Arte, Tempo e Subjetividade Em Gilles Deleuze

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    Arte, Tempo e Subjetividade em Gilles Deleuze

    Mauricio Mangueira1Eduardo Mauricio2

    Resumo:Um dos traos marcantes da filosofia de Gilles Deleuze a sua constante intercessocom as mais diversas formas de produo artstica. Por meio de cineastas, pintores eliteratos, o filsofo francs buscou assinalar determinado modo de pensar, certo devir-artstico do pensamento, em que este ltimo se constituiria ao longo de um movimentoou percurso do pensador/artista. Entretanto, este percurso ou movimento encontra-se,invariavelmente, relacionado a um tempo ou linhas de tempo constitudas por foras esignos que violentam o pensamento, sendo impossvel ao sujeito, em um primeiromomento, tomar cincia destas diversas foras que o compem. Deleuze nos mostraento, por meio de seus estudos, como a arte em sua relao privilegiada com o tempo,

    permite ao artista/pensador/sujeito reconstituir sua trajetria, isto , atingir os diversosmundos e pontos-de-vista que o constituem, mostrando assim que a obra de arte, emltima instncia, revela um processo ou processos de subjetivao que, ao menosinicialmente, so imperceptveis queles que os vivenciam.Palavras-chave:Deleuze; arte; tempo; pensamento; subjetividade.

    Abstract:

    One of the hallmarks of Gilles Deleuzes philosophyis its constant intercession with themost diverse forms of artistic production. Through filmmakers, painters and writers, theFrench philosopher tried to highlight certain way of thinking, wherein the thinkingwould be forged along a path or movement of the thinker/artist. However, this path ormovement is related to a time or time lines that violate the thought, making itimpossible to the person, at first, become aware of these multiple forces that forged him.So, Deleuze shows us, through his studies, how the art, in its privileged relationship

    with time, allows the artist/thinker rebuilt his trajectory or achieve the various worldsand points of view that constitutes him, showing that the work of art discloses asubjectivity process that, at least in its beginning, are imperceptible to those whoexperiment then.Key-words:Deleuze; art; time; thinking; subjectivity.

    1 Doutor em Psicologia Clnica pela Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo. Atualmente

    professor associado III da Universidade Federal de Sergipe. E-mail: [email protected] em Psicologia Social pela Universidade Federal de Sergipe. E-mail: [email protected]

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    Ao longo de seu percurso filosfico, podemos observar a importncia que ofilsofo francs Gilles Deleuze conferiu a alguns domnios exteriores filosofia, taiscomo a literatura, a pintura e o cinema. Ao contrrio do que se poderia pensar, essestrabalhos no se caracterizam por serem justificativas ou explicaes filosficas para

    questes observadas no campo artstico. Trata-se antes de saber quais as possveisintercesses existentes entre esses domnios e a filosofia ou, mais especificamente,quais conceitos filosficos podem ser criados e/ou suscitados a partir dos mesmos.

    Ao realizar tais intercesses, Deleuze nos apresenta sua concepo depensamento e subjetividade, concepo que se encontra profundamente correlacionadaao tempo e a certo devir-artstico do pensador. Apesar de j encontrarmos, na dcada de1960, trabalhos importantes de Deleuze relacionando pensamento e literatura o casode Proust e os signos (1964/2006) e Sacher-Masoch (1967/2009) a questo retomada na dcada de 1980, desta vez no mbito da pintura e do cinema, atualizada em

    Lgica da sensao (1981/2007), Imagem-movimento (1983/1985) e Imagem-tempo(1985/1990). o que nos propomos evidenciar a seguir.

    Francis Bacon e a neutralizao da representao: o pintor das foras

    EmLgica da sensao, lanado em 1981, Deleuze empreende uma anlise daobra do pintor Francis Bacon para mostrar como as pinturas carregam, elas tambm,

    pensamentos ou modos diferentes de pensar. No caso da pintura especfica de FrancisBacon encontra-se nela um determinado exerccio do pensamento, caracterizado porcertos procedimentos que neutralizam o carter narrativo ou representativo da obra.Deleuze nos mostra de que modo, nos trabalhos do pintor irlands, vemos sedesenvolver uma problemtica em que o pintor privilegia a Figura em relao figurao, esta ltima considerada pelo filsofo francs como sendo a forma

    predominante ao longo da histria da pintura.A figurao em pintura diz respeito exatamente a certa concepo, a certo modo

    de pensar: o representacional. Ela ocorre quando os vrios elementos de uma tela, suasvrias figuras e objetos, se dispem de modo a pretender representar uma histria, ailustrar uma narrativa. Por outro lado, privilegiar a Figura seria, pelo menos em um

    primeiro momento, isol-la, fazendo com que seja rompido o liame representativoexistente entre ela e o resto da pintura.

    Assim, aquilo que parece estar sempre em evidncia na obra de Bacon justamente isto: como escapar da representao na pintura ou como liberar a pintura deum carter predominantemente representativo. Bacon tinha plena noo de que alguns

    dos maiores quadros haviam sido pintados desse modo, admirando inclusive muitosdeles. Mas a questo que o incomodava que a narrativa ou a representao pareciamimpedir a pintura de agir por si mesma. Do ponto de vista de Bacon, a pintura possuiriaum papel bem mais importante do que um mero carter representativo, j que nela,assim como em qualquer forma de arte, tratar-se-ia fundamentalmente de uma coisa:captar e evidenciar foras.

    O trabalho do pintor, bem como de qualquer artista, seria o de tornar visveis asdiferentes foras que agem nos corpos, modificando-os, provocando-lhes alteraes.Desse modo o pintor, ao pintar, captaria foras que no so necessariamente foras

    picturais, e que ainda assim lhe dizem respeito, na medida em que elas violentam oscorpos e, por conseguinte, a percepo e o pensamento. Da o fato das figuras retratadas

    por Bacon serem constantemente deformadas: por meio delas o pintor irlands no

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    deseja mostrar uma imagem seja ela a de um mundo real ou a de um mundofantasiado, sonhado ou imaginado , mas uma sensao: a da violenta ao das forasnos organismos.

    A tarefa da pintura definida como a tentativa de tornar visveisforas que no so visveis. Da mesma forma, a msica se esforapara tornar sonoras foras que no so sonoras. Isso evidente. Afora tem uma relao estreita com a sensao: preciso que umafora se exera sobre um corpo, ou seja, sobre um ponto da onda,para que haja sensao (Deleuze, 2007, p.62).

    O problema suscitado por Bacon poderia ento ser colocado da seguinte forma:de que maneira seria possvel captar foras como a presso, o peso, a temperatura, etc.Como retratar, por exemplo, o calor de uma determinada paisagem, mas no retratar nosentido de represent-lo, e sim mostr-lo efetivamente agindo sobre os corpos, isto ,

    provocando sensaes nos mesmos. Deleuze cita constantemente o exemplo de VanGogh, j que este foi capaz de mostrar a fora de germinao agindo nos girassis, ouainda Paul Czanne, capaz de retratar diversas sensaes em suas pinturas de naturezamorta.

    isto que parece verdadeiramente interessar Bacon, pintar sensaes, poisexiste uma grande diferena entre simplesmente representar uma cena e captarsensaes produzidas por foras invisveis. A sensao aquilo que age diretamente nosistema nervoso, violentando desse modo o pensamento. Isto significa que a violncia

    provocada pela sensao seria muito mais intensa do que qualquer violnciarepresentada em uma tela como, por exemplo, pinturas que buscam retratar cenas deguerra. Assim, a violncia representada apenas uma violncia secundria: o que se

    pode extrair dela , no mximo, a violncia que j se encontra retratada na tela. A partirdo momento em que h representao, perde-se toda a violncia original produzida pelaprpria fora, violncia capaz de coagir o corpo ou o pensamento.

    Deleuze nos mostra ento como Bacon busca captar, em seus quadros, essaviolncia original provocada nas e pelas sensaes. o que observamos, por exemplo,nas telas dos papas gritando, onde as figuras se encontram isoladas, ou seja, no h umcenrio como fundo ao qual elas estejam reagindo. Aqui vemos a clebre frmula deBacon: pintar o grito mais do que o horror, isto , pintar a sensao prpria ao grito,captar as foras que impelem a figura ao grito, foras que no so de forma algumailustrativas ou representativas de uma determinada cena. Assim, a sensao do grito ainda mais violenta que qualquer horror retratado em uma cena, j que mostra a ao de

    foras invisveis nos corpo. E justamente o fato de no se conseguir v-las que astornam ainda mais aterrorizantes.

    No entanto, a questo das foras e das sensaes na pintura de Bacon traz tonaoutra problemtica muito importante, e que lhe imanente: a relao que a arte entretmcom o movimento e/ou com o tempo. Ao se esforar para pintar as foras, Bacon parece

    privilegiar o tempo em detrimento do movimento. O movimento seria justamente aquiloque representado em uma tela, o que se passaria de um personagem a outro, de umobjeto a outro, ou at mesmo em um nico personagem ou objeto. A representao seutilizaria do movimento para, desse modo, ilustrar ou contar uma determinada histria.

    Mas, para Deleuze, existiria algo ainda mais profundo que o movimento, oumais ainda, um movimento que observado na figura que permanece imvel e isolada.

    Se existe ainda alguma espcie de movimento nas figuras de Bacon, pode-se dizer que

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    esse movimento no um movimento-representacional, e sim um movimento-mudana: existe algo acontecendo com e na figura, perceptvel o desenrolar de ummovimento na tela, mas de um movimento que atesta as modificaes sofridas pelafigura em funo das foras que agem sobre ela ao longo do tempo.

    E, com efeito, o que interessa Bacon no necessariamente omovimento, se bem que sua pintura torna o movimento muitointenso e violento. Mas, em ltima anlise, trata-se de ummovimento no prprio lugar, um espasmo, que d testemunho deum outro problema caracterstico de Bacon: a ao de forasinvisveis sobre o corpo (da as deformaes do corpo graas a essacausa mais profunda) (Deleuze, 2007, p.48-49).

    Em Bacon vemos o movimento adquirir uma importncia secundria, tornando-se meramente uma funo do tempo. Mas isto ainda no explicaria a importncia dotempo na obra deste artista e na obra de arte em geral. Uma rpida incurso em outraobra de Deleuze, Proust e os signos (1964/2006), talvez nos fornea os elementosnecessrios para expandirmos a compreenso desta problemtica, pois nesta obra talrelao encontra-se bem explicitada.

    Em Proust e os signos Deleuze nos mostra de que modo a obra do escritorfrancs Marcel Proust se constitui, de certo maneira, em um modo de pensar as derivasdo humano, modo este destitudo dos pressupostos observados no pensamentorepresentacional. No romanceEm busca do tempo perdido, Proust nos brinda com todosos ingredientes inerentes dmarchefilosfica, pois a personagem parte em busca deuma verdade ou verdades que sero reveladas por meio de um percurso, percurso queem ltima instncia a levar a constituio de sua prpria obra de arte.

    Proust nos mostra, assim, ao longo da sua obra, o personagem-artista sedeparando com diversas espcies de signos que devem ser objeto de um trabalhointerpretativo ou criativo. justamente por meio do desdobramento dos diferentes tiposde signos que o artista vai, pouco a pouco, desdobrando a si prprio, isto , seconstituindo, descobrindo, redescobrindo ou inventando as verdades que se encontramimplicadas em seu prprio devir ou trajetria de vida. Assim, nesta trajetria que ossignos, em Proust, iro traar uma relao essencial com o tempo. Essa relao seencontra expressa no somente por todo o romance, mas at mesmo nos prprios ttulose subttulos da obra como, por exemplo, tempo perdido e tempo recuperado. Em buscado tempo perdidoapresenta, para Deleuze, no somente uma concepo plural do signo,mas igualmente uma concepo plural do tempo, que se contrape a uma concepo

    puramente cronolgica do mesmo.Desse modo, Deleuze nos mostra que, da mesma forma que Proust e os signosnos apresenta quatro tipos de signos mundanos, amorosos, sensveis e artsticos ,observa-se igualmente, na obra, quatro linhas ou variaes do tempo que lhe soimanentes. So elas: tempo perdido, tempo que se perde, tempo redescoberto e tempooriginal ou absoluto. A cada tipo de signo corresponde uma linha privilegiada de tempo. bem verdade que, a rigor, cada tipo de signo participa mais ou menos de todas aslinhas do tempo. Por exemplo, os signos mundanos participam mais ativamente de umtempo que se perde: por serem signos frvolos, vazios, eles denotam um tempo que o

    personagem esperdia em seu percurso.

    Cabe ressaltar, porm, que os tempos inerentes aos signos mundanos, amorosos

    e sensveis so inseparveis de certa trajetria, de certas peripcias vividas pelas

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    andanas do personagem. Poder-se-ia dizer que eles so inseparveis dos movimentosrealizados pelo personagem nos vrios ambientes sociais, o que poderia nos levar a

    pensar e a privilegiar o movimento, o perambular do personagem-artista.No entanto, se os signos mundanos, assim como todos os outros, possuem suas

    verdades, e por isso so essenciais no trajeto da personagem, essas verdades somentesero reveladas posteriori, num tempo redescoberto. aqui neste ponto que Deleuzequer sublinhar aquilo que o escritor francs j havia mostrado com perfeio: que toda equalquer verdade uma verdade do tempo e no tempo. neste ponto que Proust eDeleuze afirmam um modo de pensar que se contrape ao pensamento representacional,que busca verdades fora do tempo, j que para estes autores a verdade inerente amundos e necessita de tempos singulares para emergirem.

    Em Proust e os signos, observamos que o filsofo francs confere certoprivilgio aos signos artsticos, j que eles so os signos capazes de revelar a essnciado artista, da trajetria e da prpria arte. Os outros signos possuem uma importncia

    parcial na medida em que eles conduzem o artista, passo a passo, aos signos essenciais

    da arte. Isto tambm se verifica em relao s linhas do tempo: h um tempo absolutoou original correspondente aos signos da arte. Tal tempo, por ser o tempo do qual ossignos artsticos mais participam ativamente, possui certo privilgio em relao soutras linhas do tempo. Mas, se cada signo participa mais ou menos de todas as linhasdo tempo, justamente porque cada linha reage sobre as demais, revelando verdadesque no seriam acessveis ao artista caso o aprendizado no envolvesse todos os signose todos os tempos.

    por isso que o tempo, em especfico, o tempo original, possui um privilgioem relao s demais linhas do tempo, pois estas quase se confundem com os diversosmovimentos-mundos vividos pelo artista. J o tempo original o tempo absoluto daobra de arte, tempo complicado que contm todos os outros, que reage sobre todos os

    demais, revelando as verdades dos signos mundanos, amorosos e sensveis, verdades atento desconhecidas pelo artista que, no momento em que sofria a ao desses signos,acreditava estar simplesmente perdendo tempo. Assim, encontramos em Proust e os

    signos: no tempo absoluto da obra de arte que todas as outras dimensesse unem e encontram a verdade que lhes corresponde. Os mundosde signos, os crculos daRecherche, se desdobram, ento, segundolinhas do tempo, verdadeiras linhas de aprendizado; mas, nessaslinhas, eles interferem uns nos outros, reagem uns sobre os outros.Sem se corresponderem ou simbolizarem, sem se entrecruzarem,sem entrarem em combinaes complexas que constituem o

    sistema da verdade, os signos no se desenvolvem, no seexplicam, pelas linhas do tempo (Deleuze, 2006, p.23-24).

    V-se assim, em Proust e os signos, como a arte torna-se uma espcie de dobrados signos e dos tempos vividos, tornando visvel um tempo singular absoluto que lhe inerente e que, apesar de inseparvel dos demais tempos-movimentos, possui a potncia

    paradoxal da essncia, de um tempo irrepresentvel.Agora que expusemos como Deleuze nos mostra a estreita correlao existente

    entre o tempo e a obra de arte na obra de Marcel Proust, podemos retornar FrancisBacon e sua pintura das foras.

    Ora, se h em Bacon e suas telas um privilgio ao tempo em detrimento do

    movimento, porque somente o tempo capaz de revelar a essncia das foras em sua

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    intensidade vertical, mostrar as verdades implicadas que as constituem. Desse modo, otempo tece uma relao privilegiada com a obra de arte e, por conseguinte, com o

    pensamento nela implicado. Se Bacon se esfora para pintar, em seus quadros, asdiferentes foras capazes de provocar sensaes nos corpos, modificando-os,

    violentando-os de algum modo, de todas as foras existentes presso, achatamento,peso, temperatura, etc. talvez a que mais provoque modificaes nos corpos sejajustamente a fora do prprio tempo.

    Assim, o tempo capaz de agir e reagir sobre todas as outras foras, revelandosuas verdades, verdades que so, em ltima instncia, verdades do tempo em si, isto ,verdades parciais e implicadas que concernem s derivas do artista, ou em outras

    palavras, que concernem a sua vida. por isso que o trabalho comum de toda equalquer arte seja, provavelmente, captar o tempo: pint-lo, escrev-lo, sonoriz-lo, etc.Captar este tempo absoluto, complicado, que somente pode ser percebido e atingido pormeio da obra de arte, e que quando atingido revela, por sua vez, a essncia ou o estilodo artista.

    Bacon parece, por duas vezes, ter tornado visvel o tempo, a forado tempo: a fora do tempo mutante, pela variao alotrpica doscorpos, num dcimo de segundo, que faz parte da deformao;depois, a fora do tempo eterno, a eternidade do tempo, por meioda Reunio-separao que reina nos trpticos, pura luz. Tornar otempo sensvel nele mesmo, tarefa comum ao pintor, ao msico, svezes ao escritor. Tarefa que ultrapassa toda medida ou cadncia(Deleuze, 2007, p.69).

    Cinema: imagem-movimento e imagem-tempo

    interessante notar como essa discusso acerca das relaes existentes entre aarte, o movimento e o tempo continuar nas duas obras seguintes de Deleuze: Aimagem-movimento e A imagem-tempo, lanados, respectivamente, em 1983 e 1985.Em ambos os livros o filsofo francs se utiliza de conceitos da filosofia de HenriBergson tais como os prprios conceitos de movimento e tempo para estabeleceruma classificao das imagens e dos signos observados nos cinemas clssico emoderno, mostrando suas relaes com o pensamento. Na verdade, Deleuze promoveum agenciamento entre a filosofia de Bergson e a classificao das imagens e signos talqual desenvolvida pelo semilogo americano Charles Sanders Peirce.

    As duas obras procuram traar um determinado percurso das imagens

    observadas na histria do cinema, indo de uma diversidade de imagens-movimento auma diversidade de imagens-tempo. Alm disso, Deleuze parece atestar ao longo doslivros certa evoluo entre essas duas espcies de imagens e suas variantes, evoluo

    que se encontra relacionada maneira como ambas se articulam com o pensamento.Em A imagem-movimento o filsofo francs nos mostra como a principal

    caracterstica dessas imagens justamente prolongar a percepo em movimentos ouaes. Se primeira vista esta questo poderia aparentar no ter muita importncia,Deleuze faz questo de ressaltar que o nascimento do cinema praticamentecontemporneo de uma crise no conhecimento, crise que atingiria mais especificamentea psicologia, e que consistia exatamente em uma dicotomia existente entre a imagem e omovimento.

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    Do ponto de vista de Deleuze, o perodo inicial de desenvolvimento do cinemaseria de fundamental importncia nessa discusso, na medida em que ele operava comum tipo ou tipos de imagens que privilegiavam signos de carter predominantementesensrio-motores. Esses signos possuem como propriedade fundamental traduzir

    imediatamente em estmulos motores isto , em movimento as sensaes que soproduzidas pela justaposio das imagens. A consequncia disto que os diferentestipos de imagem-movimento (imagem-percepo, imagem-ao, imagem afeco)atingem o pensamento de forma apenas indireta, j que elas privilegiam areapresentao ou representao de clichs ou situaes sensrio-motoras, exigindo do

    pensamento somente o seu reconhecimento. Seria basicamente uma situao deestmulo-resposta, como no arco reflexo: um automatismo em que o pensamento jamaischega a ser efetivamente confrontado ou abalado.

    Deleuze nos mostra ento como o cinema passa a exigir cada vez mais dopensamento, ou exigir cada vez mais pensamento, provocando assim o colapso dasimagens movimento. No captulo final de A imagem-movimento, intitulado A crise da

    imagem-ao, o filsofo francs enumera uma srie de fatores polticos, econmicos esociais que contriburam para o declnio da forma atravs da qual o cinema clssico

    produzia suas imagens. No entanto, esses fatores, ainda que importantes, seriam fatoressimplesmente extrnsecos. O acontecimento mais significativo diria respeito, naverdade, ao cinema em si. Na passagem do cinema clssico para o cinema moderno seobserva uma modificao no carter tcnico ou experimental do cinema, uma mudanana prpria maneira de se fazer filmes. Com isso, um novo tipo de imagem se tornava

    possvel, uma imagem que privilegiava uma nova espcie de signos, no mais signossensrio-motores, mas signos ticos e sonoros puros. O prprio Deleuze nos diz nocaptulo inicial deA imagem-tempo:

    Por isso os caracteres pelos quais definimos anteriormente a criseda imagem-ao: a forma da balada-perambulao, a difuso dosclichs, os acontecimentos que mal concernem queles a quemacontecem, em suma, o afrouxamento dos vnculos sensrio-motores, todos estes caracteres eram importantes, mas somenteenquanto condies preliminares. Eles tornavam possvel, masainda no constituam, a nova imagem. O que a constituiu asituao puramente tica e sonora, que substitui as situaessensrio-motoras enfraquecidas (Deleuze, 1990, p.11-12).

    Ao contrrio do cinema clssico de ao, o cinema moderno exprime um

    privilgio por temas banais e cotidianos, situaes em que os liames ou vnculossensrio-motores se apresentam cada vez mais enfraquecidos ou difusos. Distante dosesquematismos que exigiam do pensamento simplesmente um reconhecimento, esteagora se v confrontado com sua prpria impotncia. As situaes pticas e sonoras

    puras violentam o pensamento, na medida em que a percepo agora impedida de seprolongar em uma ao, isto , de apresentar uma resposta motora imagem.

    No cinema moderno os personagens vivem situaes que constantementeextrapolam a sua capacidade de agir, deixando-os inertes, paralisados. No entanto, essadiminuio em sua capacidade de agir, acarreta um aumento em suas capacidades deouvir e principalmente de ver. Os personagens so submetidos a vises das quaisinvariavelmente no podem se furtar ou ignorar. Quando se esgotam as respostas clichs

    decorrentes de esquemas previamente elaborados, no h mais como escapar do

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    cotidiano, isto , deixar de perceb-lo em toda sua beleza ou misria: cinema de videntemais do que cinema de ao.

    Essa nova espcie de signos pticos e sonoros deve seu surgimento no somentea esta modificao na temtica dos filmes, mas, principalmente, s inovaes tcnicas

    desenvolvidas pelo cinema moderno. Se o cinema clssico apresentava uma montagemque privilegiava os cortes racionais, isto , cortes que nos davam uma impresso de

    continuidade entre as imagens, o cinema moderno se caracteriza, ao contrrio, porcortes irracionais. O que observamos agora so quebras ou interrupes que rompemcom o suposto encadeamento ou linearidade das imagens. No se trata mais aqui de

    perceber o movimento. como se a percepo pudesse agora, efetivamente, captar aimagem em si, no mais a violncia da histria, mas a prpria violncia da imagem, talqual nos quadros de Bacon.

    Mas se os signos pticos e sonoros so capazes de violentar o pensamento, istose deve maneira como eles se encontram necessariamente articulados ao tempo. Istono significa dizer que a questo do tempo no era apresentada no cinema clssico. No

    entanto, aqui, o tempo era apresentado simplesmente em funo do movimento, j que arelao intrnseca existente entre os signos sensrio-motores e o encadeamento dasimagens permitia apreender um tempo predominantemente cronolgico, isto ,linearmente pensado enquanto variaes de um presente: o presente de uma imagematual, decorrente de uma imagem passada, e que por sua vez dar origem a uma imagemfutura.

    Porm, a partir do momento em que as situaes pticas e sonoras puras docinema moderno provocam um enfraquecimento das relaes existentes entre a

    percepo e as situaes sensrio-motoras estas ltimas caracterizadas por suasrelaes com o movimento , o que se verifica na tela justamente o tempocomplicado, absoluto, tempo que comporta de uma s vez todas as suas sries, sendoque cada uma delas no somente coexiste com as demais, mas reage sobre todas asoutras. O tempo apresentado ento em sua forma direta, e no mais representado emrazo do movimento: da se falar agora em uma imagem-tempo e no mais em umaimagem-movimento.

    Ora, se verdade que a situao sensrio-motora impunha arepresentao indireta do tempo como consequncia da imagem-movimento, a situao puramente tica ou sonora abre-se com basenuma imagem-tempo direta. A imagem-tempo o correlato doopsigno e do sonsigno. Ela nunca apareceu melhor que no autorque antecipou o cinema moderno, desde o perodo que antecede a

    guerra e nas condies do cinema mudo, Ozu: os opsignos, osespaos vazios ou desconectados abrem-se sobre as naturezasmortas como forma pura do tempo. Em vez da situao motora -representao indireta do tempo, temos opsigno ou sonsigno-apresentao direta do tempo (Deleuze, 1990, p.324).

    J vimos de que modo Deleuze se utiliza da obra de Proust quando daformulao de seu conceito de tempo. Contudo, o pensamento de Bergson igualmenteimportante para o filsofo francs no que diz respeito a esta problemtica, como

    podemos observar em seus livros que tratam do cinema. Tomando como ponto departida alguns conceitos fundamentais da filosofia de Bergson, a exemplo dos conceitos

    de atual e virtual, Deleuze nos mostra de que modo o cinema moderno e seu

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    consequente desenvolvimento de uma imagem-tempo se encontra articulado concepo de um tempo no cronolgico.

    Uma das principais teses bergsonianas acerca do tempo provavelmente a deque o passado se conserva em si prprio. Ao contrrio de uma concepo puramente

    cronolgica do tempo, em que o passado pensado simplesmente como um presenteque passou, isto , como um presente que avana em direo a um futuro, Bergson nosapresenta a idia de um passado que coexiste com o presente ou, mais ainda, de um

    passado virtual que coexiste com seu presente atual. importante lembrar que osconceitos de atual e virtual em Bergson no exprimem, de modo algum, uma relao deoposio ou contradio. Na verdade, ambos os conceitos se opem ao conceito de

    possvel, j que este ltimo pensado por Bergson em contraposio ao conceito dereal. O possvel, como o prprio nome j denota, diz respeito a algo que poderia ou nose realizar ou que, nesse caso, poderia ou no vir a existir.

    Sabemos que em uma concepo cronolgica do tempo, o passado no existepropriamente, no possui uma natureza real. O que existe so presentes que se sucedem,

    sendo que o futuro tambm uma mera possibilidade, na medida em que ele pode ouno vir a acontecer. Entretanto, em Bergson, o virtual to real quanto o atual, elecomporta tanta realidade quanto o atual. Ora, se o virtual real, porque eleefetivamente existe. E se o passado uma virtualidade que pode ou no ser atualizada,isto significa dizer que ele possui uma existncia em si, que ele comporta uma realidade

    prpria, independentemente de um presente no qual ele poderia se atualizar. Aafirmao bergsoniana de que o passado se conserva em si mesmo diz respeito, emltima instncia, a este fato: o passado existe de forma concreta, ele uma realidade, e

    por ser real ele coexiste com o presente. Em Bergson o tempo no se desdobra somentede forma sucessiva, e sim de forma simultnea.

    As grandes teses de Bergson sobre o tempo apresentam-se assim: opassado coexiste com o presente que ele foi; o passado se conservaem si, como passado em geral (no-cronolgico); o tempo sedesdobra a cada instante em presente e passado, presente que passae passado que se conserva (Deleuze, 1990, p.103).

    Agora se pode compreender de forma mais evidente a correlao existente entreo cinema moderno e a imagem-tempo. A partir do momento em que os signos ticos esonoros puros destituem as situaes sensrio-motoras, impedindo que as imagens se

    prolonguem em movimento ou seja, que elas sejam percebidas enquanto umasequencia cronolgica de eventos estas agora so capazes de apresentar o tempo em

    seu estado puro, em seu desdobramento entre um presente e um passado coexistentes.Deleuze denominar este tipo de imagem de imagem-cristal: uma imagem em que se

    possvel perceber de forma ntida a simultaneidade existente entre as diversas linhas dotempo.

    Devemos ressaltar que a imagem-cristal no de forma alguma o tempo, e simum tipo de imagem que nos permite visualizar o tempo em seu estado puro. Com oconsequente rompimento de uma percepo cronolgica, o passado deixa de ser captadosomente como passado de um novo presente, presente sempre em vias de atualizar-se.Assim, o tempo se apresenta em toda a sua complexidade, pois agora se pode observarno somente dois passados, como tambm dois presentes: um presente atual, e um

    presente em vias de atualizar-se, presente que parte em direo ao futuro. J vimos queo presente se define em funo do atual, isto , que sua natureza o puro devir. Mas,

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    quando o presente atual sofrer uma nova atualizao, ele estar na verdade puxandouma nova srie do virtual, atualizando um novo feixe do passado. O feixe anterior do

    passado permanecer colado ao presente que o atualizou. como se o presente atualno pudesse se separar do passado que ele atualiza: eles coexistem no tempo

    simultaneamente.No entanto o presente devir, ou seja, ele se atualizar novamente. Ento, essepresente em vias de atualizar-se puxar uma nova srie do passado, com a qual elecoexistir simultaneamente, se tornando agora o novo presente atual com sua respectivaimagem virtual correlata. O que observamos aqui so as sries do tempo se desdobrandoe correndo de forma paralela: um presente atual com seu passado virtual coexistente seu passado particular , e um presente em atualizao que transformar o passado

    particular anterior em um passado geral, em um passado que passa. Mas, por sua vez,este presente em atualizao carregar consigo um novo feixe do passado, ele atualizaruma nova srie do passado.

    O que constitui a imagem-cristal a operao mais fundamental dotempo: j que o passado no se constitui depois do presente que elefoi, mas ao mesmo tempo, preciso que o tempo se desdobre acada instante em presente e passado, que por sua natureza diferemum do outro, ou, o que d no mesmo, desdobre o presente em duasdirees heterogneas, uma se lanando em direo do futuro e aoutra caindo no passado. preciso que o tempo se cinda ao mesmotempo em que se afirma ou desenrola: ele se cinde em dois jatosdissimtricos, um fazendo passar todo o presente, e o outroconservando todo o passado. O tempo consiste nessa ciso, e ela, ele que se v no cristal (Deleuze, 1990, p.102).

    Contudo, talvez no tenhamos atingido ainda a problemtica principal destanova concepo do tempo, observada na passagem do cinema clssico para o cinemamoderno. comum nos depararmos com a idia de que o passado constituisimplesmente uma lembrana psicolgica, na medida em que ele no existe de fato.Afinal, se somente o presente real, se o passado no comporta uma realidade, nohaveria como este ltimo se conservar a no ser atravs de uma memria psicolgica.Alm disso, essa lembrana ou memria psicolgica , em regra, compreendidaenquanto uma regio interior, cuja localizao geralmente se atribui ao crebro. Dissodecorre a idia de que a subjetividade constituda por essa experincia interior que

    possumos do tempo: ela seria esse constante acmulo de lembranas ou de memrias

    decorrentes da sucesso cronolgica dos presentes.No entanto, se levarmos em considerao uma concepo bergsoniana do tempo,o passado comporta tanta realidade quanto o presente: ele se conserva em si prprio.Existe efetivamente um Ser do passado ou, em outras palavras, um Ser da memria,

    que permanece ou que insiste no tempo, independentemente de sua possvel atualizaoem um presente. A existncia de um Ser do passado ou de um Ser da memria implica,

    por sua vez, a possibilidade de existncia de uma lembrana pura, no mais meramentepsicolgica, e sim ontolgica: uma ontologia do tempo. Esse fato acarreta umaconsequncia extremamente importante, na medida em que o tempo agora nos exterior.

    Deleuze nos mostra inclusive como a experincia que possumos do tempo

    essa lembrana ou memria psicolgica que denominamos anteriormente de uma

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    experincia interior j derivada desse tempo em seu estado puro, dessa memriaontolgica. justamente este o conceito de durao, tal qual pensado por Bergson: aexperincia que possumos desse tempo absoluto. A lembrana ou memria psicolgica decorrente, na verdade, de um salto nesse Ser da memria que o tempo. Longe de ser

    interior, a experincia psicolgica em Bergson diz respeito justamente a atualizaodesse puro passado virtual, tempo em sua forma absoluta. Em Bergsonismo(1966/2008), lanado em 1966, j encontrvamos:

    Colocamo-nos inicialmente, diz Bergson, no passado em geral: oque ele assim descreve o salto na ontologia. Saltamos realmenteno ser, no ser em si, no ser em si do passado. Trata-se de sair dapsicologia; trata-se de uma Memria imemorial ou ontolgica. somente em seguida, uma vez dado o salto, que a experincia vaiganhar pouco a pouco uma existncia psicolgica: de virtual, elapassa ao estado atual. Fomos busc-la ali onde ela est, no Serimpassvel, e damos-lhe pouco a pouco uma encarnao, umapsicologizao (Deleuze, 2008, p.44).

    O tempo no cronolgico esse tempo em que coexistem de forma simultneaum passado puro lembrana absoluta e um presente que se atualiza nos diferentescorpos em forma de um passado individual, mas que em um constante devir (presenteque atualiza um passado puro), desdobra as vrias linhas do tempo conforme cada corpoem seus movimentos singulares. So essas diversas linhas do tempo que se atualizaroem uma infinidade de mundos, todos eles reais e coexistentes entre si.

    Em Proust e os signos Deleuze j nos mostrava como as essncias ou idiasfazem parte de sries ou grupos que sero selecionadas de acordo com os encontrosque um pensador experimenta ao longo de seu percurso. Ora, se as essncias ou idiasfazem parte de sries ou grupos que so selecionados de acordo com os encontros,

    porque todas elas existem ao mesmo tempo, constituindo alternativas de mundos quepodero ser experimentadas pelo pensador de acordo com seu trajeto.

    Em seu livro sobre Proust, Deleuze j ressaltava a relao intrnseca existenteentre o tempoeste tempo complicado, a arte e a subjetividade, mostrando como estaltima se constitua passo a passo atravs de um procedimento inventivo por meio doqual o artista ou pensador era levado decifrar os signos, isto , atingir sua essncia,extraindo-os de grupos ou sries de infinitas possibilidades. Ao final, evidencia-se quetodos esses grupos ou sries, todos esses mundos so produzidos pelo desdobrar dasvrias linhas do tempo que o protagonista experimentou. EmProust e os signosDeleuze

    identifica quatro dessas linhas, cuja combinao responsvel por originar mltiplassries das quais os signos podem participar. Isto significa dizer que se existe umprocesso de subjetivao, ele pertence, na verdade, ao prprio tempo ontolgico, a estetempo que efetivamente existe fora de cada sujeito psicolgico e que se encontra em um

    permanente estado de complicao entre suas linhas: a subjetividade constitudapelo e no tempo, constituda por essas diversas sries e grupos, pelas essncias queconstituem uma infinidade de mundos, pontos de vista e perspectivas que existemindependentemente do sujeito, que o preexistem.

    Somente um isolacionismo, um egocentrismo ou um psicologismo exagerado deum dado sujeito pode faz-lo no perceber que ele se encontra no meio de umainfinidade de pontos-de-vista ou perspectivas ao longo de sua trajetria existencial que,

    em ltima instncia, o selecionar e o tornar portador de certo estilo. Mas claro que

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    no fcil se obter tal percepo e neste sentido que a arte importante, pois somenteela pode possibilitar esta vidncia.

    A essncia a qualidade ltima no mago do sujeito, mas essa

    qualidade mais profunda do que o sujeito, de outra ordem:Qualidade desconhecida de um mundo nico. No o sujeitoque explica a essncia, , antes, a essncia que se implica, seenvolve, se enrola no sujeito. Mais ainda: enrolando-se sobre simesma ela constitui a subjetividade. No so os indivduos queconstituem os mundos, mas os mundos envolvidos, as essncias,que constituem os indivduos: Esses mundos que so osindivduos e que sem a arte jamais conheceramos. A essncia no apenas individual, individualizante (Deleuze, 2006, p.41).

    Logo, a experincia que a obra de arte proporciona ao artista consiste em nadamais do que um salto ou uma experincia nesse tempo desdobrado em suas vrias linhas

    coexistentes, uma viso do tempo em seu estado puro. Essa experincia permite aoartista ou pensador atingir os diversos mundos que o constituem, as diferentes verdadesque concernem a sua prpria vida. Em outras palavras, a constituio da subjetividade j uma movimentao por esta subjetividade primeira, subjetividade do prprio tempo. O

    pensamento de Proust e posteriormente o de Bergson permitiro a Deleuze concluir que,longe do que se costuma pensar habitualmente, no o tempo que interior ao homem,e sim o inverso, j que o homem quem se move no interior desse tempo complicado: asubjetividade , na verdade, uma dobra do tempo.

    Repetidas vezes se reduziu o Bergsonismo seguinte idia: adurao seria subjetiva, e constituiria nossa vida interior. E, sem

    dvida, Bergson precisou se expressar assim, ao menos no comeo.Mas, cada vez mais, ele dir algo bem diferente: a nicasubjetividade o tempo, o tempo no-cronolgico apreendido emsua fundao, e somos ns que somos interiores ao tempo, no oinverso. Que estejamos no tempo parece um lugar comum, noentanto o maior paradoxo. O tempo no o interior em ns, justamente o contrrio, a interioridade na qual estamos, nosmovemos, vivemos e mudamos. Bergson est bem mais perto deKant do que pensa: Kant definia o tempo como forma deinterioridade, no sentido em que somos interiores ao tempo (s queBergson concebe essa forma bem diferente de Kant). No romance,ser Proust quem saber dizer que o tempo no nos interior, massomos ns, interiores ao tempo que se desdobra, que se perde e sereencontra em si mesmo, que faz passar o presente e conservar opassado (Deleuze, 1990, p.103-104).

    Concluso: Subjetividade e Tempo

    Vimos assim como as intercesses com Bacon, Proust e Bergson levaramDeleuze a sublinhar a existncia de dois planos, um ligado aos movimentos do sujeitoem sua trajetria existencial, trajetria cheia de peripcias sensrio-motoras, aes asmais diversas, levando-o a habitar mundos variados e tornando-os cheios de lembranas

    pessoais, psicolgicas, e outro plano em que os movimentos se paralisam revelando

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    uma temporalidade para alm do tempo cronolgico, retomando a problemtica daessncia sem, no entanto, desfazer-se dos movimentos vividos.

    Estes dois planos revelam tambm a existncia de duas concepes desubjetividade: uma que considera o tempo interior ao sujeito, constituindo ou dando-lhe

    uma histria pessoal representada pelas lembranas e dando-lhe a impresso que adurao subjetiva, e outra na qual o sujeito ou subjetividade o prprio tempo, nocaso, em que o sujeito constitudo no e pelo tempo, enquanto produto de forasinvisveis virtualmente reais, foras coercitivas.

    Se o sujeito pensante, seja ele artista ou filsofo, produzido por meio de forascoercitivas invisveis, tal constituio faz com que, num primeiro momento, ele seconsidere como sujeito ativo e iniciador do processo, pois se encontra impotente paraconceber-se como efeito de foras imperceptveis que lhe so desconhecidas. nestesentido que tal sujeito considera-se causa de suas aes e de suas lembranas. Nestecaso, sendo-lhe impossvel ter o conhecimento das foras virtuais que possibilitaram suaemergncia, somente a obra de arte ou o pensamento enquanto obra de arte e ai que

    se encontra a importncia de ambospodem revelar o tempo ontolgico do qual fazemparte as linhas, movimentos ou aes vividos individualmente.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    DELEUZE, Gilles. A Vida Como Obra de Arte. IN: Conversaes. So Paulo: Editora34, 2007.

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