art31v20
-
Upload
cristinarezen5278 -
Category
Documents
-
view
215 -
download
0
Transcript of art31v20
-
7/31/2019 art31v20
1/11
Rev. eletrnica Mestr. Educ. Ambient. ISSN 1517-1256, v. 20, janeiro a junho de 2008
477
Universidade Federal do Rio Grande - FURG
ISSN 1517-1256
Programa de Ps-Graduao em Educao Ambiental
Revista Eletrnica do Mestrado em Educao Ambiental
Revista do PPGEA/FURG-RS
Volume 20, janeiro a junho de 2008
TRAANDO RELAES ENTRE O CONHECIMENTO ECOLGICOTRADICIONAL E A TEORIA DA COMPLEXIDADE
Cntia Pereira Barenho1Margareth Copertino2
Humberto Calloni3
RESUMOOs estudos acerca da Complexidade vm subsidiando diversas pesquisas naacademia/universidade, colaborando no relacionar-integrar conhecimentos em suas pesquisas.Para tanto, buscar-se-, neste artigo, discutir o integrar e o relacionar saberes atravs doConhecimento Ecolgico Tradicional, um dos objetos de estudo da Etnoecologia, trazendo aabordagem sobre Complexidade, desenvolvida principalmente por Edgar Morin, parasubsidiar a discusso. Entendendo-se que h uma grande necessidade em articularconhecimento ecolgico cientfico e tradicional, percebe-se na Complexidade - abordagemtransdisciplinar por essncia - elementos que fortalecem o campo da investigao emEtnocincia. Os diferentes saberes e conhecimentos acerca da realidade aos poucos tm sidoresgatados e considerados para o estudo e compreenso dos ecossistemas, contribuindo para asuperao da idia de que a cincia convencional a nica capaz de resolver os problemasassociados ao manejo e conservao dos recursos naturais. Nesse sentido a Etnoecologia, em
1 Programa de Ps-graduao em Educao Ambiental, Fundao Universidade Federal do Rio Grande c.p. 474 -CEP 96201-900 - Rio Grande RS - Brasil; Licenciada e Bacharel em Cincias Biolgicas;[email protected] Lab. Ecologia Vegetal Costeira, Depto. Oceanografia, Fundao Universidade do Rio Grande; Doutora emEcologia Marinha, [email protected] Professor do Departamento de Educao e Cincias do Comportamento (DECC/FURG); Doutor em Educaopela Universidade Federal do Rio Grande do Sul/UFRGS; [email protected]
-
7/31/2019 art31v20
2/11
Rev. eletrnica Mestr. Educ. Ambient. ISSN 1517-1256, v. 20, janeiro a junho de 2008
478
especial o CET, vem se firmando como um novo campo de investigao de formasalternativas de conhecimento ecolgico.Palavras-chave: Conhecimento Ecolgico Tradicional, Complexidade e Etnoecologia.
ABSTRACTStudies regarding Complexity have been subsidizing several academic/university spaces,collaborating to relate-integrate knowledge in its researches. For that, in this article, it will bediscussed the integrate and the relate knowledge through the Traditional EcologicalKnowledge, one of the subjects studied in Ethnoecology, bringing the Complexity approachdeveloped by Edgar Morin, specially, for the discussion. Being aware that there is a greatnecessity to articulate ecological, scientific and traditional knowledge it is perceived inComplexity transdisciplinary approach by essence instruments that strengthen theinvestigating field of Ethnoscience. The different knowledge regarding reality have beenslowly rescued and considered to study and understand ecosystems, contributing to overcome
the idea that conventional science is the only capable of solving the problems associated tonatural resources management and conservation. It is in this way that Ethnoecology,especially TEK, has been standing as a "new" field to investigate alternative forms ofecological knowledge.Keywords: Traditional Ecological Knowledge, Complexity and Ethnoecology.
Premissas do conhecimento ecolgico tradicional
A Etnocincia pode ser entendida como uma etnografia da cincia do outro,
construda a partir de um referencial da academia (DOlne Campos, 2001). Encontramos no
Manuale de Etnoscienzia de Cardona (1985), a referncia da Etnocincia como um campo
onde:
todas as formas de classificao que o homem escolheu para dar ordem enome quilo que ele v em torno de si so substancialmente cientficas, semais no fosse pelo sentido bvio atravs do qual o substantivo scientiaderiva de scio, sei, e, portanto toda organizao do nosso conhecimento uma scientia; cada uma responde uma fundamental exigncia do homem,aquele de reencontrar-se, medir-se, conhecer-se, dar-se ordem medindo,
conhecendo, ordenando tudo o que se encontra em torno, semelhante ou noa ele (Cardona apud DOlne Campos, 2006).
As primeiras pesquisas, neste campo, estiveram relacionadas ao conhecimento de
plantas de interesse econmico, principalmente na pesquisa de plantas medicinais
(etnobotnica), sendo ainda uma das reas mais expressivas (Hanasaki, 2006). Tambm
aparece com freqncia nos estudos dos recursos marinhos e pesqueiros, atravs da
etnoictiologia (DOlne Campos, 2001). Uma outra etno a etnobiologia, com a qual Darrell
Posey trouxe diversas contribuies para o campo da biologia e antropologia, e que secaracteriza como o estudo do papel da natureza no sistema de crenas e da adaptao do
-
7/31/2019 art31v20
3/11
Rev. eletrnica Mestr. Educ. Ambient. ISSN 1517-1256, v. 20, janeiro a junho de 2008
479
homem a determinados ambientes; relaciona-se com a ecologia humana, mas enfatiza as
categorias e conceitos cognitivos utilizados pelos povos em estudo (Posey, 1987:15).
Posteriormente a abordagem etnoecolgica4 emergiu, ampliando o dilogo entre as cincias
naturais e cincias sociais na rea de ecologia (Marques, 2001). A etnoecologia pode ser
entendida como:
Campo de pesquisa (cientfica) transdisciplinar que estuda os pensamentos(conhecimentos e crenas), sentimentos e comportamentos que intermediamas interaes entre as populaes humanas que os possuem e os demaiselementos dos ecossistemas que as incluem, bem como os impactos dadecorrentes. (Marques, 2001:37).
A etnoecologia entende o ambiente como constitudo de seres, saberes, relaes e
cultura, e busca resgatar os saberes no intuito relacion-los aos conhecimentos cientficos. Ou
seja, ela traz para a discusso acadmica a idia de que o manejo e o conhecimento dos
ecossistemas significa, em ltima instncia, uma relao de conhecimento e ao entre as
populaes e seu ambiente (Diegues, 1996).
A partir do uso dos recursos naturais, na reproduo de seu modo de vida, as
populaes tradicionais construram um territrio rico em diversidade biolgica e cultural
(Diegues, 2004). E mais, estas populaes adquiriram conhecimento prprio e
conseqentemente tradicional, sobre o ambiente no qual vivem.Esse conhecimento, denominado por muitos antroplogos e etnocientistas como
Conhecimento Ecolgico Tradicional (CET), caracteriza-se como um sistema complexo de
saberes, compreenses, hbitos e crenas, oriundos da vivncia de uma populao tradicional
com o seu ambiente (Berkes, 2003). O CET um corpo cumulativo de conhecimentos e
crenas, desenvolvido por geraes e transmitido culturalmente, a respeito das relaes dos
seres vivos (incluindo humanos) entre si e com seu ambiente (Berkes, 1993). Portanto, o CET
um atributo de sociedades que possuem uma continuidade histrica em prticas tradicionaisde utilizao dos recursos naturais.
Berkes (2003) afirma que a lio fundamental do CET que, para as populaes
tradicionais, a viso de mundo e suas crenas so essenciais na manuteno do equilbrio
entre estas e seu ambiente natural. Nos sistemas de CET existe, quase que universalmente,
uma tica de no-dominao e de respeito sobre as relaes humanos-natureza, uma certa
ecologia sagrada, onde as crenas so parte componente do CET.
4 Cabe ressaltar que h uma certa divergncia, devido criao de vrias etno-disciplinas, quase to numerosas,como os compartimentos disciplinares da cincia instituda (DOlne Campos, 2006). Porm, aqui buscaremos atransdisciplinaridade, ou seja, trabalharemos via integrao dos principais campos tericos utilizados na pesquisa(N.A).
-
7/31/2019 art31v20
4/11
Rev. eletrnica Mestr. Educ. Ambient. ISSN 1517-1256, v. 20, janeiro a junho de 2008
480
Em Diegues (1996) nos apresentada, numa perspectiva marxista, o conceito de
culturas tradicionais como aquelas associadas a modos de produo pr-capitalistas, ou seja,
sociedades em que o trabalho ainda no se tornou uma mercadoria; onde h grande
dependncia dos elementos naturais e dos ciclos da natureza. A dependncia do mercado
existe, porm, no total. Diegues afirma que:
essas sociedades desenvolveram formas particulares de manejo dos recursosnaturais que no visam diretamente ao lucro, mas a reproduo social ecultural, como tambm percepes e representaes em relao ao mundonatural marcadas pela idia de associao com a natureza e dependncia deseus ciclos (Diegues, 1996:82).
Nesse sentido, a tradio entendida no como algo imutvel, mas como um processo
histrico no qual elementos da cultura moderna so continuamente reinterpretados e
incorporados ao modo de vida:
as culturas tradicionais no so estticas, esto em constante mudana sejapor fatores endgenos ou exgenos, sem que por isso deixem de estarinseridas em um modo de produo que denominamos de pequena produomercantil. A assimilao de determinados padres de consumo da sociedadenos pases capitalistas perifricos no significa necessariamente mudanaradical de padres culturais bsicos, uma vez que toda cultura temcapacidade de assimilar elementos culturais externos (Diegues, 2004:40).
Enfim, percebe-se que a abordagem inter e transdisciplinar5 presente na etnoecologia
vai ao encontro da abordagem complexa, onde na busca do integrar-relacionar os diferentes
saberes, vislumbra-se uma compreenso do todo menos fragmentria.
Complexificando a etnoecologia
Na teoria da complexidade encontramos diversos aspectos e caractersticas, sobretudo
em Edgar Morin, que enunciam uma reforma no pensamento, uma mudana do paradigma
cientfico clssico. Discutindo sobre essa reforma, Morin (1999) fala que a complexidade um pensamento que une. Por isso a noo de complexidade to expressiva, j que complexus
significa o que tecido junto (Morin, 1999). Tal autor tambm afirma que o pensamento
complexo o pensamento que se esfora para unir, no na confuso, mas operando
diferenciaes. Ou seja, unir no significa homogeneizar, mas saber distinguir as diferentes
vertentes que constituem um determinado pensamento. identificar nas relaes existentes no
5 Na transdisciplinaridade o objeto de estudo transcende as delimitaes das disciplinas. Nesta existe um dilogofundamental entre os diversos nveis de conhecimento cientfico e filosfico, onde a idia de disciplina perde suaespecificidade, dando lugar a um trnsito de saberes no aderentes a mtodos ou conceitos preestabelecidos, masque se produz e reproduz luz dos encontros dialgicos entre os conhecimentos (Calloni, 2006).
-
7/31/2019 art31v20
5/11
Rev. eletrnica Mestr. Educ. Ambient. ISSN 1517-1256, v. 20, janeiro a junho de 2008
481
mundo, a diversidade, sejam elas, culturais, histricas, tnicas ou ambientais. E tambm
identificar que o mundo mundo porque esse sistema diverso de relaes ora se une, ora de
distingue, ora se distancia, ora se complementa. O pensamento complexo no vem para
significar tais relaes, mas para evidenciar que esse sistema de relaes est a e no pode ser
subjugado, complementa o filsofo.
Morin identifica a Ecologia como uma cincia sistmica porque tem seu ncleo na
noo de ecossistema, isto , nas interaes entre os diferentes seres vivos, vegetais, animais e
unicelulares (Morin, 1999). Mais adiante, o autor francs afirma que o objeto da cincia o
sistema e que, no caso da ecologia-cincia, esta descobriu isto espontaneamente6 no final
dos anos 30, sendo que as demais cincias ainda esto para fazer essa revoluo (Morin,
1999).Morin parece corroborar com alguns autores do campo terico da ecologia. Por
exemplo, em Ricklefs, ecologia vista como cincia pela qual estudamos como os
organismos (animais, plantas e micrbios) interagem entre si e com o mundo natural
(Ricklefs, 2003). Tambm encontramos no trabalho Ernst Haeckel (1870) apontamentos
significativos sobre a ecologia-cincia:
Por ecologia, queremos dizer o corpo do conhecimento referente economiada natureza - a investigao das relaes totais dos animais tanto com seu
ambiente orgnico quanto com seu ambiente inorgnico; incluindo, acima detudo, suas relaes amigveis e no amigveis com aqueles animais e plantascom os quais vem direta ou indiretamente entrar em contato - numa palavra,ecologia o estudo de todas as inter-relaes complexas denominadas porDarwin como as condies de luta pela existncia (Haeckel apud Ricklefs,2003: 7).
Mesmo possuindo uma viso terica sistmica, muitos criticam a cincia ecologia,
devido esta ter se preocupado pouco com as questes efetivamente humanas. Hans Jonas
entende que a ecologia a cincia do meio ambiente. Para o filsofo alemo, o ensinamento
da ecologia ocorre em face da vulnerabilidade da natureza provocada pela interveno tcnica
do homem. Tcnica essa que modificou inteiramente a representao que temos de ns
mesmos como fato causal do complexo sistema das coisas (Jonas, 2006:39). Para Berkes, a
ecologia ainda se configura como uma cincia reducionista, embora j existam abordagens
mais recentes que proporcionem uma nova e mais ampla viso do planeta, onde seus
ecossistemas esto conectados s relaes humanas e onde os seres humanos fazem parte da
6 Mesmo Morin fazendo tal assertiva, o desenvolvimento da ecologia-cincia reproduziu o modelo deconhecimento cientfico clssico. O desenvolvimento de um conhecimento no fragmentrio ainda precisa sersuperado na ecologia-cincia (N.A).
-
7/31/2019 art31v20
6/11
Rev. eletrnica Mestr. Educ. Ambient. ISSN 1517-1256, v. 20, janeiro a junho de 2008
482
Teia da Vida (Berkes, 2003). o caso dos estudos de CET, por exemplo, que faz com que
no seja surpreendente que vises alternativas de pensamento incorporem o componente do
valor, da sabedoria, da tica ou das crenas no gerenciamento ambiental (Berkes, 2003).
A etnoecologia busca (re) significar o entendimento ecolgico existente e superar a
forma predominante de conhecimento cientfico disciplinar e fragmentado - o qual no
prioriza a integrao e a totalidade do ambiente. A etnoecologia evidencia e identifica as
relaes socioambientais, ou melhor, a auto-eco-organizao7 dos seres vivos, em um
determinado espao, seja ele num ecossistema costeiro, num sistema rural, num ecossistema
florestal. Tambm investiga o conhecimento produzido no ambiente, entre os atores sociais de
determinado espao, entre os que vivenciam e produzem-reproduzem relaes
socioambientais. E ainda considera o CET como vertente integradora, onde prticas, saberes ecrenas formam uma rede constituindo as representaes sociais, culturais, econmicas e
ambientais de determinada populao tradicional.
Diferentes estudos (Berkes, 1999; Berkes et al., 1998) corroboram com uma viso
ecossistmica nos sistemas de conhecimento de sociedades locais ou tradicionais. Os
conceitos ou noes refletem caractersticas apreendidas localmente, bem como, as interaes
percebidas entre os diferentes componentes do sistema. Berkes (1999) afirma que estes
sistemas de conhecimento ecolgico local so compatveis com a viso emergente deecossistemas como imprevisveis e incontrolveis, cujos processos so no-lineares e possuem
mltiplos estados de equilbrio.
Buscando subsidiar a discusso entre complexidade e etnoecologia, encontramos na
obra A inteligncia da complexidade, de Edgar Morin e Jean-Louis Le Moigne (2000),
princpios que vo ao encontro da abordagem etnoecolgica. Ou seja, princpios
complementares e interdependentes os quais so: sistmico ou organizacional, hologramtico,
auto-eco-organizao, e de reintroduo do conhecimento em todo conhecimento.O princpio sistmico ou organizacional liga o conhecimento das partes ao
conhecimento do todo. Este princpio refora a necessidade de superar fragmentao do
conhecimento, transpondo a forma de conhecimento disciplinar para formas inter e
transdisciplinares. Se nos detivermos apenas no campo das cincias naturais, da ecologia,
percebemos o quanto estas precisam extrapolar o estudo dos ecossistemas apenas em seus
aspectos biticos ou abiticos. O pensamento ecolgico cientfico necessita integrar as
7 Em A inteligncia da complexidade, Morin diz que no caso do ser vivo, este bastante autnomo para tirar aenergia do seu meio e at para extrair as informaes e integr-las na organizao. Ele chama isso de auto-eco-organizao (Morin e Le Moigne, 2000).
-
7/31/2019 art31v20
7/11
Rev. eletrnica Mestr. Educ. Ambient. ISSN 1517-1256, v. 20, janeiro a junho de 2008
483
relaes econmicas, culturais e sociais, ou seja, entender o ambiente a partir de sua
organizao socioambiental; estudar de forma efetivamente integrada os ecossistemas. O
princpio sistmico evidencia que a integrao dos diversos ramos do conhecimento
(cientfico) imprescindvel, corroborando com a proposta da etnoecologia, que busca uma
maior conexo dos saberes tradicionais com os cientficos. A ecologia necessita ser
efetivamente sistmica e transdisciplinar.
Loureiro (2004) refora que a natureza deve ser pensada como:
um movimento permanente de auto-organizao e criao do universo e,portanto, da vida. Define-se em sua gnese, pelo sentido de ordem presentena organizao csmica, mas igualmente pelo caos; pelo sentido de
permanncia de variaes, junes e disjunes, manuteno e ruptura(Loureiro, 2004:79).
O autor ainda demonstra que desse tipo de entendimento de natureza, pode-se
demonstrar que a cultura a especificidade organizacional de nossa espcie. Em sociedade
nos relacionamos produzindo e reproduzindo, aprendendo e reaprendendo, como totalidade
dinmica cultural (Loureiro, 2004: 79).
O princpio hologramtico coloca em evidncia esse aparente paradoxo dos sistemas
complexos em que no somente a parte est no todo, mas em que o todo est inscrito nas
partes. Esse princpio nos remete ao entendimento de que o todo se configura como algo tantomaior, como menor que a soma das partes. De acordo com Morin e Le Moigne:
[...] o todo mais que a soma das partes. Isso significa que existemqualidades emergentes que nascem da organizao de um todo e que podemretroagir as partes [...] acrescento que o todo igualmente menos do que asoma das partes porque as partes podem ter qualidades que so inibidas pelaorganizao do conjunto (Morin e Le Moigne, 2000: 202).
Porm, a realidade outra, pois, na maioria das vezes, o que acontece que apenas
uma parte desse todo utilizada com o intuito de compreend-lo, como no caso doconhecimento cientfico que, em geral, se intitula como nico capaz de responder sobre o
todo. O que no cientfico posto de lado e nem sequer debatido.
Na etnoecologia, o CET tem sido empregado como um instrumento para o
conhecimento do ambiente, potencializando o entendimento das relaes socioambientais8.
Relaes que so do tipo indivduo-natureza, indivduo-indivduo, indivduo-coletivo. O
indivduo parte da sociedade, e a sociedade est presente em cada indivduo enquanto todo,
8 Mesmo no estando de acordo com a norma culta da lngua portuguesa, acredita-se que tal configurao podeapontar para a superao da tendncia fragmentaria, dualista e dicotmica, buscando preencher de sentido essaexpresso, com a idia de que as questes sociais e ambientais da atualidade encontram-se imbricadas em suagnese e que as conseqncias manifestam essa interposio (Guimares, 2004).
-
7/31/2019 art31v20
8/11
Rev. eletrnica Mestr. Educ. Ambient. ISSN 1517-1256, v. 20, janeiro a junho de 2008
484
atravs da sua linguagem, sua cultura, suas normas (Morin e Le Moigne, 2000). O
conhecimento est intrinsecamente ligado ao indivduo-sociedade-meio, um-est-para-o-
outro. Atravs da etnoecologia, o conhecimento desenvolvido por determinadas populaes,
atravs das vivncias com o meio, entra na soma desse todo composto de relaes. Relaes
que so em sua maioria, antagnicas, pois no so apenas de povos tradicionais, mas que
tambm so permeadas de interesses polticos, empresariais e cientficos. Enfim, configura-se
como uma trama complexa de interesses e entendimentos sobre o ambiente, onde o CET
permanece ainda pouco valorizado e inclusive subjugado.
Guimares utiliza Morin (2000) para questionar as abordagens descontnuas de
compreenso e interveno no espao:
unidades complexas, como o ser humano ou a sociedade, somultidimensionais: o conhecimento pertinente deve reconhecer esse cartermultidimensional e nele inserir estes dados: no apenas no se poderia isolaruma parte do todo, mas as partes umas das outras; ... (Morin apudGuimares, 2003:184).
Esse mesmo autor avalia a necessidade de referenciais tericos habilitados
compreenso da realidade de forma complexa em suas relaes interativas (a abordagem
etnoecolgica pode ser um destes referenciais). E utiliza Santos (1997) para corroborar com
seu pensamento:O todo somente pode ser conhecido atravs do conhecimento das partes e as
partes somente podem ser conhecidas atravs do conhecimento do todo.Essas duas verdades so, porm, parciais. Para alcanar a verdade total necessrio reconhecer o movimento do todo e das partes, atravs do processode totalizao (Santos apud Guimares, 2003: 185).
O princpio da auto-eco-organizao enfatiza que os seres humanos desenvolvem sua
autonomia dependendo da sua cultura e onde as sociedades se desenvolvem dependendo do
seu meio ambiente geo-ecolgico. Os seres vivos so seres auto-organizadores que seautoproduzem ininterruptamente e gastam energia para salvaguardar sua autonomia (Morin e
Le Moigne, 2000). Tanto auto-eco-organizao como autoproduo so interdependentes dos
seres e do meio, ou melhor, do ambiente geoecolgico, histrico e cultural. Em Loureiro
(2004) temas a idia da realizao humana em sociedade, enquanto forma de organizao
coletiva de nossa espcie, e no pela simples cpia de uma natureza descolada do
movimento total (Loureiro, 2004:78).
Em especial nas sociedades humanas um outro fator torna-se imprescindvel nesse
entendimento da auto-eco-organizao: a cultura. Morin (1999) diz que a cultura uma
emergncia social que retroage sobre os indivduos. Tambm podemos entend-la como:
-
7/31/2019 art31v20
9/11
Rev. eletrnica Mestr. Educ. Ambient. ISSN 1517-1256, v. 20, janeiro a junho de 2008
485
o conjunto de normas, instituies sociais, valores, crenas, hbitos eartefatos que permitem ao Homem, organizar a sua convivncia e suasobrevivncia, conjunto este transmitido de uma para outra gerao por um
processo educativo designado de socializao ou endoculturao (Viertler,1988)
No estudo do CET as manifestaes culturais e as crenas esto fortemente presentes.
Uma vertente conhecida como ecologia cultural, subsidia bastante a discusso do CET, na
medida em que se caracteriza:
o estudo da rede de relaes que existe entre as comunidades ou sociedadeshumanas e seus ambientes de vida. Na medida que as populaes humanasso dotadas de culturas, necessrio inserir o conceito de cultura no estudoecolgico do Homem (Viertler, 1988).
Esse estudo entende as culturas tradicionais como no-estticas, ou seja, em constante
mudana, tanto por fatores endgenos, como exgenos (Diegues, 2004). A abordagem
etnoecolgica refora a concepo de cultura como um referencial dinmico, muito sensvel a
mudanas extraculturais de origem biolgica ou inorgnica (Viertler, 1988). As culturas so
sistemas abertos movimentando-se, renovando-se, renascendo entre os indivduos, entre as
sociedades, entre as relaes. Sistemas abertos nos quais os aspectos histricos e polticos
influenciam a todo o momento uma dada cultura, bem como as questes relacionadas distribuio, acesso e poder que do forma aos sistemas de conhecimento e nas prticas deles
resultantes, afirma Nazarea (Nazarea apud Hanazaki, 2006).
O Princpio da reintroduo do conhecimento em todo conhecimento ressalta que
todo conhecimento uma reconstruo/traduo por um esprito/crebro numa cultura e num
tempo determinado. Esse ltimo princpio justamente o que remete necessidade de re-
significar o que conhecimento, atravs de uma viso de interdependncia dos diversos
saberes que compem uma determinada realidade. Um conhecimento cientfico fragmentadoem apenas sociolgico, ecolgico, antropolgico ou econmico no responde mais
complexidade de nossa sociedade. Contextualizar e globalizar so procedimentos
absolutamente normais do esprito. Contextualizar o problema da ecologia. Nenhum ser-
vivo pode viver em seu ecossistema, sem seu meio ambiente, afirma Morin (1999). Ou seja,
no podemos compreender alguma coisa autonomamente, seno compreendendo aquilo de
que ele dependente (Morin, 1999).
Percebemos o quanto o pensamento navega em um mar de incerteza, por entre
arquiplagos de certeza, e deve detectar a dialgica certeza-incerteza, separao-
inseparabilidade (Morin, 1999). Na compreenso e na busca de solues para os problemas
-
7/31/2019 art31v20
10/11
Rev. eletrnica Mestr. Educ. Ambient. ISSN 1517-1256, v. 20, janeiro a junho de 2008
486
ambientais da nossa era, a cincia precisa reformar seu pensamento, reconhecendo a
complexidade do mundo em que vivemos e a interdependncia dos saberes existentes nele. O
conhecimento, a cultura, assim como a vida a todo o momento se renova e se redimensiona.
Nesse sentido uma reforma do pensamento dentro da cincia ecologia poderia
reconhecer que o conhecimento ecolgico tradicional pode complementar o conhecimento
cientfico atravs do fornecimento de experincias prticas derivadas da convivncia nos
ecossistemas e respondendo a mudanas no ecossistema, numa perspectiva que converge com
as propostas de manejo adaptativo (Holling et. al apud Hanazaki, 2006). E para isso pode ter
reforo na abordagem etnoecolgica que, como prope Hanazaki (2006) tem um arcabouo
terico e metodolgico para compreender sistemas de percepo, cognio e classificao do
ambiente natural por sociedades locais ou tradicionais. Tambm tem estabelecido uma ligaodireta entre o conhecimento construdo localmente e o conhecimento acadmico-cientfico. E
por fim vislumbra o resgate e a valorizao do valorizar um conhecimento que tende a
desaparecer rapidamente.
Referncias Bibliogrficas
BERKES, F. Toward a unity of mind and nature. In: _____Conservao da diversidade
biolgica e cultura em zonas costeiras. Florianpolis: APED, 2003. p. 115-143.
BERKES, F. Traditional Ecological Knowledge in Perspective. In: _____INGLIS J. T. (org).Traditional Ecological Knowledge: concepts and cases. Canad: IDRC, 1993.
CALLONI, H. Os sentidos da interdisciplinaridade. Pelotas: Seiva, 76p., 2006.
CASTORIADIS, C. Para si e subjetividade. In: _____O pensar complexo: Edgar Morin e acrise da modernidade.Rio de Janeiro: Garamond, 1999. p.35-46.
DIEGUES, A. C. S. O mito moderno da natureza intocada. So Paulo: Hucitec, 169p., 1996.
_____.Enciclopdia Caiara. V.1. So Paulo: Hucitec, 2004.
DOLNE CAMPOS, M. D. Etnocincia ou etnografia de saberes, tcnicas e prticas.In:_____SEMINRIO DE ETNOBIOLOGIA E ETNOECOLOGIA DO SUDOESTE,1ed., 2001.Anais...Rio Claro: UNESP. p. 47-92.
_____. Estar aquie estar l: tenses e intersees com o trabalho de campo.Disponvel em: http://paje.fe.usp.br/~etnomat/anais/MarcioDOlneCampo.html . Acessoem 8/11/2006.
GUIMARES, M. Educao Ambiental Crtica. In: _____LAYRARGUES, P.P.(coord)Identidades da educao ambiental brasileira. Braslia: Ministrio do Meio Ambiente,2004. p.25-35.
-
7/31/2019 art31v20
11/11
Rev. eletrnica Mestr. Educ. Ambient. ISSN 1517-1256, v. 20, janeiro a junho de 2008
487
HANASAKI, N. Etnoecologia, Etnobiologia e as interfaces entre o conhecimento cientfico e
o conhecimento local. In: REUNIO ANUAL DA SBPC, 58 ed., 2006.Anaiseletrnicos... Florianpolis: SBPC/UFSC. Disponvel em:
http://www.sbpcnet.org.br/livro/58ra.
JONAS, H. O princpio responsabilidade: ensaio de uma tica para a civilizaotecnolgica. Trad. Marijane Lisboa e Luiz Barros Montez. Rio de Janeiro: Contraponto:Ed. PUC-Rio. 2006.
MARQUES, J.G.W. O Olhar (Des)Multiplicado. O Papel do Interdisciplinar e do Qualitativona Pesquisa Etnobiolgica e Etnoecolgica. In: _____SEMINRIO DEETNOBIOLOGIA E ETNOECOLOGIA DO SUDOESTE, 1ed., 2001. Anais...RioClaro: UNESP. p. 47-92.
MORIN, E., LE MOIGNE, J. A inteligncia da complexidade.So Paulo: Petrpolis, 2000.
_____. Por uma reforma do pensamento. In: _____O pensar complexo: Edgar Morin e acrise da modernidade.Rio de Janeiro: Garamond, 1999. p. 21-34.
POSEY, D. A. Introduo: Etnobiologia, teoria e prtica. Suma Etnolgica Brasileira. D.Ribeiro. Petrpolis: Vozes/FINEP. 1, 1987. p.15-25.
RICKLEFS, R. A economia da natureza. 5ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 503p.,2003.
VIERTLER, R. Ecologia Cultural: uma antropologia da mudana. So Paulo: tica,61p.,1988.