Arte Degenerada A crítica de arte científica de Max...
Transcript of Arte Degenerada A crítica de arte científica de Max...
Arte Degenerada – A crítica de arte científica de Max Nordau
DANIEL RINCON CAIRES*
Considerações iniciais2
A trajetória de Lasar Segall permite que se acompanhe a disseminação de um tipo muito
específico de repúdio ao modernismo, que se manifestou na Europa e na América de maneira
persistente e generalizada. A recepção à obra de Segall acabou sendo influenciada por esse
sentimento. Se, durante o período da República de Weimar, Segall teve quadros incorporados
a coleções particulares e públicas, com a ascensão do nazismo sua arte foi banida dos museus
estatais alemães, confiscada e exibida, junto com muitas outras obras de arte moderna, nas
Exposições de Arte Degenerada, que percorreram a Alemanha com propósitos difamatórios.
No Brasil, apesar da recepção calorosa dos modernistas, Segall reencontrou as críticas que o
acusavam de realizar uma arte degenerada, dita oriunda de distúrbios psíquicos. A esse
argumento, da mesma forma que na Alemanha, os críticos brasileiros muitas vezes juntavam
invectivas chauvinistas e xenófobas, antissemitas e anticomunistas. Em diversos momentos nas
décadas de 1920 a 1940 Segall viu-se confrontado com ataques desse tipo no Brasil; o ápice
veio em 1943, com uma série de violentos artigos publicados por ocasião de sua grande
exposição retrospectiva. No ano seguinte, numa exposição em Belo Horizonte, uma de suas
pinturas foi mutilada por algum anônimo, decerto inconformado com as propostas expostas na
tela.
A trajetória de Segall sinaliza o alcance e a persistência da mentalidade antimoderna e
suas reaparições no tempo e no espaço. Ao mesmo tempo, impede que se responsabilize
exclusivamente os alemães pela incursão nesse tipo de pensamento. Nas palavras de Fritz Stern,
“[o] sucesso do nacional socialismo na Alemanha não deve elidir o fato de que o ataque
nacionalista à cultura moderna é um fenômeno geral no Ocidente, que precedeu e sobreviveu
ao nacional socialismo” (STERN, 1974: XV).
Nesse espírito, persiste o cacoete de se apontar Max Nordau como o responsável isolado
pelo cultivo do ideário antimoderno na estética. É o que acontece, por exemplo, no texto que
abre o catálogo da mais recente exposição sobre o tema da Arte Degenerada, realizada pela
* Setor de Pesquisa em História da Arte (SPHA) – Museu Lasar Segall. 2 Gostaria de registrar o reconhecimento a pessoas que tiveram papel importante na confecção desse estudo: ao
Professor Joseph D. Masheck e a Lisa Landau, da Universidade de Hofstra, pelo envio de material bibliográfico;
ao Professor Nachman Falbel, pela indicação e empréstimo de documentos; à Dra. Vera d’Horta, pela leitura
atenciosa da versão preliminar desse texto e pelas valiosas sugestões.
2
Neue Galerie de Nova Iorque em 2014. Desde o título – “De Nordau a Hitler” – Olaf Peters
procura associar as ideias de Nordau à sanha nazista que varreu os museus e as coleções
particulares da Alemanha e territórios ocupados (PETERS, 2014: 16 e ss.). Nesta apresentação
procura-se compreender o pensamento de Nordau evitando a teleologia que o associa à política
cultural nazista e que, ao fazê-lo, perde de vista suas ligações mais consistentes com as
preocupações e tensões de seu próprio tempo.
Os fundamentos da crítica de arte científica
A loucura, para Morel e muitos de seus colegas, podia não ser vista ou ouvida, mas emboscava-se no
corpo, incubada pelos pais, e acometia os filhos. Ela não tinha limites precisos, mas acarretava uma
progressiva e cada vez mais intensa tirania do corpo sobre o espírito. A autonomia da vontade era
gradualmente perdida para o corpo (PICK, 1989: 51).
Com essas palavras, Daniel Pick descrevia o conceito de loucura desenvolvido pelo
médico francês Bénédict Augustin Morel, em meados do século XIX, que a associava à
degeneração adquirida pela via da hereditariedade. O trecho poderia ser empregado, sem muitas
alterações, para descrever o conceito de degeneração cultural conforme formulado pelo médico
húngaro Max Simon Nordau, na polêmica obra “Degeneração”, publicada pela primeira vez
em alemão, em 1892, e logo traduzida para quase todas as línguas da Europa. Está tudo ali: a
loucura que espreita em silêncio, dos recônditos mais profundos, invisível aos olhos dos leigos,
traindo-se apenas indiretamente, através de estigmas que exigem o olhar do especialista para se
deixar interpretar; a loucura que inverte a “ordem natural”, aquela que fora vagarosamente
construída através de milhares de gerações, a que determina que deve haver controle da mente
sobre o corpo, da vontade sobre os impulsos, do consciente sobre o inconsciente. O degenerado
torna-se escravo de seus órgãos, dos instintos bestiais, dos centros mais baixos da intelecção.
Sua consciência é inundada por imagens místicas, eróticas, por delírios e ilusões; ele se torna
mera marionete a serviço de suas pulsões animais, e nada resta senão dar vazão a todas as
vontades impostas por esse corpo subvertido. De alguns a força descomunal do impulso exige
a incursão no crime, na dipsomania, na prostituição, no assassinato, na vagabundagem. Em
outros, o desvio se manifesta na forma de uma inevitável tendência à dissensão: são os
anarquistas, socialistas e extremistas políticos de todas as orientações, que recusam o mundo
como ele é e vivem em função de uma utopia etérea e incorpórea, pobremente esboçada, mas
ardentemente buscada. Para alguns, enfim, aqueles em que o impulso aparece de maneira mais
3
débil, ou entre aqueles que não possuem a compleição necessária para empreendimentos mais
concretos, bastam os sons, as cores e linhas, as palavras. São os poetas e pintores, músicos e
filósofos que locupletam sua insanidade no mundo abstrato da arte. Presas incuráveis da “tirania
do corpo sobre o espírito”, destilam sua loucura em telas e poemas, livros e sinfonias. É desses
que Nordau trata minuciosamente em “Degeneração”.
A crítica de arte científica pode ser vista como um prolongamento da antropologia
criminal para o campo da produção cultural. O próprio Lombroso, em 1888, abriu as primeiras
sendas em direção a este encontro, com a publicação de “O Homem de Gênio”. Ali defendia a
polêmica ideia de que “gênio [...] é uma condição mórbida especial”, uma “anormalidade
mental congênita” (LOMBROSO, 1891: V). Para sustentar este argumento, ampliou a categoria
de estigma para além dos aspectos físicos - superficiais e visíveis - postulando a existência de
estigmas morais. Além das assimetrias corporais, formas conspícuas de narizes e orelhas,
crânios e olhos, que haviam permitido a ele encontrar os sinais do “criminoso nato”, Lombroso
sugeriu que se observasse sinais indicadores de morbidade também nos produtos intelectuais.
O médico italiano encontrou características similares entre as produções culturais de loucos e
de gênios, e sugeriu que se fizessem novas investigações a respeito da ligação entre arte, loucura
e degeneração:
Talvez o estudo dessas peculiaridade da arte no insano, além de nos indicar uma nova fase dessa
misteriosa doença, possa ser útil em estética, ou de alguma forma, à crítica de arte, por demonstrar que
uma predileção exagerada por símbolos, por minúcias nos detalhes [...], as intrincadas inscrições, a
excessiva proeminência dada a alguma cor (e é bem sabido que alguns de nossos mais destacados
pintores incorrem neste pecado), a escolha de temas licenciosos, e mesmo um grau exagerado de
originalidade sejam pontos que pertençam à patologia da arte (LOMBROSO, 1891: 208).
Essa exortação parece ter soado como um convite para Max Nordau: pouco mais de
quatro anos depois ele publica o seu “Degeneração”, dedicado a Lombroso. A metodologia
sugerida pelo italiano fora seguida à risca, e assim as obras de arte são convertidas em vestígios
do estado mental dos seus criadores. Através dessa análise, Nordau vai afirmar que muitos dos
responsáveis pelos movimentos artísticos modernos podiam ser classificados como
degenerados, não só pela observação de seus estigmas físicos e progênie, mas especialmente
pela forma de funcionamento de suas mentes, acometidas de uma maneira tão peculiar que se
poderia detectar a existência de estigmas mentais: “não é necessário medir o crânio de um autor,
nem observar o lóbulo da orelha de um pintor, para reconhecer o fato de que ele pertence à
classe dos degenerados” (NORDAU, 1895: 17).
4
Impossível compreender o pensamento de Nordau, afirmam suas biógrafas, sem levar-
se em conta sua prolongada prática médica. Sua lógica treinada para o ofício o levava a buscar
relações de causa e efeito e auscultar o mundo como um médico ausculta o seu paciente.
“Nordau assumiu em vida a função de médico tanto dos corpos quanto das almas” (NORDAU
et NORDAU, 1943: 309). Para Max Nordau, o artista cria por um impulso fisiológico, “para
livrar seu sistema nervoso de uma tensão” (NORDAU, 1895: 324). Ele explica que todo
organismo evoluído responde a um estímulo externo com um movimento interno, uma imitação
daquilo que o impressionou. As artes plásticas são, em última análise, um resíduo desses
movimentos imitativos, têm um objetivo orgânico, qual seja, o de “livrar o sistema nervoso de
uma excitação causada por um evento visual” (NORDAU, 1895: 324). Mesmo que a excitação
tenha origem interna (erotismo, alegria, pesar etc.), ainda assim ela se manifesta por impulsos
motores – dança, canção, música, declamação, etc. Nessa concepção, a atividade artística tem
um funcionamento similar ao de outros processos orgânicos: arte é resultado necessário da
digestão dos estímulos que chegam ao cérebro.
Estabelecem-se assim os procedimentos da crítica de arte científica: ao transformar arte
em uma função fisiológica, submetida aos imperativos do corpo e da natureza, torna-se possível
colocá-la sob a tutela da ciência, e mais especificamente, da psiquiatria. Desvendam-se seus
mecanismos, institui-se um critério do que seja um funcionamento sadio desses processos e, em
contrapartida, demarcam-se os padrões que sinalizam anormalidades.
É o que acontece, por exemplo, quando Nordau trata da poesia. Admite que é da natureza
dessa linguagem a tendência a jogar com palavras, sons e ideias. Mas a poesia saudável deve
ter, subjacente a isso, um eixo lógico que permita que esses jogos evoquem ideias harmônicas
e coerentes. Feita dessa forma, ela proporciona ao espírito são uma decifração cristalina e
unívoca: porta um sentido claro, encrustado nos enigmas, sons e associações entre imagens,
sensações e ideias. A poesia mórbida, por outro lado, cria um lodaçal de imagens indefinidas e
incoerentes entre si, e impede que se vislumbre um eixo lógico de sentidos. Há um
descompasso, ou completo desligamento, entre as palavras e um sentido qualquer inteligível. A
poesia degenerada permite evocar emoções e sensações abertas, instaurando uma liberdade para
interpretar que, segundo Nordau, significa de fato um vazio absoluto. Tal poesia é comparada
ao discurso dos idiotas, “que inserem palavras que não têm absolutamente nenhuma conexão
com o objeto de que tratam” (NORDAU, 1895: 93). Esse critério férreo que exige uma
5
comunicação unívoca entre o artista e o público e uma ligação inquebrável entre palavra e
objeto, supostamente embasado em princípios fisiológicos, permite a Nordau decretar a
insanidade de Dante Gabriel Rosseti, Paul Verlaine, Charles Baudelaire, Teóphile Gautier e
outros.
Moralidade e senso estético são igualmente compreendidos em termos fisiológicos3.
Moralidade é a “experiência racial hereditária organizada” (NORDAU, 1895: 282) que alerta
os humanos saudáveis para a presença de uma influência nociva. Esse senso natural de certo e
errado deveria determinar o que é vantajoso não somente em termos individuais, mas,
sobretudo, em termos coletivos:
Náusea diante de gostos intoleráveis, repugnância a cheiros desagradáveis, medo de animais perigosos
e fenômenos naturais ameaçadores, etc. se tornaram instintos aos quais o organismo se abandona sem
reflexão, isto é, sem a intervenção da consciência. Mas o organismo humano aprende a distinguir e evitar
não apenas tudo o que é prejudicial a si mesmo; ele age da mesma forma com relação àquilo que o
ameaça não apenas como indivíduo, mas como membro de uma raça, partícipe de uma sociedade
organizada; a antipatia às influências injuriosas à manutenção da prosperidade da sociedade se torna
nele um instinto (NORDAU, 1895: 282).
A beleza também ganha contornos fisiológicos. Amparando-se nos estudos de
Helmholtz e Blaserna sobre o som, e estendendo suas conclusões para cheiros e sabores, Nordau
explica que causam prazer aqueles que se manifestam em acordo com a “estrutura dos nervos”,
isto é, que são fáceis e confortáveis para eles, e os deixam “em ordem”. Os desagradáveis, ao
contrário, “incomodam o arranjo das partículas dos nervos”, exigindo esforços extremos e até
mesmo ameaçando sua existência (NORDAU, 1895: 327-328). Unindo moralidade e beleza,
Nordau apresenta uma “fisiologia da beleza moral”, que é superior à sensorial, e é formada por
representações, conceitos e julgamentos. Nesse caso, será considerado moralmente belo aquilo
que for favorável à existência do indivíduo e da espécie.
Ao naturalizar a moralidade e o senso estético, Nordau consegue diagnosticar outros
tipos de desvios mórbidos. A insanidade moral, de fato, era uma condição presente nos manuais
de psiquiatria, e Nordau arrola uma longa lista de artistas, filósofos e literatos que apresentavam
desprezo, indiferença ou aversão aos padrões morais e estéticos em vigor. O caso de Baudelaire
foi longamente discutido, ressaltando-se sua predileção pelo crime, pela corrupção e pela
doença. Sua declarada atração pelos odores fortes e, para indivíduos “normais”, desagradáveis,
3 Nordau dedicaria uma de suas últimas obras à ampliação dessa ideia: em 1920 publicou “A Moral e a evolução
do homem”, cujo título original é mais sugestivo: “A Biologia da Ética” [no original, Biologie der Ethik].
6
foi apontada por Nordau como sintoma inequívoco de insanidade. Nietzsche, que mereceu um
longo capítulo na obra de Nordau, foi atacado exatamente por sua ideia de que a moralidade era
um entrave ao pleno desenvolvimento humano. Ambos foram classificados como egomaníacos,
condição de quem é incapaz de romper o isolamento do mundo interior e se relacionar
plenamente com a realidade externa.
As realizações recentes da pintura eram explicadas por Nordau em termos similares.
“Impressionistas, pontilhistas, papilloteurs, coloristas espalhafatosos” são classificados, com
amparo nos estudos de Charcot, como portadores de lesões ópticas causadas pela degeneração
e/ou histeria. Seus artífices afirmam que é assim que veem o mundo, e deve-se acreditar neles.
Eles sofrem de disfunções nas retinas, ou de nistagmo, que é um palpitar incontrolável e
interminável do globo ocular, e é assim que veem a natureza: “trêmula, inquieta, carente de
linhas firmes” (NORDAU, 1895: 27); são incapazes de se igualar ao pintor de “visão normal”.
A retina dos histéricos é sempre acometida por algum grau de insensibilidade, e nesse caso a
morbidade se manifesta de duas formas: ou ela promove a formação de uma imagem repleta de
falhas, fragmentada, ou provoca a perda da capacidade de ver as cores; no primeiro caso,
resultam obras do que se chama pontilhismo, no segundo, explica a estranha paleta de alguns
pintores, que preferem tons esmaecidos ou aparentados do cinza. É assim que se explica, por
exemplo, o estilo de Puvis de Chavannes e Besnard: resultado da disfunção do aparelho visual,
por sua vez derivado de degeneração mental ou histeria. Amparando-se em estudo de Alfred
Binet, Nordau explica a predileção natural dos degenerados e histéricos – tanto pintores quanto
consumidores - pela cor vermelha: tal tonalidade produz uma sensação de prazer. Da mesma
forma, o violeta provoca o efeito contrário, depressivo, e por isso é preferido, entre muitos
povos, como cor dos ornamentos fúnebres. É por esse motivo, explica, que os histéricos e
neurastênicos acometidos de melancolia tendem a recobrir suas telas com esse tom. Exemplo é
Manet e sua escola: suas pinturas “não se originam de algum aspecto observável da natureza,
mas de uma visão subjetiva devida à condição nervosa do pintor” (NORDAU, 1895: 29).
Degeneração e hereditariedade
As ideias de Nordau e Lombroso não devem ser vistas como dissonantes: na verdade,
elas estavam bastante afinadas com o panorama geral de seu tempo. Se, como afirmou Martin,
o “progresso era a religião do século XIX, da mesma forma que o catolicismo fora a religião da
7
Idade Média” (MARTIN, 1963: 299), poder-se-ia dizer que ao demônio medieval correspondia
a degeneração no século XIX como o contraponto nefasto ao ideal positivo. Umbilicalmente
ligada ao discurso das ciências naturais e, particularmente, à teoria evolucionária, junto à ideia
de degeneração alinhavam-se “as concepções de atavismo, regressão, reincidência, transgressão
e declínio no seio de um contexto europeu tão frequentemente identificado como a era de
evolução, progresso, otimismo, reforma e melhoria” (PICK, 1989: 2). Uma ideia que se tornou
parte do “estoque de hipóteses” inquestionáveis da cultura ocidental, e reapareceu
intermitentemente em discursos emitidos por sujeitos de todos os espectros políticos e sociais.
Seus usuários frequentemente esqueceram-se de perceber o seu caráter construído, tomando-a
como dado básico e natural, o que os fazia igualmente deixar de perceber o potencial político
ominoso subjacente a ela. Numerosos estudos deixaram claro que as metáforas e padrões
narrativos de Darwin sobre a natureza e os seres vivos ecoavam “medos e preocupações sociais
vitorianas mais amplas” (PICK, 1989: 6). Para Pick no tema da degeneração também estão
incrustados os medos e intepretações sobre o tempo, disfarçados de ciência (PICK, 1989: 6). O
conceito de degeneração jamais foi contido numa teoria ou axioma, jamais foi definitivamente
descrito e delimitado. Cada uso, em cada tempo, dotou-o de formas e conteúdos diferentes, ao
sabor das necessidades e das inclinações de seus usuários. A observação das modificações que
o conceito sofreu em cada tempo, lugar e a forma como cada um de seus usuários o definiu e
empregou podem indicar configurações específicas e mudanças nas percepções sociais.
Uma etapa importante na trajetória do uso e difusão do conceito de degeneração ocorre
em 1847, quando Prosper Lucas publica o “Tratado filosófico e fisiológico da hereditariedade
natural nos estados de saúde e de doença do sistema nervoso”. No geral, dedicava-se a estudar
a “força maravilhosa” da hereditariedade, que podia frutificar em vantagens, mas também
desvantagens. Lucas enfatizava “a reprodução de caracteres constantes através das gerações”
(LUCAS apud PICK, 1989: 49). Dez anos depois, Bénédict Augustin Morel publicou o
“Tratado de hereditariedade natural”, onde a ênfase se voltava para a dinâmica da modificação
negativa, a cadeia de patologias transmitidas entre as gerações em direção ao degenerado,
indivíduo acumulador dessa herança maldita, fadado a tornar-se estéril e incapaz, finalmente
desaparecendo. O conceito de Morel “[...] tinha um desenvolvimento narrativo oculto – uma
gênese, uma lei de progresso e um desenlace. Idiotia absoluta, esterilidade e morte eram os
pontos finais da lenta acumulação de morbidades através das gerações” (PICK, 1989: 51). Na
8
proposta de Morel, a degeneração era deflagrada por causas ambientais (entre as quais a
pobreza, hábitos imorais, trabalho insalubre e outros) e logo penetrava no ciclo hereditário,
tornando-se autossuficiente. Muitas vezes essa morbidade latente não se deixava ver por traços
externos, o que inutilizava a frenologia. Já em Morel havia a ideia, central na obra de Nordau,
de que a degeneração se manifestava de maneira insidiosa, em indivíduos que não apresentavam
nenhum dos sinais externos reconhecidos: os estigmas psíquicos deveriam ser buscados nos
“padrões da patologia moral” (PICK, 1989: 52).
A partir de 1870, o tema da degeneração ganharia uma posição de protagonismo na
mentalidade ocidental, transbordando de seu âmbito original para a historiografia, para o
diagnóstico social e para a crítica cultural. Foi Valentin Magnan o responsável por catalisar esta
confluência entre um novo discurso psiquiátrico muito específico e sofisticado com uma noção
generalizada e difusa de que as patologias eram um “fenômeno da época”; a psiquiatria
alcançou então uma “proeminência cultural sem precedentes” (PICK, 1989: 99).
“Considerações gerais sobre a loucura dos hereditários ou degenerados” (1887), de Magnan,
foi um marco nessa nova configuração do degeneracionismo. Ao padrão anterior, marcado pela
reconfortante ideia de que o degenerado poderia ser facilmente individualizado e segregado, e
de que estava fadado ao desaparecimento pela própria degradação de suas funções, sobrepôs-
se uma noção de degeneração difusa, profunda e ubíqua, emanando especialmente a partir das
“classes perigosas da cidade”, e que ameaçava atingir a sociedade como um todo. Dessa forma,
o assunto ganhou duas linhas aparentemente contraditórias e simultâneas: o “outro” ameaçador
era “percebido como visivelmente diferente, anômalo e racialmente ‘estranho’”, mas agora
tinha-se o problema adicional, e ainda mais ameaçador, de sua “aparente invisibilidade no fluxo
da grande cidade” (PICK, 1989: 52).
As transformações sofridas pelo conceito de degeneração na segunda metade do século
XIX parecem se articular com percepções mais gerais sobre fenômenos sociais e políticos. As
configurações que a ideia assume em cada lugar também podem estar ligadas a situações
específicas. Na França, a instabilidade política crônica gerou uma ansiedade social que tingiu
as interpretações sobre a Revolução. As Revoluções, primeiro a de 1789 e depois as de 1830 e
1848, provocaram a sensação de “ruptura histórica e historiográfica” (PICK, 1989: 56). Mas
foram lidas de maneiras distintas, e a última, de uma forma que, argumenta Pick, tingiu todo o
pensamento social posterior, e determinou a ideia de degeneração conforme manifestada por
9
Morel: “1848 foi entendida em relação a 1789 e 1830 mas ao mesmo tempo ela parecia mostrar
a radical imprevisibilidade da mudança, a irredutibilidade de novos fenômenos sociais a
modelos prévios”. Essa ideia de “reprodução patológica” da Revolução teria sido convertida
por Morel numa nova ideia de degeneração, uma que fosse “um processo de diferenciação
patológica ao longo das gerações” (PICK, 1989: 56). Dessa maneira, entende-se que o novo
conceito de degeneração e hereditariedade patológica que provocava mudanças imprevisíveis,
mas quase sempre desastrosas, era uma projeção de uma leitura da situação social circundante
na teoria científica. Isso acompanhava uma mudança de leitura sobre a própria Revolução e
suas consequências. Nas últimas décadas do século XIX, o fenômeno das grandes cidades e a
crescente pressão por parte das classes marginalizadas por maior participação política
provocaram reflexos na cultura. Raças e classes perigosas começaram a aparecer com
insistência na literatura; o imaginário povoou-se com os misteriosos personagens oriundos do
submundo do crime oculto nos substratos obscuros das grandes cidades. Nesse pensamento,
“crime, decadência moral e poluição racial” se emaranhavam como causas intervenientes
(PICK, 1989: 21).
Na Itália, as autoridades governantes da nação recém-unificada viram-se obrigadas a
lidar com a fragmentação social, cultural e econômica real à sua frente. Nisso serviu o ideário
de Lombroso: ele criava uma aparente unicidade, juntava todo aquele caos aparentemente
irreconciliável da realidade italiana num discurso unívoco. Nesse processo distribuía-se sinais
aos elementos, polarizando-os: negativos ou positivos, atrasados ou evoluídos, selvagens ou
civilizados etc. Toda uma miríade de elementos presentes nesse contexto era captada pelo
discurso, e a cada um se reservava um lugar especial na cadeia narrativa, nessa intriga
organizada e regida pela objetividade científica. “Crime, histeria, superstição, parasitismo,
insanidade, atavismo, prostituição, massas, campesinato e bandoleiros se tornaram as figuras
de desordem [...]” (PICK, 1989: 115). Nenhuma dessas coisas era objeto imediato: todas eram
metáforas, mas era recurso do discurso de Lombroso tomá-las como objeto, negar-lhes o
estatuto de construção discursiva, um exorcismo linguístico ou enjaulamento taxonômico que
permitia sua imediata denúncia. O dissidente político, especialmente os anarquistas, e os
habitantes das regiões ao sul da Península, eram os alvos preferenciais dos discursos
degeneracionistas:
Nem todas as partes que compõe o organismo múltiplo e diferenciado da Itália progrediram igualmente
no curso da civilização; algumas ficaram para trás, por conta de governo ineptos ou como infeliz
10
resultado de outros fatores e são incapazes de avançar exceto com grande esforço, enquanto que outras
progrediram dinamicamente. O Mezzogiorno e as Ilhas encontram-se na infeliz condição de ainda
possuírem os sentimentos e os costumes, a substância, senão a forma – dos séculos passados. Eles são
menos evoluídos, menos civilizados do que as... sociedades encontradas na Itália do Norte” (NICEFORO
apud PICK, 1989: 114-115).
Peculiaridades da Inglaterra dificultaram a penetração do degeneracionismo. Havia ali
um forte apego aos princípios liberais e a um código de leis embasado numa forte crença no
livre-arbítrio. A influência dos teóricos da degeneração foi assim consideravelmente reduzida,
quando comparada com o que ocorria no Continente. A própria ausência de ameaças políticas
internas – sedições, revoltas e sublevações – tornava o discurso da degeneração menos
necessário na Inglaterra que na França e na Itália, onde governos centrais fragilizados e sitiados
por incessantes ondas revoltosas agarraram-se firmemente às teorias degeneracionistas como
forma de enquadrar os opositores em categorias passíveis de serem combatidas: criminosos
natos, loucos, doentes etc.). A Irlanda era uma fonte de problemas políticos, mas era tratada
como ameaça externa; a integridade da Inglaterra era discursivamente possível de uma maneira
impensável para França e Itália.
Fin-de-siècle: doença da modernidade
Ao condenar as correntes estéticas mais recentes de seu tempo, Max Nordau incorria
numa longa e disseminada tradição. Cientistas evolucionistas, antropólogos criminais e
psiquiatras concluíam que, paradoxalmente, o progresso – a ciência, a civilização e o
crescimento econômico - podia ser um catalisador de patologias físicas e sociais. Nas palavras
de Griesinger, “[...] a presente condição da sociedade na Europa e América mantém um semi-
intoxicante estado de irritação cerebral que está muito afastado da condição natural e saudável,
e predispõe à desordem mental” (GRIESINGER apud PICK, 1989: 11). A discussão sobre esse
assunto servia-se de estatísticas, para buscar amparar a afirmação de que aumentavam as
ocorrências de crimes e a incidência de patologias mentais. As transformações advindas da
modernização que incidiam na vida cotidiana da população da Europa vão servir de causa
primordial à degeneração, no esquema de Max Nordau. Vivia-se, ele afirmava, numa
civilização em estado terminal, cujo fim iminente coincidiria com o fim do século XIX. O
período que seria visto retrospectivamente como Belle Epoque era por Nordau caracterizado
negativamente como fin-de-siècle.
11
Ele se serviu de estatísticas para comprovar a influência perniciosa da modernidade
sobre a saúde das pessoas. Comparando números de 1840 com os de 1890, apontou um
crescimento exponencial na quantidade de cartas trocadas, no número de jornais e livros
publicados, na extensão em quilômetros das ferrovias, no número e frequência de viagens
realizadas. Toda essa atividade expandida, afirmava, exigiria um sobre-esforço do sistema
nervoso de cada indivíduo. Ainda que fosse adaptável, o corpo humano não podia lidar com
transformações tão repentinas. O resultado era uma profunda exaustão, que condenaria os
menos vigorosos à queda nas valas laterais da “estrada para o progresso” (NORDAU, 1895:
40): nervos exaustos eram suscetíveis à histeria, adquirida na primeira geração, hereditária nas
seguintes4. A arte e a cultura modernas seriam resultado dessa grande fadiga histérica, mas não
suas únicas consequências. Nos últimos anos tratados de alienistas vinham descobrindo,
descrevendo e nomeando um enorme conjunto de moléstias; para Nordau, essas descobertas
recentes provavam a sua tese: os acontecimentos dos últimos 50 anos incidiam morbidamente
na saúde mental das pessoas.
Nordau apontava o abandono dos cânones antigos - seguros, saudáveis, confiáveis como
sintomas dessa condição mórbida. Em seu lugar, adotavam-se novos padrões, doentios e
perniciosos. O fin-de-siècle era marcado por “um desprezo pelas visões tradicionais de costume
e moralidade”, uma “emancipação da disciplina tradicional” (NORDAU, 1895: 5), o que abriria
as portas para a liberação de desejos, tendências e impulsos até então suprimidos. No campo
específico da arte, o clima fin-de-siècle significava o abandono da ordem estabelecida “que por
milênios satisfez a lógica, estorvou a depravação e produziu em todas as artes algo de belo”
(NORDAU, 1895: 5). Nesse cenário, emergia uma grande ansiedade sobre o futuro. Sem o
lastro da tradição, as esperanças se voltavam para o porvir. Comemorava-se tudo o que fosse
novo, mesmo sem saber em que direção ele se desenvolveria. Nessa nova relação com o futuro,
a arte ganhava papel proeminente. Procurava-se na arte a capacidade de prever o futuro: “o
poeta, o músico, deve anunciar, ou adivinhar – ou ao menos sugerir – em que formas a
civilização irá evoluir” (NORDAU, 1895: 6). “Todas as certezas estão destruídas e qualquer
palpite parece plausível” (NORDAU, 1895: 6).
4 Max Nordau partilhava do conceito de hereditariedade francês, que se manteve fiel às concepções lamarckianas. Nessa vertente, aceitava-se a possibilidade de que características adquiridas no contato com o ambiente pudessem ser incorporadas definitivamente aos organismos e legadas às gerações subsequentes (cfe. PICK, 1989: 100).
12
Algumas características do pensamento de Nordau, no entanto, o afastam de outros
degeneracionistas. Em primeiro lugar, ele inverte o esquema de responsabilização pela
degradação moral e estética: onde outros buscavam nas classes inferiores os culpados pela
degeneração da raça5, para Nordau eram os afortunados - os “10 mil mais ricos” (NORDAU,
1895: 2) da França, a alta burguesia alemã e inglesa - que estariam no estágio fin-de-siècle. Na
sua argumentação, a grande maioria da população, as classes médias e baixas, ainda não sentiam
os efeitos perniciosos da modernidade. O filisteu e o proletário ainda se satisfaziam com as
antigas formas de arte e literatura, desde que não estivessem submetidos ao olhar desdenhoso
dos partidários da modernidade; nesse caso, o pudor os obrigava a disfarçar o gosto pelo velho.
Apenas uma minoria, em sua opinião, saudava a modernidade, mas por formarem um grupo
influente, criavam a sensação de que o novo era unanimemente aceito. Muito do entusiasmo
pelas novidades, segundo Nordau, devia-se à ânsia por emular os ricos e ao magnetismo
exercido pelos fanáticos, que arrastava os esnobes, os tolos, os nervosos, os fracos e
dependentes, fazendo supor que toda a civilização se houvesse convertido à “estética do
crepúsculo das nações” (NORDAU, 1895: 7).
Em segundo lugar, Nordau enfatizava a ação ambiental como causa primordial da
degeneração, onde outros procuraram explicações em termos raciais. Dessa forma, ele não
subscrevia a ideia de que havia uma mácula inevitável atrelada a algum grupo específico. A
degeneração, na concepção de Max Nordau, era um mal endêmico que não mostrava
predileções raciais.
Terapia
A tese central de Lombroso a respeito do gênio não poderia de forma alguma ser aceita
por Nordau (e ele a refuta nominalmente nas páginas 22 e 23 de “Degeneração”). A
argumentação de Lombroso solicita uma suspensão de julgamento com relação às ações e
5 O principal crítico de Nordau na Inglaterra, Alfred Egmont Hake, escreveu em sua reposta à “Degeneração” que
era a “espantosa, desmoralizante, embrutecedora pobreza nas grandes cidades modernas, - esse fungo surgido por ação do governo moderno e da corrupção política” que explicava a degradação dos costumes, o vício e, em consequência, o surgimento de novos padrões culturais tingidos pela imoralidade e pelo culto ao crime. Não era a primeira vez na história, afirmava, em que “massas de pessoas destituídas exercitam todo o seu engenho na tarefa de corromper os cidadãos ricos na esperança de apanhar algumas migalhas” (HAKE, 1895: 33).
13
produções culturais do homem de gênio. Dotados da capacidade extraordinária de enxergar o
que é novo, os gênios lombrosianos trazem à luz elementos estranhos e recebem em troca a
incompreensão, a marginalização, o ostracismo, o escárnio. Com o tempo, vê-se que estavam
corretos (Colombo, Giordano Bruno, Copérnico, a lista de gênios incompreendidos que mais
tarde seriam redimidos é enorme e Lombroso se serve dela para marcar sua posição). Aceitar
isso levaria à absolvição imediata dos degenerados de Nordau: eles deveriam receber um voto
de confiança. A dúvida recairia sobre o julgamento dos observadores: não será resultado da
incapacidade de compreender por parte dos homens comuns que este livro, esta peça, esta
doutrina filosófica, parecem erradas?
Nordau acredita que a sociedade deve se defender da influência perniciosa do
degenerado. O degenerado é um caso perdido: imune a qualquer tratamento, surdo para
qualquer argumentação lógica, ele jamais será capaz de se livrar da sua doença. “Os
degenerados assim tão profundamente atingidos pela loucura devem ser abandonados ao seu
destino inexorável. Este livro não é escrito para eles” (NORDAU, 1895: 551).
Como morcegos alojados em velhas torres, eles estão abrigados no orgulhoso monumento da civilização,
que eles encontraram pronto, mas ao qual não podem acrescentar mais nada, nem defender da
deterioração. Eles vivem como parasitas, alimentando-se do resultado do trabalho acumulado pelas
gerações anteriores; e quando a herança estiver afinal consumida, eles estão condenados a morrer de
fome” (NORDAU, 1895: 540).
Conter a “doença do tempo” exige outra medida: obstar a contaminação. O primeiro
passo consiste em desmascarar os degenerados que secretam seu veneno sob o pretexto de arte,
literatura ou filosofia. Esse é, afinal, o objetivo declarado de “Degeneração”: não apenas
identificar os degenerados escondidos entre literatos e artistas, mas oferecer as ferramentas
conceituais para que qualquer um possa fazê-lo. A sociedade deve se defender de seus inimigos,
mas não pela força: a experiência mostra que qualquer obra de arte que venha a ser perseguida
pelo estado torna-se imediatamente célebre. Eis a terapia adequada, afinal: a formação de
conselhos de cidadãos esclarecidos que decidissem quais obras proscrever. Um subsequente
boicote acabaria arrancando o mal pela raiz (NORDAU, 1895: 560).
Considerações finais
14
As ideias recolhidas por Nordau em “Degeneração” circulavam amplamente na
sociedade de seu tempo. Os próprios artistas as aceitavam e produziam a partir delas. Emile
Zola, mais um entre os que mereceram um capítulo exclusivo na obra de Nordau, não só se
submeteu voluntariamente a uma longa e minuciosa série de exames para determinar o tipo e o
grau de sua degeneração, como produziu um conjunto inteiro de romances dedicados a
descrever e analisar a incidência de degeneração entre as sucessivas gerações de uma família6.
Vincent van Gogh partilhava do conceito lombrosiano e acreditava que os artistas em geral
possuíam cérebros maculados por lesões hereditárias que os tornavam simultaneamente mais
propensos à produção artística e a desordens nervosas; ele interpretou suas próprias
enfermidades como sendo oriundas do processo de degeneração, e em sua correspondência
demonstrou muitas vezes concordar com a ideia de que a vida nos grandes centros urbanos
incidia negativamente sobre os cérebros (SHEON, 1996: passim). A obra de Ibsen, também
agraciado com um capítulo próprio em “Degeneração”, é profundamente marcada pela
referência às consequências negativas da hereditariedade. Uma das críticas mais reincidentes
sobre as peças de Ibsen refere-se justamente ao fato de que nelas um evento irreversível
ocorrido nalgum ponto do passado governa implacavelmente as ações que se desenrolam diante
dos olhos dos espectadores, nada restando a fazer senão observar o cumprimento total e
inevitável dessa espécie de maldição biológica (CARPEAUX, 1960).
Se fôssemos julgar as ideias de Nordau, concluiríamos que seu erro essencial – que ele
compartilha com grande parte dos pensadores de seu tempo - foi o de apagar as fronteiras entre
o universo natural e o humano. Segundo Gould, o universo humano é artificialmente construído,
separado da lógica da natureza, afastado dela por um distanciamento crítico: não se deve,
portanto, aceitar passivamente as leis naturais quando se trata de coisas humanas. A moral e a
ética humanas são distintas da ética da natureza, que é essencialmente amoral (GOULD, 2003:
359).
O pensamento de Nordau pode ser melhor compreendido no cenário cientificista que se
avoluma no final do século XIX. Havia uma forte tendência – alimentada pela sucessão de
6 Zola se submeteu voluntariamente a um extenso exame que incluía investigação genealógica, estudo
antropométrico e craniométrico e análise de seu histórico médico. Concluiu-se que ele era um neuropata, neurótico
e achacado de moléstias, e que se tratava de um degenerado possuidor de capacidades extraordinárias (PICK, 1989,
p.76-78). O escritor submeteu-se diligentemente às fotografias antropométricas e respondeu a todos os
questionamentos feitos por uma junta de 15 doutores; ele tratou da degeneração hereditária principalmente no ciclo
de novelas que acompanhava “o destino mórbido de uma família através dos anos do Segundo Império” (PICK,
1989: 73), a família Rougon-Macquart.
15
“descobertas” científicas que se acumulavam e que alteravam a vida cotidiana e os panoramas
mentais do homem - de encarar o universo como um mecanismo operado por forças essenciais
e inevitáveis. O avanço das explicações da ciência sobre terrenos antes pertencentes a outras
esferas provocava uma rápida laicização da visão de mundo. Em decorrência, um ressecamento
da visão de mundo que instaura um deserto moral. A constatação que parece querer se impor,
de que não há nada que transcenda a matéria, faz surgir uma aridez materialista e, concomitante
e paradoxalmente, um pujante renascimento da crença na transcendência, em formas novas e
às vezes esdrúxulas, contra as quais Nordau se bate veementemente. Às vezes é no mesmo
indivíduo que esse vazio metodicamente construído cede lugar à explosão mística: Comte
chegou assim à sua Religião da Humanidade e Lombroso dedicou seus últimos anos – mesmo
diante das fortes tentativas de dissuasão por parte de seguidores e amigos - a estudos sobre a
comunicação mediúnica (de fato, o italiano ligou-se a uma conhecida médium que lhe facultava
contatos com sua falecida mãe). O próprio Nordau, ainda que de maneira “laica”, abandonou o
posto de “Sentinela da Civilização” para voltar-se à defesa dos direitos territoriais dos judeus.
A manifestação de Nordau em “Degeneração” será melhor compreendida se observada no
interior desse grande panorama dos “naturalismos”, quando a ciência penetra profundamente
na vida cotidiana. É a tentativa de enquadrar as manifestações do espírito em categorias
taxonômicas e desvendar-lhes os mecanismos. Procura sujeitar a arte às mesmas forças
biológicas que presidem o funcionamento dos organismos naturais. É a busca por uma leitura
do universo artístico pela ótica das ciências naturais, visando encontrar as leis universais que
regem a criação e o consumo de poesias e quadros, romances e sistemas filosóficos. Melhor
seria dizer “que devem reger”, já que ele toma como missão não só “descobrir” tais leis e
mecanismos, mas acusar aqueles que as transgridam e que assim tornam-se anormais. É nesse
cenário que Nordau afia sua espada e procura decepar as cabeças dos inimigos, que identifica
justamente entre manifestações que são, por sua vez, também consequências culturais do
naturalismo.
Quando a extrema direita alemã e, mais tarde, os nacional-socialistas, se apropriam das
ideias de Nordau, já é outra a arte que se rotula de moderna, e outras as motivações e panoramas
intelectuais que presidem esse processo.
16
Referências Bibliográficas
CARPEAUX, Otto Maria. Ensaio sobre Henrik Ibsen. In: IBSEN, Henrik. Seis dramas. Rio de
Janeiro: Ed. Globo, 1960.
GOULD, Stephen Jay. A ameixa sem caroço instrui o caniço pensante? In: Dinossauro no
Palheiro – Reflexões sobre história natural. Trad. Carlos Afonso Malferrari. São Paulo:
Companhia das Letras, 2003.
HAKE, Alfred Egmont. Regeneration: A Reply to Max Nordau. Westminster: Archibald
Constable & Co., 1895.
LOMBROSO, Cesare. The Man of Genius. London: Walter Scott, 1891.
MARTIN, Kingsley. French liberal thought in the Eighteenth Century – A Study in political
ideas from Bayle to Condorcet. New York: First Harper Torchbook, 1963.
NORDAU, Anna; NORDAU, Maxa. Max Nordau – A Biography. New York: Nordau
Committee, 1943.
NORDAU, Max Simon. Degeneration. London: William Heinemann Publisher, 1895.
PETERS, Olaf. From Nordau to Hitler. In: PETERS, Olaf (org.). Degenerate Art – The Attack
on Modern Art in Nazy Germany, 1937. New York: Neue Galerie, 2014.
PICK, Daniel. Faces of Degeneration: a European disorder, c. 1848 - c. 1918. Cambridge:
Cambridge University Press, 1989.
SHEON, Aaron. Van Gogh’s Understanding of Theories of Neurosis, Neurasthenia and
Degeneration in the 1880s. In: MASHECK, Joseph D (org.). Van Gogh 100. Westport: Hofstra
University, 1996. p. 173-191.
STERN, Fritz. The Politics of Cultural Despair: a study in the Rise of the Germanic Ideology.
Berkeley: University of California Press, 1974.