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    Sapientiam Autem Non Vincit Malitia

    www.seminariodefilosofia.org

    Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida, arquivada ou

    transmitida de nenhuma forma ou por nenhum meio, sem a permisso expressa do autor.1

    Arte sacra e estupidez profana

    Olavo de Carvalho

    No seu livro memorvel sobre "O Simbolismo do Templo Cristo" (Le Symbolisme duTemple Chrtien, Guy Trdaniel, 1990), Jean Hani observa que nos tempos modernos a artesacra desapareceu do Ocidente, sendo substituda pela arte meramente religiosa. A diferena que esta ltima expressa apenas sentimentos ocasionais e concepes culturalmente localizadas,enquanto aquela uma cristalizao visvel de certos princpios ordenadores, universais,transcendentes no s subjetividade individual mas a todo condicionamento histrico-cultural.

    Junto com a arte sacra, essa mesma diferena veio desaparecendo do horizonte de conscincia damodernidade desde o sculo XVIII pelo menos, s tendo sido recuperada parcialmente graas aum pequeno grupo de etnlogos e historiadores das religies, como Mircea Eliade, AnandaCoomaraswamy, Matthila Ghyka, Schwaller de Lubicz, Mary Hambidge, Louis Charbonneau-Lassay e outros. Estudando edifcios sagrados do extremo Oriente, da ndia, do Egito e da

    antigidade clssica, esses pesquisadores descobriram que a estrutura dos templos obedecia a umconjunto de preceitos, substancialmente os mesmos que se poderiam observar nas catedrais daIdade Mdia crist. Esses preceitos, por sua vez, condensavam todo um saber simblico sobre aordem da realidade em geral e o posto do homem no universo. Uma vez atravessado o vu dossmbolos, a presena desses mesmos ensinamentos em civilizaes separadas por enormesdistncias no tempo e no espao dava testemunho de algo que, na mais tmida das hipteses,eram "constantes do esprito", que a Histria no podia explicar, porque constituam, aocontrrio, a moldura da possibilidade mesma de uma Histria humana.

    Hani deveria ter acrescentado sua lista de pioneiros os nomes de Ren Gunon, FrithjofSchuon, Titus Burckhardt, Seyyed Hossein Nasr e Martin Lings, que influenciaramconsideravelmente o seu prprio trabalho. O detalhe que parece ter-lhe escapado que, de todosesses autores, somente um Charbonneau-Lassay era catlico, e nenhum protestante. Areconquista da compreenso simblica da arte sagrada crist veio, em substncia, de fora: de forano s do clero ocidental, mas de toda a intelectualidade catlica e protestante. Mesmoconsiderado s do ponto de vista da Histria da Arte, esse dado j seria inquietante: religiosos eleigos que no entendem o sentido dos edifcios onde oram esto, literalmente, perdidos noespao. Mas a perda da compreenso dos smbolos , ao mesmo tempo, a perda da cincia queeles veiculam. E esta cincia constitui, para dizer o mnimo, o nico fundamento intelectualmentesatisfatrio de uma distino entre o sagrado e o profano. Os que a perderam, por mais religiososque sejam, esto condenados a curvar suas cabeas ante a cincia materialista, rebaixando-se ao

    ponto de esperar dela a legitimao racional da sua f.

    Nada poderia ilustrar melhor a crise do cristianismo -- e da civilizao Ocidental inteira --do que esse fenmeno a um tempo humilhante e providencial de nossos tesouros intelectuaisperdidos h sculos nos serem devolvidos por pessoas estranhas s nossas comunidadesreligiosas. A arte sacra , por essncia, o nico suporte sensvel para a ascenso do fiel a um

    vislumbre das realidades espirituais ltimas. A beleza, segundo Plato, a forma da Verdade.Desprovida desse suporte, a prtica religiosa reduz-se a um obediencialismo literalista, grosseiro ecompulsivo, apenas adornado aqui e ali pelas fantasias, no raro disformes, de artistas, cristos

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    ou ateus, muito alheios ao universo de conhecimentos espirituais que, em suas obras, deveriamteoricamente expressar. Mesmo descontando monstruosidades explcitas como as catedrais deBraslia e do Rio de Janeiro e outras celebraes em pedra de tudo quanto h de mais hostil aocristianismo, os locais de culto so hoje em dia meras construes profanas usadas para finsnominalmente religiosos.

    Esse fenmeno, por si, basta para ilustrar o estado de alienao que foi se espalhando entresacerdotes e intelectuais cristos nos ltimos sculos, tornando-os incapazes de fazer face aosdesafios culturais e ideolgicos da modernidade; desafios que, em si mesmos, nada tinham demuito temvel e que poderiam ter sido exorcizados, sem maiores dificuldades, por uma classeintelectual capacitada. Que o debate religioso dos ltimos sculos tenha se congelado noesteretipo razo versus f foi somente o primeiro sinal da inpcia que havia se espalhado entreos intelectuais religiosos. As vulgaridades do modernismo catlico e do protestantismo liberal,para no falar da Teologia da Libertao em suas vrias verses, teriam sido facilmenteestranguladas no bero se os defensores da religio tivessem uma compreenso mais aprofundadados princpios universais que a fundamentam. Na ausncia desta condio, aquelas correntes

    adquiriram uma importncia desmesurada, suscitando, em reao, o surgimento detradicionalismos meramente exteriores, baseados antes numa exasperao de sentimentosreligiosos ofendidos do que numa compreenso real da situao. No preciso dizer quecentenas de milhes de almas individuais se viram atingidas e desnorteadas por esse processo,cujas conseqncias polticas e culturais so imensurveis. No creio que seja possvelcompreender nada da histria dos ltimos sculos sem encar-la desse ponto de vista, pois asreligies so a espinha dorsal de suas respectivas civilizaes, e a multido levada, ou a abandonara f ou a sustent-la sem qualquer apoio esttico e intelectual, est condenada a ver-se presa detoda sorte de fantasias e delrios satnicos, que acabam se incorporando cultura superior e

    vida cotidiana. No conheo um s indivduo humano cujos dramas pessoais no remontem, dealgum modo, a esse processo. Tambm no imagino como os fenmenos paralelos da invaso

    islmica e do dio anticristo generalizado possam ser explicados fora desse quadro, to distanteda imaginao dos cientistas polticos e analistas de mdia.

    A Igreja sempre insistiu que o conhecimento da existncia e das qualidades de Deus no matria de f, mas de inteligncia racional. Matrias de f so, em contrapartida, o nascimentomiraculoso de Nosso Senhor Jesus Cristo, Sua misso de Salvador, etc. Mas esta f, sem aqueleconhecimento, dificilmente pode se defender de ataques um tanto sofisticados intelectualmente.O que falta aos cristos no a f, mas uma conscincia clara dos seus fundamentos cognitivosinabalveis. So precisamente estes os que a arte sacra genuna ilustra e torna acessveis imaginao das multides, aplanando o caminho de uma posterior compreenso intelectual. Essesprincpios, como no se referem exclusivamente s matrias de f da religio crist, sosubstancialmente os mesmos que aparecem na arte sacra de todas as grandes religies. Que essatemvel arma intelectual fosse perdida durante sculos e s voltasse pelas mos de pessoas alheiasao meio cristo uma das grandes ironias da Histria, mas, ao mesmo tempo, umaoportunidade providencial que os cristos no tm o direito de desprezar. O prprio livro de JeanHani uma prova de quanto eles tm a ganhar com a lio recebida daqueles estudiososmuulmanos, budistas, etc. Eu mesmo me lembro de ter tido pela primeira vez a notcia daexistncia de um fenmeno espiritual to gigantesco quanto o Pe. Pio de Pietrelcina por meio deum autor budista, Marco Pallis. Guiado pelos princpios universais que haviam se incorporado

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    no s a sua inteligncia, mas sua personalidade, Pallis, que conheci quando ele j tinha passadodos noventa anos de idade, tinha clara conscincia de que os feitos miraculosos do Pe. Pio eram,depois da apario de Ftima, o centro mesmo da vida catlica no sculo XX. Mas os fiis e amdia catlica no parecem capazes de distinguir entre o Pe. Pio e Madre Teresa de Calcut (ou,pior ainda, Paulo VI). A f, sem o devido suporte intelectual, acaba por buscar apoio nos critrios

    dos formadores de opinio usuais, para os quais a distino entre um santo e um pop star difcilde conceber. O elogio do Osservatore Romano a Michael Jackson no um caso isolado dedemncia clerical. Nem os afagos do Papa Bento XVI ao regime cubano por sua solidariedadepara com os outros povos (solidariedade constituda essencialmente da exportao de guerrilhase drogas) so um erro acidental. So sinais de que a consciencia catlica perdeu algo do senso darealidade e busca refgio no simulacro montado pela opinio dominante, mesmo sabendo queesta ltima , em essncia, anticrist. A debacle da inteligncia precede a dissoluo da f. Mashoje em dia voc no pode falar de conhecimento espiritual sem que logo aparea algum fielindignado acusando-o de "gnstico". Se, de um lado, as mais aberrantes heresias revolucionriasso paternalmente toleradas dentro da Igreja (afinal, a Teologia da Libertao nunca sofreu nadaalm de reprimendas verbais), qualquer tentativa de dar f algum suporte intelectual mais amplo

    do que um tomismo de manual vista com suspeita verdadeiramente suicida. Quantos tomistasde carteirinha notaram, por exemplo, que a construo formal da Suma Teolgica,estruturalmente idntica das catedrais gticas, veicula uma mensagem ainda mais luminosa quea do sentido literal do texto? Eu jamais teria percebido isso sem a ajuda de Erwin Panofsky, umautor a cuja palavra os catlicos nunca dariam mais credibilidade que de um Jacques Maritain,mesmo sabendo de todos os danos que este fez sua Igreja.

    Em compensao, os trabalhos do grupo de estudiosos mencionados por Hani tambmtrazem, junto com sua contribuio positiva, alguns riscos considerveis para o fiel cristo que sedeixe deslumbrar por eles. Desde logo, sua perspectiva universalista destaca os pontos que socomuns a todas as religies, e a soma desses pontos desenha apenas a armadura metafsica da

    realidade, sem nenhuma abertura para a diferena especfica do cristianismo, que se constitui, deum lado, pela presena histrica e pessoal do Logos encarnado e, de outro, por essa mesmapresena reverberada e prolongada em milagres que no cessam de acontecer, dos quais a vida doprprio Pe. Pio d testemunho incontestvel. A mera doutrina metafsica, em si, no d contadesses milagres. Eles no acontecem por causa de leis universais, mas por atos divinosimprevisveis que no as desmentem, claro, mas que no podem ser deduzidos delas a priori.

    Outro perigo inerente a esses estudos que, dentre os autores que a eles se dedicam, vriosso aqueles que, como Ren Gunon ou Frithjof Schuon, a pretexto de enfatizar a prioridade daespritualidade profunda sobre as meras prticas devocionais, acabam privilegiandodesmedidamente o papel de certas tradies esotricas e usando, para isso, de boas doses demistificao. Isso no invalida, claro, o ensinamento que nos legam sobre o simbolismouniversal e as doutrinas metafsicas. quando entram no captulo das iniciaes que elescomeam a deformar as coisas e a incutir no leitor as mais extravagantes iluses. Na confusoespiritual reinante, alguns chegaram a apegar-se autoridade intelectual de Ren Gunon aoponto de celebr-lo como bssola infalvel. No s a renitente falibilidade de Ren Gunon,mas provas inequvocas de sua desonestidade intelectual, ao menos nos escritos de juventude,aparecem de maneira to ntida nas meticulosas anlises feitas sine ira et studio por Louis deMaistre em Lnigme Ren Gunon et les Superieurs Inconnus. Contribution a lude de

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    lHistoire Mondiale 'Souterraine' (Milano, Arch, 2004), que continuar a neg-las s pode sercoisa de fanticos deslumbrados.

    Outro erro grave em que se pode incorrer na leitura desses autores ignorar o fato de que,aparentando contribuir para uma restaurao da civilizao crist, eles no acreditavamabsolutamente na possibilidade histrica de realiz-la e, ao contrrio, apostaram tudo na

    "islamizao do Ocidente" (sic). Da a ambigidade temvel da sua contribuio. Aqueles que,desesperados ante a autodestruio feroz da nossa civilizao, busquem auxlio no estudo deGunon, Schuon, Nasr, Lings e respectivos continuadores, devem estar conscientes de queencontraro a uma espada de fio duplo, bem difcil de manejar sem danos para o aprendiz. OIslam que hoje vai ocupando a Europa e os EUA com uma fora avassaladora e umaautoconfiana psicoptica no aquele Islam lindamente espiritual, mtico, enaltecido por essesautores com um irrealismo que raia a hipocrisia. um Islam reduzido expresso mais grosseirade um imperialismo globalista inspirado no equivalente muulmano da "teologia da libertao",remontando s idias de Sayyd Qutub (v., por exemplo,http://www.guardian.co.uk/world/2001/nov/01/afghanistan.terrorism3).

    a este Islam que a proteo ostensiva do Prncipe Charles da Inglaterra -- no porcoincidncia, um discpulo de Martin Lings -- abre as portas do seu pas, aprofundando a crisecultural britnica, apressando um desenlace que se anuncia iminente e fatal. Se at esse aristocratalongamente preparado para as mais altas funes de comando pode servir de instrumento amudanas histricas cujo alcance ele dificilmente compreende, quanto mais sujeitos a isso noestaro os jovens intelectuais que, em crise de desespero diante do suicdio ocidental, saiam embusca das "Luzes do Oriente"?