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Sobre o autor: Arthur Conan Doyle Escritor britânico Por Dilva Frazão Biografia de Arthur Conan Doyle Arthur Conan Doyle (1859-1903) foi um escritor e médico britânico, autor das histórias do imortal detetive Sherlock Holmes que superou a fama de seu criador. Arthur Ignatius Conan Doyle nasceu em Edimburgo, Escócia, no dia 22 de maio de 1859. Filho de católicos irlandeses estudou no Colégio Stonyhurst, onde concluiu o colegial em 1875. Em 1876 ingressou na Universidade de Edimburgo concluindo o curso de Medicina em 1881. Entre 1882 e 1890 exerceu a profissão em Southsea, Inglaterra. Carreira literária Ainda estudante, Conan começou a escrever pequenas histórias. Em 1887 publicou na revista de bolso Beeton’s Christmas Annual, a história “Study in Scarlate” (Um Estudo em Vermelho). Um Estudo em Vermelho se converteu no primeiro dos 60 outros contos policiais em que aparece sua criação máxima, o detetive “Sherlock Holmes”. Em fevereiro de 1890, Conan Doyle teve sua segunda história, intitulada “The Signo of the Four” (O Signo dos Quatro), publicada na revista Lipincott’s Magazine. O sucesso dos contos de Arthur Conan Doyle teve início em julho de 1891, quando a revista Strand Magazine publicou “A Scandal in Bohemia” (Um Escândalo na Boêmia).

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Sobre o autor:

Arthur Conan Doyle

Escritor britânico

Por Dilva Frazão

Biografia de Arthur Conan Doyle

Arthur Conan Doyle (1859-1903) foi um escritor e médico britânico, autor das

histórias do imortal detetive Sherlock Holmes que superou a fama de seu criador.

Arthur Ignatius Conan Doyle nasceu em Edimburgo, Escócia, no dia 22 de maio de

1859. Filho de católicos irlandeses estudou no Colégio Stonyhurst, onde concluiu o

colegial em 1875.

Em 1876 ingressou na Universidade de Edimburgo concluindo o curso de

Medicina em 1881. Entre 1882 e 1890 exerceu a profissão em Southsea, Inglaterra.

Carreira literária

Ainda estudante, Conan começou a escrever pequenas histórias. Em 1887

publicou na revista de bolso Beeton’s Christmas Annual, a história “Study in Scarlate”

(Um Estudo em Vermelho).

Um Estudo em Vermelho se converteu no primeiro dos 60 outros contos

policiais em que aparece sua criação máxima, o detetive “Sherlock Holmes”.

Em fevereiro de 1890, Conan Doyle teve sua segunda história, intitulada “The

Signo of the Four” (O Signo dos Quatro), publicada na revista Lipincott’s Magazine.

O sucesso dos contos de Arthur Conan Doyle teve início em julho de 1891,

quando a revista Strand Magazine publicou “A Scandal in Bohemia” (Um Escândalo na

Boêmia).

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Outra criação de grande destaque em suas histórias é o doutor “Watson”, um

médico leal, porém intelectualmente lerdo que acompanha Sherlock e escreve suas

aventuras.

Há em seus livros um constante duelo entre o detetive e seu inimigo oculto. O

desenlace vem sempre carregado de forte dose dramática.

A expressão de Sherlock Holmes ante a admiração de seu inseparável

companheiro – “Elementar, meu caro Watson” – entrou para a linguagem cotidiana

A morte de Sherlock Holmes

Em 1893 Arthur Conan Doyle publicou “The Final Problem” (O Problema

Final), quando resolveu matar o detetive Holmes, junto com seu inimigo mortal, o vilão

Moriarty.

Porém, as manifestações de desagrado e a pressão de seus leitores fez o escritor

trazer de volta o detetive na história “A Casa Vazia”, com a explicação de que apenas

Moriarty havia caído nas Cataratas de Reichenbach.

O conto foi publicado originalmente no livro “A Volta de Sherlock Holmes”

(1905).

Últimos anos

Após a morte de seu filho mais velho nas trincheiras da Primeira Guerra

Mundial, Arthur Conan sofreu uma crise existencial e encontrou consolo no espiritismo.

Conan Doyle decidiu então difundir sua crença com a publicação das obras: “A Nova

Revelação” (1918), “A Chegada das Fadas” (1921) e “A História dos Espíritos”.

O grande sucesso dos contos de Sherlock Holmes levou o escritor Arthur Conan

Doyle a publicar suas fascinantes histórias ao longo de quarenta anos.

Ainda hoje, seus contos continuam a despertar o interesse de jovens e adultos de tal

forma que o seu endereço fictício – 221B, Baker Street, Londres, abriga hoje o museu

do ilustre detetive, atraindo um grande número de visitantes de várias partes do mundo.

Em 1902, o rei Eduardo VII concedeu a Doyle o título de Sir pela publicação de

diversos artigos a favor de seu país na Guerra dos Bôeres e no livro “A Guerra na África

do Sul” (1900).

O autor publicou também seis volumes da obra “The British Compaign in

Flanders” (1916-1919).

Arthur Conan Doyle faleceu em Crowborough, Inglaterra, no dia 7 de julho de

1930.

Frases de Conan Doyle

O mundo está cheio de coisas obvias, que ninguém, em momento algum observa.

Onde não há imaginação não há horror.

É um erro terrível teorizar antes de termos informação.

Por muito tempo tem sido um dos meus axiomas que as pequenas coisas são

infinitamente mais importantes.

Há uma luz nos olhos das mulheres que fala mais alto que as palavras.

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Principais obras de Arthur Conan Doyle

Um Estudo em Vermelho (1887)

O Signo dos Quatro (1890)

Um Escândalo na Boêmia (1891)

O Mistério do Vale Boscombe (1891)

As Aventuras de Sherlock Holmes (1892)

Ritual Musgrave (1893)

O Problema Final (1893)

O Arquivo Secreto de Sherlock Holmes‌ (1902)

O Cão de Baskervilles (1902)

A Volta de Sherlock Holmes (1905)

O Mundo Perdido (1912)

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A liga dos cabeças vermelhas Arthur Conan Doyle

https://mundosherlock.wordpress.com/arthur-conan-doyle/

A liga dos cabeças vermelhas

Título original: The Red Headed League

Publicado pela primeira vez na Strand Magazine,

em Agosto de 1891 e com 10 ilustrações de Sidney Paget.

Sobre o texto em português:

Este texto digital reproduz a

tradução de The Red Headed League publicado em

As Aventuras de Sherlock Holmes, Volume II,

editado pelo Círculo do Livro

e com tradução de Hamílcar de Garcia.

Fui visitar meu amigo Sherlock Holmes, num dia de outono do ano passado, e

encontrei-o numa séria conversa com um senhor idoso, muito corpulento, de rosto

corado e cabelos vermelhos.

Pedindo desculpas pela minha intrusão, ia retirar-me quando Holmes me puxou

abruptamente para dentro da sala e fechou a porta.

— Não podia ter vindo em melhor hora, caro Watson — disse-me ele cordialmente.

— Receei que estivesse ocupado.

— De fato. E muito.

— Então devo esperá-lo na outra sala.

— Nada disso. Este cavalheiro, sr. Wilson, tem sido meu companheiro e auxiliar em

muitos dos meus casos mais bem-sucedidos, e não duvido de que venha ainda a ser útil

no seu também.

O cavalheiro gordo levantou-se da cadeira e cumprimentou-me com uma expressão

interrogativa nos pequenos olhos meio fechados pela gordura.

— Sente-se no sofá — disse Holmes, ajeitando-se de novo na poltrona e juntando as

pontas dos dedos como era seu costume quando estava pensativo. — Eu sei, meu caro

Watson, que você é como eu, gosta de tudo o que é bizarro e foge à rotina monótona do

convencionalismo da vida cotidiana. Você já demonstrou esse gosto no entusiasmo com

que escreve, e, desculpe-me dizê-lo, até no embelezamento de muitas das minhas

próprias aventuras.

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— Seus casos têm sido realmente do maior interesse para mim — observei.

— Lembra-se de eu ter dito outro dia, quando começamos a estudar o problema

apresentado pela srta. Mary Sutherland, que, devido a estranhos efeitos e combinações

de circunstâncias extraordinárias, precisávamos nos convencer de que a própria vida

tem muito mais ousadia do que se possa imaginar?

— Uma proposição da qual tomei a liberdade de duvidar.

— Sim, doutor, mas mesmo assim tem de aceitar meu ponto de vista, ou continuarei a

aborrecê-lo com uma grande quantidade de fatos até que fique desorientado e admita

que tenho razão. O sr. Jabez Wilson fez-me o favor de vir aqui hoje e começou uma

narrativa que promete ser um dos mais singulares casos de que tenho conhecimento

desde há muito tempo. Você já me tem ouvido dizer que as coisas mais estranhas e

esquisitas geralmente têm relação não com os maiores crimes, mas com os menores, e,

ocasionalmente, há mesmo razão para duvidar se houve crime ou não. Portanto, pelo

que ouvi até agora, é-me impossível decidir se o caso atual foi crime perpetrado ou não;

todavia, o curso que tomam os acontecimentos é certamente dos mais curiosos. Talvez o

sr, Wilson queira ter a bondade de recomeçar sua narrativa. Não lhe faço esse pedido

apenas porque meu amigo, o dr. Watson, não a ouviu; mas também porque a natureza

peculiar da história faz-me ansioso por não perder o mínimo pormenor. Quase sempre,

quando ouço as primeiras notícias de um caso, sigo-lhes o fio devido à experiência de

milhares de outros semelhantes e dos quais vou me lembrando. Mas neste caso, sou

obrigado a admitir que os fatos são, segundo creio, únicos no gênero.

Sidney Paget, cortesia The Camden House

O cliente corpulento aprumou-se com visível orgulho e tirou do bolso do sobretudo um

jornal sujo e amarrotado. Enquanto lia a coluna da primeira página, com o jornal

estendido sobre o joelho, olhei bem para o homem e esforcei-me, seguindo o hábito do

meu companheiro, por ler as indicações que pudessem estar contidas em seu vestuário e

aparência geral. Não lucrei muito, no entanto, com minha inspeção. Nosso visitante

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tinha apenas as características de um negociante britânico comum, obeso, pomposo e

lento. Vestia calças cinza axadrezadas e largas, como as usadas pêlos pastores de

ovelhas nos campos; a sobrecasaca estava desabotoada na frente e não muito limpa, e do

colete escuro pendia uma pesada corrente de ouro com uma medalha como ornamento.

Uma cartola gasta e um sobretudo castanho com uma gola de veludo enrugada jaziam

numa cadeira a seu lado. Ao todo, pelo que pude observar, não havia nada de

extraordinário nem de estranho no homem, a não ser a cabeça flamejante e uma

expressão de extrema mortificação e descontentamento no rosto.

O olhar perscrutador de Sherlock Holmes percebeu minha preocupação, e ele sacudiu a

cabeça, sorrindo perante o meu olhar inquiridor.

— Além dos fatos evidentes de que já foi operário, tomava rapé, é maçom, esteve na

China e tem escrito muito ultimamente, não deduzi mais nada O sr. Jabez Wilson pulou

da sua cadeira com o dedo indicador sobre o jornal, porém com os olhos fixos no meu

amigo.

— De que modo mágico descobriu tudo isso, sr. Holmes? — perguntou ele. — Como

adivinhou por exemplo que fui operário? É verdade como o Evangelho, e comecei como

carpinteiro a bordo de um navio.

— Suas mãos, meu caro senhor. Sua mão direita é muito maior do que a esquerda.

Usou-a muito, e os músculos estão mais desenvolvidos.

— Bem, e o rapé, e a maçonaria?

— Não quero insultar sua inteligência dizendo-lhe como notei tudo isso, principalmente

porque, contra as regras da sua ordem, o senhor usa um arco e um compasso no alfinete

da gravata.

— Ah! é certo, esqueci-me disso. Mas, e os inúmeros escritos?

— O que se há de pensar quando se vê a manga direita tão brilhante e gasta na extensão

de umas cinco polegadas, e a manga esquerda puída perto do cotovelo que o senhor

apoia na secretária?

— Bem, e a respeito da China?

— O peixe que o senhor traz tatuado logo acima do pulso direito só pode ter sido feito

na China. Estudei um pouco a respeito de tatuagem e até contribuí com alguma

literatura sobre o assunto. Aquele truque de colorir as escamas de peixe com um

delicado cor-de-rosa é peculiar da China. Quando, ainda por cima, vejo uma moeda

chinesa pendurada na corrente do seu relógio, torna-se fácil descobrir tudo.

Jabez Wilson riu-se a bandeiras despregadas.

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— Bem, nunca vi! — declarou. — Pensei que o senhor tivesse feito uma coisa de muito

valor, mas vejo, enfim, que não houve nada de extraordinário.

— Estou pensando, Watson — disse Holmes —, que cometi um erro explicando

tudo. Omne ignotum pro magnifico, você bem sabe, e minha pobre e pequena reputação

soçobrará se eu continuar a ser tão ingênuo. Não encontrou o anúncio, sr. Wilson?

— Sim, já o tenho — respondeu ele, com o dedo vermelho e grosso colocado no meio

da coluna. — Aqui está. Foi isto o que deu início a tudo. Leia-o, senhor.

Sidney Paget, cortesia The Camden House

Tirei-lhe o jornal da mão e li o seguinte:

“Liga dos Cabeças Vermelhas

Devido ao recente falecimento de Ezequias Hopkins, da Pensilvânia, EUA, está aberta

uma vaga que dá direito a outro membro da liga a receber o salário de quatro libras

semanais por serviços puramente nominais. Todos os homens de cabelos vermelhos que

estejam em perfeita saúde mental e física, com mais de vinte e um anos, são elegíveis.

Tratar pessoalmente na segunda-feira, às onze horas; falar com Duncan Ross, nos

escritórios da liga, em Pope’s Court, Fleet Street”.

— Que vem a ser isso? — exclamei, depois de ler duas vezes o extraordinário anúncio.

Holmes riu e mexeu-se na cadeira, como era seu costume quando estava entusiasmado.

— Nada comum, não é verdade? E agora, sr. Wilson, deixe de brincadeiras e conte-nos

tudo sobre sua vida, sua família, e o efeito deste anúncio sobre suas posses. Doutor,

tenha a bondade de tomar nota da data do jornal e do nome do mesmo.

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— É o Morning Chronicle de 27 de abril de 1890, justamente há dois meses passados.

— Muito bem. E agora, sr. Wilson?

— Bem, foi como acabei de lhe contar, sr. Sherlock Holmes — disse Jabez Wilson,

enxugando o suor da testa. — Tenho um pequeno negócio de penhores na Saxe-Coburg

Square, perto da City. É pequeno, e ultimamente mal dá para me sustentar. Antigamente

podia pagar a dois ajudantes, mas agora tenho um só, e teria dificuldade em pagar

mesmo a esse se não aceitasse metade do ordenado, visto a outra metade custear a

aprendizagem do negócio.

— Qual é o nome desse jovem tão compreensivo? — perguntou Holmes.

— Chama-se Vincent Spaulding, e não é tão jovem como pensa. É difícil dizer a idade

dele. Não podia desejar ajudante mais ativo, sr. Holmes; e eu sei que ele poderia ganhar

duas vezes mais do que lhe posso pagar. Mas, em todo caso, se está satisfeito, por que

haveria eu de lhe encher a cabeça com outras idéias?

— Claro! O senhor parece ter sorte; um empregado que não exige ordenado além do

regulamentar não é muito comum nestes tempos. Não sei se seu ajudante não será tão

estranho como este anúncio.

— Oh, ele tem também as suas falhas — disse o sr. Wilson. — Nunca houve outro igual

para bater fotos. Bate fotos quando devia estar trabalhando, e desce logo em seguida

para a adega, como um coelho que procura a toca, para revelar os negativos. É a

principal falha dele, mas em geral trabalha bastante. Não tem vícios.

— Continua em serviço, suponho?

— Sim, senhor. Ele e uma mocinha de treze anos, que cozinha um pouco e faz a

limpeza. É só o que tenho em casa, porque sou viúvo; somos só os três, e nos

arranjamos para pagar o aluguel, sem contrairmos dívidas, mesmo que não façamos

mais nada. A primeira coisa que nos chamou realmente a atenção foi este anúncio.

Spaulding desceu para o escritório justamente há dois meses com este jornal na mão e

disse:

“— Gostaria que Deus me tivesse dado cabelos vermelhos, sr. Wilson”.

“— Por quê? — perguntei-lhe.

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“— Porque há outra vaga na Liga dos Cabeças Vermelhas, e creio que há mais vagas do

que homens para ocupá-las; por isso os depositários estão preocupados, sem saber onde

encontrar as pessoas que devem receber o dinheiro. Se o meu cabelo fizesse o favor de

mudar de cor, aqui estaria um bom negociozinho para mim.

“— Mas de que se trata? — perguntei eu. O senhor compreende, sr. Holmes, sou um

homem caseiro, e como o meu negócio vem ter comigo e não é necessário eu procurá-

lo, passam-se semanas sem que eu saia de casa; e, assim, gosto de ouvir as notícias.

“— O senhor nunca ouviu falar da Liga dos Cabeças Vermelhas? — perguntou ele,

abrindo muito os olhos.

“— Nunca.

“— Admiro-me, porque o senhor próprio é elegível para uma das vagas.

“— E quanto valem? — perguntei.

“— Oh, apenas umas duzentas libras por ano, mas o trabalho é pequeno, e pouco tempo

é necessário roubar às suas outras ocupações. — Bem, como deve calcular, aquilo me

interessou, porque meu negócio não corre bem há alguns anos, e umas duzentas libras

extras seriam bem-vindas.

“— Conte-me tudo a respeito disso — pedi eu.

“— Bem — continuou ele, mostrando-me o anúncio —, como vê, há uma vaga na liga,

e está aqui o endereço onde obter as informações. Por tudo o que pude descobrir, a liga

foi fundada por Ezequias Hopkins, milionário americano, que tinha idéias muito

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esquisitas. Ele próprio tinha cabelos vermelhos e sentia grande simpatia por todos

aqueles que o tinham da mesma cor. Assim, quando morreu, descobriram que deixara

sua enorme fortuna nas mãos de depositários, com instruções para empregarem os juros

na criação de empregos para homens que tivessem o cabelo daquela cor. Pelo que ouvi

dizer, o trabalho é pouco e bem pago.

“— Mas — retruquei — devem inscrever-se multidões de homens.

“— Não tantos como pensa — respondeu. — Bem vê que o negócio é limitado aos

londrinos que sejam adultos. O tal americano saiu de Londres quando jovem, e queria

deixar um benefício à sua cidade. Ouvi dizer também que o cabelo não pode ser apenas

ruivo ou mesmo vermelho carregado. Tem de ser vermelho mesmo. Como fogo

brilhante, como fogo. Se pretende o lugar, sr. Wilson, creio que o conseguiria, mas

talvez nem valha a pena incomodar-se por causa de duzentas libras. — Como os

senhores podem ver, meu cabelo é, de fato, de cor exuberante, e pareceu-me que, se

houvesse realmente alguma concorrência, teria tanta possibilidade como qualquer outro

homem, e talvez mais. Vincent Spaulding parecia saber tanto a respeito do assunto, que

achei que me poderia ser útil. Mandei-o fechar a loja naquele dia, para que fosse comigo

imediatamente. Gostou de ter um feriado. Fechamos tudo e saímos à procura do

endereço que vinha no anúncio. Espero nunca mais ver semelhante horror outra vez, sr.

Holmes. De norte, sul, leste ou oeste, qualquer homem que tivesse um fio de cabelo

vermelho na cabeça tinha vindo para a cidade em resposta ao anúncio. Nem se podia

passar na Fleet Street por causa deles, e Pope’s Court mais parecia a carroça de um

vendedor de laranjas. Nunca imaginei que houvesse tantos em todo o país como os que

se reuniram por causa daquele anúncio. Havia cabelos de todas as tonalidades. Cor de

palha, de limão, de laranja, tijolo, cor de bílis e de barro, mas, como observou

Spaulding, poucos com cabelos vermelhos, cor de terra. Quando vi tanta gente à espera,

quis desistir, desanimado, mas Spaulding não concordou. Como ele o conseguiu, não

sei, mas empurrou alguns e puxou outros, dando cotoveladas, até que atravessamos a

multidão e subimos os degraus que levavam ao escritório.”

— Sua experiência foi divertida — disse Holmes enquanto o cliente fazia uma pausa e,

para refrescar a memória, tomava uma pitada de rapé. — Tenha a bondade de continuar.

— Não havia nada no escritório, a não ser duas cadeiras de madeira e uma mesa de

pinho atrás da qual estava sentado um homem com cabelos ainda mais vermelhos do

que os meus. Dizia poucas palavras a cada candidato que subia e depois encontrava

alguns defeitos que o desclassificavam. Obter uma vaga não parecia assim tão fácil;

enfim, quando chegou a nossa vez, o homenzinho tratou-me melhor do que aos outros, e

fechou a porta quando entramos para que pudesse falar-nos em particular.

“— Este é o sr. Jabez Wilson — disse o meu ajudante —, e ele quer preencher uma

vaga na liga.

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Sidney Paget, cortesia The Camden House

“— É admiravelmente adequado ao lugar — respondeu o outro. — Nunca vi nada tão

perfeito. — Deu um passo para trás, inclinou a cabeça de lado, e olhou meu cabelo até

que fiquei embaraçado. De repente adiantou-se, sacudiu-me a mão e deu-me parabéns

pelo êxito. — Seria uma injustiça hesitar. Com certeza o senhor me desculpará por

tomar uma precaução óbvia. — Dito isto, agarrou-me pêlos cabelos e puxou-os até que

gritei de dor. — Há lágrimas nos seus olhos — disse ele, soltando-me. — Vejo que tudo

está em ordem, mas temos de tomar cuidado, porque fomos duas vezes enganados com

chinos e uma vez com tintas. Podia contar-lhe histórias de farsas que enojariam sua

natureza humana. — Deu um passo até a janela e gritou que a vaga já estava preenchida.

Um gemido de desapontamento subiu lá de fora, e todos se dispersaram em diversas

direções, até que não ficou ninguém. Quanto a cabeças vermelhas à vista, só a do agente

e a minha.

“— Meu nome — disse ele — é Duncan Ross, e eu próprio sou um dos beneficiários do

dinheiro deixado pelo nosso benfeitor. É casado, sr. Wilson? Tem família?

“Disse-lhe que não, e sua fisionomia modificou-se.

“— Deveras — disse ele com voz grave. — Isso é muito sério! E custa-me ouvi-lo

declarar tal coisa. O auxílio em dinheiro tem como objetivo a propagação dos cabelos

vermelhos, tanto quanto possível. É uma infelicidade ser solteiro.

“Fiquei desanimado quando ele disse aquilo, sr. Holmes, pois pensei que não obteria a

vaga; porém, depois de pensar no caso um instante, ele disse que não fazia mal.

“— No caso de outro qualquer, a objeção poderia ser fatal, mas devemos ser tolerantes

no caso de um homem com a cabeça coberta de cabelos como os seus. Quando é que

poderá começar suas novas obrigações?

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“— Bem, é um pouco difícil, porque já tenho um negócio — disse-lhe eu.

“— Oh, não se incomode com isso, sr. Wilson — respondeu Vincent Spaulding —,

posso substituí-lo.

“— Qual seria o horário? — perguntei.

“— Das dez às catorze horas.

“Agora os negócios nas casas de penhores são feitos mais à noite, especialmente às

quintas e sextas à tarde, pouco antes dos dias de pagamento. Sendo assim, seria bom

para mim poder ganhar um pouco de manhã; além disso, sabia que meu ajudante era um

homem correio e resolveria qualquer problema que aparecesse.

“— Para mim, está bem — disse eu. — E o pagamento?

“— É de quatro libras por semana.

“— E o trabalho?

“— É puramente nominal.

“— O que quer dizer puramente nominal?

“— Bem, o senhor terá de estar no escritório, ou pelo menos no edifício, durante todo o

tempo. Se sair, perderá para sempre todas as vantagens, O testamento é muito claro

quanto a este ponto. Se sair durante o horário de trabalho, estará faltando a suas

obrigações.

“Como eram apenas quatro horas, eu não precisaria sair antes.

“— Nenhuma desculpa terá valor — disse o sr. Duncan Ross. — Nem doença, nem

negócios, nem qualquer outra coisa. Terá de ficar aqui ou perderá a colocação.

“— E o trabalho?

“— É copiar a Encyclopædia Britannica. O primeiro volume está dentro daquele

armário. Tem de trazer sua própria tinta, penas e mata-borrão, mas nós lhe fornecemos

esta mesa e esta cadeira. Pode vir amanhã?

“— Certamente — respondi.

“— Então adeus, sr. Jabez Wilson, e permita-me que lhe dê os parabéns mais uma vez

pela feliz aquisição deste importante cargo.

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“Conduziu-me para fora do escritório e segui para casa com meu ajudante, mal sabendo

o que dizer e fazer, tão satisfeito estava com a minha sorte. Pensei no caso o dia inteiro,

e à tarde já estava de novo triste porque me convencera de que tudo aquilo não passava

de mistificação ou fraude, embora não pudesse imaginar qual o objetivo. Parecia

incrível que alguém pudesse dedicar tal soma para se fazer uma coisa tão simples como

copiar a Encyclopædia Britannica. Vincent Spaulding fez o que pôde para me animar.

Mas à hora de me deitar já tinha esquecido tudo.

De manhã, todavia, resolvi ir ver do que se tratava, e por isso comprei um vidro de tinta,

uma pena de ganso, sete folhas de papel almaço e fui para Pope’s Court. Fiquei alegre

ao ver que tudo se achava em ordem. A mesa estava à minha espera, e o sr. Duncan

Ross permaneceu até verificar que eu tinha começado o trabalho. Fez-me iniciar com a

letra A e depois deixou-me, vindo de vez em quando para ver se tudo corria bem. As

catorze horas disse-me adeus, perguntando quanto já copiara, e fechou a porta do

escritório.

“Isto aconteceu dia após dia, sr. Holmes, e no sábado o chefe entrou e atirou para cima

da mesa as quatro libras de ouro que eu havia ganho naquela semana. Na semana

seguinte e na outra aconteceu a mesma coisa. Todas as manhãs chegava às dez horas e

todas as tardes saía às catorze horas. A pouco e pouco o sr. Duncan Ross foi deixando

de aparecer. Vinha somente uma vez de manhã, e por fim deixou mesmo de

comparecer. Todavia, nunca ousei sair do escritório por um só instante, porque não

tinha certeza se ele viria ou não e o emprego era tão bom que não podia arriscar-me a

perdê-lo.

“Passaram-se oito semanas assim. Eu já havia copiado ‘abade’, ‘arma’, ‘arqueiro’,

‘arquitetura’ e ‘ática’, e esperava que, com diligência, pudesse passar à letra B dentro de

algum tempo.

“Gastei um bom bocado de papel almaço, e já quase um terço da prateleira estava cheio

das minhas cópias, quando de repente todo o negócio se desvaneceu.”

— Como se desvaneceu?

— Vai ouvir. Hoje de manhã fui para o trabalho como de costume, às dez horas, mas a

porta estava fechada à chave e tinha um cartão afixado no centro do painel com um

preguinho. Aqui está ele, e o senhor pode lê-lo.

Mostrou um pedaço de cartolina, do tamanho mais ou menos de um memorando, sobre

o qual estava escrito:

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Sidney Paget, cortesia The Camden House

A LIGA DOS CABEÇAS VERMELHAS

ESTÁ DISSOLVIDA

9 DE OUTUBRO, 1890

Sherlock Holmes e eu examinamos o lacônico aviso e o rosto triste do homem. Ao lado

cômico do caso acrescentei qualquer outra consideração, e ambos desatamos a rir.

— Não vejo nada de engraçado — exclamou o nosso cliente, corando até a raiz dos

cabelos. — Se não puderem fazer melhor do que rir de mim, terei de procurar outra

pessoa.

— Não, não — disse Holmes, fazendo-o sentar-se de novo na cadeira de onde se havia

levantado. — Eu não perderia o seu caso por nada deste mundo. É uma original

novidade, mas permita-me que lhe diga que tem qualquer coisa de cômico. Diga-me que

passos deu quando encontrou o cartão pregado à porta.

— Fiquei atônito e vacilei, não sabendo o que fazer. Depois fui aos escritórios da

vizinhança, mas não pareciam saber de coisa alguma. Finalmente fui falar com o

senhorio, que é funcionário e mora no andar térreo, e perguntei-lhe se podia informar-

me para onde tinha ido a Liga dos Cabeças Vermelhas. Disse-me que nunca ouvira falar

de tal liga. Perguntei-lhe quem era o sr. Duncan Ross e ele respondeu-me que nunca

ouvira falar nesse nome.

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“— Bem — disse-lhe eu —, e o cavalheiro da sala número 4?

“— Oh! Aquele homem de cabeça vermelha?

“— Sim.

“— Ah! Segundo me informou, o nome dele é William Morris. É advogado e ocupou

aquela sala temporariamente, até que seus escritórios ficassem prontos. Mudou-se

ontem.

“— Onde é que eu o poderia encontrar?

“— Só nos escritórios novos. Ele deu-me o endereço. É no número 17 da King Edward

Street, perto da Catedral de São Paulo.

“Saí, sr. Holmes, mas ao chegar àquele endereço deparei com uma fábrica de protetores

artificiais para joelhos, e ninguém lá conhecia William Morris, nem tampouco Duncan

Ross.”

— E que fez o senhor então? — perguntou Holmes.

— Voltei para minha casa na Saxe-Coburg Square e consultei meu ajudante. Mas ele

não pôde auxiliar-me. Disse apenas que, se eu esperasse, talvez recebesse qualquer

coisa pelo correio. Mas aquilo não era suficiente, sr. Holmes. E eu não queria perder

semelhante emprego sem lutar por ele. Por isso, ouvindo dizer que o senhor atende aos

pobres que necessitam do seu auxílio, vim falar-lhe diretamente.

— E fez muito bem — disse Holmes. — Seu caso é deveras extraordinário, e terei

muito prazer em investigá-lo. Pelo que o senhor me contou, penso que se trata de coisa

mais séria do que à primeira vista pode parecer.

— Séria a valer! Pois perdi quatro libras por semana — disse Jabez Wilson.

— Quanto a isso, não vejo muita razão para se queixar dessa liga extraordinária. Pelo

contrário, o senhor ganhou mais umas trinta libras, para não falar dos grandes

conhecimentos que adquiriu de todos os assuntos mencionados sob a letra A. Por isso

não teve prejuízo.

— Não, senhor, mas desejo descobrir quem eles são, e qual foi o objetivo ao pregarem-

me essa peça, porque foi uma armadilha, e só para mim. Custou-lhes caro a brincadeira,

porque tiveram de gastar umas trinta e duas libras.

— Vamos nos esforçar por lhe esclarecer todos os pontos. Mas, primeiramente, uma ou

duas perguntas, sr. Wilson. Há quanto tempo estava no emprego esse seu ajudante,

quando lhe chamou a atenção para o anúncio?

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— Cerca de um mês.

— Como foi que ele apareceu?

— Em resposta a um anúncio.

— Era o único candidato?

— Não, entrevistei pelo menos uma meia dúzia.

— Por que o escolheu?

— Porque tinha boa aparência e estava disposto a me servir por um ordenado baixo.

— Meio ordenado até.

— Sim.

— Que espécie de pessoa é esse Vincent Spaulding?

— É pequeno, gordo, ligeiro nos seus movimentos, não tem pêlos no rosto, embora

tenha quase trinta anos de idade, e tem na testa uma mancha branca que parece ter sido

produzida por algum ácido.

Holmes endireitou-se na cadeira, nervoso.

— Já calculava isso — ripostou ele. — O senhor também me disse que as orelhas eram

furadas como para colocar brincos?

— Sim, senhor, contou-me que um cigano lhe fez aquilo quando era pequeno.

— Hum! — Holmes recostou-se de novo na cadeira, pensativo. — Ele esteve com o

senhor até agora?

— Oh, sim. Foi agora mesmo que o deixei.

— E seus negócios correram bem enquanto o senhor esteve ausente?

— Não posso me queixar, senhor. Nunca há muito o que fazer de manhã.

— Basta, sr. Wilson, terei a satisfação de lhe dar mais algumas informações sobre o

caso dentro de um ou dois dias. Hoje é sábado, e espero que até segunda-feira tenhamos

chegado a alguma conclusão.

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— Bem, Watson — disse Holmes quando nosso visitante saiu. — O que você pensa de

tudo isso?

— Não sei o que pensar, é um caso misterioso.

— Em regra, e por mais estranho que pareça, o caso é menos misterioso quando

evidente, e os crimes comuns é que são verdadeiramente difíceis de decifrar, assim

como um rosto comum é mais difícil de se identificar. Mas preciso andar depressa com

este assunto.

— Que vai fazer então?

— Fumar — respondeu ele. — Vou precisar de três boas pitadas antes de chegar a uma

conclusão. Espero que você não fale comigo durante uns cinqüenta minutos.

Sidney Paget, cortesia The Camden House

Enroscou-se na poltrona, os joelhos quase tocando o nariz pontudo como o de um

gavião, fechou os olhos e pôs o cachimbo de barro na boca, de forma a parecer o bico de

um pássaro exótico.

Eu estava certo de que ele tinha caído no sono, e cheguei a dormitar quando de repente

ele se levantou da cadeira com a gesticulação de um homem que já decidiu o que fazer,

tirou o cachimbo e o atirou na pedra da lareira.

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— Sarasate está se apresentando no St. James’s Hall esta tarde — disse ele. — O que é

que acha, Watson? Seus doentes poderão dispensá-lo por algumas horas?

— Não tenho quase nada que fazer hoje, e minha clientela nunca me absorve muito

tempo.

— Então, ponha o chapéu e vamos até lá. Vou passar pela City e podemos almoçar no

caminho. Reparei que há bastante música alemã no programa, que aprecio mais do que a

italiana ou a francesa. É introspectiva, e preciso de introspecção. Vamos!

Fomos pelo metro até Aldersgate; um breve passeio levou-nos à Saxe-Coburg Square,

ao lugar onde tinham ocorrido os fatos da singular história que ouvíramos de manhã.

Era um largo pequeno, medíocre e maltratado; havia quatro carreiras de casas de tijolos

de frente para um terreno cercado, onde um conjunto de arbustos se esforçava por viver

numa atmosfera carregada de fumaça e poluição. Três bolas douradas e uma tábua

castanha com “Jabez Wilson” escrito em letras brancas numa casa de esquina indicavam

que era ali que nosso cliente tinha o seu negócio. Sherlock Holmes postou-se diante da

casa, olhando, a cabeça de lado e os olhos brilhando entre as pálpebras. Subiu a rua

vagarosamente e depois desceu-a até a outra esquina, examinando as casas. Finalmente,

voltou à casa de penhores e, depois de bater três vezes com força na calçada, foi até a

porta e bateu. A porta foi imediatamente aberta por um rapaz bem-barbeado e esperto,

que o convidou a entrar.

Sidney Paget, cortesia The Camden House

— Obrigado — disse Holmes —, desejava apenas perguntar-lhe como é que se vai para

o Strand.

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— Vire na terceira esquina à direita, e depois na quarta à esquerda — respondeu

prontamente o empregado, fechando a porta.

— Rapaz vivo, aquele — observou Holmes quando saímos. — A meu ver, é a quarta

pessoa mais esperta de Londres, e pela sua ousadia talvez mereça o terceiro lugar. Já sei

alguma coisa a seu respeito.

— Claro que é o ajudante do sr. Wilson, e tem grande importância nesse mistério da

Liga dos Cabeças Vermelhas. Tenho certeza de que você pediu a informação apenas

para que pudesse vê-lo.

— Não a ele.

— Então o quê?

— Os joelhos das calças dele.

— E o que foi que você viu?

— O que esperava ver.

— Por que bateu na calçada?

— Meu caro doutor, é hora de observação, não de prosa. Somos espiões na terra do

inimigo. Já conhecemos a Saxe-Coburg Square, vamos agora explorar as ruas que ficam

por trás dela.

A rua em que entramos depois que viramos a esquina da praça fazia um perfeito

contraste com a outra, tal como a frente de um quadro em relação ao verso. Era uma das

principais artérias por onde passava o tráfego da cidade para norte e oeste. Estava

bloqueada por uma imensa fila dupla de veículos comerciais, em ambos os sentidos, e

as calçadas estavam escuras devido à multidão de passantes. Era difícil crer que os

fundos daquelas lojas e daqueles majestosos edifícios dessem na feia praça onde

tínhamos desembocado.

— Deixe-me ver — disse Holmes parando na esquina e olhando a fila de prédios —,

gostaria de fixar a ordem destas casas. É um passatempo meu este de obter um

conhecimento exato das ruas de Londres. Mais adiante fica a loja de Mortimer, o

vendedor de tabaco, a lojinha de jornais, o restaurante vegetariano, o depósito de

McFarlane, o fabricante de carros. Isso nos leva até o outro quarteirão. E agora, doutor,

que já acabamos nosso trabalho aqui, vamos nos divertir um pouco. Vamos tomar uma

chávena de café e comer um sanduíche, e depois seguir para a terra dos violinos, onde

tudo é doçura, delicadeza e harmonia, e onde não há clientes de cabeça vermelha a nos

incomodar com suas histórias.

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Sidney Paget, cortesia The Camden House

Meu amigo era um músico entusiástico, e não só sabia tocar instrumentos como também

era um compositor de mérito, acima do comum. Ficou toda a tarde sentado, perdido na

mais perfeita alegria, agitando os dedos ao compasso da música, enquanto o rosto

sorridente e os olhos lânguidos e sonolentos não pareciam ser os mesmos do Holmes

caçador, do impiedoso, do esperto agente criminal. No seu temperamento a natureza

dupla alternava-se, e sua extrema exatidão e astúcia representavam, como muitas vezes

tenho pensado, uma reação contra a tendência poética e contemplativa que

ocasionalmente predominava nele. A transição rápida de sua natureza levava-o do

extremo langor a uma energia devorante, e eu sabia que nunca era tão temível como

quando, durante alguns dias sem interrupção, ficava na poltrona rodeado pelas suas

pesquisas e notas. Era então que, repentinamente, suas faculdades arrasadoras

demonstravam um tão, alto nível de intuição que aqueles que não estavam habituados

aos seus métodos o olhavam, atônitos, considerando quase sobre-humanos seus

conhecimentos. Quando o vi naquela tarde, tão entretido com a música no St. James’s

Hall, senti que aqueles que ele resolvera caçar corriam perigo.

— Com certeza quer regressar a casa, não, doutor? — perguntou ele ao sairmos do St.

James’s Hall.

— Sim, seria bom.

— E eu tenho um assunto que me ocupará algumas horas. Este caso da Saxe-Coburg

Square é coisa séria.

— Por que séria?

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— Um crime hediondo está sendo planejado. Tenho os melhores motivos para crer que

estamos a tempo de o impedir. Como hoje é sábado, isto complica um pouco os

movimentos. Esta noite precisarei do seu auxílio.

— A que horas?

— Às vinte e duas horas seria conveniente.

— Estarei na Baker Street a essa hora, então.

— Muito bem. E olhe, doutor! Pode ser que haja um certo perigo, é bom prevenir-se

levando seu revólver do exército no bolso. — Agitou a mão, rodou nos calcanhares e

desapareceu rapidamente no meio da multidão.

Espero não ser menos inteligente que os demais homens, porém, fiquei oprimido com a

consciência da minha própria insensatez em comparação com Sherlock Holmes. Tinha

ouvido e visto o mesmo que ele, e pelas suas palavras era evidente que ele sabia não só

o que acontecera, mas até o que ia acontecer, ao passo que para mim tudo era apenas

confusão. Pensava no assunto enquanto ia de carro para a minha residência, em

Kensington, na história esquisita do copiador da Encyclopædia, na Saxe-Coburg Square

e nas palavras sinistras com que ele se despedira de mim. Que expedição noturna seria

essa, e por que haveria eu de ir armado? Onde iríamos e o que teríamos de fazer?

Calculei, pela atitude de Holmes, que o sujeito insinuante, ajudante do homenzinho da

loja de penhores, era um indivíduo temível, capaz de tudo. Quis desvendar qualquer

coisa, mas parei descoroçoado, e deixei de pensar no caso até que a noite trouxesse

alguma explicação. Eram vinte e uma e quinze quando saí de casa e me dirigi através do

parque e da Oxford Street à Baker Street. Havia dois carros à porta, e quando entrei no

corredor ouvi o som de vozes lá em cima. Ao entrar no aposento, vi Holmes numa

animada conversa com dois homens, um dos quais reconheci ser Peter Jones, o agente

da polícia; o outro era um homem de rosto comprido e magro, com um chapéu lustroso

e metido numa respeitável sobrecasaca.

— Oh! Nosso grupo agora está completo — disse Holmes, abotoando sua jaqueta e

pegando seu chicote de cabo grosso de caçador que estava pendurado no bengaleiro. —

Watson, creio que você já conhece o sr. Jones, da Scotiand Yard. Deixe-me apresentar-

lhe o sr. Merryweather, que vai nos acompanhar nas aventuras desta noite.

— Vamos caçar dois a dois outra vez, doutor, como está vendo — disse Jones. —

Nosso amigo é muito bom para inventar uma caça. Só precisa de mais um cão para

ajudá-lo a farejar.

— Espero que nossa caçada não seja em vão — observou tristemente o sr.

Merryweather.

— Pode confiar inteiramente no sr. Holmes — disse o policial arrogantemente. — Ele

tem os seus próprios metodozinhos, os quais são a meu ver um pouco teóricos e

fantásticos demais, mas tem jeito para detetive. Não é demais admitir isso uma ou duas

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vezes, como no caso do assassino de Sholto e no do tesouro de Agra, em que os seus

cálculos foram mais exatos do que os da polícia.

— Oh, se fala assim, então está tudo bem, sr. Jones! — disse o estranho com deferência,

— Todavia, confesso que sinto perder hoje o meu joguinho. Nos últimos dois anos, é a

primeira noite de sábado que não vou jogar.

— Creio que hoje achará as apostas mais importantes do que jamais o fez, e de maior

interesse — exclamou Holmes. — Para o sr. Merryweather, as apostas valerão mais do

que trinta mil libras, e para o sr. Jones, será um homem a quem deseja deitar as mãos.

— John Clay, o assassino, ladrão, estrangulador e falsário, é jovem, sr. Merryweather,

mas é perito na sua profissão; eu gostaria mais de lhe pôr as algemas do que a qualquer

outro criminoso de Londres. É extraordinário esse tal Clay; o avô era um duque da casa

real, e ele próprio estudou em Eton e Oxford. Tem um cérebro tão agudo como os

dedos, e, embora encontremos sinais dele a cada passo, nunca sabemos onde se

encontra. Faz um roubo na Escócia numa semana e na outra já está arranjando dinheiro

para fundar um orfanato na Cornualha, no extremo sul. Há anos que o persigo, mas

nunca o vi.

— Espero ter o prazer de apresentá-lo ao senhor esta noite. Eu também já andei atrás

dele uma ou duas vezes e concordo que é perito na profissão. Já se passaram duas horas

e devíamos estar a caminho. Vocês dois seguem no primeiro carro, e Watson e eu

seguimos no outro.

Sherlock Holmes manteve-se calado durante o longo percurso e encostou-se para trás,

cantarolando baixo as músicas que havia escutado à tarde. Atravessamos o labirinto de

ruas iluminadas a gás até desembarcarmos na Farringdon Street.

— Agora estamos pertinho — disse o meu amigo. — Aquele sujeito chamado

Merryweather é diretor de um banco e está pessoalmente interessado no assunto. Achei

melhor trazer o Jones conosco, não é mau rapaz, embora absolutamente imbecil quanto

à sua profissão. Tem uma virtude: é tão corajoso como um buldogue e teimoso como

uma lagosta, desde que põe a mão a alguém. Aqui estamos, e lá estão eles à nossa

espera.

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Sidney Paget, cortesia The Camden House

Tínhamos chegado às mesmas ruas onde estivéramos de manhã. Despachamos os

coches e, seguindo no encalço do sr. Merryweather, passamos por um estreito corredor e

por uma porta lateral, que ele nos abriu. Dentro havia outro pequeno corredor, que

terminava num enorme portão. Merryweather parou para acender a lanterna e então

conduziu-nos através de uma passagem escura e úmida e, depois de abrir a segunda

porta, entramos num porão onde estavam empilhados caixotes gradeados e grandes

caixões.

— Não são vulneráveis lá de cima — disse Holmes, enquanto suspendia a lanterna e

olhava em redor.

— Nem de baixo — disse Merryweather, dando uma leve pancada com sua bengala nas

lajes que forravam o chão. — Ora essa, então não é que parece oca? — disse ele,

surpreso.

— Peço-lhe que fique calmo — disse Holmes severamente. — O senhor está pondo em

risco o êxito da nossa expedição. Peco-lhe o favor de se sentar sobre um daqueles

caixotes e de não interferir.

Com a expressão de quem fora humilhado, o sr. Merryweather sentou-se solenemente

em cima de um caixote gradeado, enquanto Holmes, de joelhos e com a lanterna na mão

e uma lente de aumento, começou a examinar cuidadosamente as frestas entre as lajes.

Poucos segundos depois ficou satisfeito, porque se pôs de pé novamente e colocou a

lente no bolso.

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— Temos pelo menos uma hora de espera — disse ele.

— Não podem trabalhar enquanto o bom penhorista estiver na cama. Depois não

perderão um instante, porque, quanto mais depressa fizerem o trabalho, mais tempo

terão para fugir antes de serem descobertos. Nós, como talvez tenha adivinhado, doutor,

estamos nos subterrâneos de um dos principais bancos de Londres. O sr. Merryweather

é um dos diretores, e explicará as razões por que os ousados criminosos devem ter

atualmente grande interesse por este porão.

— É por causa do nosso ouro francês… — cochichou o diretor. — Fomos avisados

diversas vezes de que iam tentar um assalto.

— Ao ouro francês?

— Sim. Tivemos ocasião, há poucos meses atrás, de aumentar nossos recursos, e

fizemos um empréstimo de trinta mil napoleões ao Banco de França. Sabem que ainda

não tivemos necessidade de desempacotar o dinheiro e que ele continua aqui no porão.

Este caixote onde estou sentado contém dois mil napoleões encerrados entre duas

chapas de chumbo. Nossas reservas de dinheiro são atualmente muito maiores do que as

que costumamos guardar em qualquer agência do banco, e os diretores já estão

receosos.

— E esses receios são muitos justificados — observou Holmes. — E agora devemos

executar nossos planos. Penso que dentro de uma hora as coisas chegarão ao auge.

Entretanto, sr. Merryweather, devemos cobrir a luz daquela lanterna.

— E ficaremos sentados no escuro?

— Temo que seja necessário. Eu tinha trazido um baralho de cartas para que o senhor

não perdesse o seu joguinho, visto que somos quatro, mas vejo que os preparativos do

inimigo estão adiantados demais para nos arriscarmos a ter luz. E, em primeiro lugar,

devemos escolher nossas posições. Aqueles homens são ousados e, embora estejam em

desvantagem, podem ferir-nos, a não ser que tomemos todas as precauções. Ficarei atrás

deste caixote e você fica atrás daquele. Quando eu os focar com a luz, rodeiem-nos

depressa, e se eles fizerem fogo, Watson, não tenha receio de abatê-los a tiro.

Coloquei meu revólver automático em cima de um dos caixotes gradeados atrás dos

quais estava escondido. Holmes fechou a chapa escura de um dos lados da lanterna e

deixou-nos em escuridão completa. O cheiro de metal quente permaneceu e assegurou-

nos que a luz ainda estava acesa, pronta para brilhar de um momento para outro. Para

mim, cujos nervos já estavam excitados, havia algo de deprimente nessa escuridão e no

ar frio e úmido do porão.

— Eles só têm uma saída — cochichou Holmes —, através da casa da Saxe-Coburg

Square. Espero que faça o que pedi, Jones.

— Tenho um inspetor e dois policiais à espera na porta da frente.

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— Então as saídas estão fechadas e agora devem ficar quietos e esperar.

Quanto tempo parecia passar! Mais tarde, ao comparar minhas anotações, descobri que

esperamos apenas uma hora e quinze minutos, todavia pareceu-me que a noite acabara e

o dia estava prestes a raiar por cima de nós. Fiquei com as pernas hirtas e cansadas

porque receei mudar de posição, e tinha os nervos na mais alta tensão e o ouvido tão

atento que não só pude ouvir o respirar dos meus companheiros, como pude discernir o

respirar mais forte do obeso Jones em contraste com o fino suspirar do diretor do banco.

Da minha posição, pude olhar de cima do caixote em direção ao sol, e subitamente meus

olhos perceberam um raio de luz.

Pareceu-me primeiramente uma faixa lúgubre sobre a laje, depois alastrou-se até se

tornar uma linha amarela, e então, sem aviso nem ruído, abriu-se um vão por onde uma

mão branca que parecia de mulher surgiu no centro da área iluminada. Por um minuto, a

mão de dedos retorcidos ficou por cima da laje, e depois desapareceu tão ligeiramente

como veio e tudo ficou no escuro, a não ser a faixa lúgubre que marcava uma brecha

entre as lajes. A mão voltou logo, e houve um som de quebrar e partir. Uma das largas

lajes brancas caiu para o lado e deixou um buraco quadrado através do qual brilhou a

luz de uma lanterna. Por ele surgiu o rosto liso de um rapaz, que olhou ansiosamente em

redor e depois, com uma mão em cada lado da abertura, suspendeu-se até a cintura e

com um joelho atingiu a borda; mais um instante e ele deu um salto, colocando-se ao

lado do buraco para ajudar o companheiro a subir, um homem ligeiro e pequeno como

ele, de rosto pálido e abundante cabelo vermelho.

— Está ok — murmurou ele. — Trouxe o formão e os sacos? Céus! Suba, Archibald,

suba que eu me responsabilizo!

Sherlock Holmes deu um pulo e pegou o intruso pela gola. O outro ergueu-se pela

abertura, e ouvi o rasgar de roupa quando Jones o agarrou. A luz brilhou sobre a

coronha de um revólver, mas o cabo do chicote de Holmes caiu sobre o pulso do

homem, fazendo a pistola rolar na laje.

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Sidney Paget, cortesia The Camden House

— Não adianta, John Clay — disse Holmes suavemente. — Já não pode fugir.

— Estou vendo — disse o outro com a maior calma —, creio que meu companheiro está

bem, embora estejam aqui as costas do casaco.

— Há três homens à espera dele à porta — disse Holmes.

— Oh, deveras! Você parece ter preparado tudo muito bem. Devo dar-lhe os parabéns.

— E eu a você — respondeu Holmes. — Sua idéia do cabelo vermelho é nova e de

grande efeito.

— Verá seu companheiro em outra ocasião — disse Jones. — Ele é mais ágil para

passar buracos do que eu. Estenda as mãos enquanto lhe ponho as algemas.

— Espero que não me toque com suas mãos imundas — disse o prisioneiro no momento

em que lhe ajustavam as algemas nos pulsos. — Pode ser que o senhor não saiba, mas

tenho sangue real nas veias. Tenha a bondade, quando falar comigo, de dizer “sir” e

“faça o favor”.

— Muito bem — disse Jones com um olhar de escárnio. — Então queira fazer o favor,

sir, de marchar e de subir a escada, para arranjarmos um carro que leve Vossa Alteza até

o posto policial.

— Assim está melhor — disse John Clay serenamente. Fez-nos uma profunda vênia e

avançou.

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— Realmente, sr. Holmes — disse Merryweather quando os viu presos fora do porão —

, não sei como o banco lhe poderá agradecer ou recompensá-lo. Não há dúvida de que

descobriu e derrotou, da maneira mais completa, um dos mais audaciosos e bem-

arquitetados roubos de banco de que até agora se ouviu falar.

— Eu também tenho uma ou duas coisas a resolver com este sr. John Clay — disse

Holmes. — Tive muitas despesas com o caso, que espero que o banco me reembolse,

mas além disso estou satisfeito por ter tido uma experiência tão rara e por ter ouvido a

extraordinária narrativa da Liga dos Cabeças Vermelhas.

— Como vê, Watson — explicou-me ele de madrugada, enquanto tomávamos um

uísque com soda na Baker Street —, era evidente desde o princípio que o único objetivo

possível desse fantástico negócio de copiar a enciclopédia era afastar o penhorista

durante algumas horas todos os dias. Foi um modo curioso de arranjar as coisas, mas

seria difícil sugerir melhor. Com certeza foi produto da mentalidade de Clay, sugerido

pela cor do cabelo do seu companheiro. As quatro libras por semana eram a isca para o

atrair, e o que representava isso para aqueles que tinham milhares de libras em jogo?

Publicam o anúncio, o outro malandro incita o homem a ir candidatar-se ao lugar, e

juntos conseguem que ele se ausente durante algumas horas todas as manhãs. Desde que

ouvi o penhorista dizer que o empregado trabalhava por metade do salário, convenci-me

de que tinha forte motivo para conservar o emprego.

— Mas como pôde descobrir qual era o motivo?

— Se houvesse mulheres na casa, eu suspeitaria de uma intriga comum. Mas isso estava

fora de questão. A casa de penhores era pequena, e não tinha nada que justificasse tão

grandes preparativos e tantas despesas. Devia então ser alguma coisa alheia à casa. O

que seria? Lembrei-me da grande paixão que o rapaz tinha por fotografias e do seu

hábito de se meter na adega. A adega! Era ali que estava o fulcro deste caso intrincado.

Fiz algumas indagações a respeito do ajudante e descobri que lidava com um dos

criminosos mais frios e audazes de Londres. Estava portanto querendo fazer qualquer

coisa na adega, coisa que levava horas durante dias, meses sem fim. Que podia ser?

Ocorreu-me que estaria abrindo um túnel até outro edifício. Tinha chegado a esta

conclusão, quando fomos visitar o local da ação. Surpreendi-o quando bati na calçada

com a bengala. Tentava saber se a adega ficava na frente ou fundos da casa. Toquei a

campainha e, como esperava, foi o empregado que veio abrir a porta. Já tivemos os dois

algumas lutas, mas indiretamente, e mal olhei para ele. Queria ver os joelhos dele, e até

você deve ter reparado como as calças estavam rotas e sujas justamente nos joelhos.

Falavam daquelas horas passadas cavando o chão. Só restava descobrir o motivo por

que cavavam. Virei a esquina e percebi que o City and Suburban Bank se ligava à casa

do nosso amigo. Achei que estava ali a solução do meu problema. Quando você foi para

casa depois do concerto, procurei a Scotland Yard e o presidente da diretoria do banco,

obtendo o resultado que já conhece.

— E como adivinhou que iam tentar o assalto hoje? — perguntei-lhe.

— Bem, quando fecharam o escritório da liga, era sinal de que já não se incomodavam

com a presença do sr. Jabez Wilson. Em outras palavras, tinham completado o túnel,

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mas era essencial que o utilizassem logo, porque podia ser descoberto ou o dinheiro ser

transferido de lugar. Sábado seria melhor que qualquer outro dia, porque proporcionava

dois dias para a fuga. Foi por todas essas razões que os esperei hoje.

— Calculou maravilhosamente — exclamei eu cheio de admiração. — A corrente é

longa, mas todos os elos se ligam fielmente.

— Serviu para me divertir — respondeu ele, bocejando. — Sinto chegar o

aborrecimento. Passo a vida procurando escapar às coisas vulgares e corriqueiras, e

estes problemas ajudam-me a consegui-lo.

— E é um benfeitor da raça — comentei.

Encolheu os ombros.

— Bem, no fim talvez seja de alguma utilidade — disse ele. — “L’homme c’est rien —

l’oeuvre ces’t tout“, [1] como escreveu Gustave Flaubert a George Sand.

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A face amarela

Arthur Conan Doyle

A face amarela Título original: The Yellow Face

Publicado pela primeira vez na Strand Magazine,

em Fevereiro de 1893 e com 7 ilustrações de Sidney Paget.

Sobre o texto em português:

Este texto digital reproduz a

tradução de The Yellow Face publicado em

As Aventuras de Sherlock Holmes, Volume III,

editado pelo Círculo do Livro

e com tradução de Hamílcar de Garcia.

Ao publicar estes breves esboços, baseados em numerosos casos e dramas

estranhos de que as qualidades especiais de meu companheiro me fizeram espectador, e

eventualmente ator, é muito natural que me detenha mais nos êxitos do que nos

fracassos. Não se trata de amor à sua reputação, pois era precisamente quando não tinha

nada em mãos que sua energia e vitalidade se tornavam mais admiráveis, mas sucedia

muitas vezes que, onde ele fracassava, ninguém mais era bem sucedido. Entretanto, às

vezes acontecia que, mesmo quando errava, a verdade era descoberta. Possuo alguns

casos dessa natureza, dos quais o da segunda mancha e o que vou agora narrar são os

que apresentam as mais fortes características de interesse.

Sherlock Holmes era um homem que só muito raramente fazia exercícios por

diletantismo, mas poucos seriam capazes de maior esforço físico. Foi, sem dúvida

alguma, um dos mais exímios pugilistas de seu peso que já encontrei. Considerava

porém o esforço físico sem objetivo um desperdício, e poucas vezes se entregava à

atividade, exceto se havia um fim profissional a ser atingido. Então era infatigável,

sendo de espantar que, em ocasiões extremas, se encontrasse em forma. Atribuo isso a

seu sóbrio regime alimentar e aos hábitos simples, que se aproximavam da austeridade.

Um dia, no começo da primavera, estava tão bem-disposto que saiu comigo para

um passeio no Hyde Park. Os olmos começavam a desabrochar, e as duras pontas de

lança dos castanheiros rebentavam-se em folhas múltiplas. Erramos juntos durante duas

horas, a maior parte do tempo em silêncio, como sucede com duas pessoas que se

conhecem intimamente. Eram já quase cinco horas quando regressamos à Baker Street.

— Desculpe, senhor — disse nosso criado, ao abrir a porta —, mas esteve aqui um

cavalheiro que perguntou pelo senhor.

Holmes olhou para mim com ar de censura:

— Gastar tanto tempo nestes passeios à tarde! O cavalheiro já se foi?

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— Sim, senhor.

— Não o mandou entrar?

— Mandei, sim. Ele entrou.

— Quanto tempo esteve à espera?

— Meia hora. Era um cavalheiro inquieto. Todo o tempo que aqui esteve, andou de um

lado para outro e batia os pés no chão. Ouvi perfeitamente, senhor, porque fiquei à

espera do outro lado da porta. Por fim, saiu para o corredor e disse: “Esse homem nunca

mais vem?” Foram essas suas próprias palavras, senhor. Eu respondi: “Queira esperar

um pouco mais”. “Então esperarei ao ar livre, porque tenho pressa. Voltarei mais tarde.”

E foi-se embora.

— Bem, você fez o que pôde — disse Holmes quando entramos. E, dirigindo-se a mim:

— Realmente, é muito aborrecido, Watson; tenho imensa necessidade de um caso e este

parece-me de importância, a julgar pela impaciência do homem. Espere! Aquele

cachimbo em cima da mesa não é seu! Nosso homem deve tê-lo esquecido. É um belo

cachimbo de roseira, com um cabo comprido, de uma substância a que os tabaquistas

chamam âmbar. Pode fazer-se uma idéia de quantas boquilhas de âmbar autêntico há em

Londres. Algumas pessoas acham que uma pequena mosca na boquilha é um sinal de

distinção, a tal ponto que há um ramo de negócio que consiste em simular moscas em

âmbar falso. Mas o homem deve ter sofrido um distúrbio mental para se esquecer de

uma coisa que tanto estima.

— Como sabe disso? — perguntei.

— Bem, calculo o custo original do cachimbo em sete xelins e seis pence. Ora, ele já foi

consertado duas vezes, como se vê: no cabo de madeira e no âmbar. Cada um desses

arranjos, feito com anilhas de prata, deve ter custado mais do que o cachimbo. O

homem tem de estimá-lo muito para preferir mandar consertá-lo a comprar outro com o

mesmo dinheiro.

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Sidney Paget, 1893

— Alguma coisa mais? — insisti, vendo Holmes virar o objeto na mão e observá-lo a

seu modo peculiar e pensativo.

Ergueu-o e bateu-lhe ao de leve com o indicador comprido e fino, como um professor

que fizesse uma preleção sobre um osso.

— Os cachimbos são, por vezes, de um interesse extraordinário. Nada tem mais

originalidade, exceto talvez os relógios e os cadarços das botas. No entanto, as

indicações neste caso não são muito significativas nem muito importantes. O dono deste

objeto é um homem musculoso, canhoto e de excelente dentadura. Além disso, é

descuidado em seus hábitos e não tem a menor necessidade de fazer economia.

Meu amigo lançou essa opinião de maneira categórica, mas vi que olhou para mim para

ver se eu lhe seguia o raciocínio.

— Você acha que um homem precisa ser rico para fumar um cachimbo de sete xelins?

— perguntei.

— Esta mistura de Grosvenor custa oito pence a onça — respondeu Holmes. — Visto

que ele poderia comprar um excelente tabaco por metade do preço, deduzo que não tem

necessidade de fazer economia.

— E os outros pontos?

— Tem o hábito de acender o cachimbo nos candeeiros e nos bicos de gás. Nota-se que

a madeira está toda queimada de um lado, e um fósforo não teria feito isso. Não se

compreende que um homem coloque um fósforo do lado de fora do cachimbo, mas se o

acender numa lâmpada queima-lhe o bojo. É o lado direito que está queimado, e por

isso concluo que é canhoto. Leve você seu cachimbo à chama e repare que, não sendo

canhoto, é o lado esquerdo que queima, normalmente. Mas vê-se também que é um

indivíduo musculoso, enérgico, por ter conseguido morder o âmbar desta maneira. Que

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belos dentes deve ter! Mas, se não estou enganado, ouço-o subir a escada, de modo que

teremos algo de mais interessante para estudar do que seu cachimbo.

Um instante depois, a porta abriu-se e entrou na sala um jovem alto, modestamente

vestido de cinza-escuro, na mão um chapéu mole e castanho. Eu lhe daria uns trinta

anos, embora fosse um pouco mais velho.

— Peco-lhes desculpas — começou com certo embaraço. — Creio que devia ter batido.

Sim, devia ter batido, na verdade. Mas estou um pouco transtornado, de modo que me

esqueço de tudo. — Passou a mão pela testa com uma expressão de surpresa e jogou-se

numa cadeira.

— Noto que o senhor não dorme há uma ou duas noites — disse Holmes, à maneira

fácil e engenhosa. — Isso é pior para os nervos do que o trabalho. Pior mesmo que o

prazer. Importa-se que lhe pergunte em que posso servi-lo?

— Queria que me desse um conselho. Não sei o que fazer. Toda a minha vida parece

transtornada.

— Quer contratar meus serviços como detetive?

— Não. Não é bem isso. Queria sua opinião porque sei que o senhor é um homem

criterioso, um homem experiente. Preciso saber o que fazer. E Deus queira que possa

ajudar-me.

Falava entrecortadamente, com arranques ásperos e espasmódicos. Parecia que falar era-

lhe muito penoso, e que seu desejo era vencer essa dificuldade.

— É um assunto muito delicado — disse ele. — Ninguém gosta de falar a estranhos a

respeito de suas questões domésticas. Parece-me horrível abordar a conduta da mulher

com quem me casei com dois homens que nem sequer conheço. É na verdade horrível

ter de recorrer a isso. Cheguei porém ao fim de meus receios, e preciso de conselho.

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Sidney Paget, 1893

— Meu caro sr. Grant Munro — começou Holmes.

O nosso visitante saltou na cadeira.

— O quê? — gritou. — O senhor sabe meu nome?!

— Se quiser manter-se incógnito — respondeu Holmes —, sugiro-lhe que deixe de

escrever seu nome no forro do chapéu, ou então volte a copa para a pessoa a quem se

dirigir. Mas eu dizia que tanto meu amigo como eu temos ouvido muitos segredos nesta

sala, e também temos tido a felicidade de levar a paz a muitas almas angustiadas.

Espero que possamos fazer o mesmo com o senhor. Visto que o tempo é sempre de

primordial importância, peco-lhe para expor o caso sem mais delongas.

Como se achasse isso muito doloroso, o nosso visitante passou outra vez a mão pela

testa. Em cada um de seus gestos e expressões, eu notava nele um homem reservado e,

por natureza, capaz de se dominar; mas havia também certo orgulho que o levava a

preferir ocultar suas feridas em lugar de as revelar. De repente, fazendo com a mão o

gesto de quem se liberta de um peso, começou:

— Os fatos são estes, sr. Holmes, Sou casado há três anos, minha mulher e eu amamo-

nos sempre com paixão e temos sido felizes como se nunca houvéssemos vivido um

sem o outro. Nunca tivemos uma divergência, por pensamentos, palavras ou obras. Mas

agora, desde segunda-feira passada, surgiu de súbito uma barreira entre nós e descobri

que existe alguma coisa em sua vida e em seus pensamentos que conheço tão mal como

se se tratasse de uma estranha que cruzasse comigo na rua. Somos estranhos, e quero

saber por quê. Mas há uma coisa que desejo salientar antes de prosseguir, sr. Holmes.

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Effi me ama. Não deve haver a menor dúvida a esse respeito. Ama-me de todo o

coração e de toda a sua alma, e nunca me amou mais do que agora. Sei disso, sinto-o, e

não venho aqui para discuti-lo. Um homem pode saber com facilidade quando a mulher

o ama. Mas agora há este segredo entre nós, e nunca poderemos voltar a ser os mesmos

enquanto tudo não estiver esclarecido.

— Tenha a bondade de me apresentar os fatos, sr. Munro — disse Holmes com

impaciência.

— Começarei pelo que sei da história de Effi. Era viúva quando a encontrei pela

primeira vez, embora muito nova, pois tinha apenas vinte e dois anos. Chamava-se

então sra. Hebron. Fora muito jovem para a América, e viveu na cidade de Atlanta, onde

se casou com um advogado de grande clientela chamado Hebron. Tiveram uma filha;

mas, durante a epidemia de febre amarela que repentinamente grassou na cidade, ambos

morreram, o marido e a filha. Vi as certidões de óbito. Esses tristes fatos desgostaram-

na na América, e fizeram-na regressar à casa de uma tia solteira que vive em Pinner, em

Middlesex. Posso acrescentar que o marido a deixou muito bem, com um capital de

quase quatro mil e quinhentas libras, tão bem aplicado que rende uma média de sete por

cento. Chegara a Pinner havia seis meses quando a vi pela primeira vez; gostamos logo

um do outro e casamo-nos poucas semanas depois.

“Sou negociante de lúpulo e, como tenho uma renda de setecentas a oitocentas libras,

vivemos com um certo desafogo e alugamos, em Norbury, uma casa de oito libras por

ano. É um lugar bastante rústico, embora fique muito perto da cidade. Há na região uma

pensão e duas casas um pouco mais adiante e, do outro lado do prado, bem em frente à

nossa, outra casa. Isso é tudo até meio caminho da estação. Meu negócio obriga-me a

vir à cidade em certas épocas do ano. No verão, em geral, tenho menos o que fazer, e

fico mais em casa. Minha mulher e eu éramos realmente tão felizes quanto podíamos

desejar. Digo-lhe que nunca houve a menor sombra entre nós, até surgir este maldito

caso. Mas há mais uma coisa que lhe devo dizer antes de continuar: quando nos

casamos, minha mulher passou toda a sua propriedade para meu nome, apesar de minha

firme oposição, porque eu via nisso um perigo caso meus negócios corressem mal. Mas

ela insistiu tanto que assim se fez. Ora, há cerca de seis semanas, ela veio ter comigo e

disse-me:

“— Jack, quando você ficou com meus bens, disse que, se eu precisasse de dinheiro,

bastava pedir.

“— Naturalmente — respondi —, visto que é todo seu.

“— Nesse caso, preciso de cem libras.

“Fiquei um tanto alarmado com o pedido; julguei tratar-se simplesmente de um vestido

novo ou coisa parecida.

“— Para que quer tanto dinheiro?

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“— Oh! — disse ela com seu modo travesso —, você me disse que seria apenas meu

banqueiro, e os banqueiros nunca fazem perguntas.

“— Se realmente o deseja, é claro que o terá.

“— Sim, realmente quero.

“— E não me diz para quê?

“— Um dia, talvez. Mas agora não, Jack.

“Fiquei calado, embora aquele fosse o primeiro segredo entre nós, mas dei-lhe um

cheque e nunca mais falamos no assunto. Pode ser que este detalhe não tenha nada a ver

com o que se passou em seguida, mas achei conveniente mencioná-lo. Eu lhe disse

ainda há pouco que existe outra casa não muito distante da minha, separada apenas por

um prado. Para chegar lá é preciso tomar a estrada e seguir depois por um beco. Mais

adiante, há um pequeno pinhal muito lindo, onde eu gostava de passear porque as

árvores são sempre boas companheiras. Ora, esta casa está vazia há oito meses, e é uma

pena, visto que é uma bela moradia de dois andares, com uma entrada de estilo antigo,

toda cercada de madressilvas. Pensei muitas vezes que bela residência se faria dela. Na

segunda-feira passada à tarde, eu descia o caminho em meu passeio habitual, quando

cruzei com um caminhão de mudança vazio subindo o beco. Vi também uma pilha de

tapetes e outros objetos ao lado da entrada, tornando-se evidente que a moradia fora

alugada. Continuei a andar, depois parei como qualquer pessoa desocupada e corri os

olhos pela casa, tentando imaginar que espécie de gente teria vindo morar tão perto de

nós. Foi então que descobri um rosto que me fitava de uma das janelas de cima. Não

sabia o que havia naquele rosto, mas, ao fixá-lo melhor, senti um arrepio percorrer-me a

espinha. Estava longe, de modo que não fui capaz de lhe distinguir as feições, mas senti

que havia nele qualquer coisa que não era natural nem humana. Foi essa a impressão

que tive. Corri então, a fim de ver mais de perto a pessoa que continuava a fitar-me.

Mas, quando me aproximei, o rosto desapareceu repentinamente, tão repentinamente

que me pareceu ter sido arrastado para a escuridão do quarto. Durante uns cinco

minutos fiquei estático, pensando no assunto e tentando analisar minhas impressões.

Não podia, porém, dizer se o rosto era de homem ou mulher. Sua cor foi o que mais me

impressionou: era de um amarelo lívido e cadavérico, com algo de rígido mesmo, que o

tornava chocantemente antinatural. Cheguei a tal ponto de estupefação que decidi

indagar a respeito de tão estranho inquilino. Aproximei-me da porta e bati. Uma mulher

alta e magra, mal-encarada e antipática, apareceu logo.

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Sidney Paget, 1893

“— O que o senhor quer? — perguntou, com um sotaque do norte.

“— Sou seu vizinho e moro ali — respondi, indicando com a cabeça minha casa. —

Vejo que acaba de se instalar, e pensei que talvez lhe pudesse ser útil.

“— Muito bem — respondeu a mulher. — Chamaremos quando precisarmos. — E

bateu-me com a porta na cara.

“Aborrecido com tal grosseria, fui para casa; toda a tarde pensei na aparição da janela e

na rispidez daquela mulher. Em vão tentava desviar o pensamento para outras coisas, e

resolvi não dizer nada a minha mulher, pois ela é uma pessoa nervosa e facilmente

impressionável. No entanto, antes de nos deitarmos, observei-lhe que a moradia vizinha

já estava alugada, mas ela não fez nenhum comentário.

“Normalmente, tenho o sono pesado. Dizem até por brincadeira, em família, que não há

nada que me acorde durante a noite. Mas desta vez deve ter acontecido alguma coisa

especial, talvez por causa da excitação que me provocara minha pequena aventura. Não

sei; o certo é que nessa noite tive um sono muito leve. Mais ou menos em sonhos,

estava consciente de que se passava qualquer coisa em meu quarto e, pouco a pouco, fui

me certificando de que minha mulher se vestia, punha a capa nas costas e pegava o

chapéu. Meus lábios se abriram ainda para murmurar algumas palavras de surpresa ou

censura perante tais preparativos; mas meus olhos meio abertos pousaram de repente em

seu rosto, iluminado pela luz da vela, e o espanto emudeceu-me. Ela tinha uma

expressão que eu nunca lhe vira, e que não a sabia capaz de assumir: mortalmente

pálida, olhava furtivamente para a cama, enquanto prendia a capa, para ver se me

acordara. Supondo que eu continuava a dormir, saiu silenciosamente do quarto e,

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instantes depois, ouvi um rangido áspero, que podia ser dos gonzos da porta da frente.

Sentei-me, esfreguei as articulações nas colunas da cama para me certificar de que

estava acordado e tirei o relógio que ficara debaixo do travesseiro. Eram três da manhã.

Que diabo poderia fazer minha mulher numa estrada às três horas da manhã?

“Fiquei sentado uns vinte minutos pensando no assunto e tentando descobrir uma

explicação plausível, mas quanto mais pensava mais extraordinário tudo aquilo me

parecia. Perplexo, ouvi de novo a porta da frente fechando-se devagarinho, e os passos

dela subindo a escada.

“— Onde você esteve, Effi? — perguntei, quando ela entrou.

“Levou um susto violento e deu uma espécie de grito ofegante quando falei; e tanto o

susto como o grito ainda mais me perturbaram porque denunciavam indiscutivelmente

certa culpa. Minha mulher sempre fora franca e aberta para comigo, de modo que senti

um arrepio estranho ao vê-la entrar furtivamente em seu próprio quarto e encolher-se,

gritando, quando o marido lhe falava.

“— Você está acordado, Jack? — gritou, com uma risada nervosa. — Pensava que nada

podia acordar você.

“— Onde esteve? — perguntei, com mais dureza.

“— Não admira que você esteja surpreso — disse ela. Os dedos tremiam-lhe ao

desprender a capa. — Não me lembro de ter feito semelhante coisa em toda a minha

vida. Mas a verdade é que me senti sufocada, com uma necessidade louca de um pouco

de ar fresco. Creio que desmaiaria se não tivesse saído. Fiquei alguns minutos à porta, e

agora estou de novo perfeitamente bem.

“Durante toda essa história, não olhou uma única vez para mim, e sua voz era

totalmente diferente da que lhe era habitual. Tornou-se evidente que estava mentindo.

Não lhe dei resposta. Virei-me para a parede, o coração angustiado, a cabeça cheia de

milhares de dúvidas e suspeitas cruéis. O que minha mulher estaria ocultando? Onde

teria estado em seu estranho passeio? Eu sentia que não teria paz enquanto não o

soubesse, mas resistia à idéia de perguntar, uma vez que ela me mentia. Fiquei agitado e

angustiado pelo resto da noite, formando teoria após teoria, cada uma mais improvável

do que a outra.

“Naquele dia, eu devia ir à cidade, mas estava preocupado demais para dar atenção a

assuntos comerciais. Minha mulher parecia tão transtornada como eu. Pêlos olhares

rápidos que me lançava, pude adivinhar que sentia minha dúvida em relação a tudo o

que ela dissera. E isso a preocupava. Trocamos apenas uma palavra durante o desjejum.

Logo a seguir, saí; fui dar um passeio ao ar fresco da manha, para não pensar tanto no

assunto. Afastei-me até o Crystal Palace e andei uma hora pêlos campos. Quando voltei

a Norbury, era uma hora da tarde. Aconteceu que, quando passei diante daquela casa,

parei um instante para ver se conseguia descobrir a tal face estranha que me encarara no

dia anterior. Imagine minha surpresa, sr. Holmes, quando a porta se abriu e saiu de lá

minha mulher.

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“Ao avistá-la, fiquei mudo de espanto, mas minhas emoções não eram nada comparadas

às que se lhe estamparam no rosto quando nossos olhos se encontraram. Por um

instante, pareceu-me que queria retroceder para dentro da casa. Percebendo porém que

seria inútil qualquer tentativa de fuga, caminhou em frente com o rosto muito branco, e

com um olhar tão assustado que fez morrer o sorriso que tinha nos lábios.

“— Oh, Jack! Entrei aqui agora mesmo para ver se nossos vizinhos precisavam de

alguma coisa. Por que olha assim para mim? Está zangado?

“— Estou — respondi. — Foi para cá que você veio a noite passada.

“— Que quer dizer?

“— Tenho certeza de que foi para cá que você veio a noite passada. Que pessoas você

foi visitar àquela hora?

“— Mas eu nunca vim até aqui…

“— Como tem coragem de dizer aquilo que você sabe que é mentira? — exclamei. —

Até sua voz se altera quando você fala. Já lhe escondi porventura alguma coisa? Vou

entrar na casa para desvendar esse mistério.

“— Não, Jack! Pelo amor de Deus! — gritou com incontida emoção.

Sidney Paget, 1893

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“Aproximei-me da porta, mas ela puxou-me pelo braço com uma força convulsiva.

“— Imploro-lhe que não entre, Jack — gritou. — Juro que um dia direi tudo. Mas, se

entrar nessa casa, você terá um desgosto.

“E agarrou-se a mim quando tentei livrar-me de sua súplica frenética.

“— Confie em mim, Jack — continuou, com angústia. — Confie em mim desta vez

apenas, e nunca terá razões para se arrepender. Sabe que eu não ocultaria nada se não

fosse para seu próprio bem. Nossas vidas estão em perigo. Se voltar para casa comigo,

tudo correrá bem, mas se insistir em entrar, tudo acabará entre nós.

“Havia tal veemência, tal desespero em sua atitude, que estas palavras me detiveram e

fiquei imóvel, indeciso, diante da porta.

“— Confiarei em você, mas com uma condição, uma única condição — disse por fim.

— Eu lhe darei a liberdade de manter seu segredo, mas prometa-me que não haverá

mais visitas noturnas nem atos ocultos que eu ignore. Quero esquecer tudo o que se

passou, se me prometer que no futuro não se repetirão.

“— Eu estava certa de que você confiaria em mim — disse ela com um grande suspiro

de alívio. — Será como quiser. Agora, vamos embora! Vamos para casa! — E,

puxando-me pelo braço, afastou-me aquela casa. No caminho olhei para trás; lá estava

aquele rosto amarelo, lívido, a espiar-nos da janela de cima. Que elo poderia haver entre

aquela criatura e minha mulher? Como ela poderia manter relações com aquela mulher

grosseira que eu vira no dia anterior? Tudo isso era um estranho enigma, e eu não teria

sossego enquanto não o desvendasse.

“Permaneci dois dias em casa, e minha mulher parecia conservar-se leal a nosso

compromisso, visto que, até onde me foi dado saber, também não saiu. No entanto, ao

terceiro dia, tive a certeza de que sua promessa solene não era suficientemente forte

para libertá-la daquela secreta influência que a afastava de mim.

“Eu fora a Londres mas regressei no trem das duas e quarenta, e não no das três e trinta

e seis, como de costume. Quando cheguei a casa, a criada acorreu à entrada com um ar

muito assustado.

“— Onde está a senhora? — perguntei.

“— Parece-me que foi dar um passeio — foi a resposta.

“Fiquei imediatamente cheio de suspeitas. Precipitei-me escada acima para ver se de

fato ela não estava em casa. Aconteceu que, passando por uma janela, olhei para fora e

vi a criada, com quem estivera falando, correndo pelo campo em direção à casa.

Compreendi então o que tudo aquilo significava: minha mulher fora até lá e pedira à

criada que a chamasse quando eu voltasse. Ardendo de raiva, desci precipitadamente e

saí correndo, resolvido a acabar com aquela história de uma vez para sempre. Vi minha

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mulher e a criada voltando apressadas pelo beco, mas não parei para lhe falar. Na casa é

que estava o segredo que lançava uma sombra sobre minha vida. Jurei que esse segredo

se desvaneceria, acontecesse o que acontecesse. Nem bati à porta; virei rápido a

maçaneta e entrei. No andar térreo tudo estava tranquilo e silencioso. Na cozinha, uma

chaleira cantava sobre o fogão. Um grande gato preto estava enrolado dentro de um

cesto. Nenhum sinal da mulher grosseira que me abrira a porta no outro dia. Corri ao

outro quarto, que estava igualmente vazio. Subi a escada correndo, mas só encontrei

duas salas desertas. Não havia ninguém, absolutamente ninguém em toda a casa. A

mobília e os quadros eram comuns, excetuando-se a do quarto em cuja janela eu vira o

estranho rosto. Esse era elegante e confortável. Mas todas as minhas suspeitas se

acenderam num ardor amargo e violento quando vi, sobre a lareira, uma ampliação de

uma fotografia que minha mulher tirara, a meu pedido, havia apenas três meses.

“Permaneci ali o tempo suficiente para me certificar de que a casa estava realmente

vazia. Saí então, sentindo no peito o que nunca sentira. Minha mulher estava no

vestíbulo quando cheguei a casa. Mas eu estava muito magoado para lhe falar, de modo

que fui direto ao escritório. Ela no entanto alcançou-me antes que eu tivesse tempo de

fechar a porta.

Sidney Paget, 1894

“— Estou triste por ter quebrado minha promessa, Jack. Mas se você soubesse o que se

passa, estou certa de que me perdoaria.

“— Então, conte-me tudo.

“— Não posso, Jack. Não posso!

“— Enquanto não me disser quem mora naquela casa e a quem você deu aquela

fotografia, não pode haver confiança entre nós — disse eu.

“E, abandonando-a, saí de casa. Isso se passou ontem, sr. Holmes, e desde então não

tornei a vê-la, nem soube mais nada do assunto. É a primeira sombra que cai entre nós.

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Mas fiquei tão abalado que não sei o que fazer. Esta manhã lembrei-me de que o senhor

era homem para me aconselhar; apressei-me pois a procurá-lo e coloco-me sem reservas

em suas mãos. Se houve algum ponto sobre o qual não fui claro, pode perguntar. Mas,

acima de tudo, tenha a bondade de me dizer o que devo fazer, porque tudo isso está

além de minhas forças.”

Holmes e eu ouvimos, com o mais vivo interesse, essa extraordinária narrativa, exposta

aos tropeços por um homem atingido pela mais extrema emoção. Meu companheiro

continuou sentado, pensativo, o queixo apoiado nas mãos.

— Diga-me — começou, por fim. — O senhor pode jurar que era o rosto de um homem

o que viu na janela?

— Vi-o sempre a uma certa distância, de modo que não é possível afirmá-lo.

— No entanto, parece que o impressionou desfavoravelmente.

— Pareceu-me de cor antinatural e de feições muito rígidas. Quando me aproximei,

desapareceu num salto.

— Há quanto tempo sua mulher lhe pediu as cem libras?

— Há cerca de dois meses.

— Já viu algum retraio do primeiro marido?

— Não. Houve um grande incêndio em Atlanta logo depois de sua morte, e os papéis

dela ficaram todos destruídos.

— Mas tinha uma certidão de óbito. O senhor diz que a viu.

— É verdade. Trata-se de uma segunda via, tirada depois do incêndio.

— Encontrou alguma vez antigas relações de sua mulher na América?

— Não.

— Ela falou-lhe em voltar para lá?

— Não.

— Recebe cartas de lá?

— Que eu saiba, não.

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— Muito obrigado. Gostaria de pensar um pouco no assunto. Se a casa continuar

desabitada, é possível que venhamos a ter dificuldades. Mas se, como creio, os

inquilinos foram avisados de sua ida tempestuosa e saíram por momentos, voltando em

seguida, então poderemos esclarecer tudo facilmente. Aconselho-o a voltar a Norbury e

examinar, de novo, as janelas da casa. Se notar que há gente, não entre à força, mas

mande-nos um telegrama. Iremos ter com o senhor, e uma hora depois atacaremos o

caso a fundo.

— E se continuar vazia?

— Nesse caso, irei amanhã discutir o caso com o senhor. Adeus e, acima de tudo, não se

irrite sem motivo.

— Receio que se trate de um caso grave, Watson — disse meu amigo, ao voltar da porta

aonde fora acompanhar o sr. Munro. — Que lhe parece?

— Soa mal — respondi.

— Sim. Há chantagem, ou estou muito enganado.

— E quem é o chantagista?

— Tem que ser o indivíduo que mora no único quarto confortável da residência, e que

tem a fotografia dela em cima da lareira. Juro-lhe, Watson, que há algo de atraente

naquele rosto lívido da janela, e por coisa nenhuma desistirei do caso.

— Já tem alguma hipótese?

— Já; uma hipótese provisória. Mas ficarei surpreso se verificar que não é exata. É o

primeiro marido daquela mulher quem está na casa.

— Por que pensa assim?

— Do contrário, como explicar a ansiedade frenética dela, com receio de que o segundo

marido entrasse? Os fatos, como os imagino, são mais ou menos estes: essa mulher

casou-se na América e o marido deve ter revelado qualquer característica odienta, ou

contraiu, digamos, uma doença repelente, ficando leproso ou imbecil, por exemplo. Ela

então fugiu dele, regressou à Inglaterra, mudou de nome e, como ambicionava,

recomeçou sua vida. Casada há três anos, supunha que sua posição estava

absolutamente garantida, tendo mostrado ao marido a certidão de óbito de qualquer

outro homem, de cujo nome se apropriou, quando de repente seu paradeiro foi

descoberto pelo primeiro marido, ou talvez por uma mulher sem escrúpulos que,

entretanto, se ligara ao inválido. Escreveram à mulher ameaçando-a de revelar toda a

verdade. A atual sra. Munro conseguiu cem libras e tentou comprar-lhes o silêncio. Eles

se mudaram apesar disso, e quando o marido disse à esposa que havia novos inquilinos

na casa, ela adivinhou que eram seus perseguidores. Esperou que o marido adormecesse

e então correu à tal casa, esforçando-se por persuadi-los a deixá-la em paz. Sem obter

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êxito, voltou na manhã seguinte, momento em que o marido, como nos disse, a

encontrou quando saía. Ela então prometeu não voltar, mas a esperança de se libertar de

seus terríveis vizinhos é muito forte e, dois dias depois, voltou à carga, levando a

fotografia que, provavelmente, lhe tinham exigido. No meio da entrevista, a criada

entrou para anunciar que o patrão chegara. Não duvidando de que ele viria à moradia,

fez os inquilinos saírem pela porta de trás, talvez para o bosque que parece existir

próximo. Eis por que ele, quando entrou, encontrou a casa deserta. Ficarei no entanto

muito surpreso se assim continuar, quando ele a inspecionar de novo esta tardinha. Que

pensa de minha hipótese?

— É apenas uma hipótese.

— Pelo menos, abrange todos os fatos. Se chegarem a meu conhecimento novos fatos

que não caibam nela, terei tempo para reconsiderar. De momento, não podemos fazer

nada enquanto não recebermos nova mensagem de nosso amigo de Norbury.

Mas não esperamos muito tempo. O recado veio justamente quando estávamos

acabando o chá. “A casa está habitada”, dizia. “O rosto apareceu outra vez à janela.

Espero-os no trem das sete, e não darei nenhum passo até que cheguem.”

Grant esperava-nos na plataforma, e apesar da luz fraca da estação reparei que estava

muito pálido e trémulo de agitação.

— Ainda estão lá, sr. Holmes — disse, pondo a mão no braço de meu amigo. — Vi

luzes na casa quando descia. Vamos esclarecer tudo de uma vez por todas.

— Qual é seu plano? — perguntou Holmes, quando descíamos a estrada escura, ladeada

de árvores.

— Vou entrar à força e ver, com meus próprios olhos, quem está naquela casa. Quero

que ambos estejam lá para testemunhar.

— Está realmente decidido a fazê-lo, apesar da advertência de sua esposa de que seria

melhor não penetrar no mistério?

— Sim. Estou resolvido.

— Bem, creio que o senhor está em seu direito. Qualquer verdade é melhor do que a

dúvida. O melhor que temos a fazer é subir já. É certo que legalmente não temos esse

direito, mas penso que vale a pena arriscar.

A noite estava muito escura, e uma chuva fria começava a cair quando, deixando a

estrada, entramos num beco estreito, cheio de buracos e com uma cerca de ambos os

lados. O sr. Grant Munro avançava com impaciência, e nós, aos tropeções, o

acompanhávamos o melhor que podíamos.

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— Ali estão as luzes de minha casa — murmurou ele, apontando para o clarão entre as

árvores. — Aqui está a casa onde vamos entrar.

Viramos uma esquina, como ele dissera, e logo a seguir surgiu o prédio a nosso lado.

Um feixe de luz amarela, no primeiro plano, mostrava que a porta não estava

inteiramente fechada. Uma janela do andar superior estava brilhantemente iluminada;

quando olhamos, vimos um vulto escuro mover-se por trás da vidraça.

— Lá está a criatura — gritou o sr. Grant Munro. — Os senhores mesmos podem vê-la.

Sigam-me, e saberemos tudo.

Aproximamo-nos da porta, mas de repente uma mulher saiu da sombra e permaneceu no

círculo dourado da luz do candeeiro. Não consegui ver-lhe o rosto na escuridão, mas

mantinha os braços estendidos, numa atitude de súplica.

— Pelo amor de Deus, Jack, não entre — gritou. — Eu tinha o pressentimento de que

você viria esta noite. Pense melhor, querido! Confie em mim, e não se arrependerá.

— Já confiei demais, Effi — gritou ele severamente. — Deixe-me! Preciso passar!

Estes meus amigos e eu vamos resolver o assunto definitivamente.

Dizendo isso, empurrou a mulher para o lado e nós o seguimos de perto. Quando abriu a

porta, uma mulher de idade saltou-lhe ao caminho, tentando barrar-lhe a passagem, mas

o sr. Munro afastou-a com decisão e, um instante depois, estávamos todos na escada.

Com Munro à nossa frente, corremos para o quarto do andar de cima, que estava

fortemente iluminado.

Era uma sala confortável e bem-mobiliada. Dois candeeiros ardiam em cima da mesa, e

outros dois sobre a lareira. A um canto, inclinado sobre uma escrivaninha, estava um

vulto sentado que parecia uma menina. Virou-nos o rosto quando entramos, mas apenas

conseguimos ver que usava um vestido vermelho e luvas brancas e compridas. Ao

mover-se rapidamente para nós, não pude conter um grito de surpresa e horror; seu rosto

era de um matiz lívido e estranho, e seus traços, completamente vazios de expressão.

Um momento depois, o mistério estava explicado. Holmes, com uma risada, levou a

mão atrás da orelha da criança e retirou-lhe a máscara. Apareceu então uma menina,

negrinha como o carvão, os dentinhos brancos e cintilantes, muito divertida com nosso

espanto. Explodi num riso de simpatia para com sua alegria, mas Grani Munro ficou

estático, com as mãos no rosto.

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Sidney Paget, 1894

— Meu Deus! — gritou. — O que significa tudo isso?

— Eu lhe direi o que significa — gritou uma senhora que entrou na sala como uma

rajada, de aspecto orgulhoso e inflexível. — Você me obrigou a falar contra minha

vontade. Agora precisamos ter coragem. Meu marido morreu em Atlanta, mas minha

filha sobreviveu.

— Sua filha?

A senhora retirou do seio um grande medalhão de prata.

— Nunca o viu aberto?

— Nem sequer sabia que se abria.

Ela apertou uma mola e a tampa saltou. Dentro estava o retrato de um homem,

chocantemente belo e inteligente, revelando os traços inconfundíveis de sua origem

africana.

— É John Hebron, de Atlanta — começou ela. — Homem mais nobre nunca pisou a

terra. Abandonei os de minha raça para me casar com ele. Mas não me arrependi um só

instante. Nossa infelicidade foi que minha filha única ficou com mais sangue do pai que

do meu. Acontece, muitas vezes, em tais casamentos. Lucy saiu ainda mais negra que o

pai. Mas negra ou loira é minha querida filhinha, o mimo de sua mãe.

A essas palavras, a criança correu e aninhou-se no vestido da senhora.

— Deixei-a na América porque sua saúde era frágil, e uma mudança podia fazer-lhe

mal. Ficou ao cuidado de uma fiel escocesa que já fora, em outros tempos, nossa

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empregada. Nunca, nem por um instante, sonhei repudiá-la como filha. Mas quando o

acaso me pôs no seu caminho, Jack, e compreendi que o amava, tive receio de falar

sobre a menina. Deus me perdoe, mas tinha medo de perdê-lo, e faltou-me a coragem

para falar nisso. Tive de escolher entre você e ela e, na minha fraqueza, abandonei

minha filha. Durante três anos, conservei sua existência em segredo, mas era informada

pela governanta e sabia que tudo corria bem. Por fim, senti um desejo irresistível de

tornar a vê-la. Lutei contra esse desejo, mas em vão. Embora reconhecesse o perigo,

resolvi trazê-la apenas por algumas semanas. Mandei cem libras à governanta e dei-lhe

instruções a respeito desta casa, de maneira a poderem vir como vizinhos sem que

minhas visitas levantassem suspeitas. Exagerei tanto minhas precauções que ordenei

que se conservasse a menina em casa durante o dia e se lhe cobrissem o rosto e as mãos,

para que, se alguém a visse à janela, não começasse a dizer que havia uma negrinha nas

vizinhanças. Talvez fosse mais sensato não ter tomado tantas cautelas. Mas eu estava

louca de medo de que você viesse a saber toda a verdade. Por acaso, foi você quem me

disse primeiro que a casa estava habitada. Eu devia ter esperado pelo amanhecer, mas

não podia dormir de excitação. Saí então devagarinho, confiando em seu sono pesado.

Mas você me viu sair, e foi aí que começaram as dificuldades. No dia seguinte, meu

segredo estava à sua mercê, mas você, nobremente, absteve-se de abusar dessa

vantagem. Três dias depois, a governanta mal teve tempo de fugir com a menina pela

porta dos fundos, quando você se precipitou, como um furacão, pela casa adentro. E

agora, esta noite, você sabe de tudo, e pergunto o que vai ser de nós, de mim e de minha

filha.

A sra. Munro, apertando as mãos, esperou a resposta. Dois longos minutos se passaram

antes que o sr. Munro quebrasse o silêncio. Mas sua resposta é aquela em que tanto

gosto de pensar. Levantou a menina nos braços, beijou-a e, mantendo-a ao colo,

estendeu a outra mão à mulher, dirigindo-se para a porta.

Sidney Paget, 1894

— Podemos discutir isso com mais conforto em casa — disse, por fim. — Não sou um

homem muito bom, Effi, mas creio que sou melhor do que você supõe.

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Holmes e eu o acompanhamos pelo beco, mas, chegados à estrada, meu amigo puxou-

me pelo braço.

— Parece-me — disse — que somos mais úteis em Londres do quem em Norbury.

Nem mais uma palavra disse sobre o assunto; só quando, com uma vela acesa, se dirigia

para o quarto, murmurou:

— Watson, se alguma vez notar que estou muito confiante em minhas possibilidades,

dando a um caso menos atenção do que ele merece, tenha a bondade de segredar em

meu ouvido “Norbury”, e eu lhe ficarei eternamente grato.

1894

Memórias de Sherlock Holmes