Museologia da Arte Sacra em Portugal (1820-2010).pdf

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António Manuel Ribeiro Pereira da Costa MUSEOLOGIA DA ARTE SACRA EM PORTUGAL (1820-2010) ESPAÇOS, MOMENTOS, MUSEOGRAFIA Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra 2011

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  • Antnio Manuel Ribeiro Pereira da Costa

    MUSEOLOGIA DA ARTE SACRA EM PORTUGAL

    (1820-2010) ESPAOS, MOMENTOS, MUSEOGRAFIA

    Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra

    2011

  • Antnio Manuel Ribeiro Pereira da Costa

    MUSEOLOGIA DA ARTE SACRA EM PORTUGAL

    (1820-2010) ESPAOS, MOMENTOS, MUSEOGRAFIA

    Tese de Doutoramento em Letras, na rea de Histria,

    especialidade de Museologia e Patrimnio Cultural,

    apresentada Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra,

    sob a orientao do Professor Doutor Jos Manuel dos Santos Encarnao e

    do Professor Doutor Jos Maria Amado Mendes

    Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra

    2011

  • memria de meu Pai

  • 5

    Agradecimentos

    A investigao levada a cabo para elaborao desta tese, efectuada tambm no quadro

    da actividade do Centro de Estudos Arqueolgicos das Universidades de Coimbra e Porto

    (Unidade I&D n. 281 da Fundao para a Cincia e a Tecnologia), a que tenho a honra de

    pertencer, gozou do privilgio de ter sido apoiada com uma bolsa outorgada pela referida

    Fundao [SFRH / BD / 21419 / 2005], o que mui penhoradamente agradeo, pois sem

    esse auxlio esta pesquisa no teria sido possvel.

    Ainda que seja um trabalho solitrio por natureza, este estudo no poderia realizar-se

    sem a colaborao de vrias pessoas e instituies que, de um modo ou de outro, me ampa-

    raram no caminho. Por isso, agradeo tambm:

    Aos meus orientador, Doutor Jos dEncarnao, e co-orientador, Doutor Jos Ama-

    do Mendes, pela aceitao desse mnus, pela confiana e motivao constantes, bem

    como pelos conselhos e indicaes que ao longo deste tempo me transmitiram;

    minha Me e meu Pai (in memoriam), pelo apoio incondicional;

    minha noiva Eunice, pela pacincia, compreenso e encorajamento durante todo

    este perodo;

    Aos funcionrios da Biblioteca Nacional de Portugal, pela simpatia e dedicao com

    que acolheram os incessantes pedidos;

    E a um conjunto de pessoas que de alguma forma contriburam em uma ou outra eta-

    pa deste trabalho: Albertina Oliveira (Presidente da Junta de Freguesia de Ribeira

    Ch), Alexandra Braga (Museu de Lamego), Ana Cristina Baptista (Directora de Pro-

    jectos da Fundao Eugnio de Almeida), Dulce de Andrade (Museu de Angra do

    Herosmo), Eunice Amaro (Fundao Eugnio de Almeida), Fernanda Formigo

    (Museu Municipal de Alcochete), P.e Francisco Couto (Proco de Nossa Senhora da

  • 6

    Assuno, Elvas), P.e Joo de Deus Jorge (Proco de Sobrosa), Jos Miguel Miranda

    Amaral (Museu de Ribeira Ch), Lus Menezes (Director do Museu da Horta), Maria

    Carlos Pgo (Museu da Pedra, Cantanhede), Maria da Conceio Santos (Vereadora

    da Cmara Municipal de Vila Franca de Xira), Maria Isabel Rocha Roque, entre

    outras que no anonimato ofereceram abnegadamente tambm o seu prstimo

  • 7

    Resumo

    A arte sacra crist constitui uma categoria muito prpria da produo artstica, enquanto

    evidncia material do Homem e da sua relao com o Sagrado, caracterizada quer pela

    temtica e simbologia, quer pela peculiar aplicao ritual. Atendendo importncia do

    legado histrico e artstico eclesistico no patrimnio cultural portugus, o presente estudo

    analisa as prticas museolgicas em torno dos bens da Igreja Catlica afectos ao culto e

    devoo, nomeadamente a sua incluso na esfera dos museus e a utilizao em exposies,

    desde o incio do perodo liberal, momento de afirmao do museu como instituio de

    utilidade pblica, at actualidade, marcada por uma crescente dinmica neste domnio.

    Em termos estruturais, radica em dois objectivos distintos que se complementam num

    avano convergente do histrico para o terico e do geral para o particular, procurando

    compreender o fenmeno da museologia da arte sacra em Portugal atravs das suas dimen-

    ses permanente e temporria. Num mbito histrico, traa-se a evoluo da museologia da

    arte sacra, a partir do inventrio e estudo dos museus e das exposies temporrias, deter-

    minando os momentos-chave e a sua relao com a Histria do Pas, da Igreja e da Museo-

    logia, de um modo geral, considerando no apenas o processo expositivo mas tambm as

    restantes funes museolgicas que se coligem da definio internacional de museu, bem

    como as outorgadas especificamente aos museus desta tipologia. Em concreto, examinam-

    -se as motivaes e a relao entre as exposies temporrias, as permanentes e as aces

    desenvolvidas no mbito da salvaguarda dos bens culturais da Igreja e suas inter-

    -influncias. Dentro de um plano mais terico, analisa-se a relao da arte sacra com a dis-

    ciplina museolgica, ponderando o termo de uma funo ritual e devocional e o incio de

    uma nova existncia como objecto museolgico pleno, e o que ocorre quando a entidade

    musealizadora a prpria Igreja.

  • 8

    Abstract

    Christian sacred art establishes a distinct category in the realm of artistic production,

    as a material evidence of Man and its relation with the Sacred, characterized not only by its

    thematic and symbology, but also by its peculiar ritual application. Attending to the historical

    and artistic value of the ecclesiastic legacy in the Portuguese cultural heritage, this study

    analyses the museological practices around the goods of the Catholic Church affected to

    the cult and the devotion, especially its inclusion in the sphere of the museums and its use

    in exhibitions, since the beginning of the liberal period, affirmation moment of the museum

    as a public utility institution, until the present, marked by an increasing dynamics in this

    domain.

    In structural terms, it settles on two distinct goals that complement each other in a

    convergent progression from the historical to the theoretical and from the general to the

    individual, looking to understand the sacred art museological phenomena in Portugal

    through its permanent and temporary dimensions. In a historical scope, the evolution of the

    sacred art museology its traced from the inventory and study of the museums and tempo-

    rary exhibitions, setting forth the key-moments and its relation with the Country, Church

    and Museology History, in general, regarding not only the exhibitional process but also the

    remaining museological functions collected from the international definition of museum,

    as well as the ones specifically granted to this kind of museums. In particular, the motiva-

    tions and the relation between the temporary and permanent exhibitions and the actions

    developed on the safeguard of the cultural goods of the Church and its inter-influences are

    examined. Inside of a more theoretical plan, the relation between sacred art and the muse-

    ological disciplines, considering the term of a ritual and devotional function and the begin-

    ning of a new full existence as museological object, and what happens when the Church

    itself is the musealizer entity.

  • 9

    Sumrio

    Abreviaturas, Acrnimos, Siglas e Sinais ...................................................................................... 15 Introduo ........................................................................................................................................ 19 1. Em torno dos conceitos de Museologia e Arte Sacra ................................................................ 25

    1.1. Museologia e museus ............................................................................................................ 27 1.2. Arte Sacra.............................................................................................................................. 33

    1.2.1. Sagrado......................................................................................................................... 33 1.2.2. Criao artstica e o divino no Cristianismo................................................................. 35 1.2.3. Arte Sacra e Arte Religiosa .......................................................................................... 36

    1.3. Museologia da Arte Sacra ..................................................................................................... 37 2. Patrimnio Sacro ......................................................................................................................... 41

    2.1. Papel da Igreja na salvaguarda da arte sacra ......................................................................... 43 2.1.1. Patrimnio da Igreja ..................................................................................................... 43 2.1.2. Zelo pela arte sacra: o empenho da Santa S................................................................ 44

    Disposies do primeiro Codex Iuris Canonici............................................................ 45 Criao do Pontificium Consilium Centrale pro Arte Sacra in Italia.......................... 46 Instructio De Arte Sacra: a disseminao de normas .................................................. 48 Preceitos conciliares......................................................................................................... 48 Implementao de reformas.............................................................................................. 49 Pontificia Commissio de Patrimonio Artis et Histori Ecclesi: preservar o

    patrimnio artstico e cultural da Igreja........................................................................ 51 Pontificia Commissio de Ecclesi Bonis Culturalibus: da conservao para a

    valorizao ..................................................................................................................... 53 Charta der Villa Vigoni: tutela dos bens eclesisticos ........................................... 54 Urgncia do inventrio ............................................................................................... 55 Museus eclesisticos como instrumento pastoral........................................................ 56

    2.1.3. Aco da Igreja portuguesa .......................................................................................... 57 Percurso de salvaguarda .................................................................................................. 58

    Criao de organismos reguladores ........................................................................... 58 Nota pastoral sobre o Patrimnio Histrico-Cultural da Igreja ................................ 59

  • 10

    Reformular para promover e garantir o dilogo de cultura ....................................... 61 Prioridade inventariao ......................................................................................... 63 Formao dos intervenientes ...................................................................................... 65 Inventrio, arquivos e museus..................................................................................... 66 Carta de Princpios para os Bens Culturais da Igreja................................................ 68 Igreja e Estado ............................................................................................................ 71 Abertura ao laicado .................................................................................................... 74 Conselho Nacional para os Bens Culturais da Igreja................................................. 74

    Associao Portuguesa dos Museus da Igreja Catlica................................................... 76 Antecedentes................................................................................................................ 76 Incremento e coordenao da actividade dos museus da Igreja................................. 77 Novas Experincias, Novas Realidades: 1.as Jornadas ............................................... 79 Credenciao e a Qualificao dos Museus: 2.as Jornadas........................................ 79

    Escola das Artes da Universidade Catlica Portuguesa .................................................. 81 Igreja, Patrimnio e Ensino Superior ......................................................................... 81 Contacto com o exterior.............................................................................................. 82

    2.2. Misericrdias e o Patrimnio ................................................................................................ 84 2.3. Arte sacra no encontro com o sculo .................................................................................... 86

    2.3.1. Separao da Igreja do Estado...................................................................................... 87 2.3.2. Disposies concordatrias: relaes entre Estado e Igreja.......................................... 91

    Concordata de 1940 ......................................................................................................... 91 Nova Concordata de 2004 ................................................................................................ 92

    2.3.3. Patrimnio e museus nas leis da III Repblica ............................................................. 95 Patrimnio Cultural Portugus ........................................................................................ 95 Credenciao dos museus................................................................................................. 97

    2.3.4. Projecto Igreja Segura............................................................................................. 101 Nove magnficos ......................................................................................................... 102 Conhecimento e proteo ............................................................................................... 104 Trs eixos de aco......................................................................................................... 105

    Exposio SOS Igreja ........................................................................................... 106 Igrejas Piloto............................................................................................................. 107 Formao.................................................................................................................. 108

    2.3.5. 18 de Abril 2008: Patrimnio religioso no Dia Internacional dos Monumentos

    e Stios ............................................................................................................................. 109 2.3.6. Turismo cultural e religioso: divulgao e valorizao .............................................. 111

    Cooperativa Turel........................................................................................................... 112

  • 11

    Jornadas e congressos: partilha de experincias...................................................... 114 Inovao, qualificao e sensibilizao.................................................................... 115

    Turismo e Patrimnio Religioso: formao especializada ............................................. 116 3. Museologia e arte sacra no contexto portugus....................................................................... 119

    3.1. Prticas museolgicas em finais de Oitocentos................................................................... 122 3.1.1. Exposies de arte ornamental ................................................................................... 122 3.1.2. Primeiras iniciativas em torno do patrimnio religioso.............................................. 128

    Thesoiro da S de Coimbra ........................................................................................ 128 Thesouro da Capella de So Joo Baptista................................................................ 132

    3.2. Novos museus da Repblica ............................................................................................... 134 3.2.1. Museu Nacional de Arte Antiga ................................................................................. 134 3.2.2. Esplios eclesisticos, museus do Estado................................................................... 135

    Museu de Aveiro ............................................................................................................. 136 Museu de vora .............................................................................................................. 137 Museu Gro Vasco.......................................................................................................... 138 Museu do Abade de Baal............................................................................................... 140 Museu de Lamego ........................................................................................................... 141 Museu Alberto Sampaio.................................................................................................. 142

    3.3. Aproximao do Estado da Igreja ....................................................................................... 146 3.3.1. Museu de Arte Sacra de Arouca ................................................................................. 147 3.3.2. Tesouros eclesisticos................................................................................................. 150

    Tesouro da s bracarense ............................................................................................... 152 Tesouros desanexados do Estado ................................................................................... 154

    3.4. Arte sacra em exposio durante o perodo do Estado Novo .............................................. 158 3.4.1. Comemoraes do duplo centenrio........................................................................... 158 3.4.2. Arte sacra moderna..................................................................................................... 160 3.4.3. Arte das misses ......................................................................................................... 163 3.4.4. Extenso cultural do Congresso do Apostolado da Orao ........................................ 167 3.4.5. Ano Mariano de 1954................................................................................................. 169 3.4.6. Iniciativas locais ......................................................................................................... 172 3.4.7. Museus institudos pela Igreja .................................................................................... 180 3.4.8. Consequncias tardias da I Repblica ........................................................................ 189

    3.5. Nos alvores da III Repblica............................................................................................... 193 3.5.1. Envolvimento cvico................................................................................................... 196 3.5.2. Museus e comunidade ................................................................................................ 199 3.5.3. Criao de novos museus ........................................................................................... 202

  • 12

    3.5.4. Ano Mariano de 1988................................................................................................. 207 3.5.5. Museu dos Terceiros Ponte de Lima ....................................................................... 208

    3.6. Nuo do Patrimnio Histrico-Cultural da Igreja ............................................................. 214 3.6.1. Aco da sociedade laica............................................................................................ 214

    Emancipao da arte sacra nos museus......................................................................... 214 Contribuio dos museus pblicos ................................................................................. 217

    3.6.2. Iniciativa eclesistica.................................................................................................. 222 Museus da Igreja ............................................................................................................ 222 Exposies temporrias de concepo eclesistica........................................................ 228

    3.6.3. Encontro de Culturas............................................................................................... 233 3.6.4. 800 anos sobre o nascimento do Santo do Menino Jesus ........................................... 237 3.6.5. Comemoraes Jubilares da Diocese de Bragana..................................................... 240 3.6.6. Exposio Universal de Lisboa Expo98................................................................. 243

    3.7. Ano Jubilar de 2000 ............................................................................................................ 248 3.7.1. Cristo, fonte de esperana........................................................................................... 249 3.7.2. Outras exposies no mbito das comemoraes jubilares ........................................ 255 3.7.3. Grande Jubileu e missionao .................................................................................... 259

    3.8. No dealbar do sculo XXI................................................................................................... 262 3.8.1. Divulgao do patrimnio religioso local................................................................... 263 3.8.2. Projectos duradouros .................................................................................................. 275

    Contributos do Museu da Pedra..................................................................................... 276 Ciclo de exposies de arte religiosa do concelho de Ovar ........................................... 279 Arte Sacra de Alcochete.................................................................................................. 282

    3.8.3. Patrimnio religioso na evocao da Histria ............................................................ 285 3.8.4. Exposies avulsas ..................................................................................................... 291 3.8.5. Profuso de museus .................................................................................................... 298

    Projectos e ideias............................................................................................................ 322 3.9. Dinmica insular ................................................................................................................. 331

    3.9.1. Diocese do Funchal e a arte sacra madeirense............................................................ 332 Museu diocesano de arte sacra do Funchal ................................................................... 334

    Exposies temporrias ............................................................................................ 337 Dilogo com os artistas contemporneos ................................................................. 340

    3.9.2. Arquiplago dos Aores ............................................................................................. 341 Museus eclesisticos aorianos ...................................................................................... 341 Arte sacra nos museus do poder pblico ........................................................................ 347

    Ncleo de Arte Sacra do Museu Carlos Machado .................................................... 350

  • 13

    Exposies temporrias no Museu Carlos Machado .......................................... 352 Exposies de curta durao .......................................................................................... 353 Planos para o futuro ....................................................................................................... 355

    3.10. Aco diocesana................................................................................................................ 358 3.10.1. Patrimnio e inventrio ............................................................................................ 359 3.10.2. Criao de museus diocesanos.................................................................................. 378 3.10.3. Actividade expositiva ............................................................................................... 386 3.10.4. Parceria duradoura entre museu e diocese lamecenses............................................. 396 3.10.5. Pedagogia para o Patrimnio: o exemplo do Patriarcado de Lisboa......................... 403 3.10.6. Leiria: entre a Diocese e o Santurio ........................................................................ 408

    Primeiras experincias museolgicas na Diocese de Leiria........................................... 408 Exposies por iniciativa da diocese leiriense ............................................................... 409 90 anos das Aparies .................................................................................................... 411

    3.11. Novos tesouros das catedrais............................................................................................. 414 3.12. Musealizao do patrimnio das Misericrdias ................................................................ 425

    3.12.1. Museu de So Roque ................................................................................................ 425 Um ciclo de exposies temporrias .............................................................................. 428 Servios Educativos do museu ........................................................................................ 430

    3.12.2. Nas comemoraes dos 500 anos das Misericrdias Portuguesas: 1998-2000......... 432 3.12.3. Dinmica museolgica das Misericrdias ................................................................ 437 3.12.4. Misericrdias e poder local....................................................................................... 447 3.12.5. Casa-Museu Padre Belo: dinmica em torno de uma doao................................... 453

    3.13. Museu de Arte Sacra e Etnologia de Ftima ..................................................................... 457 3.13.1. Dinmica de exposies ........................................................................................... 459 3.13.2. Pblicos-alvo especficos ......................................................................................... 462 3.13.3. Tertlias no Museu ................................................................................................... 465 3.13.4. Despertar para o Patrimnio: sensibilizao e formao do clero diocesano........ 466

    3.14. Diocese de Beja: o arqutipo............................................................................................. 467 3.14.1. Divulgao o patrimnio diocesano ......................................................................... 470 3.14.2. Rede Museolgica Diocesana................................................................................... 479 3.14.3. Extenso cultural ...................................................................................................... 486

    4. Secularidade da arte sacra ........................................................................................................ 497 4.1. Arte Sacra e o Sculo .......................................................................................................... 499

    4.1.1. (thos) da arte sacra ......................................................................................... 499 Uma arte ao servio do culto.......................................................................................... 499 Artes da Igreja ................................................................................................................ 501

  • 14

    4.1.2. Epifanias da arte sacra ................................................................................................ 502 Local de culto ................................................................................................................. 502 Museus ............................................................................................................................ 503 Tesouros.......................................................................................................................... 504 Exposies ...................................................................................................................... 505 Coleces privadas......................................................................................................... 506

    4.2. Musealizao da arte sacra.................................................................................................. 507 4.2.1. Arte sacra como objecto museolgico........................................................................ 507 4.2.2. Trinmio museolgico................................................................................................ 510

    Investigao.................................................................................................................... 510 Preservao .................................................................................................................... 511 Comunicao .................................................................................................................. 513

    4.2.3. Museologia, arte e Igreja ............................................................................................ 517 Concluso ....................................................................................................................................... 527 Fontes e Bibliografia...................................................................................................................... 535

    Fontes impressas ........................................................................................................................ 537 Documentos da Igreja Catlica .................................................................................................. 538 Outros documentos .................................................................................................................... 544 Fichas de inventrio ................................................................................................................... 547 Legislao .................................................................................................................................. 549 Publicaes peridicas ............................................................................................................... 551 Bibliografia ................................................................................................................................ 557 Stios na Internet e documentos electrnicos ............................................................................. 588

  • 15

    Abreviaturas, Acrnimos, Siglas e Sinais

    a. C. Antes de Cristo

    AAS Acta Apostolic Sedis (Actos da S Apostlica)

    AG Ag Gentes. Decretum de Activitate Missionali Ecclesi (Decreto sobre a Actividade Missio-nria da Igreja)

    APMIC Associao Portuguesa dos Museus da Igreja Catlica

    apud segundo, conforme

    art. / arts. artigo / artigos

    ca. circa (cerca de)

    can. / cann. canon / canones (Cnone / cnones)

    cap. / caps. captulo / captulos

    CCDR-N Comisso de Coordenao e Desenvolvimento Regional do Norte

    CEBCI Comisso Episcopal dos Bens Culturais da Igreja

    CEC Catechismus Ecclesi Catholic (Catecismo da Igreja Catlica)

    CECBCCS Comisso Episcopal da Cultura, Bens Culturais e Comunicaes Sociais

    CEP Conferncia Episcopal Portuguesa

    cf. confronte ou confira

    CIC Codex Iuris Canonici (Cdigo de Direito Cannico)

    col. / cols. coluna / colunas

    D. Dom

    DGEMN Direco-Geral dos Edifcios e Monumentos Nacionais

    dir. direco

    DBCDV Departamento dos Bens Culturais da Diocese de Viseu

    DPHADB Departamento do Patrimnio Histrico e Artstico da Diocese de Beja

    ed. edio

    EMRPM Estrutura de Misso Rede Portuguesa de Museus

    EPRPM Estrutura de Projecto Rede Portuguesa de Museus

    et al. et alii (e outros)

    etc. et ctera (e o resto)

    f. / ff. folium / folia (flio / flios)

  • 16

    fac-simil. fac-similado

    fasc. fascculo

    Fr. Frei

    GS Gaudium et Spes. Constitutio Pastoralis de Ecclesia in Mundo huius temporis (Constituio pastoral sobre a Igreja no Mundo Contemporneo)

    i. e. id est (isto )

    ICOFOM International Committee for Museology / Comit International pour la Musologie

    ICOM International Council of Museums / Conseil International des Muses

    ICOMOS International Council on Monuments and Sites / Conseil International des Monuments et des Sites

    IHAC Instituto de Histria e Arte Crist

    IMC Instituto dos Museus e da Conservao

    IGESPAR Instituto de Gesto do Patrimnio Arquitectnico e Arqueolgico

    IGMR Institutio Generalis Missalis Romani (Instruo Geral do Missal Romano)

    IPCR Instituto Portugus de Conservao e Restauro

    IPM Instituto Portugus de Museus

    IPPAR Instituto Portugus do Patrimnio Arquitectnico

    IPPC Instituto Portugus do Patrimnio Cultural

    ISPJCC Instituto Superior de Polcia Judiciria e Cincias Criminais

    MAHPJ Museu e Arquivos Histricos de Polcia Judiciria

    MD Mediator Dei. Litter Encyclic (Carta Encclica de Pio XII sobre a Sagrada Liturgia)

    mimeog. mimeografado

    MSD Music Sacr Disciplina. Litter Encyclic (Carta Encclica de Pio XII sobre a Msica Sacra)

    n. nmero

    Op. cit. opere citato (na obra citada)

    p. / pp. pgina / pginas

    P.e Padre

    POC Programa Operacional da Cultura

    PP. Papa Pontifex (Padre Pontfice)

    reg. regit (reinou)

    RPM Rede Portuguesa de Museus

    s. / ss. e seguinte / e seguintes

    s. d. sine data (sem data)

    s. l. sine loco (sem lugar)

    s. n. sine nomine (sem nome)

    s. v. / ss. vv. sub verba (na palavra) / sub verb (nas palavras)

    SC Sacrossanctum Concilium. Constitutio de Sacra Liturgia (Constituio sobre a Sagrada Liturgia)

  • 17

    SNBCI Secretariado Nacional dos Bens Culturais da Igreja

    SNI Secretariado Nacional de Informao, Cultura Popular e Turismo

    t. tomo

    UCP Universidade Catlica Portuguesa

    UMP Unio das Misericrdias Portuguesas

    UNESCO United Nations Educational Scientific and Cultural Organization / Organizao das Naes Unidas para a Educao, Cincia e Cultura

    v. g. verbi gratia (a ttulo de exemplo)

    vd. vide (veja)

    vol. / vols. volume / volume

    / pargrafo / pargrafos

    * nascido

    falecido

    Livros Bblicos

    Antigo Testamento

    Gn Liber Genesis (Livro do Gnesis)

    Ex Liber Exodus (Livro do xodo)

    Lv Liber Leviticus (Livro do Levtico)

    Ion Prophetia Ionae (Profecia de Jonas)

    Novo Testamento

    Mt Evangelium secundum Matthaeum (Evangelho segundo Mateus)

    Mc Evangelium secundum Marcum (Evangelho segundo Marcos)

    Lc Evangelium secundum Lucam (Evangelho segundo Lucas)

    Io Evangelium secundum Ioannem (Evangelho segundo Joo)

    Apc Apocalypsis Ioannis (Apocalipse de Joo)

  • INTRODUO

  • 21

    Introduo

    As expresses museu de arte sacra e exposio de arte sacra tm surgido cada vez

    mais amide na linguagem do quotidiano para aludir a actos de musealizao dos bens

    culturais da Igreja Catlica, a religio com maior representatividade em Portugal. Em ver-

    dade, estima-se que o legado histrico e artstico eclesistico corresponde a cerca de 75%

    de todo o patrimnio cultural portugus.

    Atendendo importncia desta herana e ao empenho dos organismos eclesisticos na

    sua defesa e valorizao, vem ganhando corpo uma noo que decorre daqueles eptetos:

    museologia da arte sacra. Enunciado simples mas portador de uma complexa carga

    semntica, posto que implica compreender a essncia da arte sacra e a maneira como esta

    condiciona a museologia.

    Nesse sentido, o presente estudo visa analisar as prticas museolgicas em torno dos

    bens da Igreja afectos ao culto e devoo, nomeadamente a sua incluso na esfera dos

    museus e a utilizao em exposies. A opo pela arte do Catolicismo resulta da abun-

    dncia de ocorrncias em territrio portugus. Em termos de balizas cronolgicas, estabe-

    leceu-se o incio do perodo liberal, momento de afirmao do museu como instituio de

    utilidade pblica, e a actualidade, ante a dinmica que se verifica neste domnio.

    Este trabalho radica em dois objectivos distintos, mas que se complementam num

    avano convergente do histrico para o terico e do geral para o particular, procurando

    compreender o fenmeno da museologia da arte sacra em Portugal atravs das suas dimen-

    ses permanente e temporria.

    Num mbito histrico, o propsito traar a evoluo da museologia da arte sacra, a partir

    do inventrio e estudo dos museus e das exposies temporrias, determinando os momen-

    tos-chave e a sua relao com a Histria do Pas, da Igreja e da Museologia, de um modo

    geral. Mais especificamente, intenta-se examinar as motivaes e a relao entre as exposi-

  • 22

    es temporrias, as permanentes e as aces desenvolvidas no mbito da salvaguarda dos

    bens culturais da Igreja e suas inter-influncias.

    Dentro de um plano mais terico, pretende-se analisar a relao da arte sacra com a

    disciplina museolgica, considerando o termo de uma funo ritual e devocional e o incio

    de uma nova existncia como objecto de museu, onde ser, porventura, descontextualizado

    e tomado apenas como um testemunho de um espao e de uma poca ou de uma cultura,

    e o que ocorre quando a entidade musealizadora a prpria Igreja.

    No final espera-se responder s questes: o que efectivamente a museologia da arte

    sacra e qual o seu enquadramento no universo portugus?

    Quanto estrutura formal, o trabalho divide-se em quatro captulos. Na primeira parte

    1. e 2. captulos delimita-se o contexto de aco, ora pela definio terminolgica, ora

    pelo quadro jurdico e normativo, traando ainda a evoluo das preocupaes eclesisticas

    em matria de patrimnio cultural, plasmadas na criao de organismos pontifcios e nas

    medidas tomadas pela Igreja portuguesa.

    Depois, na segunda parte, a mais extensa, tem lugar o percurso pelos espaos e

    momentos da musealizao da arte sacra, articulado com a anlise da museografia e o con-

    texto museolgico de cada perodo, quer em sequncia cronolgica, quer no avano do

    geral para o particular, realando os casos paradigmticos.

    Por fim, o 4. captulo, mais exegtico, contempla o dissecar, no sentido pleno do

    vocbulo, annimo e independente, de tudo quanto se realizou em termos de museologia

    da arte sacra em Portugal, extraindo consideraes tericas acerca desta relao.

    Sob o ponto de vista metodolgico, o estudo assenta mormente no material publicado

    pelos museus ou entidades organizadoras de exposies, incluindo catlogos, roteiros e

    desdobrveis. Sempre que vivel, efectuaram-se visitas aos locais, colhendo alguns dados

    tambm das epgrafes que ali assinalam factos memorveis e das conversas travadas com

    funcionrios ou mentores dos espaos museolgicos. Alm disto, consultaram-se diversas

    publicaes peridicas, de acordo com as datas mais relevantes, em especial o arquivo da

    Agncia Ecclesia a agncia de notcias da Igreja Catlica em Portugal , para eventos

    mais recentes no mbito eclesistico, e a documentao oficial de organismos do poder

    local, nomeadamente as actas de reunio de cmara e de assembleia municipal.

  • 23

    A informao em suporte digital, via Internet, embora crucial no mbito da investiga-

    o, foi citada somente quando no havia outro suporte documental e no caso de stios

    fidedignos e oficiais dos museus ou organismos, ou ento de publicaes peridicas elec-

    trnicas com estrutura editorial. O advento da Web 2.0 e consequente participao em

    massa dos utilizadores deu azo a informao menos criteriosa e a um emprego fcil de

    vocbulos e expresses, como museu e arte sacra, implicando maior rigor na crtica das

    fontes. Por outro lado, muitas instituies privilegiam agora este meio de comunicao,

    ao invs da tradicional publicao em papel, originando um problema de volatilidade da

    informao, pois, ao contrrio de agncias noticiosas, que mantm os seus textos em arquivo,

    muitas entidades museolgicas actualizam constantemente a informao sem preocupaes

    de registo histrico.

    No que respeita aco da Igreja, recorreu-se fundamentalmente documentao ofi-

    cial da Santa S e, no caso portugus, aos comunicados finais emanados das assembleias

    plenrias da Conferncia Episcopal Portuguesa. Para os aspectos tericos relacionados

    tanto com as disciplinas basilares quanto com as complementares em especial a museo-

    logia, a arte sacra, a histria, a teologia, a liturgia, entre outras , empregou-se a bibliogra-

    fia nacional e internacional de referncia nas respectivas matrias. Ademais, procedeu-se a

    pesquisas bibliogrficas junto de bibliotecas de estabelecimentos universitrios, permitindo

    aceder a um conjunto de teses e dissertaes j elaboradas sobre os mais diversos assuntos

    e casos particulares versados neste trabalho.

    Ainda que a especificidade do tema possa sugerir um teor confessional, este trabalho

    tem um objectivo eminentemente cientfico, firmado numa viso analtica do fenmeno

    museolgico no terreno do religioso, mediante o conhecimento to profundo quanto poss-

    vel da essncia da arte sacra e do seu papel na relao do Homem com o divino, mas sobre-

    tudo do processo e das consequncias da sua converso em objecto museolgico pleno,

    atendendo a factores determinantes como a Origem e o Fim do ente museal.

  • CAPTULO I

    EM TORNO DOS CONCEITOS DE MUSEOLOGIA E

    ARTE SACRA

  • 27

    1. Em torno dos conceitos de Museologia e Arte Sacra

    A primeira tarefa que se demanda no incio de uma tese desta natureza clarificar os

    conceitos que nos ocupam. Palavras de uso comum vem a sua noo confusa, deturpada

    ou imprecisa, consequncia de diversas pocas, interpretaes, tradies ou regionalismos,

    cujo significado apenas pode ser apreendido no pleno conhecimento do contexto que as

    encerra. No se pretende, por isso, corrigir ou impor uma acepo, antes analisar e com-

    preender os diferentes vocbulos, apresentando-nos no sentido em que os mesmos sero

    empregados neste trabalho.

    1.1. Museologia e museus A gnese do vocbulo museologia encontra-se no grego (mouseon), que

    significa museu1, e (lgos), o sufixo -logia, que traduz a ideia de tratado, estudo ou

    cincia2. Museologia ser, portanto, a cincia do museu3.

    Os dicionrios da lngua portuguesa s recentemente incluram a palavra, mas apresen-

    tam-nos j acepes carregadas de alguma especificidade. O Dicionrio da Lngua Portu-

    guesa Contempornea da Academia das Cincias de Lisboa, obra de referncia da

    lexicografia no espao portugus, define museologia como a Cincia que tem por objecto

    o estudo dos museus e das coleces nele existentes, que trata da conservao, organizao

    e exposio do seu recheio, dos processos de comunicao com o pblico, das normas que

    1 Jos Pedro MACHADO, Dicionrio Etimolgico da Lngua Portuguesa, vol. 4, 3. ed., Lisboa, Livros Hori-zonte, 1977, p. 186, s. v. museu. 2 Idem, vol. 3, p. 438, s. v. -log(o)-, -logia. 3 ICOM News, Paris, ICOM, Vol 23, n. 1, 1970, p. 28; cf. Luis ALONSO FERNNDEZ, Museologa y Museo-grafa, 2. ed., Barcelona, Ediciones del Serbal, 2001, pp. 20 e 32; Francisco Javier ZUBIAUR CARREO, Cur-so de Museologa, Coleccin Biblioteconoma y Administracin Cultural, n. 103, Gijn, Ediciones Trea, 2004, p. 47.

  • 28

    devem orientar a instalao de museus4. Outra obra de nomeada, o Dicionrio Houaiss

    da Lngua Portuguesa, refere que o conjunto de conhecimentos cientficos, tcnicos e

    prticos que dizem respeito conservao, classificao e apresentao dos acervos de

    museus ou este conjunto constitudo numa disciplina, profisso e currculo autnomos5.

    Num contexto mais tcnico, o glossrio desenvolvido pelo Groupe de Recherche sur la

    Terminologie Musologique do ICOFOM, sob coordenao de Andr Desvalles, e recente-

    mente apresentado na 22. Conferncia Geral do ICOM, em Novembro de 2010, regista que: tymologiquement parlant la musologie est ltude du muse et non pas sa pra-

    tique, qui est renvoye la musographie6.

    O 2 do mesmo verbete, por seu turno, refere que a acepo corrente ainda a apre-

    sentada por Georges Henri Rivire, em 1981: La musologie: une science applique, la science du muse. Elle en tudie

    lhistoire et le rle dans la socit, les formes spcifiques de recherche et de conserva-

    tion physique, de prsentation, danimation et de diffusion, dorganisation et de fonc-

    tionnement, darchitecture neuve ou musalise, les sites reus ou choisis, la typologie,

    la dontologie7.

    J no que respeita museografia, escreve-se que: [] la musographie est essentiellement dfinie comme la figure pratique ou

    applique de la musologie, cest--dire lensemble des techniques dveloppes pour

    remplir les fonctions musales et particulirement ce qui concerne lamnagement du

    muse, la conservation, la restauration, la scurit et lexposition8.

    As definies ora apresentadas marcam uma evidente diferena entre as duas discipli-

    nas, nem sempre observvel quando se consultam as respectivas entradas num dicionrio

    lexicogrfico. A museologia, uma disciplina cientfica, lida com as questes do porqu, 4 ACADEMIA DAS CINCIAS DE LISBOA (ed. lit.) & FUNDAO CALOUSTE GULBENKIAN (ed. lit.), Dicionrio da Lngua Portuguesa Contempornea da Academia das Cincias de Lisboa, vol. 2, Lisboa, Verbo, 2001, p. 2555, s. v. museologia. 5 Antnio HOUAISS (ed. lit.), Mauro de Salles VILLAR (ed. lit.) & Francisco Manuel de Melo FRANCO (ed. lit.), Dicio-nrio Houaiss da Lngua Portuguesa, vol. 5, Lisboa, Crculo de Leitores, 2002-2003, p. 2574, s. v. museologia. 6 Franois MAIRESSE, Andr DESVALLES & Bernard DELOCHE, Concepts fondamentaux de la musologie, in Museology. Back to Basics, ICOFOM Study Series, 38, Paris, ICOFOM, 2009, p. 41, s. v. Musologie; Franois MAIRESSE (dir.) & Andr DESVALLES (dir.), Concepts Cls de Musologie, Paris, Armand Colin, 2010, p. 55, s. v. Musologie. 7 Ibidem; cf. Georges Henri RIVIRE, La Museologa: Curso de Museologa/Textos y Testemonios, Coleccin Arte y Esttica, n. 30, Madrid, Ediciones Akal, 1993, p. 105. 8 F. MAIRESSE, A. DESVALLES & B. DELOCHE, op. cit., p. 40, s. v. Musographie; F. MAIRESSE (dir.) & A. DESVALLES (dir.), op. cit., p. 53, s. v. Musographie.

  • 29

    enquanto a museografia, mais ligada ao funcionamento do museu, se ocupa com as ques-

    tes do como, procurando nunca se antecipar sua congnere9, i. e., a museologia deve

    corporificar os fundamentos antes de a museografia implementar as aces.

    Por sua vez, o timo museu, que designa o objecto da museologia, evidencia origens

    deveras remotas. Na Antiga Grcia, ca. 500-450 a. C., dava-se o nome de aos

    templos dedicados s musas das artes e das cincias, habitualmente locais de culto funer-

    rio mas tambm de contendas entre os membros das sociedades literrias10, e depois, em

    particular no mbito das academias helensticas, ca. 400-300 a. C., s escolas filosficas ou

    mesmo instituies de ensino e investigao cientfica11, presididas pelas musas, um con-

    ceito transposto para o mundo romano, no qual a palavra museum denominava, no contexto

    das vill particulares, o lugar onde ocorriam os encontros e disputas filosficas12. No se

    aplicava ainda aos acervos de obras de arte, muito embora o coleccionismo fosse uma rea-

    lidade consolidada. Durante o Renascimento o vocbulo museu adquiriu um novo sentido

    taquigrfico enquanto abreviatura erudita para designar tanto as salas que continham os

    espcimes das coleces quanto os livros que descreviam esses espcimes13. A breve trecho,

    9 Ivo MAROEVI, Introduction do Museology: The European Approach, Munich, Verlag Dr. C. Mller- -Straten, 1998, p. 100. 10 Jeffrey ABT, Museum, s. v., in Jane TURNER (ed. lit.), The Dictionary of Art, vol. 22, New York, Grove, 1996, p. 354; L. ALONSO FERNNDEZ, op. cit., p. 28. 11 Merecem especial meno o do aristotlico, estabelecido em Atenas, em 336-335 a. C., referido no testamento de Teofrasto [DIOGENES LAERTIUS, Vit Philosophorum, XIV, 51; cf. DIOGENIS LAE-TRII, De vitis philosophorum, T. I, Lipsiae, Sumptibus Ottonis Holtze, 1870, p. 231] e o de Alexandria, fundado ca. 290 a. C., por Ptolomeu Soter I (* ca. 367 283 a. C.; reg. 305-283 a. C.), com vista salva-guarda de textos e objectos em risco devido ao alvoroo poltico da poca, reunio de amostras biolgicas e produo de novo conhecimento [STRABONIS, Geographica, XVII, 1, 8; cf. STRABO, The Geography of Strabo, Cambridge (Massachussets), Harvard University Press/London, William Heinemann, 1967, pp. 34-35]. 12 Germain BAZIN, Le Temps des Muses, Colection LArt Tmoin, Lige/Bruxelles, Desoer, 1967, p. 16; Francisca HERNNDEZ HERNNDEZ, Manual de Museologa, Coleccin Ciencias de la Informacin: Bibliote-conoma y Documentacin, Madrid, Editorial Sntesis, 1994, p. 15; I. MAROEVI, op. cit., p. 28. 13 J. ABT, op. cit., p. 355. Em lngua portuguesa, o Vocabulario portuguez e latino, do erudito Raphael Blu-teau, editado entre 1712 e 1728, regista Museo como hum lugar consagrado s Musas, pelo que dero o nome de Museo a todo o lugar destinado ao estudo das letras humanas, como tambem a casas de curiosidades scientificas, [] & a livros, [] em que o dito Author d noticias da sciencia, & vida de Vares illustres em letras [Raphael BLUTEAU, Vocabulario portuguez e latino, aulico, anatomico, architectonico, bellico, bota-nico, brasilico, comico, critico, chimico, dogmatico, dialectico, dendrologico, ecclesiastico, etymologico, economico, florifero, forense, fructifero... autorizado com exemplos dos melhores escritores portugueses, e latinos, vol. 5, Lisboa, na Officina de Pascoal da Sylva, 1716, pp. 649-650, s. v. Museo]. Veja-se tam-bm o exemplo do bispo humanista Paolo Giovio (* 1483 1552) que empregou a palavra museum na descrio que fez da sua coleco, bem como a inscreveu no edifcio que a albergava [F. HERNNDEZ HER-NNDEZ, op. cit., p. 63].

  • 30

    o vocbulo tornou-se frequente no ttulo dos estabelecimentos que acolhiam coleces visi-

    tveis e abertas ao pblico, nomeadamente: o Ashmolean Museum, inaugurado a 21 de

    Maio de 1683, sob tutela da Universidade de Oxford; o British Museum, em Londres, criado

    por acto parlamentar com aprovao rgia em 7 de Junho de 1753, acessvel para a todas as

    pessoas curiosas e estudiosas; e, quarenta anos mais tarde, o Muse Central des Arts, em

    Paris, institudo por decreto da Conveno Nacional em 27 de Julho de 1793 e aberto ao

    pblico a 10 de Agosto seguinte, sob a designao de Musum de la Rpublique, precursor

    dos grandes museus nacionais da Europa e introdutor de um novo conceito de patrimnio

    cultural como propriedade pblica14.

    No obstante, somente aps a criao do ICOM, nos meados do sculo XX, se vem

    assistindo a uma enunciao cada vez mais rigorosa da noo de museu, no sentido de uma

    entidade com propsitos especficos, sem fins lucrativos e ao servio da sociedade e do seu

    desenvolvimento, cujas funes so: adquirir, conservar, estudar, expor e transmitir o

    patrimnio material e imaterial da Humanidade, para fins de estudo, educao e deleite15.

    No que respeita ao caso portugus avultou o preceito disposto no art. 5. do Regula-

    mento Geral dos Museus de Arte, Histria e Arqueologia, aprovado pelo Decreto-Lei

    n. 46758, de 18 de Dezembro de 1965, segundo o qual: Art. 5. Os museus tm a seguinte finalidade geral:

    1) Conservar e ampliar as coleces de objectos com valor artstico, histrico e

    arqueolgico;

    2) Expor ao pblico as espcies que melhor possam contribuir para a formao do

    seu esprito e para a educao da sua sensibilidade;

    3) Realizar trabalhos de indagao artstica, histrica e arqueolgica e facultar

    elementos de estudo aos investigadores;

    4) Constiturem-se em centros activos de divulgao cultural, solicitando constan-

    temente o pblico e esclarecendo-o.

    Durante a III Repblica, o conceito de museu foi enunciado no Decreto n. 45/80, de

    20 de Maro, que reestruturou os servios e os quadros de pessoal dos museus dependentes

    da Direco-Geral do Patrimnio Cultural: 14 F. HERNNDEZ HERNNDEZ, op. cit., p. 25. 15 Evolution de la dfinition du muse selon les statuts de lICOM (2007-1946), in ICOM [em linha], Paris, ICOM], de 9 Agosto de 2009, disponvel em URL: http://archives.icom.museum/hist_def_fr.html (acedido em 21 de Abril de 2010).

  • 31

    Artigo 1.

    (Atribuies)

    1 Os museus dependentes da Direco-Geral do Patrimnio Cultural so institui-

    es permanentes, ao servio da sociedade e do seu desenvolvimento, sem fins lucra-

    tivos e abertos ao pblico, que fazem investigao sobre os testemunhos materiais do

    homem e do seu meio ambiente, ao mesmo tempo que os adquirem, conservam e muito

    especialmente os expem para fins de estudo, educao e recreio. []

    Fiel noo do ICOM, esta definio manter-se-ia no quadro legislativo portugus por

    mais de vinte anos. Nem mesmo o Decreto-Lei n. 278/91, de 9 de Agosto, constitutivo do

    j extinto Instituto Portugus de Museus ao qual atribua o objectivo de superintender,

    planear e estabelecer um Sistema Nacional de Museus16 , enuncia o conceito. Apenas a

    Lei n. 47/2004, de 19 de Agosto, designada por Lei-Quadro dos Museus Portugueses,

    patenteia: Artigo 3.

    Conceito de museu

    1 Museu uma instituio de carcter permanente, com ou sem personalidade

    jurdica, sem fins lucrativos, dotada de uma estrutura organizacional que lhe permite:

    a) Garantir um destino unitrio a um conjunto de bens culturais e valoriz-los atra-

    vs da investigao, incorporao, inventrio, documentao, conservao, interpreta-

    o, exposio e divulgao, com objectivos cientficos, educativos e ldicos;

    b) Facultar acesso regular ao pblico e fomentar a democratizao da cultura, a

    promoo da pessoa e o desenvolvimento da sociedade.

    2 Consideram-se museus as instituies, com diferentes designaes, que apre-

    sentem as caractersticas e cumpram as funes museolgicas previstas na presente lei

    para o museu, ainda que o respectivo acervo integre espcies vivas, tanto botnicas

    como zoolgicas, testemunhos resultantes da materializao de ideias, representaes

    de realidades existentes ou virtuais, assim como bens de patrimnio cultural imvel,

    ambiental e paisagstico.

    O texto evidencia fortes marcas do esprito da acepo do ICOM a verso em vigor

    at reviso de 2007 , com ligeiras dissemelhanas do que seria uma traduo literal.

    16 Art. 1. 2. do Decreto-Lei 278/91, de 9 de Agosto. O mesmo acontecendo com o Decreto-Lei n. 97/2007, de 29 de Maro, que instituiu o seu sucessor IMC o qual tem por misso desenvolver e execu-tar a poltica cultural nacional nos domnios dos museus e da conservao e do restauro, bem como do patri-mnio cultural mvel e do patrimnio imaterial [Art. 3. 1. do Decreto-Lei 97/2007, de 29 de Maro] porm, data deste ltimo, o conceito de museu constava j da Lei-Quadro dos Museus Portugueses, como veremos adiante.

  • 32

    Isto, obviamente, no lhe reduz a importncia ou valor, bem pelo contrrio, pois o ICOM

    mantm uma permanente discusso acerca do assunto e uma referncia internacional de

    mrito, que o legislador soube coligir.

    A Lei-Quadro dos Museus Portugueses vai, porm, um pouco mais longe ao acres-

    centar, no art. 4., o conceito de coleco visitvel, que nos convm reter: Artigo 4.

    Coleco visitvel

    1 Considera-se coleco visitvel o conjunto de bens culturais conservados por

    uma pessoa singular ou por uma pessoa colectiva, pblica ou privada, exposto publi-

    camente em instalaes especialmente afectas a esse fim, mas que no rena os meios

    que permitam o pleno desempenho das restantes funes museolgicas que a presente

    lei estabelece para o museu. []

    Alm de representar uma novidade no que respeita s concepes oferecidas pelos

    estatutos do ICOM, esta noo alarga o mbito de aplicao da lei. Ou seja, as instituies

    que, por motivos diversos, no renem as condies para se enquadrarem na designao de

    museu, vem reconhecida a sua personalidade museolgica e, nos termos do 2. do mesmo

    artigo, podem at ser objecto de benefcios e programas de apoio e de qualificao ade-

    quados sua natureza e dimenso17.

    Numa lei que constitui um referencial exigente para a esfera dos museus portugue-

    ses18, a introduo deste conceito manifesta, simultaneamente, uma abertura e um

    incentivo requalificao dos organismos museolgicos, no sentido prprio de museu,

    tanto mais que, como acrescenta o 3., aqueles programas sero preferencialmente

    estabelecidos quando esteja assegurada a possibilidade de investigao, acesso e visita

    pblica regular.

    Com a publicao da Lei-Quadro dos Museus Portugueses, deu-se um grande passo

    no panorama legislativo portugus, cuja principal referncia neste domnio era ainda o

    Regulamento Geral dos Museus de Arte, Histria e Arqueologia, e cumpriu-se a primeira

    etapa de um longo percurso que tem por objectivo reforar a valorizao e a qualificao

    17 Desde que acolham bens culturais inventariados de harmonia com art. 19. da Lei n. 107/2001, de 8 de Setembro. Cf. Art. 4. 2. da Lei n. 47/2004, de 19 de Agosto. 18 Manuel Bairro OLEIRO, IPM Novos desafios, in Museus. Boletim Trimestral da Rede Portuguesa de Museus, Lisboa, Rede Portuguesa de Museus, n. 13, Setembro de 2004, p. 1.

  • 33

    dos museus, assegurar a salvaguarda e a fruio pblica do patrimnio sua guarda, incen-

    tivar a formao e o reconhecimento profissional de quantos neles trabalham19.

    1.2. Arte Sacra Ao empregarmos a designao arte sacra, o ente arte caracterizado pelo modifica-

    dor sacra. Ou seja, a arte, nomeada pelo substantivo, adquire uma qualidade, resultado

    da aposio do adjectivo de valor restritivo ou classificatrio sacra. Nesse caso, com-

    preender a diferena entre arte sacra e a arte na generalidade implica conhecer o signifi-

    cado do adjectivo sacra.

    Jos Pedro Machado, no seu Dicionrio Etimolgico da Lngua Portuguesa, atribui

    a origem do adjectivo sacro ao latim scru-, no sentido de consagrado a uma divindade,

    sagrado20. Por seu lado, o Dicionrio da Lngua Portuguesa Contempornea da Aca-

    demia das Cincias de Lisboa refere que, com origem no latim sacer, o adjectivo quali-

    fica o que relativo s coisas divinas, religio, aos ritos ou ao culto21, sinnimo de

    sagrado e santo, definio idntica que se encontra no Dicionrio Houaiss da Lngua

    Portuguesa22.

    1.2.1. Sagrado O sagrado ser, pois, elemento fundamental da arte sacra. Definido por oposio a

    profano, significa tudo aquilo que est delimitado, separado, reservado ou proibido23.

    Para o homo religiosus, o espao no homogneo, apresentando reas qualitativamente

    diferentes24. A mesma ideia sugerida pelo sacer latino, segundo o qual existem dois

    espaos, representaes simblicas do templo (fanum) e das imediaes do templo 19 Ibidem. 20 J. P. MACHADO, op. cit., vol. 5, p. 136, s. v. Sacro1. 21 ACADEMIA DAS CINCIAS DE LISBOA, ed. lit. & FUNDAO CALOUSTE GULBENKIAN, ed. lit., op. cit., vol. 2, p. 3302, s. v. sacro1, a. 22 A. HOUAISS (ed. lit.), M. de S. VILLAR (ed. lit.) & F. M. de M. FRANCO (ed. lit.), op. cit., vol. 6, p. 3228, s. v. sacro. 23 Manuel da Costa FREITAS, Sagrado, s. v., in LOGOS. Enciclopdia Luso-brasileira de Filosofia, vol. 4, Lisboa/So Paulo, Editorial Verbo, 1992, p. 859. 24 Mircea ELIADE, O Sagrado e o Profano. A Essncia das Religies, Coleco Vida e Cultura, n. 62, Lisboa, Livros do Brasil, 2002, p. 35. Veja-se, por exemplo, o episdio bblico no qual Deus ordena a Moiss que descalce as sandlias, pois encontrava-se em lugar sagrado (Ex III, 5).

  • 34

    (profanum)25. Sagrado e profano constituem, assim, dois universos que se definem ape-

    nas um pelo outro26, numa oposio correlativa27.

    Posto isto, o sagrado designa uma ordem de realidades cuja essncia supera o mundo

    em que vivemos, apresentando-se separado, investido de um valor intangvel, inviol-

    vel28. Esse cosmos superior constitudo por um ou mais seres nos quais se concentra o

    sagrado propriamente dito, acreditados como criadores e senhores de todas as coisas29.

    Por extenso, o qualificativo sagrado tambm se aplica aos seres, objectos, aces, espaos

    e tempos sempre que neles ou por seu meio se manifeste a eficcia do poder divino30.

    Propriedade estvel ou efmera31, o sagrado , por natureza, diferente e torna diferente32.

    O ser ou objecto consagrado no sofre qualquer modificao na sua aparncia, mas no

    deixa de ser transformado na sua totalidade33. Por seu turno, o crente, que espera do sagrado

    todo o socorro e todo o sucesso34, experimenta uma alterao paralela no seu comporta-

    mento relativamente aos entes consagrados35, os quais suscitam, ao mesmo tempo, senti-

    mentos de pavor e de venerao36.

    Na dualidade ontolgica sagrado/profano, o homem religioso confere uma desconti-

    nuidade ao mundo sensvel, reclassificando qualitativamente os mltiplos seres da realidade

    circundante, significativos da dimenso sagrada e anttese do amorfo profano.

    25 Mircea ELIADE, Tratado de Histria das Religies, 4. ed., Porto, Edies ASA, 2004, p. 25; Alfonso di NOLA, Sagrado/Profano, s. v., in Ruggiero ROMANO (dir.), Enciclopdia Einaudi, vol. 12, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1987, pp. 124-127. 26 Roger CAILLOIS, O Homem e o Sagrado, Coleco Perspectivas do Homem, n. 10, Lisboa, Edies 70, 1988, p. 19. 27 Manuel da Costa FREITAS, Profano, s. v., in LOGOS, cit., vol. 4, p. 448. 28 Rudolf OTTO, O Sagrado, Coleco Perspectivas do Homem, n. 41, Lisboa, Edies 70, 1992, pp. 38-39. 29 M. da C. FREITAS, Sagrado, cit., p. 859. 30 R. CAILLOIS, op. cit., p. 20. 31 Ibidem. 32 M. da C. FREITAS, Sagrado, cit., p. 859. 33 R. CAILLOIS, op. cit., p. 20. 34 Idem, p. 22. 35 Idem, p. 20. 36 R. OTTO, op. cit., pp. 23-29.

  • 35

    1.2.2. Criao artstica e o divino no Cristianismo A arte sacra tem uma especial ligao com o sagrado, mas o fenmeno artstico,

    per se, pode ser entendido, em particular no mbito cristo, como prossecuo do acto

    criador de Deus. Ele o autor original por excelncia, o Criador em sentido absoluto37,

    o Artifex divino38.

    O acto criativo de Deus representou a produo a partir do nada, productio rei ex nihilo

    sui et subiecti39. No entanto, por seu lado, o Homem no cria, antes continua a criao

    divina40, dando forma e significado a algo j existente41. De acordo com o mito cosmog-

    nico do Livro do Gnesis, Deus criou o mundo ex nihilo e, ao sexto dia, fez o ser humano

    Sua imagem e semelhana, a quem confiou a tarefa de dominar a terra (Gn I, 28). Assim,

    o domnio criativo do Homem exercido sobre a matria do universo que o circunda,

    resultado da obra primordial do Omnipotente42. Usando as mos ou recorrendo tcnica

    para trabalhar a natureza, o Homem cumpre a vontade de Deus, manifestada no princpio

    dos tempos (Gn I, 28)43. Contudo, Mais do que um objecto esttico que se prope fruio dos outros, a obra de arte

    um compndio de conhecimentos, um texto com uma complexa rede de significados.

    Ela uma realidade meditica: porque transmite conhecimentos e memrias, permite a

    identificao de experincias e imagens, revela dimenses espirituais ocultas ou desco-

    nhecidas, amplia a conscincia do homem para o reconhecimento da sua prpria trans-

    cendncia.

    37 Jess LVAREZ GMEZ, Arqueologa Cristiana, Coleccin Sapientia Fidei: Serie de Manuales de Teologa, n. 17, Madrid, Biblioteca de Autores Cristianos, 1998, pp. 5-6. 38 AURELIUS AUGUSTINUS, sanctus, De Civitate Dei, XI, 22; XII, 25 (cf. J[acques]-P[aul] MIGNE, Patrologi Cursus Completus. Series Latina, T. 41, Parisiis, Migne, 1845, cols. 335 e 374; AGOSTINHO, sanctus, A Cidade de Deus, vol. 2, Lisboa, Fundao Calouste Gulbenkian, 1993, pp. 1042 e 1147); THOM AQUINATIS, sanctus, Summa Theologi, I, q. 27 a. 1 ad 3; I, q. 44 a. 3; e I, q. 45 a. 2. (cf. J[acques]-P[aul] MIGNE, Patro-logi Cursus Completus. Series Secunda, T. I, Parisiis, Migne, 1845, cols. 703, 839-841, e 844-845; TOMAS DE AQUINO, sanctus, Suma de Teologia, 4. ed., vol. 1, Madrid, Biblioteca de Autores Cristianos, 2001, pp. 308, 445 e 449). 39 Celestino PIRES, Criao, s. v., in LOGOS, cit., vol. 1, Lisboa/So Paulo, Editorial Verbo, 1989, p. 1218; cf. IGREJA CATLICA, Papa, 1978-2005 (Ioannes Paulus PP. II), Lettre aux Artistes, Cidade do Vati-cano, 4 de Abril de 1999. 40 J. LVAREZ GMEZ, op. cit., p. 6. 41 IGREJA CATLICA, Papa, 1978-2005 (Ioannes Paulus PP. II), Lettre aux Artistes, cit. 42 AURELIUS AUGUSTINUS, sanctus, De Civitate Dei, XII, 25 (cf. J.-P. MIGNE, Patrologi Cursus Completus. Series Latina, cit., T. 41, col. 374; AGOSTINHO, sanctus, A Cidade de Deus, cit., vol. 2, p. 1147). 43 Cf. GS 57.

  • 36

    Campo do simblico e do esttico obviamente o campo da relao do homem

    com o sagrado, o divino. E nesta relao intervm, necessariamente, as artes como

    linguagens e expresses que transcendem o nvel do banal, exactamente porque aspi-

    ram plenitude, ao sublime e ao absoluto44.

    1.2.3. Arte Sacra e Arte Religiosa Arte sacra um conceito vulgar, mas, todavia, sem deixar de constituir uma noo

    polissmica, e muitas vezes inexacta. A frequente confuso, tambm, com a expresso arte

    religiosa impe uma clarificao das designaes.

    Atendendo ao significado dos elementos modificadores: o adjectivo religioso qualifica

    o que relativo ou prprio da religio45, enquanto sacro classifica aquilo que diz respeito

    ao divino, religio, aos rituais e ao culto46.

    Numa primeira anlise, os adjectivos parecem sinnimos, porm, o termo religioso

    tem um sentido mais amplo e generalista face especificidade indiciada pelo vocbulo

    sacro, que remete para o plano ritual e do culto. Assim, infere-se que a arte sacra constitui

    um conjunto mais restrito e contido no mbito da arte religiosa.

    Colocando de parte o exame meramente semntico, tome-se agora a primeira frase do

    stimo captulo da Constitutio de Sacra Liturgia Sacrossanctum Concilium, emanada do

    Conclio Ecumnico Vaticano II (1962-1965), dedicado arte sacra e alfaias litrgicas: Inter nobilissimas ingenii humani exercitationes artes ingenuae optimo iure adnu-

    merantur, praesertim autem ars religiosa eiusdemque culmen, ars nempe sacra47.

    A arte sacra o cume da arte religiosa. Logo, esta um conceito mais alargado e

    inclui a primeira, i. e., toda a arte sacra religiosa, mas nem toda a arte religiosa sacra48.

    44 Emlia NADAL, Arte sacra: teologia, esttica, liturgia e linguagem das artes, in Novas Igrejas de Vrios Tempos: Actas, Lisboa, Rei dos Livros, 1998, p. 114. 45 ACADEMIA DAS CINCIAS DE LISBOA, ed. lit. & FUNDAO CALOUSTE GULBENKIAN, ed. lit., op. cit., vol. 2, p. 3175, s. v. religioso1; A. HOUAISS (ed. lit.), M. de S. VILLAR (ed. lit.) & F. M. de M. FRANCO (ed. lit.), op. cit., vol. 6, p. 3138, s. v. religioso. 46 ACADEMIA DAS CINCIAS DE LISBOA, ed. lit. & FUNDAO CALOUSTE GULBENKIAN, ed. lit., op. cit., vol. 2, p. 3302, s. v. sacro1; A. HOUAISS (ed. lit.), M. de S. VILLAR (ed. lit.) & F. M. de M. FRANCO (ed. lit.), op. cit., vol. 6, p. 3328, s. v. sacro. 47 SC 122. 48 Cf. J. LVAREZ GMEZ, op. cit., p. 8.

  • 37

    Num quadro mais concreto, a arte religiosa a totalidade da produo artstica inspi-

    rada na f de uma religio e baseada em textos sagrados ou estimulada pela devoo pes-

    soal49. No mbito do sculo, fora dos templos e qualquer que seja a religio, exerccio da

    experincia esttica e responde aos sentimentos religiosos privados50.

    A arte sacra, por sua vez, constitui uma categoria mais restrita e tem uma natureza

    diferente. Ainda que as fontes de inspirao sejam as mesmas e use tcnicas e materiais

    similares, concebida especificamente para o culto litrgico, com uma inteno ritual51.

    Os seus limites e objectivos so estabelecidos pelas exigncias do culto52 e expressa valo-

    res sagrados que se instalam na obra de arte pela afectao ao rito mediante a consagrao,

    a dedicao ou a bno53.

    1.3. Museologia da Arte Sacra Na linha dos conceitos supra-analisados, pode dizer-se que a museologia da arte sacra

    ser a cincia dos museus especializados em arte concebida para a funo litrgica. Por um

    lado, estuda-se o universo especfico dos museus de arte sacra; por outro, analisa-se a

    peculiaridade da arte sacra submetida s funes museolgicas.

    A arte sacra no foi produzida com fins museolgicos, mas com a inteno de expres-

    sar o culto, a catequese, a cultura e a caridade, conduzir o esprito do homem at Deus54.

    Esta finalidade deve ser para o museu um objecto de estudo mas tambm um critrio de

    seleco da documentao, pois a obra de arte portadora de informao sobre a f religiosa,

    bem como do modo de vida da sociedade marcada por essa f55.

    49 Cf. P[aul] ROMANE-MUSCULUS, Lglise Rforme et lart, in Victor-Henry DEBIDOUR (ed. lit.), Problmes de l'Art Sacr, Paris, Le Nouveau Portique, 1951, p. 86. 50 J. LVAREZ GMEZ, op. cit., p. 8. 51 Cf. P. ROMANE-MUSCULUS, op. cit., p. 86. 52 Cf. SC 123-128; Circular do Santo Ofcio, Cidade do Vaticano, 25 de Novembro de 1947, apud Manuel Cardoso Mendes ATANSIO, Arte Moderna e Arte da Igreja, Coimbra, 1959, p. 61. 53 J. LVAREZ GMEZ, op. cit., p. 8; CIC 1917 can. 1497 2; cf. CIC 1917 cann. 1150 e 1154; CIC 1983 cann. 1171 e 1205. 54 Cf. SC 122. 55 Alain GIRARD, Muses dart sacr: une nouvelle gnration, in Forme et Sens. Colloque sur la formation la dimension religieuse du patrimoine culturel. [actes du colloque], Paris, La Documentation Franaise, 1997, p. 229.

  • 38

    O conceito de musealizar necessita ser entendido no seu sentido mais lato de trans-

    formar em peas de museu56 e no apenas na sua acepo estrita, habitual e imprecisa-

    mente imputada, de expor ou exibir objectos. Essa transformao, no que respeita arte

    sacra , contudo, algo complexa. Os objectos, outrora criados com um propsito litrgico,

    adquirem um novo estatuto57. Ainda que dotados de sacralidade e funcionalidade58 no

    campo da pastoral litrgica, so tambm um elemento material do culto, que interessa

    enquanto objecto de estudo e de fruio59. Ao integrarem o museu, deixam o domnio

    reservado dos fiis e do rito e convertem-se numa coleco pblica, um bem comum60

    acessvel para o deleite de qualquer visitante, sem prejuzo de agresso s suas convices

    religiosas61 e sujeita a todas as funes atribudas s instituies museolgicas.

    Removida do seu contexto natural, a obra de arte sacra perde o carcter sagrado e utili-

    trio associado ao rito e devoo. Dir-se-ia que h um processo de dessacralizao, mas no

    se deve, porm, responsabilizar o museu, pois esta ocorre muitas vezes antes de aquela ali ser

    incorporada, quando se torna obsoleta e intil e, com frequncia, deixada ao abandono.

    Por outro lado, na f crist, os objectos sagrados so mediadores, sinais e smbolos que elevam

    o Homem s realidades supra-sensveis. A venerao dirigida no aos objectos em si mas

    quilo que representam. No existe uma sacralidade intrnseca e intocvel dos objectos, o tabu

    ou interdito. Estes adquirem o estatuto de sacros enquanto mediadores e elementos activos na

    liturgia, pelo que a dessacralizao causada pelo museu mais aparente do que real.

    Ao longo da sua existncia, a Igreja nunca reclamou arte prpria, admitindo as formas

    de expresso artstica caractersticas de cada poca, povo ou regio, criando, assim, um

    imenso patrimnio, que demanda ser cuidadosamente preservado62.

    56 Cf. ACADEMIA DAS CINCIAS DE LISBOA, ed. lit. & FUNDAO CALOUSTE GULBENKIAN, ed. lit., op. cit., vol. 2, p. 2555, s. v. musealizar; A. HOUAISS (ed. lit.), M. de S. VILLAR (ed. lit.) & F. M. de M. FRANCO (ed. lit.), op. cit., vol. 4, p. 2574, s. v. musealizar. 57 Franois BERGOT, Prsentation des uvres dart caractre religieux dans les collections publiques, in Forme et Sens, cit., p. 99. 58 Carlo CHENIS, Fondamenti Teorici dellArte Sacra: Magistero Post-Conciliare, Collezione Biblioteca di Scienze Religiose, 94, Roma, LAS Libreria Ateneo Salesiano, 1991, p. 121. 59 Idem, p. 140. 60 A. GIRARD, op. cit., p. 228. 61 F. BERGOT, op. cit., p. 99. 62 Cf. SC 123; IGMR 289.

  • 39

    Definidos os conceitos que dizem respeito museologia e arte sacra, consideremos

    ainda a terminologia utilizada neste estudo para designar os diversos entes museolgicos.

    No mbito do territrio portugus, as tradies, os vocabulrios autctones ou at interpre-

    taes vernculas, entre outros motivos, propiciaram uma disparidade de nomenclaturas tipo-

    lgicas para as instituies, que, no obstante a sua correco, importa uniformizar para

    efeitos de trabalho. Assim, e sem comprometer a denominao particular de cada evento,

    individualizamos as tipologias formais63 museu de arte sacra, ncleo museolgico de arte

    sacra, seco/sala de arte sacra, exposio temporria de arte sacra e tesouro de arte sacra.

    Nesse sentido, museu de arte sacra uma instituio museolgica monogrfica dedi-

    cada temtica da arte sacra. Com identidade prpria, ocupa habitualmente espaos inde-

    pendentes do contexto cultual ou templos desafectados do culto. O tesouro de arte sacra,

    nem sempre de fcil destrina daquele conceito, distingue-se pelo facto de se encontrar

    ligado, fsica e tematicamente, a um espao consagrado64, em sala ou divises anexas,

    como uma sacristia ou, mormente, a sala do tesouro.

    Por seu turno, o ncleo museolgico de arte sacra um museu de arte sacra sob

    dependncia administrativa e tcnica de uma instituio museolgica polinucleada, i. e.,

    consiste num museu monogrfico integrado administrativamente num museu multitemtico

    ou generalista, ocupando edifcio independente da sede, na mesma localidade ou at em

    povoaes distintas. A seco/sala de arte sacra, por outro lado, constitui uma rea expo-

    sitiva monogrfica inserida ou articulada com o espao de exposio permanente de um

    museu generalista. Ou seja, uma zona concreta da exposio permanente de um museu,

    bem definida e dedicada temtica exclusiva da arte sacra. Pelo que concerne exposio

    temporria de arte sacra, a expresso designa uma exposio temporria monogrfica no

    mbito da arte sacra.

    63 A presente classificao baseia-se somente em critrios formais, sem atender, de modo algum, legitimidade institucional, assente nas definies de museu e cumprimento das suas funes, para usar tais designaes. 64 Cf. A. GIRARD, op. cit., p. 229; Olivier POISSON, Trsors dglise et muses dart sacr, in Patrimoine, Temps, Espace. Patrimoine en Place, Patrimoine Dplac, Actes des Entretiens du Patrimoine, n. 2, Paris, Fayard, 1997, p. 217.

  • CAPTULO II

    PATRIMNIO SACRO

  • 43

    2. Patrimnio Sacro

    O patrimnio sacro gerado num contexto litrgico ou salvfico. H, contudo, uma

    dimenso artstica, histrica e cultural que importa preservar, sem prejuzo do seu referen-

    cial religioso. Por isso, embora com ritmos diferentes, as diversas entidades que custodiam

    estes bens tm vindo a promover aces para a sua salvaguarda e valorizao, cada uma a

    seu jeito, isoladamente ou em parceria, e mediante os recursos de que dispem ou conse-

    guem granjear.

    2.1. Papel da Igreja na salvaguarda da arte sacra 2.1.1. Patrimnio da Igreja

    No mbito do patrimnio da Igreja, costumam distinguir-se as res sacr, destinadas ao

    culto, dos bona ecclesiastica, bens necessrios actividade e meio de sustento dos seus

    diversos organismos1. O antigo direito da Igreja, em especial o Decretum coligido por Gra-

    ciano, ca. 1140, reconhecia, porm, apenas uma categoria, separando as res Ecclesi ou

    res ecclesiastic2, s quais opunha as res profan ou propri3, propriedade laica, sem

    relao com a organizao eclesistica.

    Um marco na evoluo destes conceitos o Codex Iuris Canonici, promulgado na

    solenidade de Pentecostes do ano 1917, que determina:

    1 Alberto PERLASCA, Il Concetto di Bene Ecclesiastico, Collezione Tesi Gregoriama, Serie Diritto Cannico, n. 24, Roma, Editrice Pontificia Universit Gregoriana, 1997, p. 172; cf. Manuel Saturino da Costa GOMES, Legislao eclesistica sobre o patrimnio cultural, in Patrimnio Classificado. Actas dos Encontros, Lis-boa, Universidade Catlica Editora, 1997, p. 120. 2 GRATIANUS DE CLUSIO, Concordatiam Discordantium Canonum seu Decretum Gratiani, C. I, q. III, cc. 5, 7 e 12 (cf. J[acques]-P[aul] MIGNE, Patrologi Cursus Completus. Series Latina, T. 187, Parisiis, Migne, 1891, cols. 548A-549A, 554A-554B); cf. A. PERLASCA, op. cit., p. 172; M. S. da C. GOMES, op. cit., p. 120. 3 GRATIANUS DE CLUSIO, Concordatiam Discordantium Canonum seu Decretum Gratiani, C. XII, q. I, cc. 7 e 18-21 (cf. J.-P. MIGNE, Patrologi Cursus Completus. Series Latina, cit., T. 187, cols. 884B-885A, 891A- -892B; cf. A. PERLASCA, op. cit., p. 172; M. S. da C. GOMES, op. cit., p. 120.

  • 44

    Can. 1497. 1. Bona temporalia, sive corporalia, tum immobilia tum mobilia,

    sive incorporalia, quae vel ad Ecclesiam universam et ad Apostolicam Sedem vel ad

    aliam in Ecclesia personam moralem pertineant, sunt bona ecclesiastica.

    2. Dicuntur sacra, quae consecratione vel benedictione ad divinum cultum desti-

    nata sunt; pretiosa, quibus notabilis valor sit, artis vel historiae vel materiae causa4.

    Os bens eclesisticos eram, pois, todos os bens materiais e imateriais que pertenciam

    Igreja universal, Sede Apostlica e a qualquer pessoa moral da Igreja. No obstante, de

    harmonia com o 2 daquele cnone, eram res sacra os bens afectos ao culto por meio da

    consagrao ou bno e introduziu-se o conceito de res pretiosa para aqueles objectos que

    manifestassem considervel valor histrico, artstico ou material5.

    Na verso do CIC posterior Constitutio Apostolica Sacr Disciplin Leges, de 25 de

    Janeiro de 1983, alm dos bona ecclesiastica, constitudos pelo patrimnio temporal da

    Igreja6, sobressaem trs classes de bens. As res sacr7, consagradas ou benzidas para fins

    rituais, podero tambm ser propriedade privada, no formando parte, neste caso, do con-

    junto dos bens eclesisticos8. Dentro do esprito oriundo do cdigo de 1917, as res pre-

    tios tm a sua preciosidade assente no valor econmico, histrico ou artstico9.

    No entanto, esta verso utiliza pela primeira vez a noo de bona culturalia10, distintos das

    coisas preciosas, ao descrever os bens que devem includos no inventrio que os adminis-

    tradores esto obrigados a efectuar quando iniciam funes11.

    2.1.2. Zelo pela arte sacra: o empenho da Santa S As preocupaes da Igreja Catlica com a salvaguarda do patrimnio contam j com

    um longo percurso, plasmadas em diversos actos pontifcios e conciliares. Citem-se, a ttulo

    4 CIC 1917 can. 1497. 5 A. PERLASCA, op. cit., pp. 170-177. De harmonia com o can. 1280 do CIC 1917, pertencem tambm a esta categoria os objectos proeminentes pela sua antiguidade, qualidade artstica ou culto. 6 CIC 1983 can. 1257 1. 7 CIC 1983 can. 1171, cujo teor condensou o disposto nos cann. 1497 2 e 1150 do CIC 1917; cf. A. PER-LASCA, op. cit., p. 206. 8 Como se infere de CIC 1983 cann. 1171 e 1269; cf. A. PERLASCA, op. cit., p. 206. 9 CIC 1983 cann. 638 3 e 1292 2. A noo de preciosidade encontra-se ainda em CIC 1983 can. 1189, aplicada s imagens que sejam notveis pela sua antiguidade, arte ou culto; cf. A. PERLASCA, op. cit., p. 207. 10 CIC 1983 can. 1283 2; cf. M. S. da C. GOMES, op. cit., p. 123. 11 CIC 1983 can. 1283 2.

  • 45

    de exemplo, as constituies apostlicas de Martinho V12, em 142513, e de Sixto IV14,

    em 148015, o dito do cardeal Bartolomeo Pacca, de 7 de Abril de 182016, diploma para-

    digmtico para a subsequente legislao no mbito das belas-artes, ou a carta circular do

    cardeal Merry del Val, de 10 de Dezembro de 190717, que instituiu os comissariados dioce-

    sanos para os monumentos custodiados pela Igreja, responsveis pela valorizao dos

    objectos de arte, pela guarda sobre a sua conservao e anlise dos projectos de restauro e

    construo18.

    Disposies do primeiro Codex Iuris Canonici

    No que respeita especificidade da arte sacra, a regulamentao coube ao CIC, na ver-

    so originria de 1917. Em consonncia com documentos pontifcios anteriores, atribuiu ao

    Ordinrio do lugar o dever de velar pelo respeito da tradio crist e das regras da arte

    sacra na edificao ou reparao das igrejas19. De igual modo, tinha de cuidar da dignidade

    cultual das imagens sacras expostas nos templos20 e, quando o seu estado de conservao

    exigisse uma interveno de restauro, competia-lhe dar licena por escrito, aps prudentes

    ac peritos viros consulat21, i. e., depois da consulta a homens prudentes e qualificados.

    12 * 1368 1431; reg. 1417-1431. 13 IGREJA CATLICA, Papa, 1417-1431 (Martinus PP. V), Constitutio Apostolica Etsi in Cunctarum Orbis Provinciarum, Roma, 31 de Maro de 1425 (cf. Laertii CHERUBINI, Magnum Bullarium Romanum, T. 1., Lugduni, Sumpt. Petri Borde, Joannis & Petri Arnaud, 1692, pp. 325-326); cf. Zaccaria da SAN MAURO, Arte: XI: La legislazione ecclesiastica e civile, s. v., in Enciclopedia Cattolica, vol. II, Citt del Vaticano, Ente per lEnciclopedia Cattolica e per il Libro Cattolico, 1949, col. 44; Francisca HERNNDEZ HERNNDEZ, El Patrimonio Cultural. La Memoria Recuperada, Coleccin Biblioteconoma y Administracin Cultural, n. 60, Gijn: Ediciones Trea, 2002, p. 41. 14 * 1414 1484; reg. 1471-1484. 15 IGREJA CATLICA, Papa, 1471-1484 (Sixtus PP. IV), Constitutio Apostolica Etsi in Cunctarum Civitatum, Roma, 30 de Junho de 1480 (cf. L. CHERUBINI, op. cit., T. 1, pp. 435-437); cf. Z. da SAN MAURO, op. cit., col. 44; F. HERNNDEZ HERNNDEZ, El Patrimonio Cultural, cit., p. 43. 16 IGREJA CATLICA, Secretaria Status, Editto dellEmo e Rmo Sig. Cardinal Pacca Camerlengo di S. Chiesa sopra le Antichit e gli Scavi, Roma, 7 de Abril de 1820; cf. Z. da SAN MAURO, op. cit., col. 44. 17 IGREJA CATLICA, Secretaria Status, Lettera Circolare dellEm.mo Card. Merry del Val per lIstituzione dei Commissariati Diocesani per i Monumenti Custoditi dal Clero. N. 27114, Roma, 10 de Dezembro de 1907. 18 Z. da SAN MAURO, op. cit., col. 44. 19 CIC 1917 can 1164 1. 20 CIC 1917 can 1279. 21 CIC 1917 can 1280.

  • 46

    O ttulo XVIII do livro terceiro do CIC estava inteiramente dedicado s alfaias e

    objectos litrgicos, a sacra supellex. Quanto sua concepo, em termos de matria e

    de forma, observariam as prescries rituais, a tradio da Igreja e, sobretudo, as regras

    da arte sacra22. Consagrados ou benzidos para afectao ao culto pblico, deviam ser

    guardados na sacristia ou em outro lugar decente e seguro23, constando de inventrio a

    efectuar pelos administradores dos bens eclesisticos24, e no podiam ser empregados

    em usos profanos25 e a custdia e vigilncia dispensada s res sacr era semelhante

    quela ministrada ao conjunto dos bona ecclesiastica26, dando, porm, especial ateno

    s coisas preciosas27.

    Criao do Pontificium Consilium Centrale pro Arte Sacra in Italia

    As questes relacionadas com a arte sacra vinham a tornar-se cada vez mais presentes.

    Face ao sucesso j alcanado com as polticas de conservao e bom uso dos arquivos e biblio-

    tecas eclesisticas, Pio XI28 instituiu o Pontificium Consilium Centrale pro Arte Sacra in Italia,

    por Carta Circular datada a 1 de Setembro de 192429. A Igreja reconhecia a importncia do

    vasto patrimnio inspirado pela f crist, testemunho material da sua sobrenaturalidade, reu-

    nido ao longo de muitos sculos, que exigia o zelo inteligente e devoto pela sua conservao e

    incremento30. Embora criada na dependncia da Santa S, esta comisso central tinha um

    mbito geogrfico muito delimitado o territrio italiano , no deixando, contudo, de ser um

    arqutipo da intensa preocupao pelo patrimnio artstico da Igreja em Itlia31.

    22 CIC 1917 can. 1296 3. 23 CIC 1917 can. 1296 1. 24 CIC 1917 can. 1296 2; cf. CIC 1917 can. 1522 2-3. 25 CIC 1917 can. 1296 1. 26 CIC 1917 cann. 1522-1523. 27 CIC 1917 can. 1532 1, n. 1. 28 * 1857 1939; reg. 1922-1939. 29 IGREJA CATLICA, Secretaria Status, Circolare della Segreteria di Stato del 1. Settembre 1924 a tutti gli Ecc.mi Vescovi dItalia con la quale Veniva Instituita la Pontificia Commissione Centrale per lArte Sacra. N. 34215, Roma, 1 de Setembro de 1924, n. 1. 30 Idem, n. 2; cf. Z. da SAN MAURO, op. cit., col. 45. 31 M. C. M. ATANSIO, op. cit., p. 187; cf. Enchiridion dei Beni Culturali della Chiesa. Documenti Ufficiali della Pontificia Commissione per i Beni Culturali della Chiesa, Bologna, EDB Edizioni Dehoniane Bologna, 2002, p. 23.

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    Reservando para si um encargo de direco, inspeco e propaganda, coordenaria e

    apoiaria a actividade das comisses diocesanas ou regionais32, que tinham a particular mis-

    so de fomentar: [] a) la compilazione degli inventari degli oggetti darte;

    b) la formazione e lordinamento dei Musei diocesani;

    c) lesame dei disegni dei nuovi edifici, ampliamenti, decorazioni, restauri, ecc.;

    d) il promuovere, mediante libri, conferenze, lezioni, ecc., il gusto e la cultura nel-

    la diocesi o nella regione, massime in quelle persone che per lufficio, come i Fabbri-

    cieri, per le condizioni di fortuna o per altre qualit personali possono pi utilmente

    concorrere alla buona causa dellarte religiosa; e il procurare con opportuni espedienti

    (per es. Societ degli Amici dellArte) di raccogliere, anche per mezzo di tenui offerte,

    i mezzi necessari per supplire alle insufficienti entrate remaste alle Chiese33.

    O dinamismo desta pontifcia comisso foi veemente, salientando-se a ateno para

    com os museus diocesanos; a organizao de Settimane di arte sacra, entre 1933 e 1939,

    verdadeiras escolas de formao litrgica, esttica, cultural e pastoral, e, anos mais tarde,

    Settimane per larte sacra, em 1956, 1961, 1965, 1969, 1970 e 1972, e Settimane sui beni