadora. Isso possivelmente venha da

    associao equivocada de que, pelo darwinismo, o mundo no resultado decausalidade, com uma teoria do "acaso" um acaso cego e sem previsibilidade.

    Equvoco, de certa forma, justificado, pelo fato de ns, humanos, estarmos mais

    preparados e equipados para observar processos que ocorrem em poucos instantes

    (segundo, minutos), e, na melhor das situaes, em dcadas. J "o darwinismo

    uma teoria de processos cumulativos to lentos que se desenrolam ao longo de

    milhares e milhes de anos" (idem, 14).

    Outra idia mal compreendida que a seleo natural no construtiva,

    definindo-a como uma fora puramente negativa, quando associada mutao.

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    Dawkins (2001) contra-argumenta, complementando que ela tambm engendra a

    complexidade e beleza humanas, e no que simplesmente funciona como modo de

    erradicar anomalias e deficincias (eugenia), A ocorrncia da mutao

    considerada como adio evolutiva, junto com a seleo como subtrao evolutiva.

    Porque se a evoluo construtiva, para mais ou para menos, h desdobramentos

    adaptativos cuja finalidade em comum a continuidade, a permanncia, a

    capacidade de prosperar, mquinas de sobrevivncia que buscam o sucesso

    adaptativo.

    Quando o trabalho acontece em equipe da mesma espcie, pode-se

    desenvolver como empreendimento cooperativo; mas se ocorre entre indivduos de

    distintas espcies, o empreendimento potencialmente competitivo. Em ambos, a

    sobrevivncia determinada por certa eficincia da relao intrnseca com o meio

    no qual est se relacionando e pelo qual se modifica, reciprocamente, e no como o

    mundo exterior ou lugar fsico. H uma diversidade que, mesmo nas adversidades,

    sobrevive, compatibiliza-se pela seleo natural, adequa-se ao(s) ambiente(s) como

    processo de adaptao.

    H algumas distines no entendimento da seleo natural e adaptao comoprocessos determinados apenas pelo ambiente relacional. Contrapondo-se, de certa

    forma, os indivduos no so determinados somente pela relao com o ambiente, e

    vice-versa, mas tambm por variveis aleatrias que os fazem coevoluir(LEWOTIN,

    2002). A abordagem dita co-evolutiva , portanto, a que lida com os fenmenos a

    partir da sua estrutura complexa, dessa relao mtua de continuidade e

    aleatoriedade entre organismo / indivduo e o ambiente com o qual se relaciona.

    Seguindo pela teoria evolucionista, Dawkins (2007) defende ainda que, assim

    como h o gene para a transmisso de caracteres genticos, h tambm o

    correspondente para a transmisso de caracteres culturais, que o meme23. Ou

    seja, informao com condies de ser replicadavira conhecimento. Informao que

    23Um meme, termo cunhado em 1976 por Richard Dawkins, uma referencia anloga ao que ogene para a gentica e foi apresentada no seu livro O Gene Egosta, reeditado em 2008, o quedenota a importncia de seus argumentos ainda hoje. Segundo ele, o meme definido como unidademnima de informao cultural, como replicadores de comportamentos, desde idias ou partes de

    idias, e tambm lnguas, sons, desenhos, capacidades, valores estticos e morais, ou qualqueroutra coisa que possa ser aprendida facilmente e transmitida com freqncia. Ao longo desse maisde 30 anos, sua tese tem sido debatida, tanto com os que tem nela uma forma de atualizao dabiologia evolutiva, como tambm os que so contra e a colocam como uma teoria universalizante.

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    pode colaborar para outros entendimentos, como tambm pode reforar os j

    existentes, possivelmente engessados e universalizantes. A crtica, como mediao,

    vetor de replicao desses e de outros dizeres de dana. Com isso, possvel

    problematizar os processos de mediao entre dana e crtica, a fim de demonstrar

    a eficincia desses processos em relao produo de conhecimento na dana e

    ao acompanhamento regular da produo artstica na rea pelo exerccio crtico.

    Pois lidar com a dana, a partir de seus nexos evolutivos, possibilita perceber

    suas instncias de ocorrncia e a relao entre elas. Lana luz nova sobre o que

    tem sido dito e reproduzido como produo artstica e acadmica de dana. Coloca

    outro entendimento de tempo histrico, no cronolgico nem isolado, mas um tempo

    que evolui, cria temporalidades logo, possibilita outro olhar para a ao da crtica

    especializada e os discursos ditos crticos. Aciona conceitos cientficos que remetem

    teoria darwiniana com sua origem das espcies, como o de seleo natural, de

    evoluo construtiva, de adaptao, de sucesso evolutivo, iniciando processos de

    conscientizao sobre a complexidade das coisas humanas (idias e pessoas).

    O contexto de uma determinada realidade, segundo a perspectiva sistmica e

    tambm de uma coerncia evolutiva, caminha para se explicar o muito provvel, decomo as coisas complexas so engenhadas. As coisas do mundo como minsculos

    fragmentos do universo real, gros de areia num imenso areal24. Tem a ver com

    refletir sobre as aes tanto na escala micro (especificidades) como macro

    (generalidades), o que, de algum modo, tem a ver tambm com um outro modo de

    entender o discurso j desgastado, mas imperante, de um pensar localmente e agir

    globalmente. O "problema do contexto" diz muito sobre como podemos entender os

    contextos das relaes de outro modo.

    1.2 O problema do contexto

    24 Alguns autores vindos das reas biolgicas tm dado boas contribuies bibliogrficas naconstruo de olhares indisciplinarese co-evolutivossobre questes culturais j postas e discutidasno mundo, atravs de seus livros de divulgao cientfica. Dentre eles, temos Ilya Prigogine, StevenPinker e Richard Dawkins, pelo fato de discorrerem sobre conhecimento e evoluo, transformando-

    se em bibliografia bsica para pesquisadores que lidam com diversas ramificaes da cultura e quebuscam uma oxigenao de idias. Ou seja, o que eles escrevem possibilita outros instrumentostericos para "ler" os fenmenos culturais e, por conseguinte, contribuem para a concepo de outrosnovos sensos comuns. (KATZ, 1998).

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    Sabe-se que o contexto no tudo. Mas nos parece sensato comear por ele,

    estrategicamente. Principalmente porque o mundo atual caracterizado por um

    universo fragmentado e imerso em informaes de variadas naturezas e

    procedncias, que nos faz indivduos livrespredispostos reflexo, mas de modo

    pueril e superficial. A produo de dana contempornea fundamenta-se nessa

    lgica da diversidade em nosso tempo e de um re-elaborar prticas artsticas, sendo

    "necessrio considerar para toda a crtica as condies de recepo a que o crtico

    est sujeito" (RIBEIRO, 1997, p.117), pelo que a ele " exigida a condio do estudo

    do contexto pelo qual ele pode se aproximar da obra" (idem, 118).

    Esta condio etnogrfica para o autor supracitado, tem de ser levada em

    conta na escrita de qualquer comentrio, por ser um aspecto determinante no

    reconhecimento ou no da impossibilidade da crtica de encontrar similitudes que

    ajudem no decodificar a aparente estranheza da obra. Porque "no so mais as

    situaes estveis e as permanncias que nos interessam antes de tudo, mas as

    evolues, as crises e as instabilidades" (PRIGOGINE; STENGERS, 1997, p. 05),

    estas que intervm nos comportamentos sociais e artsticos, e que neles se

    engenham.

    No uso habitual, o termo contexto utilizado como sinnimo de realidade e

    ambiente fsico. Dilatamos esta perspectiva, de algum modo, etnogrfico, e nos

    aproximamos do sentido que enlaa o parmetro sistmico "complexidade", com

    nfase no carter circunstancial e etnogrfico. Que por mais estveis que possam

    parecer, os "contextos das relaes" so sempre circunstanciais e que o carter

    provisrio est diretamente ligado a uma noo de tempo evolutiva que

    processual, no-linear, cumulativa, distinta da cronolgica. "Submetidas desdesempre degradao imposta pela ao do tempo, as coisas existentes

    manifestam-se como snteses transitrias dos seus processos relacionais com

    outras em seu ambiente de existncia" (BRITTO, 2008, p.13).

    Por conseguinte, definimos inicialmente por "contexto" o encadeamento

    sistmico e compartilhado de fatos scio-culturais de uma determinada circunstncia

    histrica e evolutiva no caso, os processos e configuraes da produo artstica

    de dana contempornea dos anos 90's e incio do sculo XXI da cena e experincia

    de dana em Fortaleza (CE). Isso permite caracterizar o contexto co-evolutivamente

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    como conjunto de condies para os relacionamentos acontecerem (BRITTO, 2008),

    distinguindo-se do contexto etnogrfico, mas tambm dialogando com ele:

    Esta emergncia do etnogrfico remete para a condio do crticocomo um crtico no terreno, de quem se pode solicitar umcomportamento etnogrfico. Por este, toda a crtica crtica daobra e crtica de si prpria e um discurso sobre as condies deproduo e de recepo da obra. (RIBEIRO, 1997, p. 118)

    Eis uma definio sistmica de contexto que justifica sua escolha e faz dela

    estratgica, pois nos permite apresentar a dana de determinada realidade

    considerando tanto a produo de suas obras artsticas, como ainda a dinmica

    cultural dessa produo como um todo inter-relacionado e co-implicado. O modo que

    determinados elementos operam dentro de um sistema e que se inter-determinam

    contribui para a compreenso de que os sistemas culturais no podem ser reduzidos

    simplesmente a resultantes das aes humanas, mas que vo alm destas, juntos, e

    so muito mais complexas do que se pode (tentar) mensurar. "A complexidade exige

    que possamos entender e modelar a interao entre coisas e processos de

    naturezas muitas vezes bem diversas, sob pena de no captao do que h de

    fundamental nesses sistemas" (VIEIRA: 2000, 12).

    O que h de fundamental nisso como algo necessrio e essencial para o

    sistema expandir-se e ter condies de se expandir so as singularidades e

    generalidades dessa interao complexa. Por isso, o horizonte do parmetro

    sistmico da complexidadecolabora para nos darmos conta de que a produo da

    chamada dana contempornea uma produo de dana que mantm dialogo

    intenso com a contemporaneidade, que advm de uma complexificao cultural denatureza "no-programtica" e "no-hierrquica" (BRITTO, 2003). A dana que se v

    hoje e se define como contempornea, muitas vezes rejeitando tal rtulo, relaciona-

    se com os questionamentos do mundo, mediante investigao de outros

    procedimentos tcnicos e educativos advindos de prticas artsticas. Um questionar-

    se a todo o momento, objetivando uma certa materialidade tanto no corpo que dana

    como na obra coreogrfica para outras conexes com o mundo e possveis

    mudanas nos eixos de referncia conceituais:

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    A dana contempornea se organiza semelhana de umaoperao metalingstica, na medida que transfere a cada atocompositivo os papis de gerador e gerenciador das suas prpriasregras de estruturao(idem, p. 03).

    Corriqueiramente, percebe-se a