Arranhões e Outras Feridas

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Arranhões e outras feridas

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A dor, a angústia, o sofrimento e o fracasso fazem parte da essência do ser humano. Toda literatura que deseja ser grande trata de questões como essas. Os contos de Arranhões e outras feridas têm como elo coisas que nos ferem, seja física ou psicologicamente: problemas passionais ou sociais, a vida sem atrativos, o fracasso no fazer artístico. Cassionei Niches Petry, neste livro de estreia, busca nas mínimas coisas retratar quem somos, procurando sempre fazer da palavra o instrumento para realizar uma obra de arte que nos inquiete e, por conseguinte, não nos deixe nenhum pouco à vontade.

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EDITORA MULTIFOCO

Rio de Janeiro, 2012

Arranhões e outras feridas

C a s s i o n e i N i c h e s P e t r y

lumináriaacademia

[re]Versospoesias

redondezascontos

representateatro

reminiscênciaclássicos

futurArtepoesia

desfechoromances

spectrumterror

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EDITORA MULTIFOCO

Simmer & Amorim Edição e Comunicação Ltda.Av. Mem de Sá, 126, LapaRio de Janeiro - RJ

CEP 20230-152

REVISÃO Dilso José dos Santos

EDIÇÃO Jana Lauxen

CAPA Érica Chrockatt

DIAGRAMAÇÃO Mauricio Pinho

Arranhões e outras feridas

PETRY, Cassionei Niches

1ª Edição

Agosto de 2012

ISBN: 978-85-7961-991-5

Todos os direitos reservados.

É proibida a reprodução deste livro com fins comerciais sem

prévia autorização do autor e da Editora Multifoco.

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Índice

Arranhões 11

Ônibus 13

Caixa de Pandora 21

Feliz aniversário 25

O casarão 29

Lá em cima 33

Última vez 35

Lenira 37

Aprendizado 39

Escoriações 41

Serviço especial 45

A espera 49

Histórias para contar 51

Flagrante 53

Vozes 55

Meu irmão 59

Como sempre 63

O dia em que a terra parou 65

Concurso literário 67

Questão de talento 71

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“Voy pensando que un libro nace de una insatisfacción, nace de un vacío, cuyos perímetros van revelándose en el transcur-

so y final del trabajo”.

Exploradores del abismo, EnriquE Vila-Matas

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Para Allão Quartemar, nome de herói da literatura

Para Luiz Nei, Aleir e Cassiane

Para Deise e Milena

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Arranhões

“Também quando ouvem não compreendem, são como mudos. Justificam o provérbio: presentes, estão ausentes.”

Heráclito de Éfeso

O calçado apertado a deixa irritada. Resolve tirá-lo. Não adianta mesmo ficar com os sapatos, pois não vai poder sair para comprar a comida do seu gatinho.

Vai à sacada se divertir com o balé dos guarda-chuvas na rua. Ela está seca e protegida e isso a faz se sentir superior. Ri quando um carro passa sobre uma poça d’água, molhando as pessoas na parada de ônibus. Mais adiante, uma mulher pisa em uma laje solta da calçada e também fica encharcada. Acha tudo engraçado, esquecendo-se de que poderia ser ela mesma nessa situação.

“Guardei até onde eu pude guardar o cigarro deixado em meu quarto

é a marca que fumas confesse a verdade não deves negar.”

Sim, um cigarro cairia bem agora. Os conselhos do médi-co, no entanto, estão ainda nítidos na sua memória.

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“Os meus cabelos brancos me obrigam a perdoar uma criança.”

Até hoje o espera inutilmente. Se tivesse perdoado o que ele fez, um simples arranhão na vida dos dois, não teria ficado sozinha todos esse anos. Parece sentir a presença dele na sala. “Não se cansa de ouvir o Nélson? Coloca uma do Cartola”. Vai ao toca-discos sem olhar para a poltrona. Atende ao pe-dido do marido, coisa que nunca fez. Sabe, no entanto, que é tarde para perder o orgulho.

“Vai reduzir, as ilusões a pó-a pó-a pó-a pó...” Ignora o disco arranhado. Ignora o gato arranhando suas

pernas. Ignora o sangue que escorre para fora do apartamento e mancha o sapato dele, que arranha a porta, chorando, im-plorando para entrar.

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Ônibus

“Inventar pessoas. Uma atividade benigna quando você está datilografando no aconchego do seu escritório.”

Zuckerman libertado, Philip Roth

Ônibus. Diferentes pessoas. Em cada banco uma história par-ticular. Aquele rapaz, por exemplo. Pode estar vindo agora da casa da namorada que acabou de assassinar, mas seu rosto não deixa transparecer nenhum sinal de remorso. O velho ao lado dele, por seu turno, olha para as pernas de uma mulher que está de minissaia. Ela, de cabelo molhado, estava no mo-tel com seu chefe e vai agora direto para o trabalho. Ao meu lado, um senhor lê um livro. Tento espiar o título. Não, não é nenhum meu. Mas ele já leu Os óculos de Paula e não gos-tou. O rapaz de boné no banco da frente não gosta de livros, mas é obrigado, pelo professor, a ler pelo menos um por mês. Comenta com seu amigo que seus pais estão se separando e, provavelmente, ele terá que morar com a mãe, o que vai ser bom, porque ela não pega muito no seu pé. Atrás deles há um homem de trinta e três anos, que não só leu Os óculos de Paula, como foi ele próprio quem o escreveu. Quando anda de ônibus, gosta de ouvir conversas e fica imaginando histórias para as pessoas que observa.

Uma mulher carregando uma sacola acaba de entrar.

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Ela estava deitada no chão da sala, os olhos roxos. Cho-rava baixinho, pois os vizinhos não podiam ouvir. Quem diria que aquele rapaz bem educado, amável com todo mundo, fos-se tão agressivo. No começo até que ela gostava de apanhar, pensava ser uma simples fantasia sexual do namorado. Com o passar do tempo, porém, ele ia exagerando na força, aquilo estava se tornando uma doença, começava a ter medo dele. Resolveu dar um fim ao namoro, mas antes de terminar a fra-se, um soco no estômago a calou.

Pagava 10 reais para meninas de 12 e 13 anos tirarem a roupa para ele, mas não fazia mais que isso. Quando elas iam embora, se masturbava. Depois, assistia à missa diária na Rede Vida.

Mudar de cargo a qualquer preço - era o que sempre ti-nha em mente. Por isso aceitava as cantadas do chefe, que no começo não eram sérias, mas tiveram como consequência um convite para ir ao motel. Seu namorado concordara com o plano, contudo não queria que ela fizesse sexo anal. Como nossa mente só se lembra de coisas que realmente queremos lembrar, ela não atendeu ao pedido.

Encerrou a leitura de Os óculos de Paula e jogou o livro sobre a mesa. Livro chato, não gosto dessas histórias que dão um nó na cabeça da gente. Seu cachorro não respondeu. Tam-bém não gostava desse tipo de livro. Aliás, não gostava de nenhum, pois volta em meia algum acabava atingindo a sua cabeça. Havia muitos livros espalhados pela casa: literatura, filosofia, história. Leu e releu todos, mas não vai reler Os ócu-los de Paula. Não, o romance não era chato. É que a leitura fez despertar alguma coisa que estava no seu inconsciente e que ele não sabe ou não quer saber o que é.

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A separação dos pais não o pegou de surpresa, já que os dois viviam brigando. O motivo sim o surpreendeu: seu pai estava traindo a mãe com uma colega de trabalho. Ele vivia dando lição de moral e não passava de um crápula. Gostou dessa palavra que leu no livro e resolveu usá-la para impres-sionar o amigo. Ao menos a leitura serviu para alguma coisa.

A mulher com a sacola desceu na mesma parada que o autor de Os óculos de Paula. Aliás, foi ele quem desceu na mesma parada. Perguntou se podia ajudar e ela aceitou. Não moro longe, mas tem uma subida logo ali que vou te contar, ela disse. O escritor perguntou seu nome. Não era Paula, era Márcia.

O namoro começou na missa de Sexta-feira Santa. Am-bos na fila para beijar o Senhor Morto. Enquanto alguns se acotovelavam para chegar perto da imagem, os dois trocavam olhares numa atitude, por certo, pecaminosa. Para eles, era um momento abençoado.

A menina deveria ter, no máximo, 12 anos. O velho disse que tinha algumas bonecas que sua neta não queria mais. A menina disse que não brincava mais de boneca, mas sua irmã mais nova sim. O velho disse vamos lá em casa buscar. Logo que entraram, ele disse só te dou se tu tirar tua roupa. Ela: quer só que eu tire a roupa? Ele: sim, mas não conta para ninguém, hein? Ela saiu decepcionada, mas com as bonecas.

A gerente de vendas foi quem deu a dica. Para melhorar sua situação na empresa, ela também se submeteu aos desejos do chefe. Não é à toa que poucos homens trabalham aqui, disse. Para ele, as mulheres são mais competentes. Algumas, claro.

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Considerava-se, às vezes, um masoquista. Gostava de ler livros que o fazia sofrer. Aliás, a boa literatura, dizia para seu cachorro, não pode ser alegre. Por isso, resolveu ler toda a obra do autor de Os óculos de Paula. Tarefa nada difícil, já que, segundo o texto da orelha, constava de apenas três livros: além do romance já lido, mais um livro de contos e um de ensaios. O primeiro passo era ver se a biblioteca municipal possuía os livros. Caso contrário, teria que gastar o dinheiro que estava guardando para alguma coisa mais útil.

Nunca havia esquecido aquele dia em que a família assis-tia a uma novela na televisão e o seu pai se irritou com uma cena em que o protagonista traía a esposa. “É o cúmulo que o mocinho da novela esteja tomando uma atitude dessas. O mocinho sempre é o modelo para as pessoas que, ao verem ele tomar essa atitude, acabam fazendo a mesma coisa. Aonde nossa moral vai parar?” Pois o defensor da moral e dos bons costumes também deve ter se influenciado pelas novelas.

A mulher que não se chamava Paula morava com a filha de 11 anos. O pai da criança desaparecera quando soube da gravidez. Mais uma daquelas mulheres que são mãe e pai ao mesmo tempo. A menina assistia a um desenho na TV, pois já havia terminado de fazer o tema da escola. A mãe pediu para passar um café para o moço.

No sábado de Aleluia, se encontraram na praça. Um da-queles namoros tradicionais, um do lado do outro, sem ficar abraçados, afinal, ambos vinham de famílias católicas fervo-rosas. No futuro, se casariam e formariam, quem sabe, outra bela família católica.

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O velho resolveu conhecer bairros diferentes da cidade. Começava a achar perigoso convidar meninas que moravam perto da sua casa. Em outro lugar talvez encontrasse material melhor.

Durante todo o dia, o chefe colocava na sua mesa vários bilhetes, “é hoje, não esquece”, “estou ansioso”, “você não perde por esperar”. Ela estava ficando arrependida, mas não queria voltar atrás. O marido não iria perdoá-la se desse tudo errado, pois o futuro deles estava em jogo.

Bom, em nenhuma biblioteca havia algum livro do autor de Os óculos de Paula. Teria que comprá-los, então. Foi à úni-ca livraria da cidade e teve que encomendá-los, já que havia apenas o romance em estoque. A atendente explicou que ro-mance vendia mais do que os outros gêneros literários.

Conhecia as histórias dos pais dos seus amigos, o que lhe causava uma pontinha de inveja. Afinal estava se tornando moda o divórcio, e ele era um dos jurássicos filhos de pais que não estão separados. Isso agora iria mudar.

O café estava bom, mas o escritor teria que ir embora. Como já sabia o endereço, prometeu que voltaria.

Logicamente, por mais que a religião pregasse o sexo só depois do casamento, a natureza falou mais alto. Mais tarde, se confessaram, mas com um padre de outra paróquia.

Logo que desceu do ônibus, viu a menina brincando com sobras de madeira de uma marcenaria. Pela roupa que vestia, viu que era bastante pobre. Com certeza nunca teve uma bo-

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neca. Ofereceu-lhe uma bala. Perguntou seu nome e ela disse me chamo Márcia. Tu não quer ir brincar na pracinha comigo, Márcia? Te pago um sorvete.

Ela saiu primeiro e foi esperá-lo em uma cafeteria na ou-tra quadra. Quando se sentou e pediu um café, viu que outro homem a observava. Mas logo chegou o chefe e foram para o motel.

O livro de contos se chamava Arranhões e outras feridas. Não gostou do título, pois o achava de muito mau gosto. Um dos contos, porém, lhe chamou a atenção.

Desceu do ônibus e, quando chegou em casa, encontrou seus pais abraçados. Quando o viram, disseram que estavam felizes, pois não iriam mais se separar.

O escritor não conseguia parar de pensar na mulher. Sabia que ela não fazia parte do seu mundo. Talvez nunca tivesse lido um livro na vida. Mas, como diz o lugar-comum, pólos diferentes se atraem.

Naquele dia, ela disse que o rapaz estava se mostrando um cafajeste, o melhor para os dois seria terminar o namoro, já estava cansada de apanhar. Depois da surra, foi obrigada a pôr na boca o membro do namorado, que segurou a cabeça dela, deixando-a sem ar. Mesmo desmaiada, ele a penetrou e depois, pegando uma faca na cozinha, cometeu o pecado con-tra o quinto mandamento.

O velho estava conversando com a criança quando foi agarrado por três homens. Os moradores das redondezas, ao

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saberem o que ele estava fazendo, partiram para cima do ve-lho. A polícia, no entanto, apareceu para dispersar a multidão. A tentativa de linchamento chegou a ser notícia no Jornal Na-cional, pois além de tudo isso, uma bala de um policial atin-giu acidentalmente um homem que apenas assistia de longe à confusão.

A mulher chegou ao escritório e começou a trabalhar. Logo após chegou o chefe. Mandou chamá-la. Depois foi apresentada como a mais nova gerente de propaganda da em-presa.

O conto se intitulava “Ônibus” e contava várias histórias paralelas. O engraçado é que um dos personagens também havia lido Os óculos de Paula e comprara, do mesmo autor do romance, o livro de contos cujo título também não gostara, assim como lhe chamara a atenção um dos contos intitulado “Ônibus”, que contava várias histórias...

Foi para seu quarto, ligou o computador e começou a es-crever a carta: “Meu amor, estou com saudades, quando va-mos nos ver de novo, etc. etc.” Depois a colocou no bolso da camisa do pai que estava na cesta de roupas para lavar.

O escritor descia a ladeira em direção à parada de ônibus, imaginando um conto com várias histórias de passageiros de um ônibus, quando viu uma confusão em uma praça próxima. Os policiais chegaram para evitar um linchamento de um ve-lhinho e começaram a atirar sem direção para afastar as pes-soas dali. Uma das balas atingiu o escritor, que morreu antes de chegar ao hospital.

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Caixa de Pandora

“A partir de certo ponto não há mais qualquer possibilidade de retorno. É exatamente esse o

ponto que devemos alcançar.”

Franz Kafka

Não, não. Não toque aí. Não pode abrir essa caixa. Deixe isso onde está. Por quê? Outro dia eu conto. Lembra do mito de Pandora? Então, se fosse há algumas décadas um jovem como você diria que era só um planeta de um filme famoso. Não sei nem porque guardo isso ainda. Hoje não, outro dia vou estar mais disposto. Preciso me preparar. Não é tão fácil falar sobre uma época complicada das nossas vidas. Amanhã, então. Va-mos continuar aqui, pegue aquelas caixas.

***

Foi um pouco antes do chamado colapso de energia. Na-quela época, tudo girava em função da energia, fosse hidre-létrica ou de outras fontes. As pessoas escreviam em compu-tadores, aliás, faziam quase tudo pelo computador, se é que você me entende. Os livros estavam deixando de existir por-que havia pequenos objetos que armazenavam milhares deles. No supermercado, as atendentes usavam pequenas armas que jogavam luzes nas embalagens para saber o preço dos produ-tos e fazer a soma, até porque as pessoas compravam tudo

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em grandes quantidades. No banco, podíamos fazer operações financeiras em caixas automáticos. Os telefones eram mó-veis, podíamos atender em qualquer lugar, enfim. Se tudo era mais fácil? Em princípio sim, mas com as constantes quedas de energia as pessoas ficavam atordoadas, todo um trabalho podia se perder. Sabe aquele poema do Drummond, o “Cota Zero”? Ele questiona se quem parou foi o homem ou o auto-móvel. Ora, se pensarmos que ao falar em automóvel ele está se referindo às máquinas, podemos dizer o seguinte: ao dar o título de “Cota Zero” ao poema, está querendo dizer que alguém está perdendo sua parte em alguma coisa. No caso, quem pode estar perdendo seu lugar é o homem, já que a má-quina estava, naquela época, tomando conta de tudo. Isso que quando ele escreveu não existiam muitas novidades tecnológi-cas ainda. Mas podemos questionar: se o homem para, a má-quina também para, afinal, quem faz o carro parar? Então, se o homem para, as máquinas, consequentemente, vão parar. E se elas param, o homem também para. Era um sábio, o Drum-mond, falando sobre a dependência do homem às máquinas, prevendo o que iria acontecer.

Conheci sua avó em uma fila de uma loja (esse era um dos lados ruins dessa época, existia fila pra tudo). Eu estava com-prando pilhas e baterias recarregáveis para meus aparelhos eletrônicos. As crianças da minha geração só queriam brin-quedos eletrônicos e, depois de adultos, ainda encontravam em aparelhos eletrônicos seu divertimento. Eu era vidrado em tudo que se referia à tecnologia e nem sei como hoje não sinto falta de tudo aquilo. Músicas, filmes, livros, quadrinhos, con-versas e, principalmente, jogos. Tudo estava nos meus brin-quedinhos, que já não tinham nada de infantil.

Como você está percebendo, ela me conheceu assim, sa-bendo do que eu gostava. Casou comigo sabendo que eu seria

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ainda o crianção que ficaria boa parte do dia com seus brin-quedinhos. Então ela não deveria ter feito o que fez. Lógico, eu não estava dando a atenção que ela merecia. Sempre fui muito fechado, ela sabia disso. E ela não dava mostras de que estava chateada com isso. E quando mostrou sua revolta, foi logo fazer aquilo?

Foi a primeira e última briga que tivemos. Claro que eu fazia sexo com ela, se não você nem estaria aqui, poxa! Mas você não tem ideia do que é estar jogando e passando de ní-veis, aquilo deixava qualquer um vidrado, bater o recorde, su-perar os limites e saber que você está vencendo uma máquina. Então, naquele dia, ela me chamava pra cama e eu dizia para esperar, eu estava superando meus limites e tinha que conti-nuar jogando. Ela me chamou ainda duas vezes e eu não res-pondi. Depois parecia ter desistido e eu continuava ali, estava indo cada vez mais longe, já tinha matado não sei quantos personagens. Foi quando senti o game ser tirado das minhas mãos de uma forma brusca e só o vi destruído com o impacto na parede. Olhei para ela. Ela percebeu o ódio no meu olhar, mas senti também o mesmo ódio nos olhos dela. Fechei os punhos e descarreguei no seu rosto tudo o que eu não tinha descarregado no jogo.

Ela ficou em coma uns meses, mantida viva justamente por uma máquina, e depois morreu. Permaneci preso durante alguns anos. Nesse meio tempo, me privaram dos meus brin-quedos, até porque logo começou o colapso e os governos de todo o mundo passaram a proibir a maioria dos aparelhos ele-tro-eletrônicos. Recolheram tudo o que podiam e incineraram. Mas alguns foram desviados e vendidos no mercado negro por preços exorbitantes. Quando saí para o sistema condicional, a primeira coisa em que pensei foi trabalhar para comprar um game. Só que demorei tanto para isso que, quando consegui

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comprar, já nem tinha mais vontade de jogá-lo. Aliás, tinha comprado um dos últimos modelos, que eu não conhecia por estar na prisão. Cheguei a ligá-lo. Porém, quando vi o que ele continha, pensei na sua avó e nunca mais voltei a tocá-lo.

Sei que nunca falaram sobre isso com você. Nunca pen-sei que eu ia precisar contar também. Espero que não fique chateado com seu avô, pois hoje sou outra pessoa. O colapso ajudou bastante. Passei a ler bem mais e, consequentemente, dei outro valor para a vida. Nessas alturas, você já sabe o que está guardado dentro da caixa, meu neto, e o perigo que aqui-lo pode representar. Mas como confio em você, tenho certeza de que não vai abri-la. Posso confiar?

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Feliz aniversário

“E o meu medo maior é o espelho se quebrar”,

João Nogueira e Paulo César Pinheiro

Até amanhã, Cláudia. Até amanhã, Sr. Vítor. Está indo mais cedo hoje? Pois é, tenho que comprar um presente pra minha filha. É o aniversário dela, sabe. Diz que eu estou mandando um abraço pra ela, Sr. Vítor. Pode deixar. Sai apressado, se despede de outro funcionário. O senhor não sabia que estou saindo de férias, seu Vítor? Boas férias, então. A recepcionista faz sinal com o dedo, está ocupada no telefone. Essa um dia eu traço, ele pensa. No estacionamento, encontra o flanelinha. O senhor cuida que os pneus estão carecas. Não se preocu-pe, Dudu, vou trocar eles amanhã. Entra no seu inseparável Monza vermelho, o primeiro carro que comprou quando os negócios começaram a crescer, e enfrenta o perigoso trânsito da cidade.

***

Ela põe a roupa dada por sua mãe de presente de aniversá-rio. Mira-se no espelho e lembra que há bem pouco tempo era uma jovem magricela, mal vestida, motivo de risos das colegas do colégio. Quando seu pai montou a empresa e começou a

ganhar dinheiro, tudo mudou. Entrou numa academia de gi-

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nástica, adquiriu as melhores roupas das lojas, fez novas ami-

zades e passou até a aparecer na coluna social do jornal. Além

disso, arrumou também muitos namorados, até se apaixonar

pelo filho do diretor de uma grande empresa. É pelo namora-

do que ela espera ansiosamente. Prometeu uma noite especial,

e ela já imagina onde será.

Teu namorado chegou, grita a mãe atrás da porta. Fala

que eu ainda vou demorar um pouco, responde, querendo se

fazer de difícil. Coloca uma camisinha na bolsa e sorri para o

seu rosto no espelho: adeus, menininha!

***

Vocês precisavam ver, diz um pipoqueiro para os curiosos,

o carro vinha na contramão e deu de cara com a camioneta.

O corpo do motorista está entre as ferragens e ninguém sabe

se está vivo. E os bombeiros que não aparecem para tirar logo

o desinfeliz dali, reclama o dono de uma loja cujos clientes fo-

ram todos para a rua ver o desastre. O motorista da camioneta

está sentado no meio-fio da calçada e repete chorando eu não

tive culpa, eu não tive culpa.

***

E o pai que não vem, hein?, diz a aniversariante, irrita-

da. Calma, filha. Decerto foi comprar um presente pra ti e

não conseguiu se decidir ainda. Eu quero sair logo com o meu

namorado e não vou ficar esperando o pai, droga. Por favor,

filha, ele não te viu hoje e gostaria tanto de te dar um abraço.

Ah! mãe, ele que se dane!

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***

Os veículos foram retirados e, aos poucos, os curiosos vão indo embora. Por todo o asfalto, há manchas de sangue e cacos de vidro. As lojas já estão fechadas, mas o pipoquei-ro continua trabalhando. Ao lado, sua filha brinca com uma boneca que achou perto de um dos carros, embrulhada num papel colorido.

***

Estão saindo na porta quando o telefone toca. A aniver-sariante volta correndo para atender. Alô! Oi, pai. Obrigada, pensei que tinha esquecido. O senhor vai demorar pra vir? Que pena. Tem uma reunião com uma pessoa muito impor-tante e não sabe que horas vai chegar, mãe. Tá mandando um beijão pra senhora e manda dizer que ama muito a gente e pra gente nunca esquecer ele. Que papo estranho, pai... E o meu presente, o senhor vai trazer? Hein, pai? Pai! Responde, pai.

Do outro lado da linha, apenas um suspiro.

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O casarão

“O senhor querendo veja: a casa ou a história.”

Ópera dos mortos, Autran Dourado.

Se eu não visse a jovem lendo tranquilamente o jornal na va-randa, pensaria que a casa estivesse abandonada. Uma tabu-leta, meio escondida por alguns arbustos, indicava que a pro-priedade estava à venda. Com licença!, gritei, e abri com difi-culdade o enorme portão. Chegar até a casa foi também tarefa árdua, visto que a grama alta tomava conta do caminho. Pode vir que não tem perigo, afirmou a moça. Atravessei correndo o matagal. Ela riu e disse você é medroso!

A jovem era muito bonita, bem vestida, limpa, em con-traste com o estado de conservação da varanda e de todo ex-terior da casa. Como você consegue ficar no meio de toda esta poeira e teias de aranha?, perguntei. Ela apenas sorriu e me estendeu a mão.

Leu o anúncio no jornal, não é verdade? Pois então entre pra conhecer a casa por dentro. É diferente do que o lado de fora, porque eu não tenho ninguém que limpe o pátio ou cuide da pintura da casa. Vivo sozinha aqui. Meu nome é Carla. E o seu? Hum... Bonito nome. Pois então, Bruno, vamos entrando. Já digo pra não se preocupar com o preço. Depois acertamos direitinho, está bem?

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Logo ao entrar na casa tive a sensação de que eu ficaria ali para sempre. Era uma belíssima construção, digna de figurar nas mais belas páginas da literatura universal. Cada cômodo que ia conhecendo me deixava cada vez mais fascinado. Já nas primeiras salas dava para adivinhar o que seria o resto da casa: os móveis eram feitos de madeira da melhor qualidade, havia tapetes persas e quadros de pintores famosos. Imaginei--me sentado na frente da lareira acesa, lendo um bom livro e com o cachimbo na boca. Era tudo o que eu havia sonhado.

Subindo as escadas, fomos ver os quartos. Eram mais de dez. A primeira coisa que me chamou a atenção foram as ca-beceiras das camas. Possuíam desenhos talhados na madeira, feitos pelo melhor artesão da capital. Também era no andar de cima a parte que para mim seria a mais importante e que foi deixada para ser mostrada por último: a biblioteca.

Ninguém mais gosta de casas antigas. Faz tempo que tento vender esta aqui. Vieram mais de dez pessoas que só olharam e depois foram embora dizendo que iriam falar com a família e nunca mais voltaram. Mas você, pelo jeito, é saudosista, acer-tei? Pois é, tenho absoluta certeza de que você vai ficar na casa.

Antes de chegarmos à biblioteca, ouvi um barulho num dos quartos de onde acabáramos de sair. Perguntei a ela o que poderia ser e me respondeu que não ouvira nada. Não passava de imaginação da minha cabeça, sugeriu.

A possibilidade de comprar uma casa com uma bibliote-ca montada foi o que me conquistou no anúncio. São mais de 26.000 volumes, ela disse, todos ricamente encadernados. Qua-se não estava acreditando naquilo, por isso perguntei os livros vão ficar? Ela respondeu tudo será seu pelo resto dos seus dias, menos os bonecos de pano que vou lhe mostrar agora.

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Entramos em um quartinho que havia junto à biblioteca. Era mobiliado apenas por uma cama de solteiro bem simples e uma estante com doze bonecos de trapo enfileirados. Carla disse foi minha falecida avó quem fez os bonecos. São bonitos, eu disse, apesar de tê-los achado horríveis. Quis observá-los mais de perto, pois eram idênticos a pessoas de verdade. Não toque neles, idiota!, ela gritou. São relíquias e vou levar todos comigo. Tudo bem, eu disse, um pouco assustado com a mu-dança de humor da jovem. Apalpei o colchão e perguntei pos-so ficar com esta cama? E ela, mais irritada ainda, respondeu já falei que você pode ficar com tudo, menos com os bonecos, droga!

Logo depois ela saiu do quarto visivelmente alterada. Fi-quei me perguntando o que poderia ter havido com a moça. Se fosse por causa dos bonecos ela não precisaria se preocupar. Eles não me interessavam. O que eu estava imaginando era fazer daquele quartinho escondido o meu escritório, o refúgio onde poderia escrever meus livros e ler.

Distraído, não percebi que havia voltado. Agarrou-me por trás e amarrou minhas mãos com um retalho de tecido. Usando uma agulha de costura, furou meu pescoço. Ainda tive tempo de ver, escorada na porta, uma velhinha sorrindo para mim.

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Lá em cima

“Não existem crianças que deixam o brinquedo para ir se aborrecer num canto do sótão?”,

A poética do espaço, Gaston Bachelard.

Tínhamos medo de ir lá em cima, no final da escada. Mas mamãe não queria saber: nos mandava procurar lá qualquer coisa que não achava. Nos deparávamos com os tipos mais estranhos quando abríamos a porta e uma vez falamos isso pra mamãe. Ela disse que sabia, mas não precisávamos nos preocupar, pois as criaturas eram inofensivas.

Era verdade: certa vez subi para pegar um absorvente para mamãe. Sentado em um baú estava um velho todo co-berto por teias de aranha. Ficou me olhando, porém não me fez mal algum. Chegou até a me apontar onde estava o absor-vente. Minha irmã, por sua vez, foi buscar uma roupinha de boneca e deu de cara com um bebê cantando “Chocolate”, do Tim Maia. Ao vê-la, parou de cantar e se escondeu atrás do mesmo baú.

Perguntamos para mamãe como as coisas paravam lá. Ela respondeu que talvez as criaturas levassem durante a madru-gada. Não tinha certeza. Resolvi então, por minha conta e ris-co, fazer uma experiência.

Coloquei uma bolinha de gude sobre a mesa da cozinha e esperei escondido atrás da geladeira. Acabei dormindo. De manhã, a bolinha não estava mais lá.

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Subi bufando de raiva e abri a porta com violência: uma mulher, sentada no baú, olhava para a esfera de todos os lados possíveis (se é que bola tem lado). Quando me viu, se meteu atrás do baú, jogando a bolinha no chão. Não tive coragem de ir atrás. Mas recuperei meu brinquedo.

Dias depois minha irmã desapareceu. Mamãe ligava para delegacias e hospitais, colocava a foto dela nos jornais dando características físicas, as roupas que ela usava, mas as buscas resultaram inúteis.

Fazia um mês do desaparecimento quando subi lá em cima para procurar um carrinho de controle remoto. E lá estava ela, brincando com o carrinho acompanhada por um menino. Quando me viram, correram para trás do baú. Só pude notar um sinal de extrema felicidade nos olhos da minha irmã.

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Última vez

“Hai cai na real

Sozinho/sábado à noite/de pilequinho”

Cellophane Flowers, Mauro Ulrich

Bebi muito, já que era meu último porre. A fim de não gastar o resto do dinheiro, decidi ir embora. Também não havia nenhu-ma mulher no bar, só uma bicha, que se oferecia pra mim com uma voz forçosamente feminina. Me vi obrigado a lhe dar um soco na boca. Jurou se vingar, mas não dei importância. Preci-sava de uma mulher de verdade, na qual pudesse descarregar meus desejos pela última vez.

Encontrei a mulher sentada na calçada, logo na saída do bar. Tinha a cabeça escorada nos joelhos e chorava. Toquei no seu ombro e ela me olhou. Aonde?, ela perguntou. Em qual-quer lugar, eu respondi. Pode até ser aqui mesmo. Claro, pra mim também não importa o lugar, ela concordou. Mas vê se pára de chorar, eu pedi, e ela me atendeu.

Agora eu estou aqui, sentado na mesma calçada, vendo a prostituta ir embora contando o dinheiro que ganhou. Fico feliz por ela. Porém, meu sorriso logo se desfaz quando os dois homens param bem na minha frente.

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Lenira

“De repente a mosca salta e pousa na toalha branca. Você a espanta, sem que voe – uma

semente negra de mamão.”

Dinorá: novos mistérios, Dalton Trevisan

Ele pôs a garrafa de cachaça sobre a mesa e limpou, com a mão suja de graxa, o suor que lhe escorria no rosto e no pes-coço. Lenira serviu a comida, ressabiada. Enfrentar o marido bêbado era um teste de paciência para ela.

-Tá sem sal a carne, mulher!-Eu botei como tu gosta, Zé.-Mas eu tô dizendo que tá sem sal e pronto!-Se não quer comer bota fora, diabo!-Tu fala direito comigo...Ele se levantou e a encarou com raiva. Quem ela estava

pensando que era. A mulher, por sua vez, não baixou a cabeça. Apesar de tudo que passava na mão do marido, não lhe de-monstrava medo nenhum. Depois de uma pequena batalha de resistência, o homem a olhou de lado como se dissesse “isso não vai ficar assim” e continuou comendo, dando arrotos a cada dez segundos.

Lenira ficou limpando a casa durante a tarde. Quando ia lavar as cuecas encardidas do marido, bateram na porta.

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Implorou aos céus para que fosse um freguês trazendo roupas para serem lavadas. No entanto, o rapaz com o qual se depa-rou trazia uma grande mala, não com roupas, mas sim com facas para vender.

-Boa tarde, minha senhora. Tenho aqui belíssimas facas, que, além de serem baratíssimas, nunca perdem o fio. Gostaria de dar um olhadinha.

O vendedor não poupou os íssimos para valorizar as mer-cadorias. A mulher observou todas e, lembrando o fato do meio-dia, se interessou por uma que lhe pareceu a ideal para cortar ou matar porco.

Zé não foi ao trabalho: estava na casa da amante. Os dois, estirados na sala sobre um colchão duro, bebiam um copo de cachaça atrás do outro. Ficaram a tarde inteira na vagabun-dagem e, quando chegou a noite, ele foi embora, já que não gostava de jantar na casa dela - achava a comida horrorosa.

Perto de casa, fez silêncio. Queria pegar Lenira distraída e lhe dar uma surra – não tinha esquecido a afronta. Entrou pela porta da cozinha e pegou a faca nova sobre a pia. Vou assustar a mulher com isso aqui, murmurou. Porém, não a achou em casa. Cadê a desgraçada? Só pode que ela foi ali na fofoqueira.

A vizinha estava, como sempre, debruçada na janela. -Olha, vou falar a verdade. Eu vi ela saindo com um rapaz

bem novo que veio aí vender coisas e acho que ela foi embora com ele. E sabe que ela tá certa? Não existe mulher tão boba que vai aguentar um homem bêbado dentro de casa como tu.

Voltou para dentro chorando. Era uma vergonha perder a mulher (boa cozinheira) para qualquer um. Pegou de novo a faca de sobre a pia e, desesperado, olhando para sua grande barriga, decidiu o que tinha de fazer. Nesse mesmo instante, Lenira atravessava o portão do pátio, trazendo mais carne de porco a fim de fazer a comida preferida dele no jantar.

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Aprendizado

“As coisas estão no mundo só que eu preciso aprender”,

Paulinho da Viola

Cheguei na escola decidido a me declarar pra Aline. Era só nisso em que eu tinha pensado todo o fim de semana. Estava tão feliz porque tinha ouvido ela falar pras colegas que eu era bonito. Meu Deus! A menina mais linda da terceira série di-zendo isso... Eu me considerei o guri mais feliz do colégio. Já olhava até com ar superior pros outros colegas. A Aline estava gostando de mim.

Atravessei o portão da escola com o coração batendo for-te. E já fui falando pro Luís Fernando, meu melhor amigo, querendo dividir minha alegria com ele: eu e a Aline vamos namorar, sabia? Ele riu da minha cara e disse vou perguntar pra ela se é verdade.

Fiquei andando na quadra de futebol pensando como ia me declarar. Ia usar o manjado “tô gostando de ti” ou per-guntar “tu tá gostando de mim?”. Poderia também chegar na cara dura e beijar ela, como vi uma vez o Dudu fazendo. Bem, era diferente. Os dois namoravam, só não ficaram mais juntos porque pegaram ele roubando a secretaria e foi expulso.

Ela mesma, a minha deusa, apareceu na quadra seguida por quase todo o colégio. Quem tu tá pensando que é pra ficar espalhando que eu gosto de ti, hein?, disse, com o dedo

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na minha cara. Os colegas davam risadas e gritavam em coro: mentiroso, mentiroso. Quase chorando, consegui dizer que não tinha espalhado nada, só tinha falado pro Luís que a gente ia namorar porque eu tinha ouvido ela falar que eu era bonito. Namorar contigo, eu? Não tem espelho em casa não? Tu até que é bonitinho sim, mas é negro, e eu não namoro com negro, ouviu?

O tapa não doeu só no rosto.

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Escoriações

“Quando acordou, o dinossauro ainda estava lá.”

Augusto Monterroso

Acordou numa manhã de domingo e pensou: “Talvez Sartre esteja certo ou então o inferno está dentro de nós mesmos.” Depois atirou na mulher e nos filhos, mas não sobrou nenhu-ma bala para ele.

***

A enorme pedra rolou de cima do morro e matou crian-ças e velhos durante a tempestade. Seus corpos jaziam sob lo-nas pretas na rua principal. Perto dali, uma mulher – cujo filho sobreviveu à tragédia – gritava: “Deus é pai! Milagre! Foi a mão de Deus!”

***

Depois de cumprir seu dever cívico, foi beber cerveja com os amigos. Quando lhe perguntaram em quem votou, respon-deu:

- Não sei, me deu um branco.

***

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Começou com playmobil, depois tentou com os livros. Mas não conseguia criar seres ruins tão convincentes e acabou desistindo de ser Deus.

***

No velório coletivo, centenas de pessoas choram a perda de parentes e amigos. O acidente comoveu o país. Uma repór-ter da grande rede de televisão pergunta a uma mulher que perdeu irmãos, cunhadas e primos:

- Qual o sentimento que fica nessa hora?Comerciais, por favor.

***

O escritor escrevia uma história cujo protagonista era um escritor que também escrevia uma história cujo protagonista era outro escritor que escrevia uma história cujo protagonista era “o” escritor que escrevia “a” história em que “o” protago-nista era o próprio escritor que...

***

“Vou ali me suicidar e já volto!”, disse aos amigos, brin-cando.

A morte, porém, não entendeu a brincadeira.

***

Agora é tarde demais. Ele está nas últimas horas de vida, sem possibilidade de voltar. Não há mais nenhuma chance de ela pedir perdão. Fez o que fez, já era. Somos uns imbecis, os humanos, não aproveitamos o tempo presente, não avaliamos o passado e esquecemos o que pode acontecer no futuro. Ele

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bem que avisava, mas ela ignorava. Seu orgulho, a vontade de sair sempre por cima, ter sempre a razão, tudo isso estragou a vida de ambos. Adianta agora se arrepender?

***

Nas capas de todos os jornais a foto do goleador do time. O herói. O grande responsável pelo título inédito do clube. Na final, dois gols, vitória de virada. Um craque. Próxima parada, seleção brasileira.

Lê os jornais na cama enquanto almoça. Acordou há pou-co, pois a festa do título foi até altas horas. Sua mulher está fe-liz. Seus filhos, recém-vindos da escola, comentam que foram o centro das atenções e receberam muitos cumprimentos. Ele também não deveria estar feliz?

“Marcão recebeu o passe da direita e marcou um golaço, empatando a partida. Na segunda etapa, de cabeça, selou a vitória.” É o que dizem as matérias de quase todos os jornais do país.

Sim, mas quem fez o passe preciso nos pés do atacante? E a bola voou sozinha para o Marcão dar a cabeçada?

Às vezes, não nos contentamos em ser apenas escada.

***

Quando abriu o livro, o conto de Augusto Monterroso ainda estava lá.

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Serviço especial

“sentiu?/acredita agora?”,

Amor de verdade, Braúlio Tavares

O serviço estava quase pronto, mas a dona ainda não tinha gostado. Isso é serviço de negro mesmo! Não dei atenção pra o que ela falou, já estava acostumado a ser tratado assim. Ela sentou na cadeira e ficou falando a gaveta não pode ficar tão dura pra puxar. Tentava fazer o melhor que podia, mas o Má-rio, aquele loiro, sabe, que vem trabalhar com chapéu de pa-lha, fez a dita cuja com uma madeira empenada. Serviço de negro, ela repetiu. Quase disse pra ela que quem fez a pia foi um branco.

Que calor! ela disse e tirou a camiseta, ficando só de su-tiã. Porque não faz o mesmo, perguntou. Não posso, o patrão não deixa trabalhar sem camisa. Aqui quem manda sou. Ela mesma tirou a minha. Você é forte. Continuei meu serviço, estava louco pra ir embora, o pagode ia comer frouxo no bar do Dinho, mas ela sempre achava outro defeito. Se tem coisa que o senhor mesmo me ensinou foi ter paciência pra aguentar freguês chato. Eu disse amanhã, então, o cara que fez a pia vai arrumar porque eu não consigo. Negro não sabe fazer nada mesmo. Olha, dona, a senhora vai me desculpar, mas eu traba-lho nesse troço desde moleque e entendo do riscado. Entende nada, a única coisa que negro sabe fazer direito é sexo, ela

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disse e agarrou meu pau por cima das calças. Desculpa falar assim, mas foi o que aconteceu. Aí o bicho pegou, né? A coroa não era de se jogar fora e eu dei um trato nela.

A partir daí, não sei se o senhor se lembra, todo dia tinha algum serviço na casa dela e tinha que ser eu pra ir. A gente mesmo quebrava a cama ou o sofá e eu era chamado pra ar-rumar no outro dia.

Uma vez o marido chegou mais cedo e pegou a gente. Eu me assustei, mas ela disse fica frio e foi conversar com ele, que até estava calmo. Voltou ao que estava fazendo e o cara lá, olhando pra gente. Eu na minha, né, fazer o quê?

Outro dia cheguei cedo pra arrumar a mesa da cozinha e o coroa estava lá tomando café. Perguntou se ela era boa de cama. Eu disse o senhor devia saber mais do que eu. Me convi-dou pra acompanhar ele no café e contou sua história. O cara era brocha e eu me segurei pra não rir. Saiu pro trabalho e logo ela apareceu nua e já me agarrando. Ele te contou? Que era brocha, sim. É que ele quer que você venha morar com a gente. Morar? É, pra você satisfazer meus instintos sexuais todos os dias, segundo as próprias palavras dele, e vai ganhar um bom salário. Mais do que eu ganho na marcenaria?

Era uma festa todo dia. Comia, bebia e dormia às custas do corno. Quando ela saía, ficava grudado na TV a cabo ou ligava o rádio no último volume. Sentado no sofá, era só esti-car o braço e pegar na prateleira um litro de uísque ou martíni. Era a vida que qualquer vagabundo queria levar. Mas eu não era nenhum vagabundo.

Foi o que eu disse pra ela na nossa primeira discussão.

Me chamou de sem-vergonha porque ficava olhando pras mu-lheres na rua. Respondi que ninguém me mandava e ela se admirou. Como não? Você come, bebe na minha casa que nem

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um vagabundo, além do meu marido te pagar pra me atender e ainda acha que não me deve satisfação nenhuma. Eu disse não sou isso que você falou, pois eu trabalho muito, quer ver? E foi mais um longo dia de orgias.

Já fazia dois meses que eu morava com eles. Estava atira-do no sofá tomando uísque quando o marido chegou rindo. Estou curado! Ela entrou na sala nua e o homem, olha aqui. Abriu o zíper da calça e mostrou do que estava curado. Se virou pra mim e disse tá vendo negão vagabundo, pega aqui e sente. Eu disse tá me estranhando, corno? Pega aqui, ele repe-tiu e puxou meu braço. Daí não teve jeito, alcancei uma gar-rafa na prateleira e acertei direitinho a cabeça do cara. Ficou se contorcendo de dor. Não sou nem veado e nem vagabundo, seu porco racista, eu disse.

Por isso eu estou aqui de volta, vim falar com o senhor porque preciso trabalhar. Posso até ganhar menos do que an-tes, o que eu quero é provar que não sou nenhum vagabundo, não.

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A espera

“Y los muros de este infierno serán, así, cada día más herméticos”,

El túnel, Ernesto Sábato

Ao longe, escuta-se o som do carro de mensagens ao vivo. Uma voz deseja muitas felicidades para alguém. Aqui, a pou-cos metros, meu vizinho espanca sua mulher com um cabo de enxada. Muitos espectadores apoiam. Outros nada falam. O desespero dos seus filhos, pedindo que ele pare, é inútil. Bate calado, nem uma palavra de ódio, só o som das pauladas na cabeça.

Ela cessa os gritos. Ele para de bater. As crianças, porém, continuam chorando. No carro de som, outra voz diz que de-seja um futuro feliz para seu filho. No nosso mundo, ele joga seu instrumento no chão e se ajoelha, pegando a cabeça da mulher. Beija-a e se volta para os filhos. Um longo abraço em cada um. Agora é só esperar.

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Histórias para contar

“Devagar... as janelas olham.”

Cidadezinha qualquer, Carlos Drummond de Andrade

Gostaria de estar naquela tarde dentro do banco, quando tudo aconteceu. Como sempre, porém, não participo de coisas es-petaculares. Minha vida é sempre o mesmo marasmo. Mas ela participou e me contou tudo. A maneira como foi abordada pelos assaltantes, o dinheiro roubado e a mão de um deles que roçou nos seus seios. Enfim, ela terá assunto para uma vida inteira, seus filhos vão saber, seus netos e sucessivas gerações saberão que tiveram um parente distante que foi assaltado num banco. E para os meus netos, que histórias vou contar?

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Flagrante

“Mentem como a careca/mente ao pente”,

A implosão da mentira, Affonso Romano de Sant’anna

Se você não quiser ir junto na mamãe, eu vou sozinha. Você sabe que eu tenho jogo com meus amigos. Claro, claro, eles são mais importantes, né? Saiu batendo a porta e eu saltei para o telefone.

Dez minutos depois já estava no bar, vazio para uma sex-ta-feira à tardinha. Fernanda chegou irritada com um bando de maconheiros que ficaram mexendo com ela. Eles não mor-dem, brinquei. Perguntou o que você quer comigo? Sei lá, a gente precisa esclarecer algumas coisas. Por mim não precisa esclarecer nada.

O Marquinhos veio nos atender e eu pedi o de sempre. Ela não quis nada, mas mandei trazer um refrigerante. Vamos, fala logo que eu tenho mais o que fazer. Fiquei calado, esperava uma melhor receptividade, porém resolvi abrir a boca. Foi um erro tudo o que eu fiz e gostaria que a gente voltasse.

Ela riu e disse idiota. Eu concordei. Você acha que eu vou largar a vida que eu tenho agora depois de cinco anos. Tu não me ama?, perguntei. Amo e você sabe disso. Pois então? Foi a vez de ela ficar calada. Argumentos não lhe faltariam, como o marido rico, a loja, o filho. Sei lá, não dá mais, pronto. Além disso você é casado também. Mas por pouco tempo, respondi.

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Daqui a meia hora vou flagrar minha mulher me traindo com o seu marido.

Os carros na frente da casa indicavam o grau de vida dos presentes na festa. Da rua se ouvia os gritos de tira, tira. Nos aproximamos para olhar pela janela. No meio da sala, uma prostituta se despia observada por três casais nus sentados no sofá. Reconhecemos minha mulher e o marido de Fernanda abraçados. Vamos embora, ela disse. Espera um pouco que agora vem a melhor parte. As mulheres rodearam a prostitu-ta e começaram a bater nela com um chicote. Fernanda saiu correndo para dentro do Fusca e eu me dirigi à porta da casa.

Bati e subitamente se fez silêncio lá dentro. A prostituta veio atender. Entrei derrubando-a e encontrei todos na sala se vestindo assustados. Minha mulher me olhou e não disse nada. Um dos homens quis me agredir, mas ela impediu. Sua mulher está esperando lá fora, disse ao marido de Fernanda. Olhou através da janela e se desesperou. Me ajudem a fugir, pelo amor de Deus! Que escândalo vai ser. Eu disse ela já viu tudo. Da próxima vez pelo menos fechem a cortina.

Voltei ao carro e Fernanda estava chorando. Fui abraçá--la, porém me repeliu. Fica longe de mim. Eu entendo que o choque foi grande, mas agora podemos viver juntos, não pre-cisa mais me desprezar. Por acaso eu falei que vou ficar com você? Falei?

É segunda-feira. Nas páginas sociais do jornal vejo a foto com a legenda: deputado e sua encantadora senhora no jantar familiar do prefeito.

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Vozes

“Sou, na verdade, o Lobo da Estepe, como me digo tantas vezes — aquele animal extraviado que não encontra abrigo, nem alegria, nem alimento,

num mundo que lhe é estranho e incompreensível.”

O lobo da estepe, Hermann Hesse

Fazia mais ou menos uma semana que não a visitava, mas não era por falta de tempo. Eu realmente não queria vê-la, desde a última vez em que ela uivou como um lobo. Meu irmão, esse sim a continuava visitando e depois saía dizendo para todo mundo hoje a tia imitou uma galinha, hoje ela imitou um gato, hoje ela imitou um porco. Vale lembrar que chamávamos isso tudo de imitação por não acharmos outro nome para a doen-ça dela. Se é que poderíamos chamar o que ela tinha de uma simples doença.

Tudo começou há alguns anos, quando meu avô a pegou nua no mato, se beijando com uma mulher. Eu presenciei tudo, pois as estava espiando. O berro que ele deu foi horrível, toda cidade ouviu. A tia ficou muda, olhando assustada para o vovô e aquele dia apanhou uma surra inesquecível. Até hoje ouço o barulho do relho batendo no seu corpo. Ela não emitia um único grito. Quando o vovô parou, ela voltou seu rosto para ele e relinchou.

Nunca mais se falou no caso. A outra mulher, desconheci-da de todos, sumiu. Meu avô alugou uma casinha e colocou a

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tia lá, sob os cuidados de uma enfermeira insuportável. Orde-nou que fôssemos visitá-la todos os dias.

No primeiro dia de visita, ela cacarejou, alegre, e assim era sempre. Mas um dia, quando o vovô nos acompanhou pela primeira e única vez, ela urrou ferozmente. Ele nunca mais quis vê-la.

Mesmo com medo, fui obrigado pelo vovô a continuar as visitas. Ela, porém, se mostrava mansa e miava para mim. Ten-tava conversar alguma coisa com ela. Dizia quais os últimos lançamentos na livraria e, conforme o autor que eu citava, ela emitia um ruído diferente. Ela adorava ler. Latiu de um jeito que demonstrava felicidade quando eu disse uma vez que o Ferreira Gullar lançara um livro novo. Por isso, voltei no ou-tro dia com um exemplar de Vozes. Não sei se ela sabia ainda ler, talvez fosse uma maneira de, quem sabe, fazer com que ela voltasse ao normal, que me dissesse está certo, eu estava só fazendo um protesto contra papai, mas, como eu gosto de você, prometo não imitar mais nenhum bicho quando estiver-mos só. Claro que isso nunca aconteceria, pois a bruxa, digo, a enfermeira que cuidava dela, nunca nos deixava sozinhos. Descobriria algum dia a verdade?

Ontem uma mulher se hospedou no único hotel da cida-de. Meu irmão me avisou que era muito bonita, porém acha-va que poderia ser uma prostituta. Apesar das roupas que usava, Seu Avelino, o dono do hotel não se negou a aceitá--la, visto que quase ninguém aparecia por aquelas bandas. E como era de praxe bisbilhotarmos quando aparecia alguém diferente na cidade, me dirigi à praça em frente ao estabele-cimento. Quando cheguei, Seu Avelino estava na porta com a mulher e, ao me ver, ele apontou em minha direção. Foi nesse momento que a reconheci.

Sem meu avô saber, por motivos óbvios, levei-a para ver a tia. Contei tudo que aconteceu, preparando-a para o que ia

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ver. A mulher chorava e disse se sentir culpada por jamais ter voltado depois de anos. Quem sabe ela fique curada ao ver a senhora, eu disse. É, quem sabe, ela concordou, com um sorri-so estranho nos lábios.

Quando a mulher entrou, titia começou a uivar e a outra, sorrindo, uivava também. Fiquei alguns minutos observando--as sem dizer palavra nenhuma, espantado com o que estava vendo. Se minha tia miava, a mulher miava também, se minha tia cacarejava, a outra cacarejava da mesma forma. A enfer-meira disse que iria avisar meu avô e que era para eu cuidar para elas não fugirem.

Logo que a enfermeira saiu, as duas se abraçaram, sem-pre emitindo diferentes vozes de animais. Despiram-se, não se importando com o fato de eu vê-las nuas. Resolvi deixá-las sozinhas e fui esperar na rua. Os gritos foram ficando cada vez mais altos. Depois, diminuíram de intensidade, até ces-sarem completamente. Entrei, mas elas não estavam mais na casa. No chão, apenas as roupas. Horas depois, toda a cidade começou a ouvir os mugidos, os zumbidos, os bramidos, os urros, os cantos, os gemidos, que até hoje continuam ecoando no fundo da floresta.

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Meu irmão

“Después del almuerzo yo hubiera querido quedarme em mi cuarto leyendo, pero papá y mamá vinieron casi en seguida a decirme que esa

tarde tenía que llevarlo de paseo.”

Final de juego, Julio Cortázar

Estava com a barba muito grande! Parecia o Saddam Hussein quando foi achado pelos americanos no seu esconderijo. O chapéu escondia os cabelos crescidos. Lembro que uma vez ele tinha dito que os metaleiros pareciam bichas com suas ca-beleiras. Não falei isso para ele, pois poderia querer me bater.

- Como tu tá conseguindo te acostumar com esse lugar? - Como disse o Ortega y Gasset, o homem é suas circuns-

tâncias, foi mais ou menos isso o que ele escreveu. Eu ia acrescentar que foi ele que criou essa circunstância,

mas fiquei quieto mais uma vez.- Como tá a mamãe? - Ela tá abatida e com muita saudade de ti.- Sei, acredito...Ele não perguntou nem pelo papai, nem pela mana. Mas

se perguntasse diria a verdade.- O que tu trouxe pra mim?Tirei a comida de uma das sacolas e ele nem quis conferir

o que tinha. Pegou os livros que havia na outra e sorriu.- Sábato, Graciliano, Roth, faltou o Camus.

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- Não tinha, mas encomendei alguns.- Obrigado.Era diferente, o meu irmão. Enquanto todos brincavam na

rua, ele ficava no seu quarto, lendo. Mais tarde, enquanto os outros namoravam, ele ficava no seu quarto, lendo. Por fim, enquanto os outros já estavam casados, ele permanecia sozi-nho no seu quarto, lendo. Até que um dia nosso pai disse que ele tinha que botar um serviço no corpo e terminar os estudos na faculdade, já que os outros já estavam até formados.

- Ora, o que me importam os outros, ele respondia.Mas ele acabou obedecendo e terminou o curso de Direi-

to, apesar de ficar a maior parte do tempo lendo seus livros em sala de aula. Passou na prova da OAB e foi trabalhar em um escritório. Não durou muito, no entanto, pois deixava de lado os processos para mergulhar num Kafka ou num Melville. Pre-feria não fazer o que o chefe lhe mandava.

- Tu vai voltar, mano?- Claro que não. Depois de tudo que aconteceu, não tenho

mais condições de viver lá.Ele ficou alguns meses sem trabalhar até que o pai disse

para ele arrumar um emprego de novo. Trabalhar como advo-gado ele não queria mais. Estava atrás de um emprego mais simples, porém não conseguia nada por causa da sua forma-ção. Até que, ao ler um anúncio, viu que precisavam de um porteiro num condomínio. Pediam o Ensino Médio, mas ele omitiria que já tinha diploma no Ensino Superior. Sempre quis um emprego como esse para ficar o tempo todo lendo.

- E a Márcia?Ele fez a pergunta que eu não queria responder. Diante do

meu silêncio, ele repetiu a pergunta:- E a Márcia?

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No condomínio morava uma mulher que logo chamou a atenção dele, pois estava sempre com uma pilha de livros nos braços. Num dia em que o volume era maior, ele a ajudou e aproveitou para espiar os títulos: todos eram de literatura. Foi amor ao primeiro livro.

- Tá bem, eu acho.- Sim, mas está bem em que sentido.- Ah, não sei...- O que tu tá me escondendo, hein?Foi a primeira vez em que entrei no quarto dele e ele não

estava lendo. Estava se arrumando para sair e até se perfu-mava. Fui pedir algumas revistinhas do Super-Homem. Não só me emprestou como disse que iria me dar de presente sua coleção completa. Estava feliz.

- Ela tá namorando o Vítor.- Ah, bom.Não, não falei a verdade para ele. Não sei que atitude ele

iria tomar. O melhor mesmo é ficar calado quando as circuns-tâncias exigem.

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Como sempre

“assim é a dança:/uma fila fica parada/enquanto a outra não avança”,

Memorial da gaveta, Ricardo Richter

Logo ao acordar sente que, mais uma vez, não será seu dia: uma goteira bem em cima do criado-mudo molhou toda sua Bíblia. Apressado – o ônibus sai às seis horas – derruba café na camisa novinha. Vai trocá-la. Mas quando sai de casa pisa numa poça de água acumulada da chuva e molha suas calças. “Azar”, pensa, “vou assim mesmo”.

No ônibus retoma a conversa de ontem com a sua vizi-nha que reclama do assédio do patrão. Diz que já pensou em denunciá-lo, porém tem medo de perder o emprego. “Se ves-tindo assim”, ele pensa, olhando para o decote da mulher, “é ela quem deveria ser processada”.

Desce no ponto às sete e meia e vai direto para o balcão da loja, dá bom dia aos colegas e liga seu radinho de pi-lha. Ouve as mesmas vozes, as mesmas notícias, os mesmos comentários. Também atende aos mesmos fregueses com a mesma atenção de sempre. Lê o mesmo jornal, as mesmas notícias. Ao meio-dia, come a mesma comida. À tarde, muda alguma coisa?

Às cinco e meia, antes de sair, recebe um telefonema. A mesma voz o convida para jantar. Como sempre, aceita.

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No restaurante de sempre, pede o de sempre. “Para dois, não esqueça.” O garçom sorri. Come sua parte, lamentando mais uma vez por ela não aparecer.

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O dia em que a terra parou

“a noite tem peso/e tem feridas”,

Noite em chamas, Romar Beling

São mais ou menos oito da matina e estou fechando o primei-ro baseado do dia, ouvindo o Raul: “O dia em que a Terra parou”. A mulher do meu lado ainda dorme. Tento acordá-la: “Tu não trabalha, não?”. Ouço apenas um grunhido que tan-to pode significar um “sim” ou um “não enche, porra, que eu quero dormir”.

Não sei nem seu nome. Eu a encontrei ontem à noite na Imigrante com uma long neck na mão, recitando Bilac (ou cantando a música da Paula Toller, não sei): “...direis ouvir estrelas, certo perdeste o senso”. Perguntou se eu não tinha um baseado, eu disse que só em casa. Viemos pra cá, mas quando chegamos, ela desabou na cama dizendo “boa noite, amor” e apagou.

Olho pro calendário, dia 11, meu aniversário. Tenho al-guma coisa pra comemorar? Será que vai aparecer alguém da família hoje à noite ou ninguém vai vir porque eles sabem que eu não vou pagar a festa sozinho? Querem só boca livre. Os amigos a mesma coisa. Melhor dizendo, meus conhecidos, já que amigo mesmo é como baseado bom, só consegue quem tem dinheiro. Aliás, essa erva ainda não fez efeito. Será que o Índio me vendeu bosta de vaca?

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Sento na frente da cama e observo a mulher. Não acredito que dormi ao lado dela e não fiz nada. Olha só que corpo. Ao menos não sou um desses que pegam mulher e estrup...estu-pa...Puta merda! Acho que tão começando as pauladas ficar olhando pra esse rabo levantado tá me deixando louco ou é o efeito da erva ou são os dois juntos ou tô sentindo sono ah sei lá oh a TV não lembro se tinha ligado ela ihhh! oh as torres do congresso bah! dois aviões bateram nelas ah ah ah e aquela corja de ladrões senadores deputados bah tá desabando tudo que fumaceira que fumaceira aqui também tem fumaceira fogo na bomba bah o que vai ser do futuro das crianças o programa da Angélica tá muito louco.

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Concurso literário

“Todo el día deprimido, pero escribiendo y leyendo como una locomotora.”

Los detectives salvajes, Roberto Bolaño

Já na derrota do primeiro concurso, pensou em desistir. Não por se considerar um escritor medíocre, bem pelo contrário. Achava, ou melhor, tinha certeza de que o concurso não estava a sua altura. Continuou, porém, e novas derrotas se sucediam. Quando tinha acesso à leitura dos contos premiados – muito ruins na sua opinião –, ficava com a sensação de que tudo não passava de panelinha, jogo de cartas marcadas ou qualquer outro lugar-comum que qualificasse os eventos. Compadrio e concursos fajutos os males da literatura são. E os pseudô-nimos não serviam justamente para evitar tudo isso? Ah, vai saber se os jurados não conheciam antes o conto que iriam analisar. Como morava no interior, não tinha acesso à vida li-terária da capital, não conhecia ninguém do meio que pudesse ler seu conto. Sua arte era realmente solitária.

Para ele, no seu quarto, sentado na escrivaninha e rodea-do por centenas de livros, o ritmo da máquina sendo espanca-da era uma metáfora de uma fábrica onde era construída uma obra-prima. Uma não, várias. Mal sabia a humanidade o que estava sendo gestado ali. Mal sabiam os jurados dos concursos que passavam por suas mãos, sem lerem com atenção por não

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terem tempo, contos que colocariam o Brasil no mapa das pu-blicações mundiais e até daria o primeiro Nobel de Literatura para um brasileiro.

Agora seria o último. Apostou todas as fichas em um con-to que fora reescrito muitas vezes em busca da perfeição. A história, narrando o cotidiano de um casal já idoso abalado pela chegada de uma nova empregada, fora intitulada “A últi-ma tentativa”. No caso do enredo, a última tentativa era a do velho ao dar em cima daquela que tinha como função limpar a casa, mas que acabou trazendo mais sujeira ao aceitar as investidas do patrão. Para o escritor, a última tentativa de ser premiado.

Dentro do prazo limite, com o original dentro de uma pasta, dirigiu-se primeiro ao xerox mais próximo e tirou cinco cópias do conto. Depois foi à papelaria e comprou um en-velope, grande e pardo, e outro pequeno da mesma cor. No primeiro, colocou as cópias e no segundo os seus dados pes-soais. Dirigiu-se à agência de correios, escreveu o endereço do concurso no envelope grande, junto com seu pseudônimo. Co-lou com goma arábica os envelopes (um dos últimos lugares do mundo que possuem esse tipo de cola). Retirou a senha e esperou ser atendido. Pagou a taxa referente à entrega rápida, deixou com a atendente o material e saiu esperançoso.

Aguardando o resultado, quase não escreveu. Leu muito, como sempre, e também ficava imaginando o que fazer com o prêmio. Havia alguma coisa lá dentro dele que dizia “dessa vez vai”. Via seu nome estampado no jornal da cidade, quem sabe uma foto dele rodeado por livros. Seria uma celebridade na sua terra, na região, no estado, no país. Logo, logo, seu primeiro livro o colocaria como um dos grandes nomes da literatura, ou melhor, como o grande escritor nacional.

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Até que no tão esperado dia, recebeu um e-mail da orga-nização do concurso. Seu conto ficara em 1º lugar. Imaginava o futuro promissor, a glória literária, as traduções, novos prê-mios, a Academia. Logo deu a notícia ao editor do caderno de variedades do jornal local. Avisou as poucas pessoas com as quais mantinha contato. Ao mundo, o tempo e vento se encar-regariam de espalhar a boa nova.

Na premiação, poucas pessoas. Recebeu o dinheiro, tirou fotos, foi cumprimentado. O maior jornal do estado, porém, não noticiou. O jornal local deu uma pequena nota, com uma foto antiga dele junto com outros escritores da cidade.

O tempo e o vento o traíram. Sua obra não se tornou co-nhecida. Tinha que escolher entre cem anos de solidão ou uma viagem ao fim da noite. Decidiu pela viagem sem volta.

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Questão de talento

para Márcio Paz

Posso começar? Ok, bem, alô, alô, 1, 2, teste. Tá bom? Vamos lá, então. Antes de mais nada, agradeço o espaço que não me deram, mas estou agora utilizando para dizer que o talento é uma coisa que não se conquista e sim se nasce com ele. Eu nas-ci com talento, mas parece que as pessoas têm inveja e por isso não deixam a gente mostrar. Daí resolvi tomar esta atitude, e agora vocês vão ouvir a minha música que o programador da rádio vai rodar. Antes eu queria que a rádio rodasse pelo menos uma música minha, mandei meu CD, mas tem um cara aqui que não foi com a minha cara, eu acho. Então a única ideia que eu tive foi invadir a rádio e obrigar os caras a bo-tarem meu som. Eu estou armado, mas não quero machucar ninguém, quero só mostrar meu talento. Não tô nem aí pro sucesso, quero só mostrar minha arte pra todas as pessoas. Então vocês vão ouvir todo o CD que eu gravei com minha banda e entre uma música e outra vou expressar minha filoso-fia de vida pra vocês, valeu. Então, aí vai a primeira.

...

Que som, né? Pois justamente essa letra expressa o que eu sinto contra as rádios que só rodam os caras que pagam jabá,

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tá ligado? Esta rádio até que toca um lance alternativo e tal, só não queriam rolar o meu som. Vamos logo para a próxima música.

...

Bem, esse é um som de quem tá revoltado com os polí-ticos, e todo brasileiro sempre tá. Mas eu queria que vocês reparassem na linha de baixo do próximo som, é do caralho.

...

Ouviram com atenção? Pois é, pra mostrar que meu som tem uma qualidade musical muito grande. Repito, as pessoas que nascem com talento como eu têm que ter espaço nas rá-dios. Próxima música.

...

Bem, esse som eu fiz quando minha mina me traiu e tal, mas não tem nada a ver com esse som de corno dos sertanejos ou sertanojos. O estilo é mais metafórico, não sei se vocês per-ceberam, mas a serpente da letra... bem, se vou explicar não tem graça, né? A que vai rolar agora fala sobre a TV e tem o título Tenda dos Varais, se ligaram nas iniciais? Ninguém teve essa ideia ainda.

...

Os caras da banda disseram que a gente não devia ter gra-vado essa música sobre a TV porque fala sobre a Globo e aí a gente nunca ia poder tocar lá. E eu com isso, eu disse, não quero fazer sucesso na TV, o que vale e expressar a arte da mú-sica que deve ser ouvida e se o cara quer ver a banda tem que ir nos shows e tal. Vou rolar a próxima, mas antes queria dizer que é bem mais a fudê quando não tem propaganda na rádio.

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Olha só quanto tempo a gente tá ouvindo música sem aquelas musiquinhas babacas que só servem pra enganar os otários e comprar os produtos que eles querem vender. Mas vamos pra faixa seguinte.

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Por causa dessa música que rolou eu comprei uma briga com minha mãe, porque meto o pau na religião, principalmente na porra da Igreja Universal e também na Católica, mas é mais os caras que tomam conta dessas igrejas, só querem dinheiro. Bem, só quero avisar pra quem tá ligando pra cá que eu não vou atender, e pros pés-de-porco que tão ali no outro lado do vidro me vendo, que a próxima música é uma homenagem a vocês. E tô avisando, se vocês entrarem antes de terminar meu CD, eu mando bala no cara aqui, hein?

...

Tudo que eu disse nesse som é verdade, tá ligado, os brigar-dianos só querem dar cacetada na gente e assim acabam per-dendo o controle da lei, tá ligado. Os caras que tão me olhando ali, não querem nem saber se eu vou me entregar depois, quan-do terminar meu CD vão entrar dando porrada, depois vão di-zer que foi preciso porque o elemento reagiu à prisão, ah, vão se fudê. Agora o último som é bem deprê, depois das pauladas sonoras, vamos descansar o cabeção.

...

Viram aí, a música fala de suicídio e tal, do artista que não é compreendido em vida e resolve se matar porque tem certeza que fará sucesso depois de morto. É isso aí rapaziada, com isso vou me despedindo, e espero que vocês comprem o CD e façam de mim e da minha banda um sucesso e adeus pra toda minha família e tal. E aí vai o último som que eu faço em vida.

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Este livro foi composto em Sabon LT Std pelaEditora Multifoco e impresso em papel pólen 90 g/m².