DOYLE, Arthur Conan. As Aventuras de Sherlock Holmes.pdf

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ESCÂNDALONABOÊMIA

·I·

PARASHERLOCKHOLMES,elaésempreamulher.Rarasvezesoouvimencioná-lasobqualqueroutronome.Aseusolhos,elaeclipsaedominatodoosexofeminino.NãoqueelesentisseporIreneAdlerqualqueremoçãodogênerodoamor.Todasas emoções, e essaemparticular, eramdetestáveis à suamente fria, precisa, mas admiravelmente equilibrada. Ele era, na minhaopinião,amaisperfeitaeobservadoramáquinaderaciocinarqueomundojá viu; como amante, porém, teriametido os pés pelasmãos.Nunca faloudas paixões mais ternas senão com certa zombaria e um sorriso dedesdém. Esses sentimentos eram admiráveis para o observador —excelentespararevelarosmotivoseasaçõesdoshomens.Paraohomemde raciocínio treinado, porém, admitir tais interferências em seutemperamentosensível,sutilmenteequilibrado,eraintroduzirumfatordeperturbação capaz de abalar todos os seus julgamentos. Areia numinstrumento sensível, ou uma rachadura em suas potentes lupas, nãocausariamais estorvoqueuma emoção fortenumanatureza comoa sua.Apesar de tudo, para ele só existia uma mulher, e essa mulher era afalecidaIreneAdler,deduvidosaequestionávelmemória.

Nos últimos tempos eu pouco vira Holmes. Meu casamento nosafastara. Minha felicidade completa e os interesses domésticos queenvolvemohomemquepelaprimeiravezsevêsenhordesuacasaeramsu icientes para absorver toda a minha atenção. Enquanto isso, Holmes,que detestava toda forma de sociedade, com sua alma inteiramenteboêmia, continuava lá, em nossos aposentos em Baker Street, enterradoentreseuslivrosantigos,ealternando,semanaasemana,acocaínacomaambição,otorpordadrogacomaenergiaimpetuosadesuapersonalidadeintensa.Continuava, comosempre,profundamenteatraídopeloestudodocrime e dedicava suas portentosas faculdades e seus extraordináriospoderesdeobservaçãoaseguirpistasedesvendarmistériosabandonadoscomo insolúveis pela polícia o icial. Vez por outra chegavam-me notícias

vagasdeseusfeitos:dochamadoquereceberaparairaOdessanocasodoassassinatodeTrepoff,dasoluçãoquederaàsingulartragédiadosirmãosAtkinson em Trincomalee e, por im, da missão que levara a cabo demaneira tãodelicadaebem-sucedidaparaa família reinantedaHolanda.Mas, além dessas vagas notícias de sua atividade, que eu simplesmentepartilhavacomtodososleitoresdaimprensadiária,eupoucosabiadomeuvelhoamigoecompanheiro.

Umanoite— foi nodia20demarçode1888—, eu voltavadeumavisita a um paciente (pois nessa altura já voltara a praticar a medicinaprivada), quando meu caminho me levou a percorrer Baker Street. Aopassarpelaportadequemelembravatãobem,equeestaráparasempreassociada em minha mente à época de meu namoro e aos lúgubresincidentesdoUmestudoemvermelho,fuitomadoporumintensodesejoderever Holmes e saber como andava empregando seus extraordináriospoderes. Seus aposentos estavam iluminados, e, ao olhar para cima,cheguei a ver sua igura alta, esguia, passar duas vezes numa silhuetaescuracontraacortina.Eleandavadeumladoparaoutrodasala,rápidaeansiosamente, a cabeça caída sobre o peito, as mãos cerradas às costas.Paramim,queconheciatodososseushábitosesuasdisposiçõesdeânimo,aquela atitude emaneira falavampor simesmas. Ele voltara a trabalhar.Despertara de seus sonhos induzidos pela droga e farejava algumproblema novo. Toquei a campainha e fui levado à sala que outrora foraemparteminha.

Suasmaneirasnãoforamefusivas.Raramenteeram,masachoqueeleicou satisfeito emme ver. Sem dizer praticamente palavra,mas com umolhar afável, apontou-meumapoltrona, jogou-me sua caixade charutos eindicou ospiritcase e o sifão num canto. Em seguida postou-se diante dalareira e examinou-me meticulosamente, à sua singular maneiraintrospectiva.

“Avida conjugal lhe fazbem”, observou. “Acredito,Watson,quevocêganhouunstrêsquilosemeiodesdequeovipelaúltimavez.”

“Três”,respondi.“Realmente, eu devia ter pensado um poucomais. Só um pouquinho

mais,achoeu,Watson.Epeloqueobservo,voltouaclinicar.Nãomecontouquepretendiavoltaraotrabalho.”

“Entãocomosabe?”“Vejo, deduzo isso. Como sei que você tem se molhado muito

ultimamenteequetemumacriadadasmaisineptasedesleixadas?”“MeucaroHolmes”,exclamei,“istoédemais.Nãotenhodúvidadeque

você teria ido parar na fogueira se tivesse vivido alguns séculos atrás. Éverdadequeandeipelocampoquinta-feiraevolteiimundoparacasa.Mas,comotroqueideroupa,nãopossoatinarcomodeduziuisso.QuantoaMaryJane, ela é incorrigível eminhamulher já adespediu.Mas tambémnessecasonãoentendocomodescobriu.”

Eleriudesiparasi,esfregandoasmãoslongasenervosas:“É a própria simplicidade.Meus olhosmedizemqueno lado interno

doseusapatoesquerdo,exatamenteondealuzdofogoincide,ocouroestáriscado por seis cortes quase paralelos. Obviamente foram causados poralguémque,commuitodesleixo,raspouasbordasdassolaspararemoverlamaseca.Daí, comovê,minhadupladeduçãodequevocêandaraporaísobumtemporaldosdiabosetinhaemcasaumespécimeparticularmenteincapaz de borra-botas da criadagem londrina. Quanto à clínica, se umcavalheiroentrapelaminhasalaadentrocheirandoaiodofórmio,comumamancha preta de nitrato de prata no indicador da mão direita e umaprotuberância de um lado da cartola para mostrar onde escondeu oestetoscópio,eu teriadeserrealmenteumpalermasenãoo identi icassecomoummembroativodaprofissãomédica.”

Nãopudedeixarderirdafacilidadecomqueexplicavaseumétododededução.“Quandooouçoexporsuasrazões”,observei,“acoisasempremeparecetãoridiculamentesimplesquetenhoaimpressãodequeeupróprioseriacapazdefazeromesmo;masofatoéque,acadaraciocínioseu, icoperplexoatévocêexplicarseuprocedimento.Apesardisso,achoquetenhoolhostãobonsquantoosseus.”

“Naturalmente”,respondeu,acendendoumcigarroejogando-senumapoltrona.“Vocêvê,masnãoobserva.Adistinçãoéclara.Porexemplo,vocêviumuitasvezesosdegrausquetrazemdovestíbuloaestasala.”

“Muitas.”“Quantas?”“Ora,algumascentenasdevezes.”“Entãoquantosdegraussão?”“Quantos?Nãosei.”“É claro! Você não observou. Apesar de ter visto. Este é o xis da

questão.Poisbem,euseiquehádezessetedegrausporquetantoviquantoobservei.Apropósito,jáqueseinteressaporessesprobleminhas,ejáque

teveagentilezadeserocronistadeumaouduasdeminhasinsigni icantesexperiências,talvezseinteresseporisto.”

Jogou-me uma folha de papel de carta espessa, rosada, que estavaaberta sobre a mesa. “Chegou pelo último correio”, disse. “Leia em vozalta.”

Obilhetenãoeradatado,nãotinhaassinaturanemendereço.

Hoje à noite, às quinze para as oito [dizia], irá à sua casa umcavalheiro que deseja consultá-lo sobre assunto da mais profundaimportância. Os recentes serviços que o senhor prestou a uma dasCasas Reais da Europa mostraram que é uma pessoa a quem sepodem con iar matérias cuja relevância di icilmente poderia serexagerada. Esta avaliação do senhor de várias fontes recebemos.Estejaportantoemseusaposentosàquelahoraenãoleveamalcasoseuvisitanteestejausandoumamáscara.

“Émesmoummistério”,observei.“Queimaginaquesignifica?”“Pororanãotenhonenhumdado.Éumerrocapitalteorizarantesde

ter dados. Insensivelmente, começa-se a distorcer fatos para ajustá-los ateorias,emvezdeteoriasparaqueseajustemafatos.Maseobilhete?Quededuzdele?”

Examineicuidadosamentealetraeopapelemqueestavaescrito.“O homem que a escreveu é presumivelmente abastado”, comentei,

esforçando-me por imitar os métodos de meu companheiro. “Um papelcomo este não pode ter custado menos de meia coroa o maço. Épeculiarmenteforteeencorpado.”

“Peculiar… é a palavra exata”, observou Holmes. “Não se trata emabsolutodeumpapelinglês.Segure-ocontraaluz.”

Obedecendo,viumEgrandecomumgpequeno,umP,eumGgrandecomumtpequenofiligranadosnopapel.

“Issolhedizalgumacoisa?”perguntouHolmes.“Onomedofabricante,semdúvida;ou,quemsabe,seumonograma.”“Nada disso. OG com ot pequeno signi icam ‘Gesellschaft’, a palavra

alemãpara‘Companhia’.Éumaabreviaturausual,comoonosso‘Cia.’.O P,é claro, signi ica ‘Papier’. Resta oEg. Vejamos o que diz nossoContinentalGazetteer.”Tiroudaestanteumpesadovolumemarrom.“Eglow,Eglonitz…achei,Egria.Éumaregiãodelínguaalemã…naBoêmia,pertodeCarlsbad.

‘Notável por ter sido o local da morte deWallenstein e por suas muitasfábricasdevidroedepapel.’Ha,ha,meuamigo,quelheparece?”Comosolhosfaiscando,exalouumagrandeetriunfantenuvemazuldefumaça.

“OpapelfoifabricadonaBoêmia”,disseeu.“Precisamente. E o homem que escreveu a carta é um alemão. Você

notoua construçãode frasepeculiar: ‘Esta avaliaçãodo senhordeváriasfontesrecebemos’?Umfrancêsouumrussonãopoderiaterescritoisso.Éo alemão que é assim tão descortês com seus verbos. Resta apenas,portanto,descobrirquedesejaessealemãoqueescreveempapelboêmioeprefereusarumamáscaraamostrarorosto.E,senãomeengano,aívemeleparadesfazertodasasnossasdúvidas.”

EnquantoHolmesfalava,ouviramosomvibrantedecascosdecavaloe o ruído de rodas raspando contra o meio- io, seguidos por vigorosopuxãonacampainha.Holmesdeuumassobio.

“Umaparelha,pelosom”,disse. “Sim”,continuou,olhandopela janela.“Um elegantebrougham e duas belezas de cavalos. Cento e cinquentaguinéus por cabeça.Há dinheiro neste caso,Watson, se não houvermaisnada.”

“Émelhoreuirandando,Holmes.”“Nada disso, doutor. Fique onde está. Sinto-me perdido sem meu

Boswell.Eistoprometeserinteressante.Seriapenaqueperdesse.”“Masseucliente…”“Nãosepreocupecomele.Possoquerersuaajuda,eeletambém.Está

chegando. Sente-se naquela poltrona, doutor, e dê-nos o melhor de suaatenção.”

Umpassolentoepesado,quese izeraouvirnaescadaenocorredor,estancourenteàporta.Seguiu-seumabatidaforteeautoritária.

“Entre!”disseHolmes.Entrouumhomemquedi icilmenteteriamenosdeummetroe97de

altura, com o peito e os braços de um Hércules. Suas roupas eramluxuosas,deum luxoque,na Inglaterra, seriavistocomobeirandoomaugosto.Grossasfaixasdeastracãenfeitavamasmangaseaslapelasdoseujaquetão, e o manto azul-escuro que trazia jogado sobre os ombros eraforradodesedacordefogoepresoaopescoçocomumbrochefeitodeumúnico e lamejante berilo. Botas que lhe chegavam à metade daspanturrilhas, e cujos canos eramarrematados comespessapelemarrom,completavamaimpressãodeopulênciabárbaraquetodaasuaaparência

sugeria.Seguravaumchapéudaabaslargasetrazianapartesuperiordorosto, descendo até abaixo das maçãs, uma máscara negra; parecia teracabado de ajustá-la, pois a mão ainda estava erguida quando entrou. Ajulgarpelaparteinferiordorosto,eraumhomemdecaráterforte;olábioinferior era grosso e caído e o queixo longo e reto sugeria mais quedeterminação,teimosiamesmo.

“Recebeu minha carta?” perguntou numa voz grave e áspera, comcarregado sotaque alemão. “Eu lhe comuniquei que viria.” Seu olharpasseavadeumparaoutrodenós,comosenãosoubesseaocertoaquemsedirigir.

“Por favor, sente-se”,disseHolmes. “Esteéomeuamigoe colegaDr.Watson,queocasionalmentetemabondadedemeajudaremmeuscasos.Comquemtenhoahonradefalar?”

“Entrouumhomem.”[SidneyPaget,StrandMagazine,1891]

“Pode me chamar de conde von Kramm, um nobre da Boêmia.Suponho que este cavalheiro, seu amigo, é homem honrado e discreto, aquem posso con iar uma questão da mais extrema importância. Docontrário,prefeririaconversarasóscomosenhor.”

Levantei-me para sair, mas Holmes agarrou-me pelo pulso eempurrou-me de volta na minha poltrona. “Nós dois ou ninguém”, disse.“Podedizerdiantedestecavalheirotudoquetemamedizer.”

Ocondesacudiuosombroslargos.“Nessecaso”,disse,“devocomeçarpedindo a ambos sigilo absoluto durante dois anos; ao im desse prazo oassuntoteráperdidoaimportância.Nomomento,nãoéexagerodizerqueeleédetalgravidadequepodeterinfluênciasobreahistóriaeuropeia.”

“Prometo”,disseHolmes.“Eutambém.”“Desculpem esta máscara”, continuou o nosso estranho visitante. “A

augustapessoaquerepresentodesejaquenãosaibamqueméseuagente,e posso confessar desde logo que o título que há poucome atribuí não éexatamentemeu.”

“Eusabia”,atalhouHolmessecamente.“Ascircunstânciassãodeextremadelicadeza,eéprecisotomartodas

as precauções para abafar o que poderia assumir as proporções de umimensoescândaloe comprometergravementeumadas famílias reinantesda Europa. Para falar sem rodeios, a questão envolve a grande Casa deOrmstein,reishereditáriosdaBoêmia.”

“Sabia disso também”, murmurou Holmes, refestelando-se em suapoltronaefechandoosolhos.

Nosso visitante lançou um olhar em que havia uma clara ponta desurpresa para a igura lânguida e relaxada do homemque por certo lheforadescritocomoodetetivederaciocíniomaisincisivoedemaiorenergiada Europa. Holmes reabriu lentamente os olhos e itou com impaciênciaseugigantescocliente.

“SeVossaMajestadecondescendesseemexporoseucaso”,observou,“euestariamaisaptoaaconselhá-lo.”

Ohomemdeuumpulodacadeiraepassouaandardeumladoparaoutro da sala em incontrolável agitação. Depois, com um gesto dedesespero, arrancou a máscara do rosto e jogou-a no chão. “Está certo”,exclamou.“Eusouorei.Porquehaveriadetentaresconderisso?”

“De fato, por quê?”murmurou Holmes. “Antes que VossaMajestade

abrisse a boca eu já sabia que estava falando com Wilhelm GottsreichSigismond von Ormstein, grão-duque de Cassel-Felstein e rei hereditáriodaBoêmia.”

“O senhorpodeentender”, dissenosso estranhovisitante, voltandoasesentarepassandoamãopelafrontealtaebranca,“podeentenderquenãoestouacostumadoatratardeassuntoscomoestepessoalmente.Masaquestãoeratãodelicadaqueeunãopodiacon iá-laanenhumagentesemmepôrnasmãosdele.VimincógnitodePragacomoobjetivodeconsultá-lo.”

“Então, por favor, consulte-me”, disse Holmes, voltando a cerrar osolhos.

“Em resumo, os fatos são estes: há cinco anos, durante uma longavisita a Varsóvia, conheci a famosa aventureira Irene Adler. O nomecertamentelheéfamiliar.”

“Por favor,procure-anomeu índice,doutor”,murmurouHolmessemabrirosolhos.Eleadotara,haviamuitosanos,umsistemadeficharnotíciase informações sobre pessoas e coisas, de tal modo que era di ícilmencionar um assunto ou alguém sobre o qual não pudesse dispor deinformaçãoimediata.Nessecaso,encontreiabiogra iadesejadaespremidaentreadeumrabinoeadeumchefedeestado-maiorqueescreveraumamonografiasobrepeixesdeáguasprofundas.

“Vejamos”, disse Holmes. “Hum! Nasceu em Nova Jersey no ano de1858. Contralto… hum! La Scala, hum! Prima-dona da Ópera Imperial deVarsóvia… Sim! Abandonou o palco operístico. Ah!Mora em Londres… éclaro! Pelo que percebo, Vossa Majestade envolveu-se com essa jovem,escreveu-lhealgumascartascomprometedoraseagoradesejareavê-las.”

“Exatamenteisso.Mascomo…”“Houveumcasamentosecreto?”“Emabsoluto.”“Papéisoucertidõeslegais?”“Emabsoluto.”“Entãonãooentendo,Majestade.Seessajovemviesseamostrarsuas

cartas para ins de chantagem ou outros, como poderia provar aautenticidadedelas?”

“Háacaligrafia.”“Ora!Falsificada.”

“Meupapeldecartasprivado.”“Roubado.”“Meuprópriosinete.”“Imitado.”“Minhafotografia.”“Comprada.”“Estamososdoisnoretrato.”“Ahnão!Issoémuitoruim!VossaMajestaderealmentecometeuuma

indiscrição.”“Euestavalouco…insano.”“Comprometeu-segravemente.”“Naépocaeueraapenaspríncipeherdeiro.Erajovem.Tenhosótrinta

anosagora.”“Éprecisorecuperá-la.”“Tentamosefracassamos.”“VossaMajestadetemdepagar.Éprecisocomprá-la.”“Elanãoavenderá.”“Entãoéprecisoroubá-la.”“Foram feitas cinco tentativas. Ladrões a meu soldo vasculharam a

casa dela duas vezes. Desviamos a sua bagagemquando ela viajava umavez.Foiassaltadaduasvezes.Tudoemvão.”“Nemsinaldafotografia?”

“Absolutamentenenhum.”“Éumprobleminhaatraente”,comentouHolmes,rindo.“Masmuitosérioparamim”,retrucouoreiemtomdecensura.“Muito,realmente.Equepretendeelafazercomafotografia?”“Arruinar-me.”“Mascomo?”“Voumecasarembreve.”“Foioqueouvidizer.”“Com Clotilde Lothman von Saxe-Meningen, segunda ilha do rei da

Escandinávia. Talvez conheça os princípios rigorosos dessa família. Elamesma é a delicadeza em pessoa. Uma sombra de dúvida com relação àminhacondutapoderiarepresentarofimdetudo.”

“EIreneAdler?”

“Ameaçamandar-lhes a fotogra ia. E o fará. Sei que o fará.O senhornão a conhece,mas sua têmpera é de aço. Temo rosto damais bela dasmulheres e a mente do mais resoluto dos homens. Para que eu não mecasecomoutramulher,seriacapazdetudo…detudo.”

“Temcertezadequeelaaindanãomandouoretrato?”“Absoluta.”“Porquê?”“Porque disse que o mandaria no dia em que o noivado fosse

anunciadopublicamente.Issoaconteceránapróximasegunda-feira.”“Ah, então ainda temos três dias”, disse Holmes, com um bocejo. “É

umasorte,porquenomomento tenhoumoudoisproblemas importantesparaexaminar.VossaMajestadeficaráemLondresestesdias,nãoé?”

“Éclaro.OsenhormeencontraránoLangham,sobonomedecondevonKramm.”

“Entãolheescreverei,mantendo-oapardenossosprogressos.”“Porfavor.Aguardareiansioso.”“Bem,equantoadinheiro?”“Temcartabranca.”“Totalmente?”“Ouça,eudariaumaprovínciadomeureinoparateraquelafotogra ia

devolta.”“Eparadespesascorrentes?”Oreitirouumpesadosacodecamurçadesobomantoedepositou-o

sobreamesa.“Aquihátrezentaslibrasemouroesetecentasemdinheiro.”Holmesrabiscouumrecibonumafolhadesuaagendaeentregou-oao

rei.“EoendereçodeMademoiselle?”“ÉBrionyLodge,SerpentineAvenue,St.John’sWood.”Holmesanotou-o. “Maisumapergunta”,disse. “Erauma fotogra iade

bomtamanho?”“Era.”“Então,boanoite,Majestade.Acreditoque logo teremosboasnotícias

para lhe dar. E boa noite, Watson”, acrescentou, quando as rodas dobroughamrealseafastaramruaabaixo.“Sepudermefazerofavordevir

aquiamanhãàtarde,àstrêshoras,gostariadeconversarcomvocêsobreesteprobleminha.”

·II·

ÀS TRÊS HORAS EM PONTO eu estava em Baker Street,mas Holmes ainda nãovoltara.Asenhoriainformou-medequeelesaírapoucodepoisdasoitodamanhã. Sentei-me junto à lareira, com a intenção de esperá-lo, por maisque demorasse. Já estava profundamente interessado naquelainvestigação, pois, embora ela não estivesse cercada por nenhuma dassoturnaseestranhascaracterísticasassociadasaosdoiscrimesquenarreiem outro lugar, a natureza do caso e a elevada posição do clienteconferiam-lhe um caráter peculiar. Na verdade, qualquer que fosse anatureza da investigação que meu amigo empreendia, havia, na mestriacom que dominava a situação e em seu raciocínio aguçado, incisivo, algoque tornava um prazer para mim estudar seu sistema de trabalho eacompanhar os métodos rápidos, sutis, com que desvendava os maisinextricáveismistérios.Euestavatãoacostumadoaseuinvariávelsucessoque a possibilidade de ele vir a fracassar nem me passava mais pelacabeça.

Jáeramquasequatrohorasquandoaportaseabriueumcavalariçomal-ajambrado, despenteado, com suíças, o rosto afogueado eaparentemente bêbado entrou na sala. Apesar de habituado aoassombroso talentodemeuamigonousodedisfarces,preciseiolhar trêsvezes antes de ter certeza de que era realmente ele. Com um aceno decabeça, desapareceu no quarto, de onde voltou em cincominutosmetidonum terno detweed e respeitável como nos velhos tempos. En iando asmãos nos bolsos, esticou as pernas compridas diante do fogo e riu àsbandeirasdespregadasdurantealgunsminutos.

“Ora, realmente!” exclamou, engasgando-se em seguida; e caiu denovo no riso até que foi obrigado a se recostar na poltrona, bambo eexausto.

“Quefoi?”“É engraçado demais. Tenho certeza de que você nunca conseguiria

adivinharcomopasseiamanhã,ouoqueacabeifazendo.”“Nãofaçoamenorideia.Suponhoqueandouobservandooshábitos,e

talvezacasa,deMissIreneAdler.”“Éclaro,masaconsequênciafoidasmaisinsólitas.Voulhecontar.Saí

um pouco depois das oito horas esta manhã, vestido de cavalariçodesempregado. Há uma maravilhosa solidariedade e espírito de corpoentre tratadoresdecavalos.Sevocê forumdeles, icarásabendode tudoqueháparasaber.EncontreilogoBrionyLodge.Éumacasa bijou,comumterreno nos fundos, mas construída junto à rua, e de dois andares.Fechadura Chubb na porta. Ampla sala de estar do lado direito, bem-mobiliada, com janelões que chegam quase ao piso, e aquelas ridículastrancasde janela inglesasqueatéumacriança consegueabrir.Atrásnãohavia nada digno de nota, exceto que uma janela do corredor podia seralcançadade cimada cocheira.Rodeei a casa, examinando-aatentamentedetodosospontosdevista,masnãonoteimaisnadadeinteresse.

“Em seguida perambulei pela rua, e descobri, como esperava, quehavia estrebariasnuma ruelaque corre rente aummurodoquintal.Deiumamão aos tratadores, escovando seus cavalos, e em troca ganhei doispence,umcopodehalf-and-half,doispunhadosdetabacoordinárioetodasas informações que poderia desejar sobreMiss Adler, para não falar demeiadúziadeoutraspessoasdavizinhançapelasquaisnãotinhaomenorinteresse,mascujasbiografiasfuiobrigadoaouvir.”

“EIreneAdler?”“Ah,elavirouacabeçadetodososhomensdasredondezas.Éacoisa

mais linda que já se viu no planeta… é voz geral nas estrebarias deSerpentine.Vivediscretamente,dá concertosde canto, saide coche todosos dias às cinco e volta às sete em ponto para jantar. Raramente sai emoutras horas, exceto quando canta. Tem um único visitante do sexomasculino,mas este é notavelmente assíduo. Émoreno, elegante, vistoso;nunca a visita menos de uma vez por dia, e com frequência duas. É umcertoMr.GodfreyNorton,advogado.Vejaasvantagensde icar íntimodecocheiros. Eles o haviam levado das estrebarias de Serpentine para casadezenasdevezes,sabiamtudosobreele.Depoisdeouvirtodasashistóriasque tinhampara contar, voltei a andar para cima e para baixo diante deBrionyLodge,pensandoemmeuplanodecampanha.

“Esse Godfrey Norton era, evidentemente, um fator importante naquestão.Eraadvogado.Issosoavaagourento.Querelaçãohaveriaentreosdoisequalseriaoobjetivodesuasrepetidasvisitas?Seriaelasuacliente,amiga ou amante? Na primeira hipótese, provavelmente transferira afotogra ia para a guarda dele. Na última, isso era menos provável. Eu

precisavatirarissoalimpoparasabersedevialevaradiantemeutrabalhoemBrionyLodgeouvoltarminhaatençãoparaosescritóriosdessesenhorno Temple. Era um problema delicado, e ampliava o campo de minhainvestigação. Temo estar aborrecendo você com estes detalhes, maspreciso lhemostrarminhaspequenasdi iculdades,paraquecompreendaasituação.”

“Soutodoouvidos.”“Eu continuava ponderando o problema quando umhansom parou

diante de Briony Lodge e um cavalheiro desceu. Era um homemparticularmente bonito, de cabelo escuro, nariz aquilino e bigodes…evidentemente, o sujeito de quem eu ouvira falar. Parecendo muitoapressado, gritou para o cocheiro que esperasse, passou pela criada queabriuaportasemlhefalar,comardequemestáemcasa.

“Ficou lácercademeiahora.Pudevislumbrá-loalgumasvezes,pelasjanelas da sala de estar, a andar de um lado para outro, falando egesticulandonervosamente.Nela,nãopusosolhos.Poucodepoisele saiu,parecendomaisafobadoqueantes.Aosubirnocarro,tirouumrelógiodeouro do bolso e consultou-o, preocupado. ‘Vá voando’, gritou, ‘primeiropara a Gross & Hankey, em Regent Street, depois para a igreja de St.MonicaemEdgwareRoad.Meioguinéusefizerissoemvinteminutos!’

“Láse foram,e,exatamentequandoeupensavasenãoeraocasodesegui-los,apareceunaruaumpequenoeelegantelandau,ococheirotinhao casaco meio desabotoado e a gravata desatada, e todos os arreiosestavamdesa ivelados.Ocarromalhaviaparadoquandoelasaiucorrendoporta afora e en iou-se nele. Só a vi de relance, mas era uma mulherdeliciosa,comumpalmoderostocapazdelevarumhomemàmorte.

“‘Para a igreja de St.Monica, John!’ gritou, ‘emeia libra se chegar láemvinteminutos.’

“Como perder isso, Watson? Eu estava justamente considerando seera o caso de sair correndo ou de me pendurar na traseira do landauquandosurgiuumtílburinarua.Ococheiroolhouduasvezesoandrajosofreguês, mas entrei antes que ele pudesse fazer objeção. ‘Igreja de St.Monica, e meio soberano se chegar lá em vinte minutos’, disse-lhe.Faltavam vinte e cinco minutos para o meio-dia e, naturalmente, estavabastanteclarooqueiriaacontecer.

“Meucocheirofoiatoda.Achoquenunca izumacorridamaisrápidanavida,masosoutros chegaramantes.Ao chegar, vi o tílburi e o landau

parados diante da porta da igreja, seus cavalos fumegando. Paguei ohomeme entrei correndo.Nãohavia vivalma lá dentro, a não ser osdoisqueeuseguiraeumpastordesobrepeliz,quepareciaestarzangandocomeles. Formavam um grupinho diante do altar. Avancei pela nave lateralcomo um desocupado qualquer entrando numa igreja. De repente, paraminhasurpresa,os três lá juntodoaltarsevoltaramparamimeGodfreyNortonveiodesabaladonaminhadireção.

“‘GraçasaDeus!’exclamou.‘Vocêserve!Venha!Venha!’“‘Comoassim?’perguntei.“‘Venha,homem,venha,maistrêsminutosenãoserálegal.’“Praticamentemearrastouparaoaltar,eantesqueeudessepormim

vi-me engrolando respostas que me eram cochichadas ao ouvido,testemunhandocoisasdequenadasabiaeparticipandodofirmeenlacedeIrene Adler, solteira, com Godfrey Norton, solteiro. Tudo aconteceu numátimo, e lá estava o cavalheiro agradecendo-me de um lado e a dama dooutro,enquantoopastormesorriaemfrente.Foiaposiçãomaisabsurdaem que já me vi em toda a minha vida, e foi lembrar disso que me fezgargalharhápouco.Parecequehaviaalgumairregularidadenalicençadecasamentodeles,queopastorserecusouterminantementeacasá-lossemumatestemunha,equeminha felizapariçãosalvouonoivode terdesairpela rua à procura de um padrinho. A noiva deu-me um soberano, quepretendo pendurar na corrente do meu relógio como lembrança daocasião.”

“Foirealmenteumdesfechoinesperado”,comentei;“edepois?”“Bem, vi meus planos seriamente ameaçados. Como parecia que o

casal poderia partir imediatamente, medidas muito rápidas e enérgicaseram exigidas de mim. Na porta da igreja, no entanto, os dois sesepararam:onoivofoiparaoTempleeanoivaparacasa. ‘PasseareipeloParqueàscincohoras,comodehábito’,disseelaaodeixá-lo.Nãoouvimaisnada. Seus carros partiram em direções diferentes e eu fui tomar asminhasprovidências.”

“Queprovidências?”“Um pouco de carne fria e um copo de cerveja”, respondeu Holmes,

tocando a campainha. “Andei ocupado demais para pensar em comida, eprovavelmente estarei mais ocupado ainda esta noite. Por falar nisso,doutor,vouprecisardasuacooperação.”

“Comomaiorprazer.”

“Nãoseimportadeinfringiralei?”“Nemumpouco.”“Nemsecorresseoriscodeserpreso?”“Não,sefosseporumaboacausa.”“Ah,acausaéexcelente!”“Entãoestouàsuadisposição.”“Tinhacertezadequepoderiacontarcomvocê.”“Masoquequer?”“DepoisqueMrs.Turnertivertrazidoabandejaeulheexplicarei…“Mas”,disse,voltando-secomarfamintoparaarefeiçãosimplesquea

senhorialhetrouxera,“tereidefalarenquantocomo,poisnãodisponhodemuito tempo. São quase cinco horas. Dentro de duas horas deveremosestaremcena.MissIrene,oumelhor,Mrs.Norton,retornadeseupasseioàssete.TemosdeestaremBrionyLodgeparaencontrá-la.”

“Eaí?”“Deixeporminhaconta.Jáprovidencieitudo.Háapenasumpontoem

que preciso insistir. Você não deve interferir, aconteça o que acontecer.Compreende?”

“Devopermanecerneutro?”“Não fazerabsolutamentenada.Provavelmentehaveráumaououtra

coisa ligeiramentedesagradável.Fiqueforadetudo.No inal,serei levadopara dentro da casa. Quatro ou cincominutos depois, a janela da sala deestarseráaberta.Vocêdeveseplantarpertodessajanelaaberta.”

“Certo.”“Deveficarmeolhando,porqueestareinoseucampodevisão.”“Sim.”“E quando eu levantar amão… assim… jogará dentro da sala o que

voulhedare,aomesmotempo,gritará‘fogo!’.Entendeubem?”“Perfeitamente.”“Não é nada demuito extraordinário”, acrescentou, tirando do bolso

um tubo em forma de charuto. “É um foguete de fumaça comum debombeiro,comumacápsulaemcadaextremidade,paraqueacendaporsimesmo.Suatarefalimita-seaisso.Quandovocêderogritodeincêndio,eleserárepetidoporgrandenúmerodepessoas.Depoispodeandaratéo imdarua,eeuestareicomvocêdentrodedezminutos.Tereisidoclaro?”

“Devo permanecer neutro, aproximar-me da janela, observá-lo e, aoseusinal,jogaresteobjetodentrodasala;atocontínuo,devogritar‘fogo’e

iresperá-lonaesquina.”“Exatamente.”“Nessecaso,podeconfiartotalmenteemmim.”“Excelente.Achoquetalvezjáestejanahoradeeumeprepararpara

onovorôlequedevodesempenhar.”Entrounoquartoevoltoupoucosminutosdepois,caracterizadocomo

um amável e simplório pastor não conformista. O chapéu preto de abaslargas, as calças folgadas, a gravata branca, o sorriso compassivo e o argeral de indagadora e benevolente sede de saber eram tais que apenasMr. JohnHarepoderia ter igualado.Nãose trataradeumamera trocaderoupa. A expressão deHolmes, suasmaneiras, até sua alma pareciam setransformaracadanovopapelqueassumia.Opalcoperdeuumexcelenteator,assimcomoaciênciaperdeuumcérebroa iado,quandoelesetornouumespecialistaemcrimes.

Eramseis equinzequandosaímosdeBakerStreet, e ainda faltavamdez minutos para as sete quando chegamos à Serpentine Avenue.Anoitecia,eas lâmpadasforamacesasenquantoandávamosdeláparacáemfrenteaBrionyLodge,esperandoachegadadesuamoradora.Acasaera exatamente como eu imaginara pela descrição sucinta de SherlockHolmes,masolugarmepareceumenostranquilodoqueeuesperava.Pelocontrário,paraumaruapequenanumbairrosossegado,erabemanimada.Havia um grupo de homensmalvestidos fumando e rindo numa esquina,umamoladorde tesouras comsua roda,doisguardas lertandocomumababá e vários rapazes bem-vestidos a lanar de um lado para outro,charutosnaboca.

Umsimplóriopastor.”[SidneyPaget,StrandMagazine,1891]

“Sabe, esse casamento simpli ica muito as coisas”, observou Holmesenquanto íamos e vínhamos em frente à casa. “A fotogra ia agora é umaarmadedoisgumes.ÉprovávelqueIrenetenhatãopoucodesejodequeMr. GodfreyNorton a veja quanto nosso cliente de que ela seja vista porsuaprincesa.Masoproblemaé:ondeencontraremosafotografia?”

“Defato,onde?”“É pouco provável que ela a tenha consigo. É um retrato grande.

Grande demais para ser escondido nas roupas de umamulher. Ela sabequeoreiécapazdesequestrá-laerevistá-la.Duastentativasdogênerojáforam feitas. Podemos admitir, portanto, que ela não anda com afotografia.”

“Ondeestaria,então?”“Com seu banqueiro ou seu advogado. Há essas duas possibilidades.

Não me inclino, porém, a admitir nem uma nem outra. As mulheres sãonaturalmentepropensasaosegredo,egostamdepreservá-loelasmesmas.Por que daria a fotogra ia para outra pessoa? Ela pode con iar em suaprópria guarda, ao passo que não seria capaz de prever as in luências

indiretas ou políticas que poderiam ser exercidas sobre um homem denegócios. Ademais, lembre-se de que estava decidida a usar o retratodentrodepoucosdias.Deveestarnumlugardefácilacesso.Deveestarnacasadela.”

“Masacasafoiassaltadaevasculhadaduasvezes.”“Ora!Nãosouberamprocurar.”“Evocê,pretendeprocurarcomo?”“Nãovouprocurar.”“Hã?”“Fareicomqueelamemostreondeestá.”“Maselaserecusará.”“Não será capaz. Mas ouço um ruído de rodas. É a carruagem dela.

Agora,cumpraminhasordensaopédaletra.”Enquantoelefalava,obrilhodaslanternaslateraisdeumacarruagem

despontou na curva da avenida. Era um pequeno e elegante landau queseguiucomestrépitoatéaportadeBrionyLodge.Quandofreava,umdosvagabundos que estavam na esquina acorreu para abrir a porta naesperançadeganharumcobre,mas foi empurradoporoutrovagabundoque também chegara com amesma intenção. Irrompeu uma briga feroz,reforçada pelos dois guardas, que tomaram partido de um dos vadios, epeloamoladorde tesouras,queaderiucom igualardoraooutro lado.Umsoco foi dado, e num instante a senhora, que descera de sua carruagem,estava no centro de um grupo de homens enraivecidos que se agrediamferozmenteunsaosoutroscompunhosecassetetes.Holmescorreuparaomeio do grupo para proteger a dama; no instante em que chegou juntodela,porém,deuumgritoecaiuaochão…sangue lheescorriapelorosto.Diante dessa queda, os guardas fugiram numa direção e os vagabundosem outra, enquanto várias pessoas mais bem-vestidas, que haviamobservadoo tumultosemdeleparticipar, correramparaacudiradamaecuidardoferido. IreneAdler,comoaindaachamo,apressara-seemsubiros degraus da casa; mas parou no alto, com a sua soberba silhuetadelineadacontraasluzesdovestíbulo,olhandoparaarua,atrásdesi.

“Deuumgritoecaiuaochão.”[SidneyPaget,StrandMagazine,1891]31

“Essepobrecavalheiroestámuitomachucado?”perguntou.“Estámorto”,gritaramváriasvozes.“Não,não,aindaestávivo”,gritouumaoutra.“Masestarámortoantes

quesepossalevá-loparaohospital.”“Éumsujeitocorajoso”,disseumamulher.“Senãotivessesidoporele,

teriam roubado abolsa e o relógioda senhora. Eraumaquadrilha, e dasviolentas.Ah,estárespirandoagora.”

“Não pode icar deitado na rua. Podemos levá-lo para dentro,minhasenhora?”

“Certamente. Levem-noparaa saladeestar.Háumsofá confortável.Poraqui,porfavor!”

Lenta e solenemente, Holmes foi carregado para Briony Lodge edeitadonasalaprincipal,enquantoeucontinuavaobservandoocursodosacontecimentos de meu posto, junto à janela. Como as lâmpadas haviamsidoacesaseaspersianasnãohaviamsidocerradas,eupodiaverHolmesdeitado no sofá. Não sei se a consciência lhe doía naquele momento emvirtudedopapelãoqueestava fazendo,mas seiquenuncame sentimaissinceramente envergonhado em toda a minha vida que ao ver a belacriaturacontraaqualeuconspirava,ouaboavontadeeadelicadezacom

que cuidava do ferido. Apesar disso, seria amais torpe traição aHolmesabandonar naquele momento o papel que me con iara. Endureci meucoraçãoetireiofoguetedefumaçadedentrodomeu ulster.A inal,pensei,nãoestamosfazendomalaela.Estamosapenasimpedindo-adefazermalaalguém.

Holmes sentara-seno sofá, e vi que semexia comoquem sente faltade ar. Uma criada correu para abrir a janela.Nomesmo instante eu o vierguer a mão, e a esse sinal arremessei meu foguete dentro da sala,gritando:

“Fogo!”Assimquepronuncieiessapalavraamultidãodeespectadores,beme

malvestidos— cavalheiros, cavalariços e criadas— a ecoou, numa gritageral de “fogo!”. Espessas nuvens de fumaça espiralaram pela sala esaírampela janela aberta.Vislumbrei igurasque corriam, enomomentoseguinte chegou-meavozdeHolmes, ládedentro, assegurando-lhesqueera um alarme falso. In iltrando-me furtivamente pela multidão quegritava,dirigi-meatéaesquinadaruae,dezminutosdepois,tiveaalegriadesentirobraçodomeuamigonomeuedeescapardaqueletumulto.Eleandoudepressaeemsilêncioporalgunsminutos,até tomarmosumadasruas calmasque levamaEdgwareRoad. “Saiu-semuitobem,doutor”, elecomentou.“Nãopoderiatersidomelhor.Estátudobem.”

“Conseguiuafotografia!”“Seiondeestá.”“Comodescobriu?”“Elamemostrou,comoeulhedissequefaria.”“Continuosementender.”“Não quero fazer mistério”, disse ele, rindo. “A coisa era

absolutamentesimples.Vocêpercebeu,éclaro,quetodosqueestavamnaruaeramcúmplices.Todoshaviamsidocontratadosparaestanoite.”

“Atéaí,conseguichegar.“Quandoabrigacomeçou,eutinhaumpoucodetintavermelhaúmida

napalmadamão. Corri para a confusão, caí, passei amãono rosto emetransformeinumespetáculolastimável.Éumtruqueantigo.”

“Pudeadivinharissotambém.”“Emseguidamecarregaram.Elatinhademereceber.Queoutracoisa

poderia fazer? E na sala de estar, exatamente o local em que recaíamminhassuspeitas.Oretratoestavaaliounoquartodedormir,eeuestava

decididoadescobriremqual.Deitaram-menumsofá,mexi-mepedindoar;foramobrigadosaabrirajanelaevocêteveasuachance.”

“Comoissooajudou?”“Foide importância capital.Quandoumamulherpensaque sua casa

estápegando fogo, seu instintoé correr imediatamenteparaaquiloaquedá maior valor. É um impulso inteiramente irresistível, de que já tireipartido mais de uma vez. No caso do Escândalo da Substituição deDarlington,issomefoiútil,etambémnaquestãodoCastelodeArnsworth.Umamulher casada agarra o ilho…uma solteira, sua caixa de joias. Ora,estava claro paramim que nossa dama de hoje não tinha em casa nadamais precioso do que a fotogra ia que procuramos. Ela correria paraprotegê-la.Oalarmedeincêndiofoiadmiravelmentebemdado.Afumaçaea gritaria foram su icientes para abalar nervos de aço. Ela reagiu comoesperado. O retrato estava numa reentrância atrás de um paineldeslizante,logoacimadacordadacampainha,àdireita.Elacorreuparalá,epudeentrevera fotogra iaquandoelaapuxouemparte.Quandogriteique era um alarme falso, ela a recolocou no lugar, deu uma olhada nofoguete, saiu correndo da sala e não a vi mais. Levantei-me e, pedindodesculpas,escapeidacasa.Chegueiapensarsedeviatentarapoderar-medo retrato imediatamente; mas como o cocheiro havia entrado e meobservava com atenção, pareceu-me mais seguro esperar. Um pequenoexcessodeprecipitaçãopodiaarruinartudo.”

“Eagora?”“Nossa busca está praticamente encerrada. Eu a visitarei com o rei

amanhã, e com você também, se quiser nos acompanhar. Seremosconduzidosàsalaparaesperarasenhora,maséprovávelque,aochegar,elanãoencontrenemanós,nemà fotogra ia.PoderáserumprazerparaSuaMajestaderecuperá-lacomasprópriasmãos.”

“Quandofaráessavisita?”“Às oito horas da manhã. Como ela ainda não terá se levantado,

teremoscampo livre.Alémdisso,devemosagirprontamente,porqueessecasamento pode signi icar uma completa alteração na vida e nos hábitosdela.Tenhodetelegrafaraoreisemdemora.”

Chegáramos a Baker Street e havíamos parado à porta. SherlockHolmes procurava as chaves no bolso quando um passante lhe dirigiu apalavra:

“Boa noite, Mr. Sherlock Holmes.” Havia várias pessoas na calçada

naquele momento, mas o cumprimento parecia ter vindo de um jovemesguio,protegidoporumulster,quepassarapornósrapidamente.

“Jáouviessavoz”,disseHolmes,osolhos ixosna ruamal-iluminada.“Quemdiabospoderiaser?”

·III·

DORMIEMBAKERSTREET aquelanoite, e estávamosàsvoltas comnosso cafécomtorradasquandooreidaBoêmiaentrouafobadonasala.

“O senhor realmente conseguiu!” exclamou, agarrando SherlockHolmespelosdoisombroseencarando-oansiosamente.

“Aindanão.”“Mastemesperança?”“Tenhoesperança.”“Entãovamos.Nãovejoahoradeir.”“Precisamosdeumtílburi.”“Não,meubroughamestáesperando.“Issosimpli icaráascoisas.”Descemosepartimosmaisumavezpara

BrionyLodge.“IreneAdlerestácasada”,declarouHolmes.“Casada?Quando?”“Ontem.”“Mascomquem?”“ComumadvogadoinglêschamadoNorton.”“Mascomcertezanãooama!”“Esperoqueame.”“Porquê?”“Porque isso pouparia a Vossa Majestade qualquer receio de

aborrecimentos futuros. Se a dama ama o marido, não ama VossaMajestade. Se não amaVossaMajestade, não há razão para que inter iranosseusplanos.”

“É verdade. Mesmo assim…! Bem! Gostaria que ela tivesse umaposição como a minha. Que rainha teria sido!” Recaiu num silênciomelancólico,quenãofoiquebradoatépararmosemSerpentineAvenue.A

porta deBriony Lodge estava aberta e havia uma senhora idosa postadanos degraus. Lançou-nos um olhar sardônico quando apeávamos dobrougham.

“Mr.SherlockHolmes,suponho?”perguntou.“Sou Mr. Holmes”, respondeu meu companheiro, dirigindo-lhe um

olharindagativoebastantesurpreso.“Realmente! A senhora me disse que o senhor provavelmente viria.

Elapartiuestamanhãcomomarido,pelotremdas5h15deCharingCrossparaoContinente.”

“Quê?”SherlockHolmescambaleou, lívidodedesconcertoesurpresa.“QuerdizerquedeixouaInglaterra?”

“Parasempre.”“Eospapéis?”perguntouoreicomvozcava.“Estátudoperdido.”“Veremos.” Empurrando a criada, avançou para a sala de estar,

seguido pelo rei e pormim. Osmóveis estavam espalhados a esmo, comprateleiras desmontadas e gavetas abertas, como se a dama as tivessevasculhado às pressas antes de fugir. Holmes correu para a corrente dacampainha, abriuumaportinholadeslizante e, en iando amão, tirouumafotogra iaeumacarta.Afotogra iaeradaprópriaIreneAdlernumvestidodenoite,acartaeraendereçadaa“Mr.SherlockHolmes,Esq.Guardaratéque venha buscar”. Meu amigo rasgou o envelope e nós três a lemosjuntos.Eradatadadameia-noiteanterioredizia:

MEUCAROMR.SHERLOCKHOLMES,Osenhorrealmentefeztudomuitobem-feito.Enganou-metotalmente.Atéomomentodoalarmedeincêndio,nãodesconfieidenada.Masemseguida, quando percebi que eu havia me traído, comecei a pensar.Haviamme advertido contra o senhor váriosmeses atrás.Disseram-meque,seoreiempregasseumagente,seriacertamenteosenhor.Ehaviammedadoseuendereço.Mesmoassim,comtudoisso,osenhormefezrevelaroquequeriasaber.Pareceu-medi ícil fazermaujuízode um sacerdote velhinho, tão estimável e bondoso.Mas, como sabe,tambémtenhoformaçãodeatriz.Trajesmasculinosnãosãonovidadeparamim.Muitas vezes tiro partidoda liberdadequeproporcionam.MandeiJohn,ococheiro,vigiá-loecorriaoandardecima,vestiminhasroupas de caminhar, como as chamo, e desci no instante em que osenhorpartia.Bem, segui-oatéa suaporta, e assimcerti iquei-medequeeuera

de fato objeto do interesse do célebre Mr. Sherlock Holmes. Depois,com certa imprudência, desejei-lhe boa-noite e dirigi-me para oTempleparatercommeumarido.Pareceu-nosaambosqueomelhorrecurso,aosermosperseguidos

por tão temível antagonista, era fugir. Por isso encontrará o ninhovazioquandovieramanhã.Quantoà fotogra ia,seuclientepode icartranquilo.Amoesouamadaporumhomemmelhordoqueele.Oreipodefazeroquequisersemser importunadoporalguémcomquemfoi cruelmente injusto. Conservo-a apenas para me proteger epreservar uma arma que sempre me porá a salvo de quaisquermedidas que ele possa vir a tomar no futuro. Deixo-lhe um outroretratomeuquetalvezqueirapossuir.Muitoatenciosamente,

IRENENORTON,néeADLER

“Quemulher, ah,quemulher!”exclamouo reidaBoêmiadepoisquehavíamos os três lido essa missiva. “Não lhes disse como era rápida edecidida?Nãoteriasidoumarainhaadmirável?Nãoéumapenaquenãofossedomeunível?”

“Pelo que vi da dama, ela parece realmente estar num nível muitodiferente do deVossaMajestade”, disseHolmes friamente. “Lamento nãoterconseguidolevarsuaquestãoaumdesfechomelhor.”

“Pelo contrário,meu caro senhor”, exclamouo rei. “Nadapoderia tersido melhor. Sei que a palavra dela é inquebrantável. Aquela fotogra iaestátãoseguraquantoestariasequeimada.”

“FicosatisfeitoemouvirissodeVossaMajestade.”“Sou-lheimensamentegrato.Porfavor,diga-medequemaneiraposso

recompensá-lo.Esteanel…”Oreitiroudodedoumaneldeesmeralda,emformadecobra,eoestendeunapalmadamão.

“Vossa Majestade tem algo a que eu atribuiria ainda maior valor”,disseHolmes.

“Bastadizeroquê.”“Esseretrato!”

“Esseretrato!”[SidneyPaget,StrandMagazine,1891]

Oreifitou-o,espantado.“Afotografia!”exclamou.“Certamente,seadeseja.”“Agradeço a Vossa Majestade. Agora acredito que o assunto está

encerrado. Tenho a honra de lhe desejar muito bom dia.” Curvou-se e,virando-sesemtomarconhecimentodamãoqueorei lheestendia,voltouameuladoparaseusaposentos.

FoiassimqueumgrandeescândaloameaçouoreinodaBoêmia,equeos melhores planos de Mr. Sherlock Holmes foram frustrados pelasagacidade de uma mulher. Ele costumava zombar da inteligência dasmulheres,masapartirdessedianuncamaisovifazê-lo.EquandofalaemIrene Adler, ou quando se refere a seu retrato, é sempre com o títulohonoríficodeamulher.

ALIGADOSCABEÇASVERMELHAS

UM DIA, NO OUTONO DO ANO PASSADO , ao fazer uma visita a meu amigo Mr.SherlockHolmes,encontrei-oentretidonumaconversacomumcavalheirode certa idade,muito gordo, rosto vermelho e uma cabeleira cor de fogo.Pedindo desculpas pela intromissão, já me retirava quando Holmes mepuxouabruptamenteparaasalaefechouaportaatrásdemim.

“Não poderia ter chegado emmelhor hora,meu caroWatson”, dissecordialmente.

“Receeiqueestivesseocupado.”“Defato,estou.Emuito.”“Nessecaso,possoesperarnaoutrasala.”“De maneira alguma. Mr. Wilson, este cavalheiro tem sido meu

assistente e colaborador emmuitos dosmeus casosmais bem-sucedidos,nãotenhodúvidasdequemeserádegrandevaliatambémnoseu.”

O gordo cavalheiro soergueu-se ligeiramente e fez-me umcumprimento de cabeça, lançando-me uma olhadela inquisitiva com seusolhinhosempapuçados.

“Acomode-se no canapé”, disse-me Holmes, voltando a refestelar-seem sua poltrona e unindo as pontas dos dedos, como era seu costumequando imerso em re lexão. “Sei,meu caroWatson, que você partilha domeugostopor tudoqueé extravagante, queescapadas convençõesedapasmaceira do dia a dia. Mostrou seu gosto por essas coisas com oentusiasmo com que se dispôs a relatar, e, se me permite dizê-lo, aembelezarumpouco,tantasdeminhaspequenasaventuras.”

“Seuscasosrealmenteforamdomaiorinteresseparamim.”“Talvez lembrequecomenteioutrodia,poucoantesdeenfrentarmos

aquele problema muito simples apresentado por Miss Mary Sutherland,que, se quisermos encontrar efeitos estranhos e combinaçõesextraordinárias,devemosprocurarnaprópriavida,quevaisempremuitomaislongedoquequalqueresforçodaimaginação.”

“Umaproposiçãoquetomeialiberdadedepôremdúvida.”

“De fato, doutor, mas terá de acabar concordando comigo, pois docontrário continuarei lhe impingindo fato sobre fato, até que sua razãodesabesobopesodelesereconheçaqueestoucerto.Poisbem,Mr. JabezWilson,aqui, teveabondadederecorreramimestamanhãe iniciarumanarrativa que promete ser das mais singulares que ouço nos últimostempos.Vocêjámeouviuobservarqueascoisasmaisestranhaseinsólitasestãomuitasvezesassociadasnãoaosmaiores,masaosmenorescrimes,eàs vezes mesmo a casos em que há margem para se duvidar se algumcrime propriamente dito foi cometido. Pelo que ouvi até agora nãome épossíveldizerseopresentecasocon iguraounãoumcrime,masocursodosacontecimentosestásemdúvidaentreosmaisincomunsdequejátivenotícia.Talvezpudessefazeragrandegentileza,Mr.Wilson,derecomeçarsua narrativa. Peço-o não apenas porque meu amigo, o Dr. Watson, nãoouviuo início,mas tambémporqueanaturezapeculiardahistóriadeixa-meansiosoporouvirdosseuslábiostodososdetalhespossíveis.Emregra,depoisdeouviruma ligeira indicaçãodocursodoseventos, soucapazdemeorientar combase nosmilhares de outros casos semelhantes quemeacorremàmemória.Napresentesituação,porém,souobrigadoaadmitir,emsãconsciência,queosfatospareceminauditos.”

Ocorpulentoclienteestufouopeito,revelandoumapontadeorgulho,epuxoudobolso internodopaletóum jornal sujo e amassado.Enquantoelepassavaosolhospelacolunadeanúncios,acabeçaespichadaeojornalalisado sobre os joelhos, dei-lhe uma boa espiada, esforçando-me pordetectar, ao estilo demeu companheiro, os indícios que seu traje ou suaaparênciapoderiamconter.

Mas minha inspeção não me revelou grande coisa. Nosso visitantetinha todas as características do comerciante britânico banal e mediano;era gordo, presunçoso e bronco. Usava calças bem largas de lã cinzaquadriculada, uma sobrecasaca preta cuja limpeza deixava a desejar,desabotoada, e um colete pardacento sobre o qual brilhava uma grossacorrenteAlbertde latão,dequependia, comoumberloque,umapeçademetalquadradae furada.Emcimadeuma cadeira, a seu lado, via-seumdesbotadosobretudomarrom,agoladeveludoamassada.Noconjunto,pormaisqueeuolhasse,nadahaviadenotávelnohomem,exceto seucabelode um ruivo chamejante e uma expressão de extrema consternação econtrariedadeestampadanorosto.

OolharargutodeSherlockHolmespercebeurapidamentedoqueeume ocupava, e, sacudindo a cabeça com um sorriso ao notarmeu exame

atento, comentou: “Além das evidências de que ele trabalhou comooperário em alguma época, cheira rapé, émaçom, esteve na China e temescritomuitoultimamente,nãoconsigodeduzirmaisnada.”

Mr. Jabez Wilson teve um sobressalto na sua cadeira; seu dedoindicadorestavanojornal,masosolhosnomeucompanheiro.

“Céus! Como icou sabendo de tudo isso, Mr. Holmes?” perguntou.“Como soube, por exemplo, que fui um trabalhador braçal? É a maisperfeitaverdade,comeceicomocarpinteirodenavio.”

“Suasmãos,meucarosenhor.Adireitaébemmaiorqueaesquerda.Trabalhoucomelaeosmúsculossãomaisdesenvolvidos.”

“Maseorapé?Eamaçonaria?”“Não insultarei sua inteligência dizendo-lhe como adivinhei isso,

especialmente porque, e na verdade contrariando as severas regras desuaordem,osenhorusaumalfinetedegravatacomarcoecompasso.”

“Ah,claro,esqueci-medisso.Maseaescrita?”“Queoutracoisapoderiaindicaresseseupunhodireitocomunsdoze

centímetros tão lustrosos e a manga esquerda puída perto do cotovelo,ondeaesfreganamesa?”

“Bem,eaChina?”“Opeixeque temtatuado logoacimadopunhodireitosópoderia ter

sidofeitonaChina.Fizumpequenoestudodastatuagensechegueimesmoa contribuir para a literatura sobre o assunto. Essa habilidade de pintarescamas de peixe de um cor-de-rosa delicado é inteiramente peculiar àChina. Quando, além disso, vejo uma moeda chinesa pendurada nacorrentedoseurelógio,aquestãosetornaaindamaissimples.”

Mr.JabezWilsondeuumagargalhada:“Vejam só! A princípio pensei que o senhor havia feito algo de

extraordinário,masvejoque,afinal,nãofoinadademais.”“Começo a achar, Watson”, disse Holmes, “que cometo um erro ao

explicar. ‘Omne ignotum promagni ico’, você sabe, eminha reputação, jámodesta, icaráarruinadaseeucontinuarsendotãofranco.Nãoconsegueencontraroanúncio,Mr.Wilson?”

“Sim,acabodeachá-lo”,respondeuele,comodedogrossoevermelhoplantadonomeiodacoluna.“Cáestá.Foicomissoquetudocomeçou.Leiaosenhormesmo,porfavor.”

Pegueiojornaldesuasmãoseli:

ÀLIGADOSCABEÇASVERMELHASGraças a um legado do falecido Ezekiah Hopkins, de Lebanon,Pensilvânia, EUA, abriu-se agora mais uma vaga que concede a ummembro da Liga o salário de quatro libras por semana por serviçospuramentenominais.Todososhomensdecabeçavermelhasadiosdecorpo e mente e com mais de 21 anos podem se candidatar.Comparecer pessoalmente segunda-feira às onze horas; procurarDuncan Ross nos escritórios da Liga em Pope’s Court, no 7, FleetStreet.

“Que diabo signi ica isto?” exclamei, depois de ler duas vezes oextraordinárioanúncio.

“Quediabosignificaisto?”[SidneyPaget,StrandMagazine,1891]

Holmes riu e remexeu-se na cadeira, como costumava fazer quandodebomhumor.“Umpouquinhoinusitado,não?”disse.“Eagora,Mr.Wilson,comece da estaca zero e conte-nos tudo a respeito do senhor, de suafamília e dos efeitos que esse anúncio teve sobre a sua sorte.Mas antes,doutor,reparequaléojornaleadata.”

“É oMorning Chronicle de 27 de abril de 1890. Exatamente doismesesatrás.”

“Muitobem.Eentão,Mr.Wilson?”

“Bem, é como lhe contei, Mr. Sherlock Holmes”, disse Jabez Wilson,enxugando a testa. “Tenho uma pequena loja de penhores em CoburgSquare,pertodaCity.Nãoéumnegóciomuitograndeenosúltimosanosvem dando apenas o necessário para eu sobreviver. Antes eu tinha doisauxiliares, mas agora mantenho só um e teria muita di iculdade em lhepagarseelenãosedispusessea trabalharpormeiosalário,no intuitodeaprenderonegócio.”

“Comosechamaessejovemtãoprestativo?”perguntouHolmes.“Chama-seVincentSpauldingenãoétãojovemassim.Di ícildizersua

idade.Eunãoconseguiriaencontrarauxiliarmaisinteligente,Mr.Holmes,esei muito bem que ele poderia estar numa situação melhor e ganhar odobrodoquepossolhepagar.Mas,a inaldecontas,seestásatisfeito,porqueeulhemeteriaideiasnacabeça?”

“Realmente, por quê? Parece ter muita sorte em conseguir umempregadopormenosdoqueopreçodemercado.Nãoéumaexperiênciacomumentreosempregadoreshojeemdia.Tenhoaimpressãodequeseuauxiliarétãonotávelquantoesseanúncio.”

“Ah, ele tem seus defeitos também”, disseMr.Wilson. “Nunca vi umsujeitoquegostetantodefotogra ia.Ficaporaíbatendoinstantâneoscomsuacâmera,quandodeveriaestaraperfeiçoandoamente,edepoisseenfiano porão como um coelho na toca para revelar seus retratos. Esse é seumaiordefeito;masnogeraléumbomtrabalhador.Nãotemvícios.”

“Elecontinuacomosenhor,suponho?”“Sim, ele e uma mocinha de catorze anos, que cozinha o trivial e

arrumaacasa.Sãoasúnicaspessoasquemoramcomigo,porquesouviúvoe não tive ilhos. Vivemos uma vidamuito pacata, os três; temos um tetosobrenossascabeçasepagamosasnossascontas;praticamente,sóisso.

“A primeira coisa que mexeu conosco foi esse anúncio. Spauldingentroupeloescritórioadentro,fazexatamenteoitosemanashoje,comestemesmojornalnamão.Disse:

“‘Sabe,Mr.Wilson,eugostariamuitodeserbemruivo.’“‘Masporquê?’perguntei.“‘Ora’, respondeu ele, ‘surgiu mais uma vaga na Liga dos Cabeças

Vermelhas.Representaumapequenafortunaparaosujeitoqueabocanhá-la, e tenho a impressão de que, como há mais vagas que candidatos, osiduciáriosnãosabemoquefazerdodinheiro.Semeucabelomudassedecor,aíestariaumacaminhajáprontaparaeumedeitar…’

“‘Mas que história é essa?’ perguntei. O senhor compreende, Mr.Holmes,souumhomemmuitocaseiroe,comomeusclientesvêmamimemlugardeeuterdesairàprocuradeles,eupassavamuitasvezessemanassem pôr o pé na rua. Assim, não sabia muito bem o que andavaacontecendoporaíeficavasempresatisfeitoemouvirnotícias.

“‘Nunca ouviu falar da Liga dos Cabeças Vermelhas?’ perguntou-meSpaulding,arregalandoosolhos.

“‘Nunca.’“‘Isso muito me espanta, pois o senhor mesmo tem condições de se

candidataraumadasvagas.’“‘Eoqueseganhacomisso?’perguntei.“‘Ah, a bagatela de umas duzentas libras por ano, mas o trabalho é

leveenãoprecisainterferirmuitonasoutrasocupaçõesdosujeito.’“Bem,é fácil imaginarqueaquilomedeixoudeorelhaempé,poisos

meusnegóciosnãovêmindolámuitobemháalgunsanoseumasduzentaslibrasextrasviriammuitoacalhar.

“‘Explique-meessahistóriatoda’,pediaSpaulding.“‘Bem’, disse ele, mostrando-me o anúncio, ‘pode ver por si mesmo

que surgiu uma vaga na Liga; aí está o endereço onde pode obter maisdetalhes. Pelo que sei, a Liga foi fundada por um milionário americano,Ezekiah Hopkins, que era muito excêntrico. Ele próprio tinha a cabeçavermelhaesentiagrandesolidariedadeportodososhomensmuitoruivos;assim, quandomorreu, descobriu-se que deixara sua enorme fortuna namão de iduciários, instruindo-os a aplicar os juros em troca de serviçosfáceisparahomensquetivessemocabelodessacor.Peloqueouvidizer,éumsalárioesplêndidopormuitopoucotrabalho.’

“‘Mas’,atalhei,‘milhõesderuivossecandidatariam.’“‘Não tantos quanto poderia pensar’, disse-me Spaulding. ‘As vagas

destinam-se apenas a londrinos maiores de idade. Esse americanocomeçoua fazer fortunaemLondresquando jovem,equeriadaralgodebom em troca à sua antiga cidade. Além disso, ouvi dizer ainda que nãoadianta a pessoa se candidatar se tiver o cabelo apenas levementeavermelhado, ou vermelho-escuro; é preciso ter uma cabeleira de umvermelho realmente vivo, chamejante, cor de fogo. Por exemplo, sequisesse se candidatar, Mr. Wilson, bastaria dar um pulo lá; mas talvezpense que não vale a pena se dar a esse trabalho por umas poucascentenasdelibras’,concluiu.

“Ora, é um fato, cavalheiros, como podem constatar por si mesmos,quemeucabeloédeumvermelhomuito carregadoevivo, epor issomepareceuque,sehouvessealgumacompetiçãonessamatéria,eutinhamaischancesdoquequalquerhomemquejamaisvira.ComoVincentSpauldingparecia tão informado sobre o assunto, achei que poderia me ser útil;assimsendo,mandeique fechassea lojaparasair imediatamentecomigo.Ávido por uma folga, ele o fez imediatamente, e partimos os dois para oendereçodadonoanúncio.

“Esperonuncaveruma cena comoaquelaoutra vez,Mr.Holmes.Donorte, sul, leste e oeste, todos os homens que tinham um leve matizavermelhadonocabelohaviammarchadosobreaCitypararesponderaoanúncio. Fleet Street estava coalhada de ruivos, e Pope’s Court maispareciaocarrinhodeumvendedorde laranjas.Eunãofazia ideiadequehouvesse no país inteiro tantos quanto os reunidos ali por aquele únicoanúncio. Tinham o cabelo de todas as tonalidades de vermelho… palha,limão, laranja, tijolo,setter irlandês, ígado, barro. Mas, como disseraSpaulding, não erammuitos os que tinham cabelo realmente cor de fogo.Quando vi tanta gente esperando, quis desistir, desencorajado. MasSpaulding não admitiu sequer ouvir falar nisso. Nem imagino comoconseguiu,maseletantoempurrou,puxouedeuestocadas,queconseguiume fazer atravessar aquelamultidão e subir os degraus que levavam aoescritório.Havia uma dupla torrente na escada, a dos que subiam cheiosdeesperançaseadosquevoltavamdesiludidos;mas forçamospassagemomelhorquepudemoselogonosvimosnoescritório.”

“Suaexperiência foimuito interessante”, comentouHolmesquandooseuclientefezumapausaerefrescouamemóriacomumaenormepitadaderapé.“Porfavor,retomesuainteressantíssimanarrativa.”

“No escritório não havia nada além de umas cadeiras de madeira eumamesade tábuasdepinhoatrásdaqual se sentavaumhomembaixocomumacabeleiraaindamaisvermelhaqueaminha.Apósdizeralgumaspalavras a cada candidato que se apresentava, ele sempre conseguiaencontrarnelesalgumdefeitoqueosdesclassi icava.A inal,conseguirumavaga não parecia assim tão fácil. Quando chegou a nossa vez, porém, ohomenzinhomostrou-semaissimpáticocomigodoque foracomqualquerdos outros candidatos e depois fechou a porta para poder nos falar emparticular.

“‘EsteéMr.JabezWilson’,dissemeuauxiliar,‘eleestápostulandoumavaganaLiga.’

“‘E temcondiçõesadmiráveispara tal’, respondeuooutro. ‘Preenchetodososrequisitos.Nãomelembrodetervistoalgotãoformidável.’

“Recuou um passo, inclinou a cabeça para o lado e itoumeu cabeloaté me deixar muito embaraçado. De repente deu um salto à frente,apertou-meamãoecongratulou-mecalorosamentepelomeusucesso.

“‘Seria uma injustiça hesitar’, disse ele. ‘Certamente me perdoará,porém,portomarumaprecauçãoóbvia.’Comessaspalavras,agarroumeucabelo com as duasmãos e puxou até eu gritar de dor. ‘Há lágrimas nosseusolhos’,disseaomesoltar. ‘Vejoque tudoestácomodeveser.Temosde ter cuidado, porque fomos enganados duas vezes por perucas e umaportintura.Eupoderialhescontarhistóriassobreceradesapateiroqueosdeixariamdesgostososdanaturezahumana.’

“Foiàjanelaegritouaplenospulmõesqueavagaestavapreenchida.Ummurmúriodedecepçãosubiuládebaixo,eoscandidatosdispersaram-se em diferentes direções até não restar mais uma cabeça vermelha àvista,salvoaminhaeadogerente.”

“‘Meu nome é Duncan Ross’, disse ele, ‘sou um dos bene iciários dofundolegadopornossonobrebenfeitor.Écasado,Mr.Wilson?Temfilhos?’

“Respondiquenão.“Seurostotransfigurou-seimediatamente.“‘Meu Deus!’ disse gravemente. ‘Isso émuito sério! Lamento ouvi-lo

dizer isso. O fundo destina-se, é claro, tanto à manutenção dos cabeçasvermelhas quanto à sua propagação e difusão. É realmente uma lástimaquesejasolteiro.’

“Fiqueimuitodecepcionado,Mr.Holmes,penseique,a inaldecontas,não conseguiria a vaga; mas, depois de re letir alguns minutos, eledeclarouqueestavatudocerto.

“‘Se fosse outra pessoa’, disse ele, ‘a objeção poderia ser fatal, masdevemos ser um poucomais lexíveis em favor de um homem com umacabeleiracomoasua.Quandopoderáassumirsuasnovasfunções?’

“‘Bem,éumpoucocomplicado,poisjátenhoumnegócio’,respondi.“‘Ora, não se preocupe com isso, Mr. Wilson!’ exclamou Vincent

Spaulding.‘Possotomarcontadalojaparaosenhor.’“‘Qualseriaohorário?’perguntei.“‘Dezàsduas.’“O maior movimento numa loja de penhores se dá à tardinha, Mr.

Holmes, sobretudoàsquintase sextasànoite, exatamentenavésperadodia do pagamento. Por isso me seria muito conveniente faturar umpouquinhoduranteasmanhãs.Alémdisso,eusabiaquemeuauxiliareraumaboapessoaeresolveriaosproblemasquesurgissem.

“‘Paramimissoseriamuitoconveniente’,disseeu.‘Eopagamento?’“‘Quatrolibrasporsemana.’“‘Equantoaotrabalho?’“‘Épuramentenominal.’“‘Oquequerdizercompuramentenominal?’“‘Bem, terá de permanecer no escritório, ou pelo menos no prédio,

durantetodootempo.Sesair,perdeocargoparasempre.Otestamentoémuitoclaroaesserespeito.Estaráinfringindoascondiçõessearredaropédoescritórioduranteesseperíodo.’

“‘São apenas quatro horas por dia e eu não pensaria em sair’,respondi.

“‘Nenhuma desculpa será aceita’, explicou Mr. Duncan Ross. ‘Nemdoença, nemnegócios, nemqualquer outra coisa.Ou icano escritório ouvaiparaoolhodarua.’

“‘Eotrabalho?’“‘É copiar aEnciclopédia Britânica. Há um exemplar do primeiro

volumenaquelearmário.O senhorprovidencia suaprópria tinta,penasemata-borrão; nós fornecemos estamesa e esta cadeira. Está pronto paracomeçaramanhã?’

“‘Semdúvida.’“‘Entãoadeus,Mr. JabezWilson,epermitaqueeuoparabenizemais

umavezpeloimportantecargoqueteveasortedeconquistar.’“Conduziu-me à porta com mesuras, e voltei para casa com meu

auxiliar,semsaberoquedizeroufazer,nãocabendoemmimdecontentecomaminhasorte.

“Bem, re leti sobre a questão o dia inteiro, e à tardinha vi-menovamentedesalentado;convencera-meporcompletodeque todaaquelahistóriadeviaserumagrandemisti icaçãooufraude,emboranãopudesseatinar com seu objetivo. Parecia inteiramente inacreditável que alguémpudesse fazer um testamento como aquele, ou que se pagasse tal somapara um serviço tão simples quanto copiar aEnciclopédia Britânica.VincentSpaulding fezoquepôdeparameanimar,masàhoradedormir

euestavadecididoacairforadetodaaquelahistória.Pelamanhã,contudo,decidiquenãocustavadarumaolhadanaquilo;assim,depoisdecomprarum vidro de tinta, uma pena e sete folhas de papel almaço, parti paraPope’sCourt.

“Pois bem, tive a grata surpresa e satisfação de ver que tudo estavatão certo quanto possível. A mesa estava arrumada para mim, e Mr.Duncan Ross estava lá para ver se eu realmente iniciava o trabalho.Mostrou-mequedevia começarpela letraAe saiu;vezporoutra,porém,apareciaparaversetudocorriabem.Àsduashorasdesejou-meboatarde,cumprimentou-me pelo volume de trabalho feito e fechou a porta doescritórioquandosaí.

“Ascoisascontinuaramassimdiaapósdia,Mr.Holmes,enosábadoogerenteentroueentregou-mequatrosoberanosdeouropelotrabalhodasemana.Nasemanaseguinte,amesmacoisa.Euchegavatodasasmanhãsàs dez horas e saía todas as tardes às duas. Pouco a pouco,Mr. DuncanRoss começou a aparecer apenas uma vez pela manhã; depois de certotempopassouanãoaparecermais.Mesmoassim,éclaro,nuncameatreviadeixarasalaumsóinstante,poisnãosabiaaocertoquandoelepoderiavir e era um emprego tão bom,me convinha tanto, que não correria pornadaoriscodeperdê-lo.

“Passaram-se oito semanas dessa mesma maneira; eu já escreverasobre Abades, Arcos, Armadura, Arquitetura e Ática, e esperava chegardentro em breve, diligentemente, à letra B. Tinha alguma despesa compapel almaço, e já enchera quase uma prateleira com meus escritos. Eentão,derepente,todaaquelahistóriaacabou.”

“Acabou?”“Sim,senhor.Esónestamanhã.Fuiparaotrabalhocomodecostume

àsdezhoras,masdeicomaportatrancada;haviaumpequenoquadradode cartolina pregado nela comumpercevejo. Aqui está, o senhormesmopodeler.”

Estendeuumpedaçodecartolinabrancadotamanhodeumafolhadepapeldecarta.Nele,lia-se:

ALIGADOSCABEÇASVERMELHAS

FOI

DISSOLVIDA

9deoutubrode1890

SherlockHolmeseeuexaminamosessebreveaviso,eacaradesoladaatrás dele, até que o aspecto cômico do caso suplantou por completoqualqueroutraconsideraçãoeexplodimosambosnumagargalhada.

“Não vejo onde está a graça”, exclamou nosso cliente, enrubescendoatéasraízesdeseuscabelos lamejantes.“Seossenhoresnãopodemfazermelhordoquerirdemim,vou-meembora.”

“Deicomaportatrancada.”[SidneyPaget,StrandMagazine,1891]

“Não, não”, protestou Holmes, empurrando-o de volta na cadeira deque começara a se erguer. “Eu realmente não perderia o seu caso pornada neste mundo. Ele é revigorantemente inusitado. Mas é também,desculpe-me dizê-lo, um pouquinho engraçado. Por favor, que medidastomouaoencontrarocartãonaporta?”

“Fiqueiatordoado.Nãosabiaoquefazer.Fuiaosescritóriosvizinhos,mas ninguém parecia saber coisa alguma sobre o acontecido. Depoisprocureiosenhorio,umguarda-livrosquemoranotérreo,epergunteisepodiamedizeroqueforafeitodaLigadosCabeçasVermelhas.Respondeuque nunca ouvira falar nela. Perguntei-lhe então quem era Mr. Duncan

Ross.Respondeu-mequeonomeeranovoparaele.“‘Mas’,insisti,‘éocavalheirodono4.’“‘Ah,aqueleruivo?’“‘Elemesmo.’“‘Oh’, respondeu. ‘Chama-se William Morris. É advogado e estava

usandominha sala temporariamente até seu novo escritório icar pronto.Mudou-seontem.’

“‘Ondeeupoderiaencontrá-lo?’“‘Ora, em seu novo escritório. Ele me deu o endereço. Cá está: King

EdwardStreetno17,pertodacatedraldeSt.Paul.’“Partipara lá,Mr.Holmes,mas,quandochegueiaesseendereço,era

uma fábrica de joelheiras e ninguém ali jamais ouvira falar de WilliamMorrisnemdeDuncanRoss.”

“Quefezdepois?”perguntouHolmes.“Voltei para casa, na Saxe-Coburg Square, e aconselhei-me commeu

auxiliar.Maselesópôdemedizerque,seeuesperasse,receberiaalgumacomunicação pelo correio.Mas isso nãome deixou satisfeito,Mr.Holmes;eunãoqueriaperderumempregocomoaquelesemlutar;por isso,comojáouvirafalarqueosenhortemabondadededarconselhosagentepobrequedelesprecisa,vimimediatamenteàsuaprocura.”

“Fezmuito bem”, disseHolmes. “Seu caso é extremamente notável eterei o maior prazer em tratar dele. Pelo que me contou, parece-mepossívelquedeledependamquestõesmuitomaisgravesdoquesepensaàprimeiravista.”

“Bastantegraves!”disseJabezWilson.“A inal,perdiquatrolibrasporsemana.”

“No que lhe diz respeito pessoalmente”, observou Holmes, “não meparece que tenha qualquer motivo de queixa contra essa extraordináriaLiga.Aocontrário,está,peloquesei,cercadetrinta librasmaisrico,paranão falar dos minuciosos conhecimentos que adquiriu sobre todos osassuntos que entram sob a letra A. Eles não o izeram perder coisaalguma.”

“Não.Mas quero descobrir que negócio é esse, quem são eles e queobjetivo tinhamcomessabrincadeira… se éque eraumabrincadeira…àminha custa. A piada saiu bem cara para eles, custou-lhes trinta e duaslibras.

“Vamos nos empenhar em esclarecer esses aspectos para o senhor.Mas,antesdemaisnada,umaouduasperguntas,Mr.Wilson.Esseauxiliarquechamousuaatençãoparaoanúncio,háquanto tempoele trabalhavacomosenhor?”

“Faziacercadeummêsnaépoca.”“Comooencontrou?”“Respondeuaumanúncio.”“Foioúnicocandidato?”“Não,houveunsdez.”“Porqueoescolheu?”“Porqueerajeitosoemesairiabarato.”“Pormetadedosalário,naverdade.”“Certo.”“Comoéele,esseVincentSpaulding?”“Baixo, atarracado,muito esperto, sembarbanembigode, embora já

tenhaunstrintaanos.Temumamanchabrancadeácidonatesta.”Holmes pareceu alvoroçado em sua cadeira. “É o que pensei”, disse.

“Notouporacasosetemasorelhasfuradasparausarbrincos?”“Sim.Disse-mequeumciganoasfuraraquandoeracriança.”“Hum!” resmungou Holmes, recostando-se na poltrona, imerso em

profundareflexão.“Elecontinuacomosenhor?”“Sim;estivecomelehápouco.”“Sualojafoibem-cuidadadurantesuaausência?”“Não tenho do que me queixar, senhor. Nunca houve mesmo muito

movimentopelamanhã.”“É o bastante, Mr.Wilson. Terei a satisfação de lhe dar um parecer

sobreoassuntoemumoudoisdias.Hojeésábado;esperoquepossamoschegar a uma conclusão na segunda-feira.” “Bem,Watson”, disse Holmesassimquenossovisitantesaíra,“quelheparecetudoisso?”

“Nãoentendinada”,respondifrancamente.“Quecasomisterioso!”“Em regra”, disse Holmes, “quanto mais insólita uma coisa, menos

misteriosasereveladepois.Essescrimesbanais,semnadaqueosdistinga,é que são osmais intrigantes, assim como um rosto comum é o demaisdifícilidentificação.Mastenhodeagirsemdemoranestecaso.”

“Quevaifazer?”

“Fumar.Esteéumproblemaparatrêscachimbos,epeço-lhequenãofalecomigodurantecinquentaminutos.”

Sentou-se com as pernas encolhidas em sua poltrona, os joelhosmagroserguidosparaseunarizdefalcão,e lá icou,osolhosfechadoseocachimbodebarropretoprojetando-secomoobicodeumaaveestranha.Eu havia chegado à conclusão de que caíra no sono, e na verdade eumesmoestavacochilando,quandode repenteelepuloudoassentocomogesto de quem acaba de tomar uma decisão e pôs o cachimbo sobre oaparadordalareira.

“Sarasate toca no St. James’s Hall esta tarde”, anunciou. “Que acha,Watson?Seráqueseuspacientespoderiamlheconcederalgumashoras?”

“Não tenho nada para fazer hoje. Minha clientela nunca é muitoabsorvente.”

“Então ponha o chapéu e vamos. Passarei primeiro pela City epodemoscomeralgumacoisaa caminho.Vejoquehánoprogramamuitamúsica alemã, que me agrada mais do que a italiana ou a francesa. Éintrospectiva,equerointrospecção.Vamos!”

FomosdemetrôatéAldersgate, eumabreve caminhada levou-nosaSaxe-Coburg Square, cenário da singular história que ouvíramos pelamanhã.Eraumlugarzinhoacanhado,dearpretensioso:quatro ileirasdeencardidas casas de tijolos de dois andares davam para um pequenoterrenogradeadoemqueumarelvadeervasdaninhasealgumasmoitasde loureiros-de-jardim murchos lutavam tenazmente contra umaatmosfera enfumaçada e desfavorável. Numa casa de esquina, três bolasdouradas e uma tabuleta marrom com o nome “JabezWilson” em letrasbrancas indicavamo localemquenossocliente ruivo fazia seusnegócios.SherlockHolmesparoudiantedacasae,acabeçainclinadaparaolado,osolhos brilhando entre as pálpebras semicerradas, examinou-aminuciosamente. Depois caminhou devagar pela rua, voltou de novo àesquina, sempre itandoascasasatentamente.Por im, retornouà lojadepenhores e, tendo dado duas ou três vigorosas bengaladas na calçada,dirigiu-se à porta e bateu. Foi imediatamente atendido por um rapaz deboaaparência,escanhoado,queoconvidouaentrar.

“Foiimediatamenteatendido.”[SidneyPaget,StrandMagazine,1891]

“Muitoobrigado.DesejavaapenasperguntarcomosevaidaquiparaoStrand.”

“Terceira à direita, quarta à esquerda”, respondeu prontamente oauxiliar,fechandoaporta.

“Sujeito esperto”, comentou Holmes ao nos afastarmos. “Na minhaopinião, é o quarto homem mais esperto de Londres; quanto à ousadia,tenhominhas suspeitas de que ocupa o terceiro lugar. Já ouvi falar deleantes.”

“É evidente”, observei, “que o auxiliar de Mr. Wilson tem muitaimportâncianessemistériodaLigadosCabeçasVermelhas.Tenhocertezadequevocêsópediuainformaçãosobreocaminhoparapodervê-lo.”

“Nãoaele.”“Paraveroquê,então?”“Osjoelhosdesuascalças.”“Eoqueviu?”“Oqueesperava.”“Porquebateunacalçada?”“Meu caro doutor, este é um momento de observação, não de

conversa. Somos espiões em território inimigo. Já sabemos alguma coisasobreaSaxe-CoburgSquare.Exploremosagoraoterrenoatrásdela.”

AruaemquenosencontramosaodobraraesquinadaretiradaSaxe-CoburgSquare fazia comelaumcontraste tãograndequantoa frentedeumapinturacomoverso.EraumadasprincipaisartériasqueconduziamotráfegodaCityparaonorteeooeste.Aspistasestavamcheiascomo luxoimenso de veículos nas duas direções, enquanto as calçadas estavampretas com o enxame apressado de pedestres. Era di ícil imaginar,olhando-se para a linha de belas lojas e imponentes sedes de empresas,queelasrealmentecon inavam,dooutrolado,comapracinhasemgraçaepachorrentaqueacabáramosdedeixar.

“Deixe-mever”,disseHolmes,parandonaesquinae contemplandoaileira de prédios. “Gostaria de memorizar a ordem dos imóveis aqui.Cultivo ohobby de ter um conhecimento preciso de Londres. Ali estáMortimer’s,atabacaria;alojinhadejornais;aagênciadeCoburgdoCity&Suburban Bank; o Restaurante Vegetariano; e o depósito da McFarlane,fabricantedecarruagens.Issonoslevadiretamenteaooutroquarteirão.Eagoraquenossotrabalhoestáfeito,doutor,éhoradenosdivertirmosumpouco.Umsanduíche,umaxícaradecafé,edepoisdiretoparaoreinodoviolino, onde tudo é suavidade, delicadeza e harmonia, e não há nenhumclienteruivoparanosexasperarcomsuascharadas.”

Meu amigo era ummúsico entusiasta, sendo elemesmo não apenasum executante capaz como um compositor de méritos pouco comuns.Passou a tarde sentado bem perto do palco, na mais perfeita felicidade,movendo os dedos longos e inos ao compasso da música, enquanto umdoce sorriso lhe pairava nos lábios, e seus olhos lânguidos, sonhadores,eramtãodiferentesquantosepodeimaginardosdeHolmes,ocãodecaça,Holmes, o agente criminal implacável, arguto e certeiro. Em seu carátersingular, a natureza dual a irmava-se alternadamente; sua exatidão eastúcia extremas representavam, como tantas vezes me pareceu, umareação ao espírito poético e contemplativo que ocasionalmentepredominavanele.Aoscilaçãodesuanaturezalevava-odoextremolangorà energia devoradora; e, como eu bem sabia, ele nunca era tão temívelcomodepoisdepassardias a io refestelado em suapoltrona, entre suasimprovisaçõeseediçõesemgótico.Eraentãoqueaânsiada caça tomavacontadelesubitamenteesuabrilhantecapacidadederaciocínioelevava-seao nível da intuição, fazendo por im comque os que não conheciam seumétodo olhassem-no de esguelha, como a um homem cujo conhecimento

não se equiparava aodo comumdosmortais.Naquela tarde, ao vê-lo tãoenlevado pela música em St. James’s Hall, senti que maus momentospoderiamestarchegandoparaaquelesquesearmaraparacaçar.

“Comcertezaquervoltarparacasa,doutor”,observouquandosaímos.“Sim,nãoseriamau.”“Quanto a mim, tenho providências a tomar que me ocuparão por

algumashoras.EssenegóciodeCoburgSquareégrave.”“Graveporquê?”“Umcrimeconsiderávelestásendoarquitetado.Tenhotodasasrazões

para acreditar que teremos tempo de evitá-lo. Mas o fato de hoje sersábadocomplicabastanteascoisas.Precisareidasuaajudaestanoite.”

“Aquehoras?”“Bastachegaràsdez.”“EstareiemBakerStreetàsdez.”“Ótimo. E, ouça, doutor, pode haver algum pequeno perigo, portanto

tenhaabondadedepôrseurevólverdoExércitonobolso.”Fezumaceno,girou sobre os calcanhares e desapareceu num instante no meio damultidão.

Acredito que não sou mais obtuso que a média das pessoas, massentia-mesempreoprimidoporumasensaçãodeminhaprópriaestupideznaminharelaçãocomSherlockHolmes.Naquelecasoeuouviraoqueeleouvira, escutara o que ele escutara, e no entanto era evidente por suaspalavrasqueelepercebiaclaramentenãosóoqueaconteceracomooqueestavaprestesaacontecer,enquantoparamimtodaaquestãocontinuavaconfusa e absurda. No carro, a caminho de minha casa, em Kensington,re leti sobre tudo aquilo, desde a extraordinária história do copista ruivodaEnciclopédiaatéavisitaaSaxe-CoburgSquareeaspalavrasagourentascomqueelesedespedirademim.Queseriaessaexpediçãonoturnaeporqueeudeviairarmado?Aondeiríamoseoquefaríamos?Eutinhaapista,dada por Holmes, de que o auxiliar escanhoado do penhorista era umhomemtemível…umhomemcapazdeumjogoperigoso.Tenteiencaixaraspeças do quebra-cabeça, mas desisti, desanimado, e pus o problema deladoatéqueanoitetrouxesseumaexplicação.

Faltava um quarto para as nove quando saí de casa, atravessei oParque e segui pela Oxford Street até Baker Street. Havia dois hansomsparados à porta e, ao cruzar o vestíbulo, ouvi vozes vindo de cima.Entrando na sala de Holmes, encontrei-o em animada conversa com dois

homens,umdosquaisreconhecicomoPeterJones,oagentedapolícia,eooutro um homem alto, magro, de rosto triste, com um chapéu muitobrilhanteeumasobrecasacaopressivamenterespeitável.

“Ah! Nosso grupo está completo”, exclamou Holmes, abotoando ojaquetão e tirando do cabide seu pesado chicote de montaria. “Watson,creio que conhece Mr. Jones, da Scotland Yard, não? Permita-meapresentar-lhe Mr. Merryweather, que será nosso companheiro naaventuradestanoite.”

“Comovê,doutor,estamoscaçandoemduplasnovamente”,comentouJones com seu ar pomposo. “Nosso amigo aqui é umhomemmaravilhosopara iniciar uma caçada. Só precisa de um velho cão para rastrear apresa.”

“Espero que nossa caçada não acabe dando emnada”, observouMr.Merryweather,desanimado.

“Mr.Holmes é dignode considerável con iança”, disse o policial, comarrogância. “Tem lá seus metodozinhos que, perdoe-me dizê-lo, são umpouquinho teóricose fantásticosdemais,masháneleos ingredientesquefazem um detetive. Não é exagero dizer que uma ou duas vezes, comonaquelecasodoassassinatodosSholtoedotesourodeAgra,chegoumaispertodaverdadedoqueapolícia.”

“Ah, se o senhor diz, está certo”, disse o estranho com deferência.“Apesar disso, confesso que sinto falta domeu rubber. É a primeira noitedesábado,em27anos,quenãojogoomeurubber.”

“Creio que descobrirá, Mr. Merryweather”, disse Sherlock Holmes,“que jogará esta noite pelomaior lance sua vida, e que o jogo serámaisempolgante.Paraosenhorestarãoemjogocercadetrintamillibras;paravocê,Jones,ohomemquedesejaencontrar.”

“JohnClay, assassino, ladrão, arrombador e falsário. Ele é jovem,Mr.Merryweather, mas está no topo da carreira, e é o criminoso que maisqueroalgemaremtodaLondres.Éumhomemnotável,esseJohnClay.Seuavô era um duque real e ele próprio frequentou Eton e Oxford. Seucérebroétãohábilquantoseusdedos,e,emboravoltaemeiaencontremosvestígios seus,nunca conseguimospegá-lo.PenetranumacasanaEscócianuma semana e na semana seguinte está levantando dinheiro paraconstruirumorfanatonaCornualha.Estounasuacolaháanoseatéhojenuncapusosolhosnele.”

“Esperopoderteroprazerdeapresentá-loavocêestanoite.Também

tiveumoudoisprobleminhascomMr.JohnClayeconcordocomvocêqueele está no topo da carreira. Mas já passa das dez, é hora de ir. Se ossenhores tomarem o primeiro hansom, Watson e eu os seguiremos nosegundo.”

SherlockHolmesnãosemostroumuitocomunicativoduranteo longopercurso; icou recostado no banco, cantarolando as melodias queouvíramos à tarde. Passamos por um interminável labirinto de ruasiluminadasporlampiõesdegásatéchegaraFarringdonStreet.

“Agora estamos bem perto”, observou meu amigo. “Esse sujeito,Merryweather,édiretordeumbancoeteminteressepessoalnaquestão.Achei que seria bom termos Jones conosco também. Não é mau sujeito,embora seja um rematado imbecil em sua pro issão. Tem uma virtudeindiscutível: é corajoso como um buldogue e tenaz como uma lagostaquandodeitaasgarrasemalguém.Cáestamos;elesestãoànossaespera.”

“Mr.Merryweatherparouparaacenderumalanterna.”

[SidneyPaget,StrandMagazine,1891]

Chegáramosàmesma ruamovimentada emquehavíamos estadode

manhã.Nossoscarros foramdispensadose, seguindoaorientaçãodeMr.Merryweather,atravessamosumapassagemestreitaeentramosporumaportalateralqueeleabriuparanós.Ládentrohaviaumpequenocorredorque terminavanumportãode ferromaciço,que também foiaberto.Davaparaumlançodedegrausdepedraquedesciamemcaracoleterminavamem outro portão colossal. Mr. Merryweather parou para acender umalanterna e conduziu-nos por uma passagem escura, cheirando a terra, e,apósabrirumaterceiraporta,introduziu-nosnumenormeporão,oucaixa-forte,emquecaixotesegrandescaixasseespalhavamportodaparte.

“Os senhores não são muito vulneráveis do alto”, comentou Holmes,levantandoalanternaeolhandoàsuavolta.

“Nemdebaixo”,disseMr.Merryweather,batendoabengalasobreaslajes do piso. “Meu Deus! Parece completamente oco!” exclamou,levantandoosolhos,espantado.

“Devo realmente lhepedirque sejaumpoucomenos ruidoso!”disseHolmes severamente. “O senhor já pôs em perigo todo o êxito de nossaexpedição. Seriamuito pedir-lhe que tenha a bondade de se sentar numdessescaixotesenãointerferir?”

O solene Mr. Merryweather empoleirou-se num caixote com umaexpressão muito indignada no rosto, enquanto Holmes ajoelhava-se nochão e, com a lanterna e uma lente de aumento, começava a examinarminuciosamente as fendas entre as lajes. Poucos segundos foram obastanteparasatisfazê-lo,poisselevantoudeumsaltoeen ioualentenobolso.

“Temos pelo menos uma hora pela frente”, observou, “porque elesdi icilmente poderão dar qualquer passo antes que o nosso bompenhoristaestejacomcertezanacama.Apartirdeentãonãoperderãoumminuto, pois, quanto mais cedo izerem seu trabalho, mais tempo terãopara fugir. Estamos agora, doutor… como sem dúvida já adivinhou… nocofre-fortedaagênciadaCitydeumdosprincipaisbancosdeLondres.Mr.Merryweather, que é o presidente do conselho diretor, lhe explicará quehá razões para que os mais ousados criminosos de Londres tenhamconsiderávelinteresseporesteporãonestemomento.”

“É o nosso ouro francês”, murmurou o diretor. “Recebemos váriosavisosdequepoderiamtentarroubá-lo.”

“Oourofrancêsdossenhores?”“Isso mesmo. Há alguns meses, tivemos oportunidade de reforçar

nossas reservas e, para esse propósito, tomamos emprestados trinta milnapoleões do Banco da França. Transpirou que não tivemos ocasião dedesencaixotarodinheiro,equeelecontinuaemnossoporão.Ocaixoteemqueestousentadocontémdoismilnapoleõesempacotadosentrecamadasdelâminasdechumbo.Nossareservadebarrasdeouroénestemomentomuito maior que a mantida usualmente numa única agência, e isso teminspiradoreceiosanossosdiretores.”

“Receios plenamente justi icados”, observou Holmes. “Mas chegou omomentodeprepararaexecuçãodenossospequenosplanos.Esperoquedentro de uma hora esteja tudo concluído. Enquanto isso, Mr.Merryweather,temosdefecharoobturadordaquelalanterna.”

“Eficarnoescuro?”“Lamento, senhor. Trouxe um baralho no bolso; pensei que, como

estaríamos numapartiecarrée,poderia,a inaldecontas, terasuapartidaderubber.Mas vejo que os preparativos do inimigo estão tão adiantadosquenãopodemosnosarriscaraacendernenhumaluz.Devemosescolhernossas posições imediatamente. São homens ousados e, embora ostenhamos posto em desvantagem, podem nos fazer algum mal se nãotivermoscuidado.Ficareiatrásdestecaixoteeossenhoresseesconderãoatrás daqueles. Quando eu jogar a luz da lanterna sobre eles, fechem ocerco rapidamente. Se eles atirarem, Watson, revide e abata-os sempiedade.”

Pusmeurevólver,engatilhado,sobreacaixademadeiraatrásdaqualestava agachado.Holmespuxouoobturadorda lanterna enosdeixounobreu… uma escuridão tão completa como eu nunca experimentara antes.Restava o cheiro de metal quente para nos assegurar de que a luzcontinuava ali, pronta a iluminar instantaneamente. Para mim, nonervosismo extremo que a expectativa provocava, havia algo dedeprimenteeesmagadornaquelaescuridão súbita,noar frioeúmidodacaixa-forte.

“Eles só têm uma saída”, murmurou Holmes. “É voltar para Saxe-CoburgSquarepassandopelacasa.Fezmesmooquelhepedi,Jones?”

“Tenhouminspetoredoisagentesesperandonaportadafrente.”“Então fechamos todas as saídas. Agora, devemos icar em silêncio e

esperar.”Como aquele tempo pareceu longo! Mais tarde, comparando

anotações, vi que não passou de uma hora e um quarto, mas minha

impressãoeraqueanoitedeviaestarquaseterminada,queodiajáraiavaláemcima.Minhaspernasebraçosestavamcansadoseduros,porqueeunãome atrevia amudar de posição; enquanto isso,meus nervos haviamchegado ao auge da tensão, e minha audição estava tão aguçada que eupodia não só ouvir a suave respiração de meus companheiros, comodistinguir a inspiração mais pesada e profunda do corpulento Jones danota inaesuspirantedodiretordobanco.Deondeestava,eupodiaverochão,alémdacaixa;derepentemeusolhoscaptaramumlampejo.

A princípio não passou de uma pálida centelha no pavimento depedra.Depoiselasealongouatésetransformarnumariscaamarela,eemseguida,semqualqueradvertênciaousom,abriu-seumafendaeapareceuuma mão, uma mão branca, quase feminina, que tateou no centro dapequenaáreade luz.Porumminutooumais, amãoprojetou-sedo chão,contorcendo os dedos. Logo em seguida sumiu, tão rapidamente comosurgira,etudomergulhoudenovodaescuridão,excetoporaquelaúnicaepálidacentelha,quemarcavaumafissuraentreaslajes.

O desaparecimento da mão, porém, foi apenas momentâneo. Com osomdealgoquesedespedaça,rasga,lajesbrancasgiraramparaumlado,abrindoumburacoquadradopeloqual jorrou a luzdeuma lanterna.Naborda desse buraco despontou, nitidamente, um rosto de rapazola, quelançou um olhar em torno de si e, em seguida, asmãos de um lado e deoutrodaabertura,ergueu-seatéapoiarnabeiradaosombros,acinturaepor imum joelho.Dentrodemais um instante, o sujeito estavadepé aoladodoburaco,puxandopara juntode siumcompanheiro, ágil comoele,derostomuitopálidoecomumabastacabeleiradeumvermelhovivo.

“Tudolimpo”,sussurrou.“Estácomatalhadeiraeossacos?MeuDeus!Pule,Archie,pulequeestoufrito!”

SherlockHolmeshaviasaltadoeagarradoo intrusopelocolarinho.Ooutro mergulhou buraco abaixo, e ouvi um som de pano se rasgandoquando Jones lhe agarrou a roupa.A luz incidiuno canodeum revólver,masochicotedemontariadeHolmesdesceusobreopunhodohomemeapistolatiniusobreochãodepedra.

“Não adianta, JohnClay”, disseHolmes afavelmente. “Vocênão temamenorchance.”

“Estou vendo”, respondeu o outro com suprema serenidade. “Creioqueomeucamaradase safou, emboravejaquevocês lhearrancaramasabasdopaletó.”

“Nãoadianta,JohnClay.”[SidneyPaget,StrandMagazine,1891]72

“Hátrêshomensàesperadelenaporta”,disseHolmes.“Ah, verdade? Parece que você fez um serviço completo. Devo

cumprimentá-lo.”“Eu também lhe dou os parabéns”, respondeu Holmes. “A ideia dos

ruivosfoimuitooriginaleeficaz.”“Você verá seu camarada já, já”, disse Jones. “Ele se arrasta por

buracosmaisrápidoqueeu.Agora,quietoenquantofechoasalgemas.”“Peço que nãome encoste essas suasmãos imundas”, disse o preso

quando as algemas se fecharam sobre os seuspunhos. “Talveznão saibaque corre sangue real nas minhas veias. Tenha a bondade, também, dedizer‘senhor’e‘porfavor’aosedirigiramim.”

“Como queira”, disse Jones, encarando-o e soltando uma risadinha.“Bem, poderia Vossa Alteza ter a bondade de subir a escada para quepossamostomarocarroqueoconduziráàdelegacia?”

“Assimémelhor”,disseJohnClaytranquilamente.Após fazer uma profunda reverência para nós três, retirou-se com

todaacalmasobaguardadodetetive.“Na verdade, Mr. Holmes”, disseMr. Merryweather quando saíamos

do porão atrás dele. “Não sei como o banco poderia lhe agradecer ou

remunerar seus serviços. Não há dúvida de que descobriu e frustrou demaneiracabalumadastentativasmaisresolutasdeassaltarumbancocomquejamaisdepareiemminhaexperiência.”

“Eumesmo tinha uma ou duas continhas para acertar comMr. JohnClay”,respondeuHolmes.“Tivealgumaspequenasdespesascomestecaso,e espero que o banco me reembolse; fora isso, porém, sinto-meamplamente recompensado por uma experiência singular sob muitosaspectosetambémporterouvidoaextraordinárianarrativasobreaLigadosCabeçasVermelhas.”

“Como vê, Watson”, ele explicou nas primeiras horas da manhã,quando tomávamos um uísque com soda em Baker Street, “eraperfeitamenteclaro,desdeoinício,queaúnica inalidadepossíveldaquelahistória fantásticadaLigaedacópiadaEnciclopédia era tirardocaminhonosso não muito brilhante penhorista durante certo número de horastodos os dias. Foi umamanobra curiosa,mas de fato seria di ícil sugerirumamelhor.OmétodofoisemdúvidasugeridoàmenteengenhosadeClaypelacordocabelodeseucúmplice.Asquatrolibrassemanaisforamaiscadestinada a atrair o penhorista, e que signi icava isso para eles, queestavam jogando por milhares? Publicam o anúncio, um dos escroquesarranja um escritório temporário, o outro incita o penhorista a secandidatar,eosdoisconseguemasseguraraausênciadeledurante todasas manhãs da semana. Desde o instante em que ouvi que o auxiliaraceitara trabalhar pormetade do salário, pareceu-me evidente que tinhaummotivoforteparaquereroemprego.”

“Mascomoconseguiuadivinharqualeraessemotivo?”“Sehouvesseumamulherna casa, eu teria suspeitadodeumvulgar

casodeamorclandestino.Mas issoestava foradecogitação.OnegóciodeWilsonerapequeno,enãohavianadaemsuacasaquepudesse justi icarpreparativos tão complicados e os gastos que estavam fazendo. Devia,portanto,seralgumacoisaforadacasa.Quepoderiaser?Penseinapaixãodo auxiliar por fotogra ia e em sua mania de desaparecer no porão. Oporão! Ali estava a ponta dessa meada embaraçada. Conduzi entãoinvestigações sobre esse misterioso auxiliar e descobri que tinha pelafrente um dos mais frios e ousados criminosos de Londres. Ele estavafazendo alguma coisa no porão… alguma coisa que exigia muitas horas,mesesa io.Quepoderiaser?Nãoconseguiatinarcomoutrapossibilidadeanãoseradequeestivessecavandoumtúnelparaalgumoutroprédio.

“Eu havia chegado até aí quando fomos visitar a cena dos

acontecimentos. Você icou surpreso ao me ver dar bengaladas no chão.Estavaveri icandoseoporãoseestendiaà frenteouaos fundosdacasa.Não era à frente. Em seguida toquei a campainha e, como esperava, oauxiliar atendeu. Tínhamos tido algumas escaramuças, mas nunca nosvíramosantes.Malolheiparaorostodele.Eramosjoelhosquequeriaver.Vocêmesmodeveterreparadocomoestavamgastos,amarrotadosesujos.Falavamdetodasaquelashorasdeescavação.Sórestavadescobriratrocodequeestavamescavando.Quando,aodobraraesquina,viqueosfundosdoCity&SuburbanBankdavamparaoprédiodonossoamigo,sentiqueresolvera meu problema. Depois que você foi para casa, terminado oconcerto, izumavisitaàScotlandYardeaopresidentedoconselhodiretordobanco,comasconsequênciasquevocêviu.”

“Comosabiaqueeraestanoitequefariamsuatentativa?”“Bem, o fechamento do escritório da Liga foi sinal de que não se

importavammaiscomapresençadeMr.JabezWilson;emoutraspalavras,haviamconcluídoo seu túnel.Maseraessencialutilizarem-no logo,poisaqualquer momento poderia ser descoberto, ou o ouro removido. Sábadoseria a ocasião ideal para eles, pois lhes daria dois dias para fugir. Portodasestasrazões,euesperavaqueagissemestanoite.

“Você raciocinou magni icamente”, exclamei com sincera admiração.“Apesar de ser uma cadeia de fatos tão longa, todos os elos soamconvincentes.”

“Issome salvou doennui”, observouHolmes comumbocejo. “Mas aidemim!Jáosintofechandoocercoàminhavolta.Minhavidaresume-seaum longo esforço para escapar aos lugares-comuns da existência. Essesprobleminhasmeajudamnisso.”

“Vocêéumbenfeitordaraçahumana.”Eledeudeombros.“Bem,talvez,a inaldecontas,essascoisastenham

umapequenaserventia”,observou.“ L’hommec’estrien,l’oeuvrec’esttout” ,comoescreveuGustaveFlaubertaGeorgeSand.

UMCASODEIDENTIDADE

“MEUCAROCOMPANHEIRO”,disseSherlockHolmesquandoestávamossentados,a lareiraentreumeoutro, emseusaposentosemBakerStreet, “avidaéin initamentemaisestranhadoquetudoqueamentehumanaseriacapazde inventar. Não ousaríamos conceber coisas que, na realidade, nãopassam de lugares-comuns da existência. Se pudéssemos sair voando demãos dadas por aquela janela, pairar sobre esta grande cidade, removersuavementeostelhadoseespreitarasesquisiticesqueestãoacontecendo,as estranhas coincidências, as maquinações, os quiproquós, osmaravilhosos encadeamentos de fatos, que atravessam gerações econduzem aos resultados mais estapafúrdios, toda a icção, com suasconvenções e conclusões previsíveis, pareceria extremamente batida einútil.”

“Sabe, você nãome convence inteiramente”, respondi. “Os casos quevêmàluznosjornaissão,emgeral,bastanteprosaicos,bastantevulgares.Temos em nossas notícias policiais o realismo levado ao extremo, e noentanto é preciso confessar que o resultado não é fascinante nemartístico.”

“Paraproduzir umefeito realístico, é preciso exercer certa seleção ediscernimento”,observouHolmes. “Falta issoaonoticiáriopolicial,emquesedámaisênfase, talvez,àsplatitudespronunciadaspelo juizdoqueaosdetalhes, que, para um observador, contêm a essência vital de toda aquestão.Acredite,nãohánadatãoaberrantequantoolugar-comum.”

Sorri, sacudindo a cabeça. “Posso entender perfeitamente que vocêpense assim”, disse. “É evidente que em sua posição de conselheiro nãoo icial, de alguém que ajuda todos os inteiramente perplexos em trêscontinentes,vocêentraemcontatocomtudoqueéestranho,bizarro.Masvamos lá,” e peguei no chão o jornal da manhã, “submetamos isso a umtesteprático.Cáestáaprimeiramanchetequeencontro: ‘Maridomaltrataamulher.’Háumtextodemeiacoluna,massei,semler,quetudoissomeéperfeitamente conhecido. Há, é claro, a outra mulher, a bebida, oempurrão, o soco, a contusão, a irmãou senhoria condoída.Omais inábil

dosescritoresnãopoderiainventarnadamaischão.”“Na verdade você tomou um exemplo infeliz para a sua

argumentação”, disse Holmes, pegando o jornal e passando-lhe os olhos.“Esse é o caso de separação dos Dunda, e ocorre que participei daelucidaçãode algunspequenosdetalhes relacionados a ele.Omarido eraabstêmio,nãohaviaoutramulher e a condutadelequemotivouaqueixafoi o hábito que adquirira de arrematar todas as refeições tirando adentaduraejogando-anamulher,oque,vocêhádeconvir,nãoéumgestoque tenda a ocorrer à imaginação de um contador de históriasmediano.Tome uma pitada de rapé, doutor, e admita que levei a melhor no casodesseseuexemplo.”

Estendeu-me a caixa de rapé de ouro antigo, com uma grandeametistanocentroda tampa.Oesplendordesseobjetocontrastavade talmodo com os hábitos pouco re inados e a vida frugal demeu amigo quenãomepudeabsterdefazerumcomentárioarespeito.

“Ah”,respondeu,“esqueci-medequehaviapassadoalgumassemanassemo ver. É uma lembrancinhado rei daBoêmia, como recompensaporminhaajudanocasodospapéisdeIreneAdler.”

“E o anel?” perguntei, itando um notável brilhante que faiscava emseudedo.

“Ganhei da família reinante daHolanda,mas o episódio emque lhespresteimeusserviçosfoidetaldelicadezaquenãopossocon iá-losequera você, que teve a gentileza de registrar um ou dois de meus pequenoscasos.”

“Estátratandodealgumnomomento?”pergunteicominteresse.“Unsdezoudoze,masnenhumqueapresentequalquercaracterística

deinteresse.Sãoimportantes,masnemporissointeressantes.Naverdade,descobriqueemgeraléemassuntossemimportânciaquehácampoparaaobservaçãoeaanáliserápidadecausaeefeitoquefazoencantodeumainvestigação. Os crimes maiores tendem a ser mais simples, pois quantomaior é o crime,mais óbvio, em regra, é omotivo. Nos casos de quemeocuponomomento,anãoserporumproblemabastanteintricadoquemechegoudeMarselha,nãohánadaqueapresenteumasócaracterísticadeinteresse.Épossível,porém,queeutenhaalgumacoisamelhordentrodepoucosminutos,pois,oumuitomeengano,ouaívemumdemeusclientes.”

Holmes erguera-se da cadeira e estava de pé entre as persianasentreabertas, observando a insípida e cinzenta rua de Londres. Olhando

sobreseuombro,vi,plantadanacalçadaoposta,umamulherrobusta,comum espesso boá de pele enrolado no pescoço e uma grande e onduladapluma vermelha espetadanum chapéude abas largas enviesado sobre aorelha, à moda coquete da duquesa de Devonshire. Sob essa grandepanóplia, ela lançava olhares furtivos, nervosos e hesitantes para nossasjanelas,enquantoseucorpobalançavapara frenteepara tráseosdedosremexiam nos botões da luva. De repente, num mergulho, como o donadador que salta damargem, atravessou a rua num átimo e ouvimos osomestridentedacampainha.

“Jáviesses sintomasantes”,disseHolmes, jogandoocigarrono fogo.“Hesitaçãonacalçadasempresigni icaumaffairedecoeur . Ela deseja umconselho,mastemequeaquestãosejadelicadademaisparaserrevelada.Mas mesmo num caso desse tipo podemos fazer uma distinção. Quandoumamulherfoiseriamentemaltratadaporumhomem,elajánãohesita,eo sintoma usual é uma corda de campainha arrebentada. Podemospresumirqueesteéumcasodeamor,masqueadonzelaemquestãoestámenosenraivecidaqueperplexa, oumagoada.Mas aí vemela empessoaparaesclarecernossasdúvidas.”

Ele ainda falava quando ouvimos uma batida à porta; o mensageiroentrou para anunciar a visita de Miss Mary Sutherland, enquanto elaprópria avultava atrás da igurinha preta do garoto, como um naviocargueirodevelasinfladasatrásdopequenobarco-piloto.SherlockHolmesrecebeuavisitantecomacortesianaturalqueonotabilizavae,depoisdefechar a porta e conduzi-la a uma poltrona, contemplou-a da maneirameticulosaeaomesmotempoabstrataquelheerapeculiar.

“Nãolhepareceumpoucopenosoescrevertantoamáquina,comessasuamiopia?”

“SherlockHolmesrecebeuavisitante.”[SidneyPaget,StrandMagazine,1891]

“A princípio foi”, respondeu ela, “mas agora sei onde estão as letrassem olhar.” Em seguida, compreendendo de repente o pleno alcancedaquelas palavras, teve um violento sobressalto e levantou os olhos, commedoepasmoestampadosemseurostolargo,bem-humorado.

“Jáouviu falardemim,Mr.Holmes”, exclamou, “senão, comopoderiasaberdissotudo?”

“Nãosepreocupe”,respondeuele,rindo;“sabercoisaséomeuo ício.Talvezeutenhameexercitadoparaveroqueosoutrosdeixampassar.Docontrário,porqueviriameconsultar?”

“Estou aqui porque ouvi falar do senhor por Mrs. Etherege, cujomaridoencontrou com tanta facilidade, quandoapolícia e todosodavampormorto.Oh,Mr.Holmes,gostariaquepudesse fazeromesmopormim.Nãosourica,mastenhodireitoaumarendadecemlibrasporano,foraopouco que ganho com amáquina, e daria isso tudo para saber o que foifeitodeMr.HosmerAngel.”

“Por que saiu tão afobada para me consultar?” perguntou SherlockHolmes,comaspontasdosdedosunidasefitandooteto.

Novamente um ar de espanto pairou no semblante um tantoinexpressivo de Mary Sutherland. “É verdade, saí de casa de supetão”,

disse ela, “pois irritou-me ver a tranquilidade com que Mr. Windibank…isto é… meu pai, encarou tudo. Recusava-se a ir à polícia e não queriaprocurá-lo.Vendoqueelenãosedispunhaa fazercoisaalgumae insistiaem que nada de grave acontecera, acabei icando furiosa, pegueiminhascoisasevimdiretoparacá.”

“Seu pai?” perguntou Holmes. “Certamente seu padrasto, já que osobrenomeédiferente.”

“Issomesmo,meupadrasto. Eu o chamode pai, embora isso soe atéengraçado,porqueéapenascincoanosedoismesesmaisvelhoqueeu.”

“Suamãeéviva?”“Ah, sim, minha mãe está viva e passa bem. Não iquei lá muito

satisfeita, Mr. Holmes, quando ela se casou novamente tão pouco tempoapósamortedemeupai,ecomumhomemquasequinzeanosmaisnovoque ela. Meu pai era bombeiro em Tottenham Court Road e deixou umnegócio bastante grande, que minha mãe continuou tocando com Mr.Hardy,ocontramestre;masquandoMr.Windibankapareceuconvenceu-aavenderao icina,porqueele,sendocaixeiro-viajantedevinhos,eramuitosuperior.Elesconseguiram4.700libraspelaclientelaeopatrimônio,oquenãocheganempertodoquepapaiteriaconseguidosefossevivo.”

Esperara ver Sherlock Holmes impacientar-se com essa narrativadivagante e inconsequente, mas, pelo contrário, ele ouvia com a máximaatenção.

“Suapequenarendapessoal”,perguntou,“vemdessenegócio?”“Ah,não, senhor. Issoé totalmenteàpartee foi-medeixadopormeu

tio Ned, em Auckland. Está aplicado em ações da Nova Zelândia, querendem4,5%.Ototalfoide2.500libras,massópossoretirarosjuros.”

“Tenho extremo interesse em seu caso”, disseHolmes. “Dispondo desoma tão elevada quanto cem libras por ano, sem contar o que ganhatrabalhando, a senhorita certamente viaja um pouco e satisfaz todos osseuscaprichos.Acreditoqueumamoçasolteirapodevivermuitobemcomumarendadecercadesessentalibras.”

“Poderia viver com muito menos que isso, Mr. Holmes, mas, sabe,enquantomorarcomeles,nãoqueroserumacarga;porissomeudinheiroicacomeles,sóenquantoestoumorandolá.Claroqueéapenasporalgumtempo.Mr.Windibankretiraosmeusjurostodosostrimestreseentregaodinheiroàminhamãe,poispossovivermuitobemcomoqueganhocomadatilogra ia. Elame rende dois pence a página, e com frequência consigo

baterdequinzeavintepáginaspordia.”“Asenhoritadeixousuasituaçãomuitoclaraparamim”,disseHolmes.

“Este é o meu amigo Dr. Watson, em cuja presença pode falar tãofrancamente quanto a sós comigo. Agora, por gentileza, conte-nos tudosobreasualigaçãocomMr.HosmerAngel.”

Enquanto um rubor lhe tingia as faces, Miss Sutherland puxounervosamenteabarradocasaco. “Euoconhecinobailedosgasistas.Elessempre nos mandavam ingressos quando meu pai era vivo; depoiscontinuaram a se lembrar de nós e os enviavam a minha mãe. Mr.Windibanknãoqueriaque fôssemos.Nuncaqueriaque fôssemosapartealguma. Ficava furioso até quando eu queria simplesmente ir a umafestinhada igrejadominical.Masdessavezdecidi ir,quisesseeleounão;pois que direito tinha de impedir? Ele alegou que não convinha queconhecêssemosaquelagente,quandotodososamigosdemeupaiestariamlá.Disse tambémque eu não tinha nada adequadopara usar,mas tenhomeu vestido roxo de pelúcia que praticamente nunca tirei da gaveta. Porim,quandonãopodiafazermaisnada,eleviajouparaaFrançaanegóciosda irma, mas nós fomos, minha mãe e eu, comMr. Hardy, nosso antigocontramestre,efoiláqueconheciMr.HosmerAngel.”

“Suponho”, disse Holmes, “que ao voltar da França Mr. Windibankficoumuitoaborrecidoporteremidoaobaile.”

“Sabe que semostroumuito tolerante? Riu, eume lembro, e deu deombros, dizendo que era inútil negar qualquer coisa a umamulher, poiselaacabavafazendooquequeria.”

“Entendo.Entãonobailedosgasistasa senhorita conheceu,peloquedisse,umcavalheirochamadoHosmerAngel.”

“Issomesmo.Nósnos conhecemosnaquelanoite e elenos visitounodia seguinte para saber se tínhamos chegadobemem casa; depois nós oencontramos…istoé,Mr.Holmes,euoencontreiduasvezesparapassear,masdepoismeupaivoltoueMr.HosmerAngelnãopôdemais ir ànossacasa.”

“Não?”“Bem, é que meu pai não gostava de nada desse tipo. Ele não

receberiavisitanenhumasepudesse,ecostumavadizerqueumamulherdevia se sentir feliz no seio de sua família.Mas, como eu sempre dizia amamãe,oqueumamulherquer,paracomeçar,éterseuprópriocírculoderelações,eeuaindanãotinhaomeu.”

“Nobailedosgasistas.”[SidneyPaget,StrandMagazine,1891]

“MaseMr.HosmerAngel?Nãofeznenhumatentativadevê-la?”“Bem,meupaiiriaparaaFrançanovamentedentrodeumasemana,e

Hosmerescreveudizendoqueseriamaisseguroemelhornãonosvermosatéqueeleviajasse.Enquantoisso,podíamosnoscorresponder,epassouameescrever todososdias.Comoeu recebiaas cartasdemanhã,meupainãoprecisavasaber.”

“Asenhoritaestavanoivadessecavalheironaépoca?”“Sim, Mr. Holmes. Ficamos noivos depois do primeiro passeio que

demos. Hosmer… Mr. Angel… era caixa de uma irma na LeadenhallStreet…e…”

“Quefirma?”“Esseéomaiorproblema,Mr.Holmes,eunãosei.”“Ondemoravaele,então?”“Dormianafirma.”“Easenhoritanãosabeoendereçodele?”“Não.SóseiqueficavaemLeadenhallStreet.”

“Nessecaso,paraondeenviavasuascartas?”“Paraaposta-restantedaagênciadosCorreiosnaquelarua.Eledisse

que se as cartas fossem para o escritório todos os outros funcionárioszombariamdeleporestar recebendocartasdeumamulher;pronti iquei-meadatilografá-las,comoelefaziacomasdele,maselenãoquis,dissequequando eu escrevia à mão elas pareciam vir de mim, mas quando eramdatilografadassempresentiaqueamáquinaseinterpunhaentrenós.Issomostra bem como ele gostavademim,Mr.Holmes, e os detalhes emquepensava.”

“Muitosugestivo”,disseHolmes.“Hámuitotenhocomoaxiomaqueaspequenas coisas são in initamente as mais importantes. É capaz de selembrardeoutrospequenosdetalhesarespeitodeMr.HosmerAngel?”

“Eraumhomemmuito tímido.Preferia sair comigoànoite,poisdiziaquedetestavachamaraatenção.Eramuitorecatadoecortês.Atésuavozerasuave.Teveamigdaliteeinchaçodasglândulasquandojovem,segundome contou, e icou com a garganta fraca e um jeito de falar pausado,murmurante.Estavasemprebem-vestido,muitoarrumadoesimples,mastinha a vista fraca, como eu, e usava óculos esfumaçados contra aclaridade.”

“Bem,equeaconteceuquandoMr.Windibank,seupadrasto,voltouàFrança?”

“Mr. Hosmer Angel foi à nossa casa outra vez e propôs que noscasássemosantesquepapaivoltasse.Estavaextremamentesérioemefezjurar, com as mãos sobre a Bíblia, que, o que quer que acontecesse, eusempre lhe seria iel.Minhamãe disse que ele estavamuito certo aomefazerjurar,queissoeraumsinaldasuapaixão.Elasemprefoiafavordeledesdeoprincípio,gostavaaindamaisdeledoqueeu.Depois,quandoelesfalaramemcasamentodentrodeumasemana,comeceiaperguntarsobremeupai;osdoisdisseramqueeunãomepreocupassecomele,queapenaslhe contasse depois, e minha mãe garantiu que arranjaria tudo com ele.Aquilo não me agradava muito, Mr. Holmes. Parecia engraçado que eutivessede lhepedir autorização,porqueeleeraapenasalgunsanosmaisvelhoque eu;mas como eunãoqueria fazer nada às escondidas, escrevipara ele em Bordeaux, onde a companhia mantém seus escritóriosfranceses, mas a carta me chegou de volta na própria manhã docasamento.”

“Nãooalcançou,então?”

“Não,elevoltaraparaaInglaterrapoucoantesdeelachegar.”“Mas que falta de sorte! Seu casamento estava marcado, portanto,

paraasexta-feira.Serianaigreja?”“Sim,masmuitodiscreto.SerianaigrejadeSt.Saviour,pertodeKing’s

Cross, e depois faríamos o desjejumno St. PancrasHotel.Hosmer foi nosbuscarnumhansom,mas,comoéramosduas,elenos instalounessecarroe tomou umfour-wheeler, o único carro de aluguel à vista na rua. Nóschegamos à igreja primeiro, e, quando o outro carro surgiu, icamosesperandoqueHosmerapeasse,maselenãoapareceu.Quandoococheirodesceu e olhou, não havia ninguém lá dentro! O homem disse que nãopodiaimaginaroqueforafeitodele,poisoviraentrar,comseusprópriosolhos. Isso foi sexta-feira passada,Mr.Holmes, e desde então não vi nemouvinadaquepudesselançaralgumaluzsobreoquefoifeitodele.”

“Parece-mequeasenhoritafoitratadademaneiravergonhosa.”

“Nãohavianinguémládentro!”[SidneyPaget,StrandMagazine,1891]

“Ah,não!Eleerabomegentildemaisparamedeixarassim.Sabe,elepassaraamanhãtodamedizendoque,acontecesseoqueacontecesse,eulhe deveria ser iel; e que, mesmo que algo totalmente inesperado nosseparasse,eudeveria lembrarsemprequeestavacomprometidacomele;

dissequevoltariaparacobrar issomaiscedooumais tarde.Pareciaumaconversa estranha para a manhã do dia do casamento, mas o queaconteceudepoisdásentidoàssuaspalavras.”

“Sem dúvida. Na sua opinião, portanto, aconteceu-lhe algumacatástrofeimprevista?”

“Sim. Acredito que ele previa algum perigo, ou não teria faladodaquelamaneira.Ecreioqueoperigoprevistoaconteceu.”

“Masnãotemnenhumaideiadoquepoderiatersido?”“Nenhuma.” “Mais uma pergunta. Como sua mãe reagiu aos

acontecimentos?”“Ficoufuriosaedissequeeununcamaisdeveriafalarnoassunto.”“Eseupai?Asenhoritalhecontou?”“Contei, e ele parece concordar comigo; acha que alguma coisa

aconteceuequeeu talvezaindavenhaa ternotíciadeHosmer.Comoeledisse,que interessepoderiaalguémteremmelevaratéaportada igrejapara então me abandonar? Se Hosmer me tivesse tomado dinheiroemprestado, ou se tivesse casado comigo e transferido o meu dinheiropara o seu nome, poderia haver alguma razão. Mas ele era muitoindependente em matéria de dinheiro e não queria saber de um tostãomeu.Quepoderiateracontecido?Eporquenãopôdeescrever?Ah,quaseenlouqueçosódepensarnissoenãoconsigopregaroolhoànoite.”Puxouumlencinhodoregaloepôs-seasoluçarfortemente.

“Dareiumaolhadaemseucaso”,disseHolmes, levantando-se, “enãotenhodúvida de que chegaremos a um resultado claro. Agora deixe todoesseproblema comigo enãopensemaisnele. Sobretudo, procure afastarMr.HosmerAngeldasualembrança,talcomoeleseafastoudasuavida.”

“Pensaentãoquenãoovereidenovo?”“Lamentodizê-lo.”“Masquefoifeitodele?”“Asenhoritadeixaráesseproblemaemminhasmãos.Gostariadeter

umadescriçãoprecisadesse cavalheiro e todas as cartas escritaspor elequemepuderdar.”

“Pus um anúncio à procura dele noChronicle de sábado”, disse ela.“Aquiestãoorecorteeasquatrocartasquememandou.”

“Muitoobrigado.Eseuendereço?”“LyonPlaceno31,Camberwell.”

“OendereçodeMr.Angel,asenhoritanuncasoube,nãoé?Ondeseupaitrabalha?”

“EleviajaparaaWesthouse&Marbank,osgrandes importadoresdeclaretedaFenchurchStreet.”

“Obrigado. A senhorita expôs a situação commuita clareza. Deixe ospapéis aqui e lembre-se do conselho que lhe dei. Faça de todo esseincidenteumlivrofechadoenãopermitaqueafeteasuavida.”

“O senhor é muito bondoso, mas não sou capaz disso. Serei iel aHosmer.Elemeencontraráprontaquandovoltar.”

Apesardochapéuabsurdoedosemblantevazio,haviana fésimplesde nossa visitante algo de nobre, que impunha respeito. Ela deixou opequenomaçodepapéissobreamesaepartiu,comapromessadevoltarassimquefossechamada.

SherlockHolmescontinuousentadoporalgunsminutos,pressionandoumascontraasoutrasaspontasdosdedos,aspernasesticadasàfrenteeosolhos ixosno teto.Entãopegounaestanteovelhocachimbodebarro,que era um conselheiro para ele, e, depois de acendê-lo, recostou-se napoltrona,exalandoespessasbaforadasdefumoazulecomumaexpressãodeinfinitolangornorosto.

“Um estudomuito interessante, o dessa donzela”, comentou. “Elamepareceu muito mais interessante do que o seu probleminha, que, apropósito, é bastante banal. Você encontrará casos paralelos se consultarmeuíndice,emAndover,1877;houvetambémalgoparecidoemHaiaanopassado. Por mais antiga que seja a ideia, porém, um ou dois detalhesforam novos para mim. Mas a donzela, em si mesma, foi extremamenteinstrutiva.”

“Você parece ter visto nelamuita coisa que paramim foi totalmenteinvisível.”

“Nãoinvisível,masnãopercebido,Watson.Vocênãosoubeparaondeolhar epor issodeixoudenotar tudoque era importante.Nunca consigolhemeternacabeçaaimportânciadasmangas,oquehádesugestivonospolegares,ouasgrandesquestõesquepodemdependerdeumcadarçodebotina. Vejamos o que conseguiu captar da aparência dessa mulher.Descreva-a.”

“Bem, ela usava um chapéude palha de abas largas, cor de ardósia,com uma pluma brique. Seu casaco era preto, com contas pretas cosidasneleeumaorladepequenosornamentosdeazeviche.Ovestidoeradeum

marrombemmais escuroque a cor do café, e umpoucodepelúcia roxaenfeitavaagolaeasmangas.Asluvaseramcinzentaseestavamgastasnoindicador direito. Não observei as botinas. Usava uns pequeninospingentes de ouro redondos e dava uma impressão geral de levar umavidaabastada,deumamaneiracomum,despreocupada.”

SherlockHolmesbateupalmasdeleveedeuumarisadinha.“Palavra, Watson, você está progredindo maravilhosamente. Saiu-se

realmente muito bem. É verdade que deixou escapar tudo que tinhaimportância,mas já captouométodo e tem tinopara cores.Nunca con ienasimpressõesgerais,meucaro,concentre-senosdetalhes.Meuprimeiroolhar é sempre para asmangas de umamulher. No caso de um homem,talvez seja melhor reparar antes os joelhos das calças. Como vocêobservou, essamulher tinhapelúcianasmangas,material excelentepararevelar vestígios. A linha dupla um pouco acima do pulso, onde osdatilógrafos fazempressão contra amesa, estava lindamentede inida.Asmáquinasdecosturadotipomanualdeixamumamarcaparecida,massónobraçoesquerdoedoladomaisdistantedopolegar,emlugardepassarbematravésdapartemais larga, comonestecaso.Depoispasseiosolhospelo rostodela, e, vendo amarcadeumpincenênosdois ladosdonariz,arrisqueiaobservaçãosobreamiopiaeadatilogra ia,que tantopareceusurpreendê-la.”

“Surpreendeuamimtambém.”“Mas certamente era óbvio. Depois iquei muito surpreso e

interessado quando, baixando os olhos, notei que, embora parecidas, asbotinas que ela usava eram desemparelhadas; um pé tinha a pontaenfeitada, o outro não. Num deles só os dois últimos dos cinco botõesestavam abotoados e no outro, o primeiro, o terceiro e o quinto. Ora,quandosevêumajovemdama,soboutrosaspectosvestidaacapricho,sairdecasacombotinasdesemparelhadas,abotoadaspelametade,nãoéumadeduçãoexcepcionaldizerquesaiuafobada.”

“Quemais?”perguntei,muitointeressado,comosempre,noraciocínioincisivodemeuamigo.

“Notei,depassagem,queelahaviaescritoumbilheteantesdesairdecasa,masdepois de estar inteiramente vestida. Você observouque a sualuvadireita estava rasgadano indicador,mas ao queparecenão viu quetanto a luva como o dedo estavam manchados de tinta violeta. Elaescrevera às pressas e mergulhara demais a pena. Deve ter sido estamanhã, ouamarcanão teriapermanecido tão claranodedo.Tudo isso é

divertido, embora bastante elementar, mas preciso voltar ao trabalho,Watson. Importa-se de ler para mim a descrição de Hosmer Angel queconstadoanúncio?”

Segureiopequenorecorteimpressojuntoàluz.Dizia:

Desaparecido na manhã do dia 14 um cavalheiro de nome HosmerAngel.Temcercade1,70mdealtura;decompleição forte, tezpálida,um pouco calvo no alto da cabeça, suíças bastas e negras, bigodes;óculos esfumaçados, ligeira tartamudez. Vestia, quando visto pelaúltima vez, uma sobrecasaca preta forrada de seda, colete preto,corrente Albert dourada, calças tweed Harris cinza com polainasmarrons sobre botinas com elásticos dos lados. Consta que eraempregadonumescritórionaLeadenhallStreet.Qualquerpessoaquetragaetc.etc.”

“Isso será o bastante”, disse Holmes. “Quanto às cartas”, continuou,lançando-lhes um olhar, “são muito banais. Não há nelas absolutamentenenhuma indicação sobreMr. Angel, exceto o fato de que ele cita Balzacumavez.Háporémumdetalhedignodenota,quesemdúvidalhecausaráimpressão.”

“Sãodatilografadas.”“Não só isso, como a assinatura também. Veja o pequenino e nítido

‘Hosmer Angel’ no inal. Há uma data, como vê, mas não um cabeçalho,exceto ‘LeadenhallStreet’,oqueébastantevago.Aquestãodaassinaturaémuitosugestiva…naverdade,podemosconsiderá-laconcludente.”

“Dequê?”“Meucaro,serápossívelquenãopercebaasigni icaçãoque isso tem

nessecaso?”“Nãopossodizerquepercebo,amenosqueelequisesseestaraptoa

negaraautoriadascartascasolhefossemovidaumaaçãoporquebradecompromisso.”

“Não, não se trata disso. Mas pretendo escrever duas cartas quedecidirãoaquestão.Aprimeiraéparauma irmanaCity, aoutra,paraopadrastodadama,Mr.Windibank,perguntando-lhesepodenosencontraraqui amanhãàs seishorasda tarde.É sempremelhor tratardenegócioscomosparentesdo sexomasculino.Eaté lá,doutor, comonadapodemosfazer até que cheguem as respostas a essas cartas, deixemos esseprobleminhanaprateleira.”

Eutinhatantasrazõesparaacreditarnossutispoderesderaciocínioenaextraordináriaenergiademeuamigoquemepareceuqueeledeviaterrazõessólidasparaamaneiraseguraedesenvoltacomotratavaosingularmistério que fora solicitado a esquadrinhar. Pelo que eu sabia, ele sófalharaumavez,nocasodoreidaBoêmiaeda fotogra iade IreneAdler;mas quando rememorava o estranho caso de O signo dos quatro e asextraordinárias circunstânciasdo Estudoemvermelho, sentiaque,de fato,deveriasermuitocomplexooemaranhamentoqueelenãofossecapazdedesvendar.

Assim,quandoodeixei,aindaasoltarbaforadasdeseucachimbodebarro preto, estava convicto de que, ao voltar na tarde seguinte, iriaencontrá-lodepossedetodasaspistasquelevariamàidentidadedonoivodesaparecidodeMissMarySutherland.

Um caso pro issional de extrema gravidade exigia minha atençãonaquelemomento,epasseitodoodiaseguinteàcabeceiradoenfermo. Jáeram quase seis horas quando me vi livre e pude saltar num hansom eseguir para Baker Street, com certo temor de chegar tarde demais paraassistir aodénouement do pequeno mistério. Mas encontrei SherlockHolmes sozinho, semiadormecido, seu corpo comprido emagro encolhidono fundo de sua poltrona. Uma portentosa coleção de frascos e tubos deensaio, além do cheiro penetrante e limpo do ácido clorídrico, mostravaqueelepassaraodianostrabalhosdequímicadequetantogostava.

“Eentão,járesolveuoproblema?”pergunteiaoentrar.“Resolvi.Erabissulfatodebarita.”“Não,não,omistério!”exclamei.“Ah, isso! Pensei que fosse o sal comque estava trabalhando.Nunca

houve nenhum mistério no caso, muito embora, como eu disse ontem,alguns detalhes sejam de interesse. O único inconveniente é que não háleisquepossampuniropatife.”

“Quem era ele, então, e qual era seu objetivo ao abandonar MissSutherland?”

Eumal izera a pergunta, e Holmes ainda não abrira os lábios pararespondê-la,quandoouvimospassosnocorredoreumabatidanaporta.

“É o padrasto da moça, Mr. James Windibank”, disse Holmes.“Escreveu-mequeestariaaquiàsseis.Entre!”

Ohomemqueentroueraumsujeitorobusto,dealturamediana,comcercadetrintaanos,barbeadoedetezamarelada;tinhamaneirasafáveis,

delicadas, e um par de olhos cinzentos maravilhosamente vivos epenetrantes. Lançou um olhar indagador a cada um de nós, pôs suareluzentecartolasobreoaparadore,comuma levemesura,sentou-senacadeiramaispróxima.

“Boanoite,Mr.JamesWindibank”,disseHolmes.“Foiosenhormesmoquedatilografouestacarta,marcandoumencontrocomigoàsseishoras?”

“Sim, fui eu. Lamento estar um pouco atrasado, mas não souinteiramente senhor do meu tempo, sabe. Lamento que Miss Sutherlandtenha vindo incomodá-lo com esse probleminha, pois acho muito melhornão lavar esse tipo de roupa em público. Foi contra a minha vontadeexpressa que ela veio, mas trata-se de uma moça muito excitável eimpulsiva, como talvez tenha notado, e não é fácil controlá-la quandoresolvefazeralgumacoisa.Éclaroquenãomeincomodatantoqueotenhaprocurado,porquenãoestáligadoàpolíciao icial,masnãoéagradávelterumadesgraçaocorridanoseioda família,comoanossa,alardeadaporaí.Sem contar que é uma despesa inútil, pois como poderia o senhorencontraresseHosmerAngel?”

“Pelo contrário”, disse Holmes calmamente. “Tenho todos osmotivosparaacreditarqueconseguireidescobrirMr.HosmerAngel.”

Mr.Windibank deixou cair as luvas em seu sobressalto. “Ficomuitosatisfeitoemsabê-lo”,respondeu.

“Éumfatocurioso”,comentouHolmes,“queumamáquinadeescrevertenha realmente tanta individualidadequantoa caligra iadeumapessoa.Amenosquesejamnovasemfolha,nãoháduasqueescrevamdemaneiraexatamente igual. Algumas letras icam mais desgastadas que outras, ealgumassedesgastamapenasnumlado.Veja,reparenesteseubilhete,Mr.Windibank, que há uma manchinha sobre a letra ‘e’ sempre que elaaparece, e um ligeiro defeito na haste da letra ‘r’. Há outras catorzecaracterísticas,masestassãoasmaisóbvias.”

“Fazemos toda a correspondência do escritório com esta máquina esemdúvidaestáumpoucogasta”,respondeunossovisitante,lançandoumargutoolhardesoslaioemHolmescomseusolhinhosbrilhantes.

“Agora vou lhe mostrar um estudo realmente interessante, Mr.Windibank”,continuouHolmes.“Andopensandoemescreverqualquerdiadesses mais uma monogra iazinha, sobre a máquina de escrever e suarelação com o crime. É um tema a que dediquei alguma atenção. Tenhoaqui quatro cartas supostamente escritas pelo desaparecido. Todas

datilografadas. Em todas, não só os ‘e’ estãomanchados como os ‘r’ semhaste, mas poderá observar, se usar minha lupa, que as outras catorzecaracterísticasaquealudiestãoigualmentepresentesnelas.”

Mr.Windibankdeuumpulodacadeiraepegouochapéu.“Nãotenhotempoaperdercomessaespéciedeconversaextravagante,Mr.Holmes”,disse.“Sepuderagarrarohomem,queagarreedepoismeinforme.”

“Certamente”, disse Holmes, dando um passo adiante e girando achavenaporta.“Nessecaso,informo-odequeoagarrei!”

“Quê?Onde?”gritouWindibank,empalidecendoeolhandoàsuavoltacomoumratonumaratoeira.

“Ah.Nãoadianta…realmentenãoadianta”,disseHolmessuavemente.“Nãotemcomoescapar,Mr.Windibank.Étransparentedemais,eosenhornão foi muito lisonjeiro ao dizer que me seria impossível solucionar umproblematãosimples.Poisbem!Sente-seeesclareçamostudo.”

Nossovisitantedesabounumacadeiracomumaexpressãodehorroreumbrilhodesuornatesta.“Não…nãofiznadadeilegal”,gaguejou.

“De fato,parameupesar,não fez.Mascáentrenós,Windibank, foiamaquinaçãomais cruel, egoísta e impiedosa de que já tive notícia. Agoradeixe-me descrever o curso dos acontecimentos, corrija-me se eu estivererrado.”

“Olhandoàsuavoltacomoumratonumaratoeira.”[SidneyPaget,StrandMagazine,1891]

O homem encolheu-se em sua cadeira, a cabeça caída sobre o peito,comoumapessoa totalmente esmagada.Holmes, ospésmetidosno cantodo consolo da lareira, inclinou-se para trás, en iou as mãos nos bolsos epôs-seafalar,maisconsigomesmoqueconosco,aoquemepareceu.

“Umhomemcasou-seporinteressecomumamulhermuitomaisvelhaque ele”, disse, “e usufruía do dinheiro da ilha dessa mulher enquantoesta morasse com eles. Para pessoas em sua posição era uma somaconsiderável, cuja perda representaria grande diferença. Valia a penafazerumesforçoparapreservá-la.A ilhaeradeíndoleboaeamável,masdemaneirasamorosasecálidas,sendoevidenteque,comsuasqualidadespessoaisesuapequenarenda,nãopermaneceriasolteirapormuitotempo.Ora, seu casamento signi icaria, é claro, a perda de cem libras por ano;assim sendo, que faz o padrasto para evitá-lo? Toma a medida óbvia demantê-laemcasa,proibindoqueprocureacompanhiadepessoasdesuaidade.Mas logo viu que isso não funcionaria para sempre. Ela se tornourecalcitrante,passouainsistiremseusdireitosepor imanunciouo irmepropósitode ira certobaile.Que fazentãoseu inteligentepadrasto?Temuma ideia que provavelmente lhe foi ditada mais pelo cérebro que pelocoração. Com a conivência e a ajuda da esposa, disfarçou-se: cobriu seusolhos vivos com óculos esfumaçados,mascarou o rosto com um bigode eum par de suíças abundantes, abafou sua voz clara num sussurroinsinuante. Depois, duplamente seguro graças à miopia da moça,apresentou-se como Mr. Hosmer Angel e afastou outros namoradosnamorando-aelemesmo.”

“A princípio era só uma brincadeira”, gemeu nosso visitante. “Nuncapensamosqueelaseenvolveriatanto.”

“É muito provável que não. Seja como for, a jovem envolveu-se porcompleto,e,convencidadequeopadrastoestavanaFrança,asuspeitadeuma per ídia nunca lhe passou pela cabeça. Ficou lisonjeada com asatençõesdo cavalheiro, e esseefeito foi ampliadopela admiração ruidosaquesuamãelhevotava.Mr.Angelcomeçouentãoavisitá-la,poiseraóbvioque a situação devia ser levada omais longe possível para produzir umefeitoreal.Houveencontroseumnoivado,oque inalmenteimpediriaqueas afeições da moça se voltassem para qualquer outro. Mas não seriapossível manter o engodo para sempre. Aquelas pretensas viagens àFrança eram bastante incômodas. Claramente, o que devia ser feito eraencerrar aquela história de maneira tão dramática que deixasse umamarca permanente na jovem e a impedisse de procurar outro namorado

porumbomtempo.Daíaquelas jurasde idelidadepronunciadassobreaBíblia,edaítambémasalusõesàpossibilidadedequealgoacontecessenamanhã do casamento. James Windibank queria que Miss Sutherlandicasse tão ligada aHosmer Angel, e tão incerta quanto à sorte dele, quepelo menos nos próximos dez anos não desse ouvidos a outro homem.Levou-anadamenosqueatéaportada igreja,eentão,comonãopodia irmais longe, desapareceu convenientemente, usando o velho truque deentrarporumaportadeum four-wheeler e sairpelaoutra.Creio tersidoestaasequênciadosacontecimentos,Mr.Windibank!”

Nosso visitante, que se re izera um pouco enquanto Holmes falava,levantou-se então da cadeira com um sorriso frio e desdenhoso no rostopálido.

“Talveztenhasidoassim,talveznão,Mr.Holmes”,disse,“masseétãoespertodeveriaserespertoobastanteparasaberquequemestáviolandoaleiéosenhor,nãoeu.Desdeoprincípio,nãofiznadaporquepoderiaserincriminado,mas,enquantomantiveressaportatrancada,estarásujeitoaumaaçãoporameaçaecoaçãoilegal.”

“Como diz, a lei não pode alcançá-lo”, falou Holmes, destrancando aporta e abrindo-a, “mas nunca houve alguémmaismerecedor de castigo.Se essa jovem tivesse um irmão ou amigo, ele deveria descer-lhe umchicote no lombo. PorDeus!” continuou, o sangue subindo-lhe à cabeça àvistado risoescarninhona caradohomem, “issonão fazpartedosmeusdeveresparacomminhacliente,mastenhoumchicotedemontariaàmão,e creio que vou me dar ao prazer de…” Deu dois passos rápidos emdireção ao chicote, mas, antes que pudesse agarrá-lo, ouviu-se umestrépito de passos escada abaixo, a pesada porta da rua bateu, e, dajanela,pudemosverMr.JamesWindibankcorrendodesabaladamentepelarua.

“Que canalha de sangue-frio!” disse Holmes, rindo e jogando-se denovo em sua poltrona. “Esse sujeito vai escalar de crime em crime, atéfazeralgumacoisasériaeterminarnaforca.Sobcertosaspectos,estenãofoiumcasototalmentedesprovidodeinteresse.”

“Não consegui perceber inteiramente todos os passos de seuraciocínio”,observei.

“Bem,erapatentedesdeo início,é claro,quedeviahaverummotivoimportante por trás do curioso comportamento desseMr. Hosmer Angel;era igualmente óbvio que o único a lucrar com o incidente, até ondepodíamos ver, era o padrasto. Depois, o fato de os dois homens nunca

teremestado juntos, um sempre aparecendoquando o outro estava fora,era sugestivo. Também o eram os óculos esfumaçados e a voz estranha,que pareciam ambos indicar um disfarce, bem como as fartas suíças.Minhas suspeitas foram todas con irmadas pelo gesto peculiar do sujeitode datilografar sua assinatura, o que, evidentemente, dava margem àinferênciadequeamoçaconheciatãobemsuacaligra iaquereconheceriamesmo a menor amostra dela. Como vê, esses vários fatos isolados,somadosamuitosoutrosmenores,apontavamtodosnamesmadireção.”

“Comooscomprovou?”“Tendo localizado o homem, foi fácil con irmar as suspeitas. Eu

conhecia a irma em que trabalhava. De posse da descrição impressa,elimineidelatudoquepodiaserumdisfarce…assuíças,osóculos,avoz,emandei-a para a irma, com o pedido de que me informassem se adescrição correspondia a algum de seus caixeiros-viajantes. Já tendonotado as peculiaridades da máquina de escrever, escrevi ao própriohomememseu endereçode trabalho, pedindo-lheque viesse aqui. Comoeu esperava, sua resposta foi datilografada, e revelou as mesmas falhasbanais, mas características. O mesmo correio trouxe-me uma carta deWesthouse & Marbank, de Fenchurch Street, dizendo que a descriçãocorrespondia ponto por ponto a seu funcionário James Windibank.Voilàtout!”

“EMissSutherland?”“Se eu lhe contar, ela não acreditará em mim. Talvez se lembre do

velho ditado persa: ‘Há perigo para o homem que tira o ilhote do tigre,mas tambémháperigoparaaquelequedestrói a ilusãodeumamulher.’HátantosentidoemHa izquantoemHorácio,eomesmoconhecimentodomundo.”

OMISTÉRIODOVALEBOSCOMBE

CERTAMANHÃ, tomávamosodesjejum,minhamulher e eu, quando a criadatrouxeumtelegrama.EradeSherlockHolmesedizia:

Temunsdoisdiasdefolga?Acabodereceberumtelegramadooesteda Inglaterra relacionadoà tragédianoValeBoscombe.Gostariaquefosse comigo. Ar e paisagem perfeitos. Parto de Paddington pelo11h15.

“Que lhe parece, meu querido?” perguntou minha mulher, olhandoparamim.“Vocêvai?”

“Realmentenãoseioquedizer.Tenhomuitospacientesnomomento.”“Ora,Anstrutherfariaseutrabalhoporvocê.Temparecidoumpouco

pálidoultimamente.Achoqueamudançalhefariabem,evocêsempretemtantointeressepeloscasosdeMr.SherlockHolmes…”

“Seria um ingrato se não tivesse, com tudo que ganhei graças a umdeles”, respondi. “Mas se eu for, tenho de fazer a mala imediatamente,porquesódisponhodemeiahora.”

MinhaexperiênciadeserviçomilitarnoAfeganistãotevepelomenosoefeito de fazer de mim um viajante pontual e disposto. Como minhasnecessidadeserampoucasesimples,emmenosdoqueotempoestipuladoeu já estava aboletado num carro de aluguel com minha maleta,chocalhandoacaminhodaestaçãodePaddington.SherlockHolmesandavade um lado para outro da plataforma, sua igura alta e descarnadaparecendo aindamais alta e descarnada por causa da comprida capa deviagemcinzaedobonédepanomuitoajustadoàcabeça.

“Foi realmentemuitabondadesua tervindo,Watson”,disseele. “Fazumadiferençaconsiderávelparamim ter comigoalguémemquempossocon iar inteiramente. A ajuda local é sempre ou inútil, ou tendenciosa. Sevocêguardarosdoislugaresdocanto,ireicompraraspassagens.”

Tínhamosovagãoanossodispor,excetopelaimensapilhadejornaisqueHolmes trouxera consigo. Entre elesmeu amigo esquadrinhou e leu,

com intervalos para anotações e meditação, até deixarmos Reading paratrás.Entãoamassou-osderepentenumaenormebolaejogou-osnoporta-bagagem.

“Leualgumacoisasobreocaso?”perguntou.“Nemumapalavra.Hádiasnãoabroumjornal.”“AimprensadeLondresnãodeunotíciasmuitodetalhadas.Acabode

passar os olhos em todos os jornais recentes para me assenhorear dospormenores.Peloquepudeconcluir,parece serumdesses casos simplesquesãoextremamentedifíceis.”

“Issosoaumpoucoparadoxal.”“Mas é profundamente verdadeiro. A singularidade é quase

invariavelmente uma pista. Quanto menos características tem um crime,quantomaislugar-comumeleé,maisdi ícilsetornaelucidá-lo.Nestecaso,porém, foi levantada uma suspeita muito séria contra o ilho do homemassassinado.”

“Trata-seentãodeumassassinato?”“Bem, é o que se supõe. Não julgarei nada líquido e certo enquanto

não tiver oportunidade de examinar o assunto pessoalmente. Vou lheexplicar em que pé está a situação, até onde pude compreendê-la, emmuito poucas palavras. O Vale Boscombe é um distrito rural não muitodistante de Ross, em Herefordshire. O maior proprietário de terrasnaquelasbandaséumcertoMr.JohnTurner,quefezfortunanaAustráliae retornou à pátria alguns anos atrás. Uma das fazendas de suapropriedade, a de Hatherley, foi arrendada aMr. CharlesMcCarthy, quetambémandoupelaAustrália.ComoosdoishomenshaviamseconhecidonasColônias,foinaturalque,aoseestabelecerem,o izessemtãopertoumdo outro quanto possível. Sendo Turner manifestamente o mais rico,McCarthy tornou-se seu arrendatário, mas isso, ao que parece, não osimpediu de se manterem em termos de perfeita igualdade, estandofrequentementejuntos.McCarthytinhaum ilho,umrapazdedezoitoanos,e Turner apenas uma ilha da mesma idade, mas os dois eram viúvos.Parecequeevitavamoconvíviocomasfamíliasinglesasdasvizinhançaselevavam uma vida isolada, embora os dois McCarthy gostassem deesportes e fossem vistos muitas vezes nas corridas de cavalo da região.McCarthy tinha dois empregados, um homem e umamoça. Turner tinhauma criadagem considerável, pelomenosmeia dúzia. Só consegui apurarissosobreasfamílias.Agora,vamosaosfatos.

“Nodia3dejunho,istoé,segunda-feirapassada,McCarthydeixousuacasa em Hatherley por volta das três da tarde e caminhou até a lagoaBoscombe, um laguinho formado pelo espraiamento do riacho que correpelo Vale Boscombe. De manhã ele fora a Ross com seu empregado edissera ao homemque precisava se apressar, porque tinha um encontroimportante marcado para as três horas. Não voltou com vida desseencontro.

“Da sede da Fazenda Hatherley à lagoa Boscombe são unsquatrocentosmetros, e duas pessoas o virampassar. Uma foi uma velha,cujo nome não émencionado; a outra foiWilliam Crowder, que trabalhacomoguarda-caçaparaMr.Turner.EssasduastestemunhasdeclaramqueMr. McCarthy caminhava sozinho. O guarda-caça acrescenta que, poucosminutos depois de Mr. McCarthy passar, viu o ilho dele, Mr. JamesMcCarthy,seguindopelomesmocaminhocomumaespingardadebaixodobraço.Peloqueoguardaacredita,opaidefatoaindaestavaàvistanesseinstante, e o ilho o seguia. Ele não pensou mais no assunto até à noite,quandoouviufalardatragédiaqueocorrera.

“Os dois McCarthy foram vistos depois do instante em que WilliamCrowder, o guarda-caça, os perdeude vista.A lagoaBoscombe é cercadapormatas densas e tem apenas uma orla de capim e juncos à sua volta.Uma menina de catorze anos, Patience Moran, ilha do caseiro dapropriedade do Vale Boscombe, estava numa das matas colhendo lores.Ela declara que, dali, viu, na orla da loresta e bem perto da lagoa, Mr.McCarthy e seu ilho e que eles pareciam estar tendo uma discussãoviolenta. Ela ouviu Mr. McCarthy usar uma linguagemmuito forte com oilho, e viu o rapaz levantar amão como se fosse bater no pai. Ficou tãoatemorizadacomaviolênciadelesquesaiucorrendo,eaochegaremcasacontou à mãe que deixara os dois McCarthy brigando junto da lagoaBoscombe e temia que se atracassem. Mal ela dissera isso, o jovemMcCarthy chegoucorrendoà casaparadizerqueencontraraopaimortona loresta e pedir ajuda ao caseiro. Estavamuito agitado, sem chapéu esemaespingarda,enotou-sequetinhamanchasdesanguefresconamãoe na manga direitas. Acompanharam-no e encontraram o cadáverestendidonarelvajuntoàlagoa.Acabeçahaviasidogolpeadaváriasvezescomumaarmapesadaerombuda.Osferimentoseramtaisquepoderiamtersidocausadospelacoronhadaespingardado ilho,quefoiencontradasobre a relva apoucospassosdo corpo.Em facedessas circunstâncias, orapaz foi preso imediatamente, e como o inquérito levado a cabo terça-

feiraresultounumveredictode‘assassinatopremeditado’,naquarta-feiraelefoiapresentadoaosjuízesemRoss,quemarcaramocasoparaasessãoseguinte do tribunal superior. Estes são os principais fatos, tal como seapresentaramaoinvestigadoreaotribunalpolicial.”

“Encontraramocadáver.”[SidneyPaget,StrandMagazine,1891]

“Eu teriadi iculdadeem imaginarumcasomais lagrante”, comentei.“Se alguma vez provas circunstanciais denunciaram um criminoso, foiaqui.”

“Provas circunstanciais são muito traiçoeiras”, contestou Holmes,pensativo. “Podem parecer apontar muito diretamente para uma coisa,mas,sevocêdeslocaumpouquinhoseupontodevista,podedescobrirqueapontam de maneira igualmente indubitável para outra inteiramentediferente.Detodomodo,devoconfessarqueocasoparececomprometerorapazdemaneiragravíssimaeémuitoprovávelqueelesejarealmenteoculpado.Háváriaspessoasnasvizinhanças,porém,eentreelasestáMissTurner, ilha do proprietário de terras vizinho, que acreditam na sua

inocência, e contrataram Lestrade, de quem você talvez se lembre emconexão comUm estudo em vermelho, para investigar a questão nointeresse dele. Lestrade, vendo-se um tanto confuso, encaminhou-me ocaso, razão por que dois cavalheiros de meia-idade estão voando paraoeste a oitenta quilômetros por hora em vez de digerir sossegadamenteseudesjejumnorecessodolar.”

“Temo que os fatos sejam tão óbvios”, observei, “que o caso não vácontribuirmuitoparaseubomnome.”

“Nada é mais enganoso que um fato óbvio”, respondeu ele, rindo.“Alémdisso,podeserquetopemoscomoutrosfatosóbviosquetalveznãotenhamparecidoóbviosemabsolutoparaMr.Lestrade.Vocêmeconhecebemdemaisparapensarqueestousendofanfarrãoquandodigoquevoucon irmaroudestruirateoriadelepormeiosqueeleétotalmenteincapazde empregar ou mesmo de entender. Para tomar o primeiro exemplo àmão, percebo claramente que a janela do seu quarto ica do lado direito,mas duvido que Mr. Lestrade tivesse notado mesmo uma obviedade tãograndequantoesta.”

“Como,diabos…”“Meu caro, eu o conheço bem. Conheço o asseio militar que o

caracteriza.Vocêfazabarbatodasasmanhãse,nestaestaçãodoano,ofazà luz do sol. Mas como noto que sua barba vai icando cada vez menosbem-feita àmedidaquemeusolhos recuamparao lado esquerdo, até setornar positivamente desleixada depois do ângulo do queixo, icacertamentemuitoclaroqueesseladoémenosiluminadoqueooutro.Nãopoderia conceber um homem com seus hábitos olhando-se sob uma luziguale icandosatisfeitocomumresultadodesse.Citoistoapenascomoumexemplo trivial de observação e inferência. Esse é o meu métier, e épossívelqueissopossaserdealgumavalianainvestigaçãoquetemospelafrente. Um ou dois pequenos detalhes que a investigação trouxe à bailamerecemconsideração.”

“Quaissão?”“Parece que a detenção do rapaz não ocorreu imediatamente, mas

depoisde seu retornoàFazendaHatherley.Quandoo inspetordepolícialhedeuvozdeprisão,eledeclarouqueaquilonãoosurpreendiaequenãomereciaoutracoisa.Essaobservaçãodeletevecomoefeitonaturalafastarquaisquer vestígios de dúvida que pudessem ter restado nasmentes dotribunalpolicial.”

“Foiumaconfissão”,exclamei.“Não,poisfoiseguidadeumadeclaraçãodeinocência.”“Vindocoroarumasériedefatostãoincriminatórios,ocomentáriofoi

nomínimoextremamentesuspeito.”“Pelo contrário”, disse Holmes, “é a nesga mais clara que posso

entreveremmeioàsnuvensnomomento.Pormais inocentequepudesseser, ele não seria imbecil a ponto de não ver que as circunstânciasdepunhamfortementecontraele.Setivessemanifestadosurpresacomsuaprisão, ou ingido indignação, isso me teria parecido altamente suspeito,porque tal surpresa ou indignação não seriam naturais naquelascircunstâncias,emborapudessepareceramelhortáticaparaumcalculista.O modo franco como aceitou a situação o assinala ou como inocente, oucomo um homem de considerável autocontrole e irmeza. Quanto àobservaçãoque fezsobreseumerecimento, tambémelanão foiestranha,levando-se em conta que icou junto do cadáver do pai, e que havia semdúvida, naquele mesmo dia, esquecido seu dever ilial, dirigindo-lhepalavras ofensivas, e até, segundo a menina cujo testemunho é tãoimportante, levantado a mão como se para agredi-lo. A autocensura e oarrependimentomanifestosemsuaspalavrasparecem-meindíciosdeumamentesadia,nãodeumamenteculpada.”

Sacudi a cabeça. “Muitos homens foram enforcados com base emprovasmaisfracas.”

“Éverdade.Emuitosforaminjustamenteenforcados.”“Queversãooprópriorapazdádetudoisso?”“Receioqueelanãoseja lámuitoencorajadoraparaseusdefensores,

emboracontenhaumoudoispontossugestivos.Vocêaencontraráaquiepoderálê-laporsimesmo.”

Tirou da sua pilha de jornais um exemplar do diário local deHerefordshire e, dobrando a folha, apontou para um parágrafo quetranscreviaodepoimentodomalfadadorapazacercadosacontecimentos.Instalei-menumcantodovagãoeolicommuitaatenção.Dizia:

Mr. James McCarthy, ilho único do falecido, foi então chamado eprestouas seguintesdeclarações: “Eupassara trêsdias forade casa,emBristol,esóretornaranamanhãdesegunda-feirapassada,dia3.Meupainãoestavaemcasaquandochegueiea criada informou-meque ele fora a Ross com John Cobb, o cavalariço. Pouco depois de

minha volta ouvi as rodas de sua charrete no pátio, e, olhando pelaminha janela, vi-o saltar e sair do pátio rapidamente, mas não pudeperceber que direção tomou. Peguei então minha espingarda e fuiandando no rumo da lagoa Boscombe, com a intenção de visitar oviveiro de coelhos que ica do outro lado. A caminho vi WilliamCrowder, o guarda-caça, tal como ele declarou em seu depoimento;mas ele se engana ao pensar que eu estava seguindomeu pai. Nãotinha ideia de que ele caminhava à minha frente. A cerca de cemmetrosdalagoa,ouviumgrito,“Cooee!”,queeraumsinalquemeupaie eu costumávamos usar entre nós. Avancei correndo e encontrei-ojuntoà lagoa.Pareceumuitosurpresoaomevereperguntou-me,demaneirabastanteáspera,oqueeuestava fazendoali. Seguiu-seumaconversaquelevouapalavrasfortesequaseasocos,poismeupaieraumhomemde temperamentomuitoviolento.Vendoquesuaraivasetornavaincontrolável,deixei-oevolteiparaaFazendaHatherley.Nãoandaramais de cento e cinquentametros, porém, quando ouvi atrásdemimumgritomedonhoquemefezvoltarcorrendo.Encontreimeupai agonizando no chão, com a cabeça horrivelmente ferida. Soltei aespingarda no chão e segurei-o nos braços, mas ele expirou quaseinstantaneamente. Fiquei alguns minutos ajoelhado ao seu lado edepois corri à casa do caseiro, Mr. Turner, que era amais próxima,para pedir ajuda. Ao voltar, não vi ninguém perto demeu pai e nãotenhoideiadecomoelefoiferido.Nãoeraumhomemmuitoestimado,tendomaneirasumtantofriaseintimidadoras,mas,peloquesei,nãotinhainimigossérios.Nãoseimaisnadasobreoassunto.”Investigador:“Seupaifezalgumadeclaraçãoantesdemorrer?”Testemunha: “Murmurou algumas palavras, mas só pude captar

umaalusãoaumrato.”

“Segurei-onosbraços.”[SidneyPaget,StrandMagazine,1891]

Investigador:“Comoentendeuisso?”Testemunha: “Não fez nenhum sentido para mim. Pensei que ele

estavadelirando.”Investigador: “Qual foi omotivo dessa briga inal entre o senhor e o

seupai?”Testemunha:“Preferirianãoresponder.”Oinvestigador:“Lamento,masdevoinsistir.”Testemunha: “É realmente impossível para mim dizer-lhe. Posso lhe

assegurarquenadatemavercomatristetragédiaqueseseguiu.”Investigador:“Cabeaotribunaldecidirisso.Nãoprecisolhedizerque

sua recusa a responder prejudicará consideravelmente sua defesa emqualquerprocessoquevenhaasermovido.”

Testemunha:“Mesmoassimdevomerecusar.”Investigador: “Pelo que entendo, o grito ‘Cooee’ era um sinal comum

entreosenhoreseupai?”Testemunha:“Era.”Investigador:“Comofoi,então,queeleolançouantesdevê-lo,eantes

mesmodesaberquetinhavoltadodeBristol?”

Testemunha(consideravelmenteconfuso):“Nãosei.”Um jurado: “Não viu nada que despertasse suas suspeitas quando

voltou,aoouvirogrito,eencontrouseupaifatalmenteferido?”Testemunha:“Nadadedefinido.”Investigador:“Quequerdizer?”Testemunha:“Euestavatãoperturbadoeagitadoquandosaídamata

que não pude pensar senão em meu pai. Apesar disso, tenho a vagaimpressão de ter visto, enquanto corria, alguma coisa no chão à minhaesquerda.Pareceuserumacoisacinzenta,algumtipodecasacoou talvezumamanta.Quandome levanteide juntodemeupai, olhei àminhavoltaprocurandoaquilo,mashaviadesaparecido.”

“Querdizerquedesapareceraantesquefossepedirajuda?”“Sim,desaparecera.”“Nãoécapazdedizeroqueera?”“Não,tiveapenasumaimpressãodequehaviaalgumacoisaali.”“Aquedistânciadocorpo?”“Unsdozemetros.”“Eaquedistânciadaorladafloresta?”“Maisoumenosamesma.”“Então,seessacoisafoiretirada,foienquantoosenhorestavaadoze

metrosdela?”“Sim,masdecostasparaela.”Comissoencerrou-seodepoimentodatestemunha.

“Vejo”, disse eu, passando os olhos pelo inal da coluna, “que oinvestigador,emsuasobservações inais, foibastanteseverocomo jovemMcCarthy.Eleressalta,ecomrazão,aincongruênciadeopaitê-lochamadoantesdevê-lo,suarecusaa fornecerdetalhesdesuaconversacomopai,bemcomoosingularrelatoquefazdasúltimaspalavrasdopaimoribundo.Tudoisso,comoelefrisa,depõemuitocontraofilho.”

Holmes riu mansamente consigo mesmo e esticou-se no assentoestofado. “Tanto você como o inspetor esforçaram-semuito”, disse, “paradestacarexatamenteospontosquedepõemmuitofortementeemfavordorapaz.Nãovêquevocêsdoislheatribuem,alternadamente,excessoefaltadeimaginação?Falta,pornãotersidocapazdeinventarumacausaparaabriga que lhe angariasse a simpatia dos jurados; excesso, por ter criado

algotãoabsurdocomoamençãodeummoribundoaumratoeoincidentedopanodesaparecido.Não,não;abordareiessecasopartindodoprincípiode que as declarações do rapaz são verdadeiras, e veremos aonde essahipótesenoslevará.Agora,cáestáomeuPetrarcadebolso;nãodireimaisumapalavrasobreessecasoatéchegarmosaolocaldaação.AlmoçaremosemSwindon,evejoqueestaremosláemvinteminutos.”

Eram quase quatro horas quando inalmente, depois de passar pelobelovaledoStroudedecruzarolargoebrilhanteSevern,encontramo-nosno bonito vilarejo de Ross. Um homem magro com cara de fuinha, arfurtivoematreiro,esperava-nosnaplataforma.Apesardo leveguarda-pómarrom e das perneiras de couro que usava emdeferência ao ambienterústico, não tive di iculdade em reconhecer Lestrade, da Scotland Yard.Com ele rumamos para o Hereford Arms, onde um quarto já forareservadoparanós.“

Contrateiumacarruagem”,disseLestradeenquanto tomávamosumaxícara de chá. “Conheço a sua natureza enérgica e sabia que você nãoficariafelizatéestarnolocaldocrime.”

“Foimuitogentilelisonjeirodasuaparte”,respondeuHolmes.“Trata-seinteiramentedeumaquestãodepressãobarométrica.”

Lestradepareceuespantado.“Nãoocompreendomuitobem”,disse.“Como está o barômetro? Ah, vejo que marca vinte e nove. Não há

ventoenemumasónuvemnocéu.Tenhoaquiummaçodecigarrosqueprecisamser fumados,eo sofáémuitosuperioràquela coisaabominávelque geralmente se encontra nos hotéis do interior. Não me pareceprovávelqueeuvenhaautilizaracarruagemestanoite.”

“Sem dúvida você já tirou suas conclusões pelos jornais”, disseLestrade, com um riso indulgente. “O caso é claro como água, e quantomais investigamos, mais claro ica. Apesar disso, não se pode recusar opedido de uma dama, sobretudo quando tão enfático. Ela conhece seurenomeequisterasuaopinião,emboraeulhetenhaditoreiteradamenteque você não poderia fazer nada que eu já não tivesse feito. Quecoincidência!Acarruagemdelaestáchegandoàporta!”

Mal ele falara, entrou afobada sala adentro uma das mais lindasjovensque jamais vi emminha vida.Os luminosos olhos violeta, os lábiosentreabertoseasfacesrosadas,elaperderatodaasuareservanaturalnoalvoroçoeansiedadequeadominavam.

“Ah, Mr. Sherlock Holmes!” exclamou, olhando de um para outro de

nós,epor im,coma intuiçãorápidadeumamulher,dirigindo-seaomeucompanheiro. “Que bom que veio. Vim aqui para lhe dizer como estousatisfeita.SeiqueJamesnãofezaquilo.Sei,equeroqueinicieseutrabalhosabendodisso também.Nunca sepermita umadúvidaquanto a isso.Nósnos conhecemos desde crianças e conheço os defeitos dele melhor queninguém.Maseleétãobomquenãofariamalaumamosca.Essaacusaçãosoaabsurdaparatodosquerealmenteoconhecem.”

“Esperoquepossamos inocentá-lo,MissTurner”,respondeuSherlockHolmes.“Estejacertadequefareitudoqueestiveraomeualcance.”

“O senhor leu os depoimentos. Já chegou a uma conclusão? Não vêalgumasaída,algumafalha?Nãoachatambémqueeleéinocente?”

“Issomeparecemuitoprovável.”“Pronto!” exclamou ela, jogando a cabeça para trás e lançando um

olhardedesafioparaLestrade.“Ouviuisso?Elemedáesperança!”Lestradedeudeombros.“Receioquemeucolegatenhasidoumpouco

precipitadoaotirarsuasconclusões”,disse.“Maseleestá certo!Ah, seiqueestá certo. Jamesnunca fezaquilo.E

quanto àquela briga com o pai, tenho certeza de que, se ele não quisrevelaromotivodelaaojuiz,foiporquediziarespeitoamim.”

“Dequemaneira?”perguntouHolmes.“Nesta alturanãodevoocultar coisa alguma. James e seupai tinham

muitasdiscordâncias ameu respeito.Mr.McCarthyqueriamuitoquenoscasássemos. James e eu sempre nos amamos como irmãos; mas ele éjovem, é claro, ainda não aproveitou muito a vida, e… e… bem,naturalmenteaindanãoquisassumirumcompromissocomoesse.Porissohaviabrigas,eessa,tenhocerteza,foiumadelas.”

“Eseupai?”perguntouHolmes.“Eraafavordessaunião?”“Não,eletambémeracontra.SóMr.McCarthyeraafavor.”Umrápido

rubor tingiu-lhe a face fresca e jovem quando Holmes lançou-lhe um deseusolharesargutos,indagadores.

“Obrigadopelainformação”,disseele.“Eupoderiaconversarcomseupaisefossevê-loamanhã?”

“Receioqueomédiconãopermita.”“Omédico?”“Ah, não sabe?Meu pobre pai não goza de boa saúde há anos,mas

isso agora o derrubou completamente. Está de cama, e o Dr.Willows diz

que está muito mal, que seu sistema nervoso está em frangalhos. Mr.McCarthyeraoúnicoconhecidoaindavivodemeupaidosvelhostemposemVictoria.”

“Ah!EmVictoria!Issoéimportante.”“Sim,nasminas.”“Naturalmente;nasminasdeouro,onde,peloqueentendi,Mr.Turner

fezsuafortuna.”“Issomesmo.”“Obrigado,MissTurner.Ajudou-meconsideravelmente.”“O senhor me dirá se tiver novidades amanhã. Sem dúvida irá ver

Jamesnaprisão.Ah,sefor,diga-lhequeseiqueéinocente.”“Direi,MissTurner.”“Agoraprecisovoltarparacasa,porquepapaiestámuitomalesente

falta de mim quando o deixo. Até logo, e que Deus o ajude em suaempreitada.”Saiudasalacorrendo, tão impulsivamentequantoentrara,eouvimosoestrépitodasrodasdesuacarruagempelarua.

“Deixou-me envergonhado, Holmes”, disse Lestrade com dignidadeapósalgunsminutosdesilêncio.“Porquedespertaesperançasqueterádedesapontar? Não tenho o coração muito mole, mas chamo isso decrueldade.”

“Creio que sei como inocentar Mr. James McCarthy”, disse Holmes.“Temautorizaçãoparavê-lonacadeia?”

“Tenho,massóparanósdois.”“Então vou reconsiderar minha decisão quanto a sair. Ainda temos

tempoparatomarumtremparaHerefordevê-loestanoite?”“Desobra.”“Então vamos. Watson, temo que elas lhe pareçam longas, mas

passareiapenasalgumashorasfora.”Caminhei com eles até a estação e depois perambulei pelas ruas da

cidadezinha. Por im voltei ao hotel, deitei-me no sofá e procureiinteressar-meporumromancedecapaamarela.Afracatramadahistória,porém,era tãodesenxabidase comparadaaomistérioprofundoemmeioaoqualtateávamos,eminhaatençãosedesviavatantasvezesdaaçãoparao fato,queacabei jogandoo livrodooutro ladodoquartoeentreguei-mepor completo a um exame dos acontecimentos do dia. Supondo-se que ahistória daquele infeliz rapaz fosse absolutamente verdadeira, que coisa

diabólica, que calamidade absolutamente imprevista e extraordináriapoderia ter ocorrido entre o momento em que ele se separou do pai eaqueleemque,atraídodevoltaporseusgritos,correuparaaclareira?Foialgodeterrívelemortal.Quepoderiatersido?Nãopoderiaanaturezadosferimentos revelar alguma coisa a meus instintos médicos? Toquei acampainhaepediosemanáriodocondado,quereproduzialiteralmenteosautosdo inquérito.Odepoimentodo cirurgiãodiziaqueo terçoposteriordo osso parietal esquerdo e ametade esquerda do osso occipital haviamsido esmagados pelo golpe pesado de uma arma sem corte. Localizei opontoemminhamente.Eraclaroqueumgolpecomoessesópoderia tersido desfechado pelas costas. Isso era, até certo ponto, favorável aoacusado, pois ele fora visto discutindo frente a frente com o pai. Mesmoassim,nãovaliamuito, pois opai poderia lhe terdadoas costas antesdeser atingido. De todomodo, valeria a pena chamar a atenção de Holmespara isso. Havia também a estranha referência domoribundo a um rato.Quepodiaaquilosigni icar?Nãopodiaserumdelírio.Umhomemqueestámorrendo em consequência de uma pancada súbita não costuma delirar.Não, era mais provável que estivesse tentando explicar o que lheacontecera.Masquepoderiaaquilo signi icar?Dei tratosàbola, tentandoencontrar alguma explicação possível. Depois havia ainda o incidente dopano cinzento visto pelo jovem McCarthy. Se aquilo era verdade, oassassino devia ter deixado uma peça de roupa cair na fuga,presumivelmenteosobretudo,etiveraaaudáciadevoltarparaapanhá-lanoinstanteemqueo ilhoestavaajoelhado,decostasparaeleamenosdedoze passos de distância. Que emaranhado de mistérios eimprobabilidades era aquela coisa toda! A opinião de Lestrade não mesurpreendia,maseutinhatamanhafénaargúciadeSherlockHolmesquenão podia perder as esperanças, tanto mais que cada fato novo pareciareforçarsuaconvicçãodainocênciadojovemMcCarthy.

SherlockHolmes voltou tarde. Viera sozinho porque Lestrade estavahospedadonacidade.

“O barômetro continua muito alto”, observou ele ao se sentar. “Éimportante que não chova antes de podermos ir ao local. Por outro lado,umsujeitoprecisaestarnasmelhorescondições ísicasementaisparaumbelotrabalhocomoeste,enãoquisempreendê-loassimesfalfadoporumalongaviagem.EstivecomojovemMcCarthy.”

“Equeficousabendoporele?”“Nada.”

“Elenãopôdeesclarecernada?”“Absolutamente nada. Em certa altura inclinei-me a pensar que ele

sabiaquempraticouocrimeeestavaprotegendoessapessoa,masagoraestouconvencidodequeestátãoperplexocomotodososoutros.Nãoéumjovemmuitoesperto, embora tenhaumaspectoagradávele,peloquemepareceu,bonssentimentos.”

“Nãopossolhegabarogosto”,observei,“seérealmenteverdadequerelutaemsecasarcomumajovemtãoencantadoraquantoMissTurner.”

“Ah, isso envolve uma história muito dolorosa. Esse rapaz estáloucamente, alucinadamente, apaixonado por ela. Mas há cerca de doisanos,quandonãoeramaisqueummenino,eantesderealmenteconhecê-la,poiselapassoucincoanosfora,numinternato,oquefezoidiotasenãocair nas garras de uma garçonete em Bristol e se casar com ela nocartório? Ninguém sabe nada sobre isso, mas você pode imaginar comodevia ser enlouquecedor para ele ser repreendido por não fazer o quedaria os próprios olhos para fazer, mas sabia ser absolutamenteimpossível.Foiumafúriadessetipoqueofezlevantaramãoquandoopai,na última conversa que tiveram, insistiu em que pedisse a mão de MissTurner.Poroutrolado,elenãotinhanenhummeioparasesustentar,eseupai, que ao que todos dizem era um homem muito rígido, o teriaabandonado por completo se soubesse da verdade. Foi com essagarçonete,suamulher,quepassouaquelestrêsdiasemBristol,semqueopai soubesse onde estava. Registre isto. É importante.Mas omal gerou obem,porqueagarçonete,aosaberpelos jornaisqueeleestavaemsériasdi iculdades e poderia ser enforcado, não quis mais saber dele e lheescreveuparadizerque já tinhaummaridonasdocasdasBermudas,demodoquenãohárealmentenenhumvínculoentreeles.TenhoaimpressãodequeessanotíciaconsolouojovemMcCarthydetodooseusofrimento.”

“Masseeleéinocente,quemcometeuocrime?”“Ah! Quem? Eu chamaria a sua atençãomuito particularmente para

doisaspectos.Oprimeiroéqueavítima tinhaumencontromarcadocomalguémnalagoaequeessealguémnãopodiaserseufilho,poisesteestavafora e ele não sabia quando voltaria. O segundo é que se ouviu a vítimagritar ‘Cooee!’antesquesoubessedavoltado ilho.Estessãoosaspectoscruciaisemqueocasoseassenta.Agora falemossobreGeorgeMeredith,porfavor,edeixemostodasasquestõesmenoresparaamanhã.”

Nãochoveu,comoHolmesprevira,eamanhãdespontouclaraesemnuvens.ÀsnovehorasLestradechegoucomacarruagemepartimospara

a Fazenda Hatherley e a lagoa Boscombe. “Há novidades graves estamanhã”, comentou Lestrade. “Diz-se que Mr. Turner, do solar, estádesenganado.”

“Umhomemidoso,suponho?”perguntouHolmes.“Cerca de sessenta anos; mas teve a saúde arruinada pela vida no

estrangeiro e anda doente há algum tempo. Toda essa questão teve umefeitomuitonegativosobreele.EraumvelhoamigodeMcCarthy,e,possoacrescentar, seu benfeitor, pois soube que lhe arrendou a FazendaHatherlydegraça.”

“Émesmo?Issoéinteressante”,comentouHolmes.“É verdade sim! E ajudou-o de centenas de outras maneiras. Todos

aquifalamdesuabondadeparacomMcCarthy.”“Realmente! Não lhe parece algo singular que esse McCarthy, que

parece pouco ter de seu e dever tantas obrigações a Turner, pense emcasaro ilhocoma ilhadesseamigo,queé,aoquesepresume,aherdeirado patrimônio, e isso de maneira tão presunçosa, como se fosse apenasuma questão de pedir a mão da moça e tudo estaria resolvido? MaisestranhoaindaquandosabemosqueopróprioTurnernãoviaaideiacombonsolhos.Foioqueafilhanosdisse.Vocênãodeduzalgumacoisadisso?”

“Pronto, lá vêm as deduções e as inferências!” exclamou Lestrade,piscandooolhoparamim.“Jámeparecedi ícilobastanteenfrentarfatos,Holmes,semestarbuscandoteoriasefantasias.”

“Tem razão”, disse Holmes, sério. “Você acha tão di ícil enfrentar osfatos.”

“Detodomodo,chegueiaumfatoquevocêpareceterdi iculdadeemassimilar”,retrucouLestradecomalgumentusiasmo.

“Eé…”“QueMcCarthypaifoimortoporMcCarthy ilho,equetodasasteorias

emcontrárionãopassamdedevaneios.”“Bem,antesdevanearquenãopensar”,retrucouHolmes,rindo.“Mas,

oumuitomeengano,outemosaFazendaHatherleyaliàesquerda.”“Éelamesma.”Era uma construção ampla, de aparência confortável, com dois

andares, telhado de ardósia e grandes manchas amarelas de líquen nasparedes cinzentas. As cortinas cerradas e as chaminés apagadas, porém,davam-lhe um ar desolado, como se o peso daquele horror ainda aesmagasse.Batemosàporta,eacriada,apedidodeHolmes,mostrou-nos

asbotasqueopatrãousavaaomorreretambémumpardebotasdo ilho,emboranãooqueusavanaocasião.Depoisdemedi-lascuidadosamente,apartirdeseteouoitopontosdiferentes,Holmesquisserlevadoaopátio,deondetodostomamosatrilhasinuosaquelevavaàlagoaBoscombe.

Sherlock Holmes transformava-se quando farejava uma pista comoessa.QuemsóconheciaotranquilopensadorelógicodeBakerStreetnãooteriareconhecido.Seurosto icavamaiscoradoeescuro.Assobrancelhasse retesavam, formando duas linhas duras e negras, enquanto os olhosfaiscavam sob elas com um brilho de aço. O rosto pendia, os ombrosarqueavam-se, os lábios comprimiam-se e as veias ressaltavam comocordéis de chicote em seu pescoço longo, vigoroso. As narinas pareciamdilatar-senumaânsiapuramenteanimalpelacaça,eamenteconcentrava-sedemaneira tão absolutanaquestãoque tinhapela frenteque ele nãodavaouvidosanenhumaperguntaouobservação,ou,nomáximo,rosnavauma resposta breve e impaciente. Rápida e silenciosamente, ele avançoupela trilha que cortava os prados e atravessou a mata até a lagoaBoscombe.Eraumterrenoúmido,pantanoso,comoétodoaqueledistrito,ehavia muitas pegadas, tanto na trilha como pelo capim curto que amargeava de ambos os lados. Por vezes Holmes apertava o passo, porvezesestancava,eumavezfezumpequenodesviopeloprado.Lestradeeeu andávamos atrás dele, o detetive indiferente e desdenhoso, enquantoeu observava meu amigo com o interesse gerado pela convicção de quecadagestoseutinhaumobjetivodefinido.

“Acriadamostrou-nosasbotas.”[SidneyPaget,StrandMagazine,1891]

A lagoa Boscombe, uma pequena lâmina d’água cercada de juncos,com uns cinquentametros de um lado a outro, situa-se no limite entre aFazendaHatherleyeoparqueprivadodoabastadoMr.Turner.Alémdasmatasqueacontornavamdoladomaisdistante,podíamosverospináculosvermelhosquesobressaíam,assinalandoaresidênciadoricoproprietário.NoladoquedavaparaaFazendaHatherley,amataeradensaehaviaumafaixaestreitaderelvaencharcada,deunsvintepassosdelargura,entreaorladobosqueeosjuncosquecontornavamalagoa.Lestrademostrou-nosolugarexatoemqueocorpoforaencontrado,enaverdadeochãoestavatão úmido que pude ver claramente os traços deixados pela queda davítimaaosergolpeada.ParaHolmes,comopudeverporseurostoansiosoe olhos perscrutadores, muitas outras coisas eram visíveis no capimpisoteado.Depoisdeandaremcírculos,comoumcãoquefareja,voltou-separaomeucompanheiro.

“Paraquevocêentrounalagoa?”“Andei vasculhando o fundo com um ancinho. Achei que poderia

haveralgumaarmaouqualqueroutroindício.Mascomo,diabos…?”“Ora, não tenho tempo! Esse seu pé esquerdo, torcido para dentro

comoé,estáportodaparte.Atéumatoupeirapoderiaidenti icá-lo,ealieledesaparece entre os juncos. Ah, como teria sido simples se eu tivesseestado aqui antes de toda essa gente que andou por aqui como umamanadadebúfalos,pisoteandotudo.Foiporaquiqueveioogrupocomocaseiro;cobriramtodasaspegadasporunsdoismetrosemvoltadocorpo.Mascáestãotrêsmarcasseparadasdosmesmospés.”Tirouumalupadobolso e deitou-se sobre sua capa de chuva para ver melhor, falando otempo todo, mais consigo mesmo do que conosco. “Estas são do jovemMcCarthy. Duas vezes ele estava andando, e uma correndo depressa, demodo que as solas estão profundamente marcadas e mal se veem oscalcanhares. Istocon irmaahistóriaquecontou.Correuquandoviuopaicaídonochão.Alémdisso,aquiestãoaspegadasqueopaideixouquandoandavadeumladoparaoutro.Masqueéistoaqui?Éapontadacoronhadaespingarda,enquantoo ilho icouparado,ouvindo.E isto?Ah,ah!Quetemos aqui? Pontas de pés, pontas de pés! E além do mais quadradas,botaspoucocomuns!Elasvêm,vão,vêmnovamente…éclaro,parapegaramanta. Mas de onde vieram?” Correu para cima e para baixo, às vezes

encontrando, às vezes perdendo a pista, até que havíamos entradobastantemata adentro e estávamos sob a sombra de uma grande faia, amaior árvore das redondezas. Holmes avançou até o lado mais distantedela e deitou-semais uma vez de cara para o chão, com um gritinho desatisfação.Ficouumbomtempoali,remexendoemfolhasegravetossecos,recolhendonumenvelopeoquemepareceuser terraeexaminandocomsua lupa não só o chão como a casca da árvore, até a altura que pôdealcançar. Uma pedra pontiaguda, no meio do musgo, também foicuidadosamenteexaminadaeguardada.Depoiseleseguiuumatrilhapelamataatéchegaràestrada,ondetodososrastrosdesapareciam.

“Ficouumbomtempoali.”[SidneyPaget,StrandMagazine,1891]

“Foi um caso de considerável interesse”, observou, voltando às suasmaneirasdesempre.“Imaginoqueessacasacinzentaàdireitadeveserado caseiro. Acho que vou até lá dar uma palavra com Moran e talvezescreverumbilhetinho. Isto feito,poderemospegaracarruagemdevoltapara o nosso almoço. Vocês podem ir andando até ela, estarei com vocêsnuminstante.”

Levamos uns dez minutos para chegar a nosso carro e voltamos aRoss,Holmesaindacarregandoconsigoapedraqueapanharanobosque.

“Talvezestapedralheinteresse,Lestrade”,disse,mostrando-a.“Foiaarmadocrime.”

“Nãovejonenhumamarca.”“Nãohámarcas.”

“Entãocomosabe?”“O capim estava crescendo debaixo dela. A pedra só passou poucos

diasali.Nãohásinaldolugardeondeelafoiretirada.Elacorrespondeaosferimentos.Nãohánenhumvestígiodequalqueroutraarma.”

“Eoassassino?”“Éumhomemaltoecanhoto;coxeiacomapernadireita,usabotasde

caça de sola grossa e uma capa cinzenta, fuma charutos indianos, usapiteira e leva no bolso um canivete cego. Há vários outros indícios, masestestalvezbastemparanosajudaremnossabusca.”

“Lamento, mas continuo cético”, respondeu Lestrade, rindo. “Asteoriassãoboas,masteremosdeenfrentarumjudiciosojúriinglês.”

“Nousverrons” , disse Holmes serenamente. “Você aplica seumétodo,euaplicareiomeu.EstareiocupadoestatardeeprovavelmentevoltareiaLondrespelotremdanoite.”

“Deixandoseucasosemconclusão?”“Não,concluído.”“Masomistério…?”“Estádesvendado.”“Nessecaso,quemfoiocriminoso?”“Ocavalheiroquedescrevi.”“Masqueméele?”“Certamentenão lheserádi ícildescobrir.Estanãoéumaregião tão

populosaassim.”“Sou um homem prático”, retrucou Lestrade, dando de ombros, “e

realmente não tenho condições de sair pela região à procura de umcavalheirocanhotoecoxo.AScotlandYardempesoririademim.”

“Muitobem”,disseHolmes, semsealterar. “Dei-lheachance.Cáestásuahospedaria.Adeus.Voulheescreverantesdepartir.”

TendodeixadoLestradeemseualojamento,fomosparaonossohotel,onde encontramos o almoço namesa. Holmes estava calado e imerso empensamentos.Tinhaumaexpressãoa litanorosto,comoalguémquesevênumbecosemsaída.

“Por favor, Watson”, disse quando a toalha de mesa foi retirada.“Sente-se aqui nesta cadeira e deixe-me fazer-lhe umbreve sermão.Nãoseibemoquefazeregostariaquemeaconselhasse.Acendaumcharutoepermita-meexporoproblema.”

“Porfavor.”“Bem,naconsideraçãodestecaso,doisaspectosdanarrativadojovem

McCarthy nos surpreenderam de imediato, a nós dois, embora a mimtenhamparecidofavoráveisaele,eavocê,contrários.Umfoiofatodeque,segundoeledeclarou,opaiteriagritado‘Cooee’antesdevê-lo.Ooutrofoia singular referência do moribundo a um rato. Ele murmurou váriaspalavras, claro, mas foi só isso que o ilho entendeu. Ora, nossainvestigação deve partir desses dois pontos, e começaremos presumindoqueaspalavrasdorapazsãoabsolutamenteverdadeiras.”

“Quepoderiasignificaresse‘Cooee!’,então?”“Bem,obviamentenãopoderiatersidodirigidoao ilho.Este,peloque

o pai sabia, estava em Bristol. Foi pormero acaso que o ilho o ouviu. Oobjetivodogritoerachamaraatençãodapessoacomquemopaimarcaraum encontro. Mas como se trata de um grito caracteristicamenteaustraliano, usado entre australianos, há forte probabilidade de que apessoaqueMcCarthyesperavaencontrarnalagoaBoscombefossealguémqueestiveranaAustrália.”

“Maseorato?”SherlockHolmes tirou do bolso umpapel dobrado e o abriu sobre a

mesa. “IstoéummapanaColôniadeVictoria”,disse. “Telegrafei aBristolpedindo-o,ontemànoite.”

Tapouumapartedomapacomamão.“Quelêaqui?”“Arat”,li.“Eagora?”,ergueuamão.“Ballarat.”“É claro. Foi esta a palavra pronunciada pelo moribundo, de que o

ilho captou apenas as duas últimas sílabas. Ele estava tentandopronunciaronomedoassassino.Fulanodetal,deBallarat.”

“Éfabuloso!”exclamei.“É óbvio. Com isso, como vê, estreitei consideravelmente o campo. A

posse de uma roupa cinzenta era um terceiro ponto que, a se admitir acorreção das palavras do ilho, constituía uma certeza. Saímos agora damera imprecisão para a ideia precisa de um australiano de Ballarat comumacapacinzenta.”

“Semdúvida.”“E que se sentia em casa no distrito, pois só se pode chegar à lagoa

passandopela fazendaoupelapropriedade, locaisemqueestranhosnãopoderiamperambular.”

“Naturalmente.”“Fizemosentãoanossaexpediçãodehoje.Pormeiodeumexameno

terreno,obtiveosdetalhes insigni icantesque transmitiàquele imbecildoLestradesobreapessoadocriminoso.”

“Mascomochegouaeles?”“Vocêconhecemeumétodo.Baseia-senaobservaçãodetrivialidades.”“Quanto à altura, sei que poderia deduzi-la aproximadamente pelo

tamanhodas passadas. As botas tambémpoderiam ser descritas a partirdaspegadas.”

“Isso;erambotaspeculiares.”“Masofatodesercoxo?”“A marca do pé direito dele era sempre menos distinta que a do

esquerdo.Elepunhamenospesosobreele.Porquê?Porqueclaudicava…eracoxo.”

“Maseofatodesercanhoto?”“Você mesmo icou impressionado com a natureza do ferimento, tal

como descrito pelo médico no inquérito. O golpe foi desfechadoimediatamente de trás e, apesar disso, sobre o lado esquerdo. Ora, comoteriaissosidopossívelamenosqueoautorfossecanhoto?Ele icaraatrásdaquelaárvoreduranteaconversaentreopaieo ilho.Chegaraa fumarali. Encontrei cinza, que meu conhecimento especializado de cinzas detabaco me permitiu identi icar como de um charuto indiano. Como sabe,dediquei certa atenção ao assunto e escrevi uma pequena monogra iasobre as cinzas de cento e quarenta variedades de fumo de cachimbo,charutoecigarro.Tendoencontradoacinza,olheiemvoltaeacheiapontado charuto entre omusgo, onde ele a jogara. Era um charuto indiano, davariedadeenroladaemRotterdã.”

“Eleficaraatrásdaquelaárvore.”[SidneyPaget,StrandMagazine,1891]

“Eapiteira?”“Pude ver que a pontanão estivera em suaboca. Portanto o homem

usavapiteira.Apontaforacortada,nãomordida,masocortenãoerabem-feito,doquededuziumcanivetecego.”

“Holmes,vocêlançouemvoltadessehomemumarededequeelenãopoderá se desvencilhar, e salvou uma vida humana inocente, tãoverdadeiramente como se tivesse cortado a corda que o enforcava. Vejoemquedireçãotudoissoaponta.Oculpadoé…”

“Mr. John Turner”, anunciou o garçom do hotel, abrindo a porta denossasaladeestareintroduzindoumvisitante.

Entrou uma igura estranha, impressionante. O andar lento eclaudicante e os ombros encurvados davam-lhe uma aparência dedecrepitude,muitoemboraseustraçosduros,sulcadosebem-marcadoseseus membros enormes mostrassem que era dotado de uma forçaincomum, ísica e moral. A barba emaranhada, o cabelo grisalho e assobrancelhascaídascombinavam-separalheconferirumardedignidadeepoder,maso rostoeradeumbranco-acinzentado,enquantoos lábiose

oscantosdasnarinastinhamumanuancedeazul.Umrelancedeixouclaroparamimqueaquelehomemsofriadeumadoençacrônicaefatal.

“Por favor, queira sentar-se no sofá”, disse Holmes, cortesmente.“Recebeumeubilhete?”

“Recebi,ocaseiroo levouparamim.Osenhordissequedesejavameveraquiparaevitarescândalo.”

“Penseiquehaveriamexericosseeufosseaosolar.”“Eporquequismever?”Lançouumolhar sobremeu companheiro;

havia desespero nos seus olhos cansados, como se aquela pergunta játivessesidorespondida.

“É”,disseHolmes, respondendomaisaoolhardoqueàspalavras. “Éisso.SeitudosobreMcCarthy.”

“Valha-me Deus!” exclamou o velho, escondendo o rosto nas mãos.“Mas eu não teria deixado que o rapaz fosse prejudicado.Dou-lheminhapalavra de que teria me pronunciado se o condenassem no tribunalsuperior.”

“Ficofelizporouvi-lodizerisso”,respondeuHolmesgravemente.“Teriafaladoagoramesmo,nãofossepelaminhaqueridamenina.Ela

ficariaconsternada…ficará,quandosouberquefuipreso.”“Talvezissonãoocorra”,disseHolmes.“Quê?”“Não sou agente da polícia. Pelo que sei, foi sua ilha que solicitou

minha presença aqui, é no interesse dela que estou agindo.Mas o jovemMcCarthydevesersolto.”

“Souummoribundo”,disseovelhoTurner.“Sofrodediabetesháanos.Meu médico diz que talvez não tenha mais nem um mês de vida. Masgostariademorrersobmeupróprioteto,nãonumaprisão.”

Holmes levantou-se e foi sentar-se àmesa com sua caneta namão eum maço de papéis à sua frente. “Conte-nos simplesmente a verdade”,disse. “Anotarei os fatos. O senhor assinará e Watson servirá detestemunha. Assim, em último caso, poderei apresentar a sua con issãopara salvar o jovem McCarthy. Prometo-lhe só usá-la se absolutamentenecessário.”

“Está bem”, disse o velho. “Como não é certo que viverei até ojulgamento,issotempoucaimportânciaparamim,masgostariadepouparAlicedessechoque.Eagoravoulhesexplicartudo;ascoisaslevarammuito

tempoparaacontecer,masnãoprecisareidemuitoparacontá-las.“Osenhornãoconheceuomorto,McCarthy.Eraodemônioencarnado.

Eu lhe garanto. Deus o livre das garras de um homem assim. Estive nassuas garras nos últimos vinte anos e ele arruinou aminha vida. Vou lhecontarprimeirocomomeviàsuamercê.

“Foi no início da década de 1860, nas minas. Na época eu era umrapaz de sangue quente, afoito, disposto a tudo; misturei-me a máscompanhias, dei para beber, não tive sorte com minha concessão,embrenhei-mepelomatoe,numapalavra,transformei-menoquechamamaqui de salteador. Éramos seis, levávamos uma vida dissoluta, livre,assaltandoàmãoarmadauma fazendadecriaçãodegadode temposemtempos, ou detendo carroças nas estradas para as minas. Tornei-meconhecido pelo nome Black Jack de Ballarat e até hoje nosso grupo élembradonacolôniacomoaQuadrilhaBallarat.

“Certodia,ficamosdeemboscadaeatacamosumcomboiodeouroqueia de Ballarat para Melbourne. Como eram seis soldados e nós tambéméramosseis,foiduro,masderrubamosquatrodelesnaprimeirarajadadebalas.Trêsdosnossosmorreram,porém,antesdeconseguirmosobutim.Encostei minha pistola na cabeça do cocheiro, que não era outro senãoesseMcCarthy.Juroquegostariadetê-lomatadoalimesmo,maspoupei-o,apesardeverseusolhosperversospregadosnomeurosto,comoseparamemorizarcadatraço.Fugimoscomoouro, icamosricoseviemosparaaInglaterra sem despertar suspeitas. Aqui eu me afastei de meus antigoscamaradas e resolvi me estabelecer numa vida tranquila e respeitável.Comprei esta propriedade, que por sorte estava à venda, e me decidi apraticaralgumbemcommeudinheiroparacompensaramaneiracomooganhara.Casei-metambém,e,emboraminhamulhertenhafalecidojovem,deixou-me a minha querida Alice. Desde que ainda era um bebê, suamãozinhapareciame levarpara o bom caminho, comonada izera antes.Numapalavra,vireiumapáginanovae iztudoquepudeparameredimirdopassado.TudoiabemquandoMcCarthydeitousuasgarrasemmim.

“Eu foraà cidade tratardeum investimentoeoencontreinaRegentStreet,quaseandrajoso.

“‘Cáestamos,Jack’,disseele,tocando-meobraço.‘Seremoscomoumaverdadeira família para você. Somos dois, meu ilho e eu, e você podecuidar de nós. Se não quiser… a Inglaterra é um país excelente, a leiimperaaqui,ésóchamarqueumpolicialaparece.’

“Bem, desceram cá para o oeste, não houve meio de eu me livrar

deles, e desde então vivem sempagar nada nasminhasmelhores terras.Nuncamais tive descanso, nem paz, nem esquecimento; para onde querqueeumevirasse,topavacomsuacaraespertaerisonha.Ascoisasforamicando ainda piores àmedida queAlice crescia, pois ele logo viu que eutinhamaismedo de que ela conhecesse omeu passado do que a polícia.Todos os seus desejos deviam ser satisfeitos, e eu lhe dava fosse o quefosse semquestionar: terra, dinheiro, casas, até que inalmente elepediualgoqueeunãopodialhedar.PediuAlice.

“O ilhodeleeaminhamenina, é claro,haviamcrescido, e, comoerasabidoque eu era umhomemdoente, pareceu-lhe umbelo golpe fazer oilhoseapossardetodoomeupatrimônio.Masnessaquestãoeufui irme.Nãoqueriaseumalditosanguemisturadocomomeu;nãoquedesgostassedo rapaz, mas tinha o sangue do pai nas veias, e isso bastava. Resisti.McCarthyameaçou.Desa iei-oafazeropior.Deveríamosnosencontrarnalagoa,ameiocaminhoentrenossascasas,pararesolveroassunto.

“Quando cheguei, encontrei-o conversando como ilho; esperei atrásde uma árvore, fumando um charuto, até que icasse sozinho. Masenquanto ouvia a conversa, tudo que havia de negro e amargo emmimpareceuseexacerbar.Eleinstavao ilhoasecasarcomaminha ilha,comtãopoucorespeitopeloqueelapoderiapensarcomosefosseumarameiradarua.A ideiadequeela,oqueeutinhademaiscaro,estivesseàmercêdeumhomemdaquelesdeixou-meenlouquecido.Nãopoderiaeurompero laço? Já era um homem doente e desenganado. Embora ainda lúcido ecom bastante força nos braços, sabia que meu próprio destino estavaselado.Masminhamemóriaeminha ilha!Ambaspoderiamsersalvasseeupudessesilenciaraquela língua imunda.Euo iz,Mr.Holmes, eo fariadenovo.Pormaioresquetenhamsidoosmeuspecados,leveiumavidademartírioparaexpiá-los.Masqueminhamenina icassepresanasmesmasmalhasquemeenredavameramaisdoqueeupodia suportar.Golpeei-osemmais piedade do que se fosse um animal imundo e peçonhento. Seugritotrouxeo ilhodevolta,maseujáchegaraàproteçãodamata,emboratenhasidoobrigadoavoltarparapegaracapaquedeixaracairnafuga.Éesta,senhores,averdadeirahistóriadetudoqueaconteceu.”

“Bem, não me compete julgá-lo”, disse Holmes enquanto o velhoassinava a declaração que ele redigira. “Rezo para que nunca estejamosexpostosasemelhantetentação.”

“Esperoquenão,senhor.Equepretendefazer?”“Tendo em vista a sua saúde, nada. O senhormesmo está ciente de

que, dentro em breve, terá de responder por seus atos perante umtribunalmuitosuperioraonosso.Guardareisuacon issão.SeMcCarthyforcondenado, serei obrigado a usá-la; senão, ela jamais será lida porninguémeseusegredo,querosenhorestejavivooumorto,estaráseguroconosco.”

“Adeus, então”, disse o velho, solenemente. “Os senhores sofrerãomenos em seus leitos demorte, quando isso ocorrer, graças à lembrançadapazquemeproporcionaramnomeu.”Deixouasalalentamente,todooseucorpanziloscilandoetremendo.

“QueDeusnosajude!”exclamouHolmesdepoisdeumlongosilêncio.“Por que o destino prega peças como essa a pobres vermes impotentes?Nunca travo conhecimento com um caso como este sem pensar naspalavrasdeBaxteredizer:‘Alivai,pelagraçadeDeus,SherlockHolmes.’”

JamesMcCarthy foi absolvidono tribunal superior por força de umasérie de objeções levantadas por Holmes e entregues ao conselho dedefesa.OvelhoTurnerviveumais setemesesapósnossaentrevista,masagora estámorto; e éde todoprovávelqueo ilho e a ilhapossamviverfelizes juntos, na ignorância da nuvem negra que paira sobre o seupassado.

ASCINCOSEMENTESDELARANJA

QUANDO PASSO OS OLHOS porminhasnotas e registros dos casos de SherlockHolmes entre os anos 1882 e 1890, deparo com tantos que apresentamcaracterísticas estranhas e interessantes que não é fácil saber quaisescolherequaisabandonar.Alguns,porém,jáganharampublicidadepelosjornaiseoutrosnãoofereceramcampoparaaquelasqualidadespeculiaresquemeuamigopossuíaemtãoaltograu,equeéoobjetivodestesescritosilustrar.Alguns,ainda,desconcertaramsuacapacidadeanalítica,eseriam,como narrativas, começos sem im, enquanto outros tantos foram apenasparcialmente desvendados, suas explicações baseando-se mais naconjecturaenasuposiçãodoquenaprovalógicaabsolutaquelheeratãocara. Um destes últimos, porém, foi tão notável em seus detalhes, tãoespantoso em seus resultados, que me sinto tentado a narrá-lo, emboraenvolva aspectos que nunca foram totalmente esclarecidos eprovavelmentenuncaserão.

Oanode1887proporcionou-nosuma longa sériede casosdemaiorou menor interesse, cujos registros conservo. Entre meus títulos desseperíodo de doze meses, encontro narrativas da aventura da CâmaraParadol, do caso da Sociedade Mendicante Amadora, que mantinha umclube luxuosonosporõesdeumdepósitodemóveis,dos fatosassociadosao desaparecimento do brigue britânicoSophy Anderson, das singularesaventuras dos Grice Paterson na ilha de Uffa, e por im do caso deenvenenamento de Camberwell. Neste último, o leitor talvez se recorde,SherlockHolmesconseguiu,dandocordanorelógiodomorto,provarquelhehaviamdadocordaduashorasantesequeportantoofalecidoforasedeitar dentro desse intervalo — dedução que foi da maior importânciaparaoesclarecimentodocaso.Todosessessãocasosquepodereiesboçarem alguma data futura, mas nenhum apresenta características tãosingulares quanto a estranha cadeia de circunstâncias queme proponhoagoraadescrever.

Foinosúltimosdiasdesetembro,eosvendavaisdoequinóciohaviamchegadocomexcepcionalviolência.Oventogemeraduranteodiatodoea

chuva fustigara as janelas com tal fúria que mesmo ali, no coração dagrande Londres feita pelos homens, éramos obrigados a afastar amenteda rotina da vida por um instante e reconhecer a presença daquelasgrandes forças elementares que gritam para a humanidade através dasgradesdesuacivilização,comoanimais indomáveisnuma jaula.Àmedidaqueanoitesefechava,atempestade icavamaisintensaemaisruidosa;nachaminé, o vento chorava e soluçava como uma criança. Num lado dalareira, acabrunhado, Sherlock Holmes estabelecia referências cruzadasentre suas ichas de crimes, enquanto eu, no outro lado, estava imersonumadasbelashistóriasdomardeClarkRussell,atéqueouivodoventoláforapareceusefundircomotextoeasrajadasdachuvaestenderem-senolongomarulhodasondasdomar.MinhamulhertinhaidovisitaramãeeporalgunsdiaseuvoltaraamoraremmeusantigosaposentosemBakerStreet.

“Ouviu?” perguntei, levantando os olhos para o meu companheiro,“Isso foi certamente a campainha. Quem poderia ser, numa noite comoesta?Algumamigoseu,talvez?”

“Excetovocê,nãotenhoamigos”,respondeuele.“Nãoestimulovisitas.”“Umcliente,então?”“Se for, o caso é sério. Ninguém sairia com um tempo deste, numa

hora desta, se não fosse. Parece-memais provável que seja algum amigodasenhoria.”

MasSherlockHolmesestavaerradoemsua conjectura,poisouvimospassos no corredor e uma batida à porta. Esticando seu comprido braço,elegiroualâmpada,afastando-adesievoltando-aparaacadeiravaziaemqueumrecém-chegadodeveriasesentar.

“Entre!”exclamou.O homem que entrou era jovem, aparentava uns vinte e dois anos;

bem-tratado e vestido com apuro, tinha um quê de re inamento edelicadezaemsuasmaneiras.Ogotejanteguarda-chuvaquetinhanamãoe sua comprida e reluzente capa de chuva revelavam o tempomedonhoqueenfrentara.Olhoua litoàsuavoltaà luzda lâmpada,epudeverquetinhaorostopálidoeosolhoscarregados,comoosdeumhomemvergadoaopesodeumagrandeansiedade.

“Devo me desculpar”, disse, levando aos olhos um pincenê de ouro.“Esperonãoestarsendoimportuno.Receiotertrazidoalgumasmarcasdovendavaledachuvaparasuaacolhedorasala.”

“Dê-meacapaeoguarda-chuva”,disseHolmes.“Penduradosaquinoganchologoestarãosecos.Peloquevejo,veiodosudoeste.”

“É,vimdeHorsham.”“Essamisturadeargila e gredaquevejonapontade seus sapatosé

absolutamentecaracterística.”“Vimpedirconselho.”“Coisafácildeseconseguir.”“Eajuda.”

“Olhouaflitoàsuavolta.”[SidneyPaget,StrandMagazine,1891]

“Issonemsempreétãofácil.”“Ouvi falar do senhor, Mr. Holmes. O major Prendergast contou-me

comoosalvounoescândalodoClubeTankerville.”“Ah, claro. Ele foi injustamente acusado de trapacear num jogo de

cartas.”

“Dissequeosenhorécapazderesolverqualquercaso.”“Exagero.”“Que nunca foi derrotado.” “Fui derrotado quatro vezes… três vezes

porhomenseumaporumamulher.”“Masoqueéissocomparadoaonúmerodeseusêxitos?”“Éverdadequeemgeraltenhosidobem-sucedido.”“Entãodeverásercomigotambém.”“Aproxime sua cadeira do fogo, por favor, e tenha a bondade deme

forneceralgunsdetalhesdeseucaso.”“Nãoéumcasocomum.”“Nenhum dos que me vêm às mãos é. Sou o último tribunal de

apelação.”“Apesardisso, duvidoque, com toda a sua experiência, tenhaouvido

algumdiaumacadeiadeacontecimentosmaismisteriosaeinexplicáveldoqueaocorridanaminhafamília.”

“Estáme deixando intrigado”, disse Holmes. “Por favor, conte-nos osfatos essenciais desde o começo; depois poderei interrogá-lo quanto aosdetalhesquemepareçamosmaisimportantes.”

Ojovempuxouacadeiraeesticouospésmolhadosparaaschamas.“MeunomeéJohnOpenshaw,masmeusprópriosnegóciospoucotêm

aver, peloqueposso entender, comohorrível problemaque enfrento. Éum assunto hereditário; assim, para lhe dar uma ideia dos fatos, devoretomarocomeçodetudo.

“Precisamsaberquemeuavôtevedois ilhos,meutioEliasemeupaiJoseph.MeupaitinhaumafabriquetaemCoventry,queampliounaépocadainvençãodabicicleta.FoielequepatenteouopneuOpenshaw,quenãofura, e seu negócio teve tanto sucesso que pôde vendê-lo e aposentar-secomumabelarenda.

“Meu tio Elias emigrou para os Estados Unidos quando jovem etornou-se fazendeiro na Flórida, onde consta que se saiumuito bem. Naépocadaguerraele lutounoexércitode Jackson, eposteriormente sobocomando de Hood, chegando ao posto de coronel. Quando Lee depôs asarmas,meutiovoltouparaasuafazenda,ondepermaneceutrêsouquatroanos. Por volta de 1869 ou 1870, voltou para a Europa e comprou umapequena propriedade em Sussex, perto de Horsham. Fizera uma fortunabastanteconsiderávelnosEstadosUnidos,esuarazãoparadeixaraquele

paísfoisuarepulsaaosnegroseseudescontentamentocomapolíticadosrepublicanos,quelhesestendeuodireitodevoto.Eraumhomemsingular,arrebatadoedepavio curto; eramuitodesbocadoquando se enfurecia emuito retraído. Durante todos os anos que passou em Horsham, duvidoqueumdiatenhapostoospésnacidade.Tinhaumpomareduasoutrêsplantaçõesemvoltadecasa,ealiseexercitava,emboracostumassepassarsemanas inteiras fechado em seu quarto. Bebia grande quantidade deconhaque, fumavamuito, não apreciava nenhum convívio e não desejavateramigos,nemmesmoseupróprioirmão.

“Maseunãoo incomodava;de fato, gostoudemimdesdeaprimeiravezquemeviueeueraumgarotodeunsdozeanos.Issodevetersidoem1878,oitoounoveanosdepoisqueelevoltaraparaa Inglaterra.Pediuameupaiquemedeixassemorarcomele,e,aseumodo,elefoimuitobomparamim.Quandoestavasóbrio,gostavadejogargamãoedamascomigo,emeusavacomoseurepresentante juntoaoscriadoseaoscomerciantes,de modo que aos dezesseis anos eu era praticamente o senhor da casa.Tinha todas as chaves emmeu poder, podia ir aonde bem entendesse efazer oquemedessena veneta, contantoquenãooperturbasse em suaprivacidade.Sóhaviaumaexceção:eletinhaumúnicoquarto,umdepósitode trastes no sótão, que permanecia invariavelmente trancado, e jamaispermitia que eu ou qualquer outra pessoa entrasse ali. Eu espiava pelafechadura, com curiosidade infantil, mas nunca pude ver mais que umaporção de baús velhos e trouxas, como seria de esperar num quartinhodaquele.

“Certo dia — foi em março de 1883 —, uma carta com seloestrangeiro foi deixada namesa, em frente ao prato do coronel. Ele nãocostumava receber cartas, pois pagava suas contas à vista e não tinhanenhum amigo de nenhuma espécie. ‘Da Índia!’ exclamou ele, pegando acarta. ‘Carimbo de Pondicherry! Que será isso?’ Quando a abriu, àspressas, cinco sementinhas secas de laranja pularam do envelope etamborilaramnoseuprato.Comeceiarir,masaexpressãodelecongelou-me o riso. Seu lábio caíra, os olhos estavam esbugalhados, a pele, cor demassadevidraceiro,eeleolhavafixamenteoenvelopequeaindaseguravacomamão trêmula. ‘K.K.K.!’ gemeu. ‘MeuDeus,meuDeus,meuspecadosmealcançaram!’

“‘Queéisso,tio?’“‘Amorte’,respondeuele, levantando-sedamesaeretirando-separa

o seu quarto, deixando-me palpitando de horror. Pegando o envelope, vi,

garatujadacomtintavermelhanaabainterna,logoacimadacola,aletraKrepetida trêsvezes.Nãohaviamaisnada,excetoascincosementessecas.Qual poderia ser a razão daquele terror acabrunhante? Deixei amesa equando subia a escada dei com ele descendo; trazia uma chave velha eenferrujada, que devia ser do sótão, numa das mãos, e na outra umacaixinhadelatão,parecendoumcofrededinheiro.

“‘Podem fazer o que quiserem, mas eu ainda os derrotarei’, disse,soltandoumapraga. ‘DigaaMaryquequeroa lareiraacesahojenomeuquarto,emandebuscaroFordham,oadvogadodeHorsham.’

“Fiz o que me mandava. Quando o advogado chegou, pediu-me quesubissecomeleaoseuquarto.Na lareira,ondeo fogoardiavivamente,viuma massa de cinzas negras, fofas, como de papel queimado; ao ladoestavaacaixadelatão,abertaevazia.Aoolharparaacaixa,notei,comumsobressalto, quena tampaestava impressoomesmo triploKque eu virademanhãnoenvelope.

“‘Queroquevocêsirvadetestemunhadomeutestamento,John’,dissemeu tio. ‘Deixo todososmeusbens, suasvantagensedesvantagens,parameu irmão, seu pai, de quem sem dúvida você os herdará. Se puderdesfrutar deles em paz, muito bem! Se achar que não pode, aceite meuconselho, meu rapaz, e deixe-os para seu pior inimigo. Lamento dar-lheesta faca de dois gumes,mas não sei que rumo as coisas vão tomar. Porfavor,assineopapelondeMr.Fordhamlhemostrar.’

“Assinei o papel como indicado, e o advogado o levou consigo. Osingular incidente causou-me, como podem imaginar, a mais profundaimpressão;refletimuitosobreeleerevirei-odetodososângulosemminhamente, sem conseguir entender coisa alguma daquilo. Ao mesmo tempo,nãoeracapazdemelivrardavagasensaçãodemedoqueeledeixouatrásde si, embora ela tenha se tornado menos intensa à medida que assemanas passavam e nada acontecia para perturbar a rotina habitual denossasvidas.Eupodia, porém,perceberumamudançanomeu tio.Bebiaainda mais e mostrava-se ainda menos propenso a qualquer tipo decontato com outras pessoas. Passava a maior parte do tempo em seuquarto,comaporta trancadapordentro,masdevezemquandoemergianumaespéciedeexaltaçãobêbeda,saíadecasaeandavadeumladoparaoutrono jardimcomumrevólvernamão, furioso,gritandoquenão tinhamedo de ninguém e que não se deixaria encurralar por homem ou pordiabo algum.Mas quando esses acessos passavam, ele corria alvoroçadoparadentroefechavaaportacomchaveetrancaatrásdesi,comoalguém

que não consegue mais fazer frente ao terror que carrega no fundo daalma.Nessasocasiões,viseurosto,mesmonumdiafrio,molhadocomosetivesseacabadodeseerguerdeumabacia.

“Bem, para encerrar a história, Mr. Holmes, e não abusar de suapaciência,certanoiteeledeuumadessassaídasdebêbadoenuncavoltou.Nósoencontramos,quandosaímosàsuaprocura,emborcadonumapoçacheia de uma espuma verde que icava no fundo do pomar. Como nãohavianenhumsinaldeviolênciaeaáguanãotinhamaisqueunssessentacentímetros de profundidade, as autoridades, tendo em vista suaconhecida excentricidade, deram um veredicto de ‘suicídio’. Mas eu, queseicomoeleestremeciaàsimplesideiadamorte,tivemuitadi iculdadeemme convencer de que se dera ao trabalho de ir ao encontro dela. Masacabeitirandoissodacabeça,emeupaitomoupossedapropriedadeedeumacontadecercadecatorzemillibrasnobanco.”

“Um momento”, atalhou Holmes, “antecipo que sua narrativa é dasmaisnotáveisquejáouvi.Diga-meadataemqueseutiorecebeuacartaeadatadeseusupostosuicídio.”

“Nósoencontramosemborcadonumapoçacheiadeumaespumaverde.”[SidneyPaget,StrandMagazine,1891]

“Acartachegounodia10demarçode1883.Suamorteocorreusetesemanasdepois,nanoitede2demaio.”

“Muitoobrigado.Porfavor,continue.”“QuandomeupaitomoupossedapropriedadedeHorsham,procedeu,

a meu pedido, a um exame cuidadoso do sótão, que estivera sempretrancado. Encontramos ali a caixa de latão, embora seu conteúdo tivessesidodestruído.Noladointeriordatampahaviaumrótulodepapelcomasiniciais K.K.K. repetidas, e sob elas estava escrito: ‘Cartas, memorandos,recibos e um registro.’ Essas palavras indicavam, ao que presumimos, anatureza dos papéis que haviam sido destruídos pelo coronel Openshaw.Quanto ao resto, não havia nada de muita importância no sótão, excetograndequantidadedepapéiseagendasdispersos,relacionadosàvidademeutionaAmérica.Algunseramdaépocadaguerraemostravamqueelecumprira bem o seu dever, granjeando reputação de um bravo soldado.Outros eram da época da reconstrução dos estados do Sul, e diziamrespeitoprincipalmenteapolítica,poiseledesempenhara,evidentemente,umpapel ativonaoposição aospolíticosdoNorteque iamparao Sul embuscadevantagens.

“Bem,meupaifoimoraremHorshamnoiníciode1884etudocorreutãobemquantopossívelatéjaneirode1885.NoquartodiadepoisdoAno-Novo, quandonos sentamos juntos àmesadodesjejum, ouvi umgrito desurpresa. Lá estava meu pai, com um envelope recém-aberto numa dasmãos e cinco sementes secas de laranja na palma da outra. Ele, quecostumavarirdoquechamavademinhahistóriaparaboidormirsobreocoronel,pareciaapavoradoeperplexoagoraqueomesmolheacontecia.

“‘Ora, que diabo signi ica isto, John?’ gaguejou. Meu coração icoupesadocomochumbo.‘ÉaK.K.K.’,respondi.

“Ele olhou o interior do envelope. ‘É isso mesmo’, exclamou. ‘Aquiestãoessasletras.Masqueestáescritoacimadelas?’

“‘Ponhaospapéisnorelógiodesol’,li,olhandosobreoombrodele.“‘Quepapéis?Querelógiodesol?’“‘O relógio de sol do jardim; não há outro.Mas os papéis devem ser

aquelesqueforamqueimados.’“‘Bobagem!’ retrucou ele, armando-se de coragem. ‘Este é um país

civilizadoenãotoleramostolicesdessegênero.Deondevemessacoisa?’“‘DeDundee’,respondi,lançandoosolhosnocarimbo.“‘Alguma bricandeira ridícula’, disse ele. ‘Que tenho eu a ver com

papéis e relógios de sol? Não vou tomar conhecimento de um absurdodesse.’

“‘Eucertamentefalariacomapolícia’,sugeri.“‘Eseriamotivoderiso.Não,nadadisso.’“‘Permiteentãoqueeufale?’“‘Não, você está proibido. Não quero fazer tempestade em copo

d’água.’“Foiinútildiscutir,eleeraumhomemmuitoteimoso.Mas iqueicheio

demauspressentimentos.“No terceiro dia depois da chegada da carta, meu pai viajou para

visitarumvelhoamigo,omajorFreebody,quecomandaumdos fortesdePortsdownHill.Fiquei satisfeito,pois tinhaa impressãodequeeleestavamaisasalvoquandosaíadecasa.Masnissoeuestavaerrado.Nosegundodia de sua ausência recebi um telegrama do major, implorando-me quefosse lá imediatamente.Meupaicaíranumdosprofundospoçosdegredaque abundam nas vizinhanças e estava na cama sem sentidos e com acabeça quebrada. Fui o mais depressa que pude, mas ele morreu semjamais ter recobrado a consciência. Ao que parece, estava voltando deFareham no crepúsculo, e como não conhecia a região, e o poço não eracercado, o júri não hesitou em emitir um veredicto de ‘morte por causasacidentais’. Por mais cuidadosamente que eu examinasse todos os fatosrelacionados com a suamorte, não consegui descobrir coisa alguma quepudessesugerira ideiadeassassinato.Nãohaviasinaisdeviolência,nempegadas, nada fora roubado, ninguém vira estranhos pelas estradas.Apesardisso,nãoprecisolhesdizerquenão iqueinemdelongetranquiloe tinha quase certeza de que alguma trama perversa fora tecida à voltadele.

“Foi dessa maneira sinistra que tomei posse de minha herança. Osenhorperguntará:porquenãoabrimãodela?Respondo:porqueestavabastanteconvencidodequenossosproblemasseligavamdealgumaformaa um incidente na vida demeu tio, e de que haveria tanto perigo numacasacomonoutra.

“Meu pai faleceu em janeiro de 1885; passaram-se dois anos e oitomesesdesdeentão.Duranteessetempo,vivifelizemHorshamecomeçaraa acreditar que a família havia escapado daquela maldição, que elaterminara com a geração anterior. Mas eu havia começado a metranquilizar cedo demais; ontem de manhã o golpe caiu sobre mimexatamentecomoseabaterasobremeupai.”

O rapaz tiroudo colete umenvelope amassado e, voltando-separa a

mesa,sacudiu-oedeixoucaircincosementinhassecasdelaranja.“Aquiestáoenvelope”, continuou. “OcarimboédeLondres…divisão

leste.Dentroestãoasmesmaspalavrasqueestavamnaúltimamensagemparameupai:‘K.K.K.’,edepois:‘Ponhaospapéisnorelógiodesol.’”

“Quefezosenhor?”perguntouHolmes.“Nada.”“Nada?”“Paralhedizeraverdade”,escondeuorostonasmãosbrancasefinas,

“senti-me impotente. Senti-me como um desses pobres coelhos quando acobraestásecontorcendoemsuadireção.Tenhoaimpressãodeestarnasgarras de um mal irresistível, inexorável, que nenhuma previsão enenhumaprecauçãopodemevitar.”

“Deixoucaircincosementinhassecasdelaranja.”[SidneyPaget,StrandMagazine,1891]

“Ora,ora!”exclamouSherlockHolmes.“Éprecisoagir,homem,ouestáperdido.Sóafirmezapodesalvá-lo.Nãoéhoradeentraremdesespero.”

“Fuiàpolícia.”“Ah!”“Mas eles ouviramminha história com um sorriso. Estou convencido

dequeo inspetor formouaopiniãodequeascartassãotodaspilhériase

queasmortesdemeusparentesnãopassaramnarealidadedeacidentes,como o júri declarou, e não deveriam ser relacionadas com asadvertências.”

Holmessacudiuopunhonoar.“Imbecilidadeincrível!”exclamou.“Destacaram,porém,umpolicialquepodeficaremcasacomigo.”“Eleveiocomosenhorestanoite?”“Não.Recebeuordensdepermanecernacasa.”Holmesvoltouafazerumgestodeindignação.“Por que veiome procurar?” perguntou. “E, sobretudo, por que não

veioimediatamente?”“Eu não sabia. Foi só hoje que conversei com o major Prendergast

sobreminhasinquietaçõeseelemeaconselhouaprocurá-lo.”“Faz realmente dois dias que recebeu a carta. Deveríamos ter agido

antes. Não tem outros indícios, presumo, além dos que nos apresentou…nenhumdetalhesugestivoquenospoderiaajudar?”

“Há uma coisa”, disse John Openshaw. Remexeu no bolso do paletó,tirou um desbotado pedaço de papel azul e o pôs sobre a mesa. “Tenhoalguma lembrança”, disse, “de que no dia em que meu tio queimou ospapéis observei que as estreitas margens não queimadas que restavamentre as cinzas eramexatamentedesta cor.Encontrei estaúnica folhadepapelnochãodeseuquartoetendoapensarquepodeserumdospapéis,que voou talvez do meio dos outros e assim escapou à destruição. Mas,alémdamençãoasementes,nãoparecepodernosajudarmuito.Tenhoaimpressão de que é uma página de algum diário pessoal. A letra é semdúvidaademeutio.”

Holmes moveu a lâmpada e inclinamo-nos ambos sobre a folha depapel, cujamargem irregularmostrava ter sido rasgada de um caderno.Sobocabeçalho“Marçode1869”,liam-seestasanotaçõesenigmáticas:

Dia4.Hudsonveio.Mesmavelhaplataforma.Dia7.SementesenviadasparaMcCauley,Paramoree JohnSwain,de

St.Augustine.Dia9.McCauleydesapareceu.Dia10.JohnSwaindesapareceu.Dia12.VisiteiParamore.Tudobem.

“Muitoobrigado!”exclamouHolmes,dobrandoopapeledevolvendo-o

aonossovisitante.“Agoraosenhornãodeve,sobnenhumpretexto,perdermaisnemuminstante.Nãodispomosdetemposequerparadiscutiroquemecontou.Deveirimediatamenteparacasaeagir.”

“Quedevofazer?”“Há uma única coisa a fazer. E deve ser feita já. O senhor deve pôr

este pedaço de papel que nosmostrou na caixa de latão que descreveu.Devepôrtambémnacaixaumbilhetedizendoquetodososoutrospapéisforam queimados pelo seu tio e que este é o único que resta. Trate dea irmar isso compalavras absolutamente convincentes. Em seguida, devecolocar imediatamente a caixa no relógio de sol, como lhe mandaram.Compreendeu?”

“Perfeitamente.”“Nãopenseemvingançanememnadadessetipoporenquanto;creio

que poderemos conseguir isso por meio da lei. Mas temos de prepararnossateia,enquantoadelesjáfoitecida.Aprimeirapreocupaçãoéafastaroperigoiminentequeoameaça.Asegundaéelucidaromistérioepunirosculpados.”

“Agradeço-lhe muito”, disse o jovem, levantando-se e vestindo osobretudo. “O senhor deu-me vida nova e esperança. Farei certamente oqueaconselha.”

“Não perca um instante. E, principalmente, tenha cuidado consigomesmo nesse ínterim, pois tenho certeza de que corre um perigo muitorealeiminente.Comovoltaráparacasa?”

“PelotremquesaideWaterloo.”“Aindanãosãonovehoras.Comoasruasestarãocheias,acreditoque

estaráemsegurança.Mesmoassim,todocuidadoépouco.”“Estouarmado.”“Issoébom.Amanhãcomeçareiatrabalharnoseucaso.”“EuovereiemHorsham,então?”“Não,seusegredoestáemLondres.Éaquiquevouprocurá-lo.”“Então virei vê-lo dentro de um ou dois dias, com notícias sobre a

caixaeospapéis.Seguireiseuconselhoemtodososdetalhes.”Apertou-nosas mãos e saiu. Lá fora o vento ainda gemia e a chuva continuavatamborilando sobre as janelas. Aquela história extravagante e violentaparecia nos ter vindo dos elementos em fúria… arremessada sobre nóscomo um sargaço num vendaval… e agora novamente reabsorvida poreles.

SherlockHolmes icou algum tempo em silêncio, a cabeça caída parafrenteeosolhosbaixos, ixosnofulgorvermelhodofogo.Depoisacendeuocachimboe,recostando-senacadeira, icouaobservarosanéisazuisdefumaçaqueseperseguiamumaooutroatéoteto.

“Creio,Watson”, observou por im, “que entre todos os nossos casosnãotivemosnenhummaisfantásticodoqueeste.”

“Exceto,talvez,Osignodosquatro.”“Bem,éverdade.Excetoesse,talvez.MasesseJohnOpenshawparece-

meestaremmeioaperigosaindamaioresdoqueosSholto.”“Masvocêtemalgumaideiaclaradequeperigossãoesses?”“Nãopodehaverdúvidasquantoàsuanatureza.”“Quais são eles, então? Quem é esse K.K.K. e por que persegue essa

infelizfamília?”SherlockHolmesfechouosolhosepousouoscotovelosnosbraçosda

cadeira, com as pontas dos dedos unidas. “O cérebro ideal”, observou,“umavezdepossedeumúnico fatoemtodososseusaspectos,deduziriadelenãosótodaacadeiade fatosqueoproduziu,comotambémtodasasconsequências que dele se seguiriam. Assim como Cuvier foi capaz dedescrevercorretamenteumanimalinteiroapartirdacontemplaçãodeumúnicoosso, assim tambémoobservadorque compreendeuperfeitamenteum elo numa série de incidentes deveria ser capaz de descrever comprecisão todos os outros, anteriores e posteriores. Ainda nãocompreendemososresultadosquearazãoporsimesmapodealcançar.Háproblemas que desnortearam todos que procuraram solucioná-losmediante a ajuda dos sentidos e que teriam podido ser resolvidos nogabinete.Contudo,paralevaressaarteaoseupontomaisalto,opensadordeve ser capaz de utilizar todos os fatos que chegaram ao seuconhecimento; isso por si só implica, como você perceberá facilmente, apossedetodooconhecimento,oque,mesmonestesdiasdeeducaçãolivreede enciclopédias, é um feito raro.Não é tão impossível, no entanto, queumhomemchegueadisporde todoo conhecimentocapazde lhe serútilem seu trabalho, e é isso que tenhome esforçado por fazer nomeu. Sebem me lembro, em certa ocasião, no princípio de nossa amizade, vocêdefiniumeuslimitesdemaneiramuitoprecisa.”

“De fato”, respondi, rindo. “Foi um documento singular. Em iloso ia,astronomia e política você levou zero, eume lembro. Embotânica, eu lheatribuí um conhecimento variável. Em geologia, muito bom no tocante a

manchasdelamadequalquerregiãonumraiodesetentaquilômetrosemtorno de Londres. Em química, tem um conhecimento excêntrico. Emanatomia, não sistemático. Em literatura sensacionalista e registro decrimes, inigualável. É violinista,boxeur, espadachim, advogado, e pratica oautoenvenenamentocomcocaínaetabaco.Foramestes,creio,osprincipaispontosdeminhaanálise.”

Holmes abriu um sorriso forçado ao ouvir o último item. “Bem”,observou,“digoagora,comodisseentão,queumhomemdeveriamanteropequeno sótão de seu cérebro guarnecido de todos os móveis de quepoderá ter necessidade; quanto ao resto, pode depositá-lo no quarto dedespejode suabiblioteca, ondepoderápegá-lo se precisar.Masparaumcaso como o que nos foi trazido esta noite, precisamos certamentemobilizartodososnossosrecursos.FaçaagentilezademepassaraletraKdaAmerican Encyclopaedia que está na prateleira ao seu lado. Obrigado.Agoraanalisemosasituaçãoevejamosoquepodeserdeduzidodela.Emprimeiro lugar, devemos começar com uma presunção de que o coronelOpenshaw teve alguma razãomuito forte para deixar os Estados Unidos.Na faseda vida emque ele estava, os homensnãomudam todos os seushábitos e trocam de bom grado o agradabilíssimo clima da Flórida pelavidasolitáriadeumacidadezinhadeprovíncianaInglaterra.Seuextremoamorà solidãonestepaís sugere a ideiadeque temia alguémoualgumacoisa,portantopodemossupor,comohipótesedetrabalho,quefoiomedodealguémoudealgumacoisaqueofezdeixarosEstadosUnidos.Quantoàquilo de que tinha medo, só podemos deduzir isso examinando asterríveis cartas enviadas a ele e a seus sucessores. Notou os carimbospostaisdessascartas?”

“AprimeiravinhadePondicherry,asegundadeDundeeea terceiradeLondres.”

“DolestedeLondres.Quededuzdisso?”“Todosesses lugaressãoportosmarítimos.Queoremetenteestavaa

bordodeumnavio.”“Excelente. Já temos uma pista. É sem dúvida provável, e

extremamente provável, que o remetente estivesse a bordode umnavio.Agora consideremos um outro ponto. No caso de Pondicherry,transcorreram sete semanas entre a ameaça e seu cumprimento; no deDundee,foramapenastrêsouquatrodias.Issolhesugerealgumacoisa?”

“Maiordistânciaapercorrer.”

“Masacartatambémtevedepercorrerumadistânciamaior.”“Entãonãoentendo.”“Hápelomenosumapresunçãodequeonavioemqueohomemestá,

ou os homens estão, seja um veleiro. Parece que sempremandaram suasingular advertência ou símbolo quando davam início à suamissão. Vejacomoocrimeseguiu-serapidamenteàcartaquandoestaveiodeDundee.Seeles tivessemvindodePondicherrynumvapor, teriamchegadoquaseaomesmotempoqueacarta.Defato,porém,transcorreramsetesemanas.Creio que essas sete semanas representaram a diferença de velocidadeentre o navio a vapor que trouxe a carta e o navio a vela que trouxe oremetente.”

“Épossível.”“Mais que possível, é provável. E agora você entende a urgência

crucial deste novo caso e por que insisti como jovemOpenshaw emquetivesse cautela.O golpe sempre foi desferidono inal do prazode que osremetentes precisariam para percorrer a distância.Mas esta carta agoravemdeLondres,eportantonãopodemoscontarcomnenhumademora.”

“Meu Deus!” exclamei. “Que pode signi icar essa implacávelperseguição?”

“Os papéis que Openshaw trouxe consigo são obviamente deimportânciavitalparaapessoaouaspessoasnaembarcaçãoavela.Ameuver,estábastanteclaroquedevesermaisdeuma.Umhomemsozinhonãopoderia ter praticado dois assassinatos e conseguido sair impune doinquéritopolicial.Váriaspessoasdevemterparticipadodisso,edevemserhomens de recursos e determinação. Estão decididos a ter de volta seuspapéis, estejamcomquemestiverem. Sendoassim, veja,K.K.K.deixamdeserasiniciaisdeumapessoaparasetornaremasigladeumasociedade.”

“Masquesociedade?”“Você nunca…”, disse Sherlock Holmes, inclinando-se para frente e

baixandoavoz,“nuncaouviufalardaKuKluxKlan?”“Nunca.”Holmespassouaspáginasdolivroquetinhasobreosjoelhos.“Aquiestá”,disselogodepois.

Ku Klux Klan. Nome derivado da semelhança imaginária com o somqueseproduzaoengatilharumri le.Essa terrível sociedadesecretafoiformadaporalgunsantigossoldadosconfederadosnosestadosdo

Sul depois da Guerra Civil e rapidamente criou rami icações emdiferentes partes do país, notadamente no Tennessee, na Louisiana,nas Carolinas, na Geórgia e na Flórida. Seu poder era usado cominalidadespolíticas, sobretudoparaaterrorizaroseleitoresnegroseassassinar ou expulsar do país os que se opunham às suas ideias.Suas atrocidades costumavam ser precedidas por uma advertênciaenviada ao homemmarcado de uma forma fantástica,mas em geralreconhecida — um raminho de carvalho em algumas regiões,sementesdemelãooude laranjaemoutras.Aoreceberesseaviso,avítima podia ou abjurar abertamente suas opiniões anteriores, oufugirdopaís.Enfrentaraameaçasigni icavainfalivelmenteamorte,eusualmentedealgumamaneiraestranhae imprevista.Aorganizaçãoda sociedade era tão perfeita e seus métodos tão sistemáticos queprovavelmente não há registro de um só caso em que um homem atenha enfrentado impunemente, ou em que o perpetrador dessesultrajes tenha sido incriminado. A organização loresceu durantealgunsanos,apesardosesforçosdogovernodosEstadosUnidosedasmelhores classes da comunidade do Sul. Por im, no ano de 1869, omovimento subitamente morreu, embora tenha havido surtosesporádicosdamesmaespéciedesdeentão.

“Observe”, disse Holmes pondo o volume de lado, “que a súbitadesativaçãodaK.K.K.coincidiucomavindadeOpenshawdaAméricacomospapéisdasociedade.Podeterhavidocertamenteumarelaçãodecausaeefeitoaí.Nãoadmiraqueeleeafamíliatenhamalgunsdosespíritosmaisimplacáveis na sua cola. Esse registro e esse diário, como você podeentender,talvezcomprometamalgunsdoshomensmaisilustresdoSul,eépossívelquehajamuitosquenãodormirãobemànoite atéque isso sejarecuperado.”

“Entãoapáginaquevimos…”“Éoqueseriadeesperar.Eladizia, sebemme lembro, ‘enviamosas

sementesparaA,BeC…’,istoé,oavisodasociedadelhesforaenviado.Emseguida há registros sucessivos de que A e B haviam desaparecido, oudeixadoopaís,epor imqueCforavisitado,comalgumresultadosinistropara ele, receio. Bem, doutor, acredito que podemos lançar alguma luzsobre essa escuridão; até lá, creio que a única chance que o jovemOpenshawtemé fazeroque lhedisse.E jáquenãohámaisnadaadizerou fazer esta noite, passe-me omeu violino e vamos tentar esquecer por

meiahoraesse tempohorrorosoeas condutasaindamaishorrorosasdenossossemelhantes.”

DE MANHÃ, o tempo havia melhorado e o sol tinha um brilho embaçadoatravésdopálidovéuquepairasobreagrandecidade.SherlockHolmesjáestavatomandoodesjejumquandodesci.

“Desculpe-me por não tê-lo esperado. Prevejo que tenho pela frenteumdiamuitoocupado,investigandoessecasodojovemOpenshaw.”

“Quemedidaspretendetomar?”“Vai depender muito dos resultados de minhas primeiras

investigações.Talvez,afinaldecontas,eutenhadeiraHorsham.”“Nãoiráláemprimeirolugar?”“Não,começareipelaCity.Toqueacampainha,eacriadalhetraráseu

café.”Enquantoesperava, pegueinamesao jornal ainda intacto edeiuma

espiada.Detive-menumamanchetequemegelouocoração.“Tardedemais,Holmes!”“Ah!” exclamou ele pousando a xícara, “era o que eu temia. Como a

coisa foi feita?” Falava com calma, mas pude notar que estavaprofundamente abalado. “MeusolhosderamcomonomedeOpenshawecom a chamada ‘Tragédia perto da Ponte de Waterloo’. Eis o que diz anotícia:

Entrenoveedezhorasdanoitedeontem,opolicialCook,daDivisãoH,deserviçopertodaPontedeWaterloo,ouviuumgritodesocorroeo barulho de uma pancada na água. Como a noite estavaextremamente escura e tempestuosa, porém,mesmo coma ajudadeváriostranseuntesfoidetodoimpossívelefetuarumresgate.

“Tardedemais,Holmes!”[SidneyPaget,StrandMagazine,1891]

Mas foi dado o alarme, e, com a ajuda da polícia luvial, o corpo acabousendo encontrado. Era de um jovem cavalheiro cujo nome, tal comoaparece num envelope encontrado em seu bolso, era John Openshaw, ecuja residência é próxima de Horsham. Conjectura-se que poderia estarafobadoparapegaroúltimotremquepartedaEstaçãodeWaterlooeque,emsuapressaenadensaescuridão,desviou-sedeseucaminhoecaiudaborda de um dos pequenos desembarcadouros para barcos a vapor. Ocorponãoexibianenhumsinaldeviolência,nãopodendohaverdúvidadeque o morto foi vítima de um lamentável acidente, o qual deveria ter oefeitode chamaraatençãodasautoridadesparaas condiçõesemque seencontramosdesembarcadourosàmargemdorio.

Ficamosalgunsminutosemsilêncio,Holmesmaisdeprimidoeabaladodoqueeujamaisovira.

“Isso fere o meu orgulho,Watson”, disse por im. “É um sentimentomesquinho, sem dúvida,mas isso fere omeu orgulho. Agora passa a seruma questão pessoal paramim, e, seDeusme der saúde, agarrarei essaquadrilha. Pensar que ele me procurou para pedir ajuda e que eu odespachei para amorte…!”Deu umpulo da cadeira e pôs-se a andar deum lado para outro em incontrolável agitação, com um rubor nas faces

amareladasefechandoeabrindoasmãoscompridasemagras.“Eles devem ser diabolicamente espertos”, exclamou por im. “Como

conseguiram descobri-lo ali? O Embankment não está no caminho diretoparaaestação.Aponte, semdúvida,estavamovimentadademais,mesmonumanoitecomoadeontem,paraoquetinhamemmente.Bem,Watson,veremosquemganharánofinaldascontas.Voujáparaarua!”

“Vaiàpolícia?”“Não,sereiminhaprópriapolícia.Depoisqueeutivertecidoateiaeles

poderãoapanharasmoscas,nãoantes.”Passei o dia todo ocupado comminhas atividades pro issionais e era

tarde da noite quando voltei a Baker Street. Sherlock Holmes ainda nãochegara.Eramquasedezhorasquandoentrou,pálidoeexausto.Dirigiu-seao aparador e, cortando um pedaço de pão, devorou-o vorazmente,bebendoemseguidaumlongogoledeágua.

“Vocêestácomfome”,observei.“Faminto. Tinha esquecido de comer. Não comi nada desde o

desjejum.”“Nada?”“Absolutamentenada.Nãotivetempoparapensarnisso.”“Ecomosesaiu?”“Bem.”“Temumapista?”“Elesestãonapalmadaminhamão.OjovemOpenshawnãodemorará

muitoaservingado.Queacha,Watson,de lançarmossobreelesamesmamarcadiabólicaqueusaram?Jáarquiteteitudo.”

“Quequerdizer?”Pegouumalaranjanoguarda-louçae,abrindo-aemgomos,espremeu

assementessobreamesa.Apanhoucincodelase jogou-asnumenvelope.Na parte interna da aba, escreveu “S.H. para J.C.”. Em seguida fechou oenvelope e endereçou-o para “Capitão James Calhoun, brigueLone Star ,Savannah,Geórgia”.

“Isto estará à espera dele quando entrar no porto”, disse, com umarisadinha.“Talvezlhecusteumanoitesempregarosolhos.VailheparecerumprenúnciotãocertodeseudestinoquantopareceuantesaOpenshaw.”

“EqueméessecapitãoCalhoun?”“Ochefedaquadrilha.Pegareiosoutros,masprimeiroele.”

“Comoodescobriu?”Holmes tirou do bolso uma grande folha de papel, toda coberta de

datasenomes.“PasseiodiainteiroexaminandoosregistrosdoLloydsearquivosde

papéis antigos, acompanhando a carreira posterior de cada navio quetocou o porto de Pondicherry em janeiro e fevereiro de 1883. Haviaregistro da chegada ali de trinta e seis navios de boa tonelagemduranteessesmeses.Entreeles,oLoneStar chamou-meaatençãoimediatamente,pois,emboraconstassequepartiradeLondres,esseéonomedadoaumdosestadosdaUnião.”

“OTexas,creio.”“Nãosabiaenãoseiaocertoqualdeles;massabiaqueonaviodevia

terorigemnorte-americana.”“Edepois?”“PesquiseiosarquivosrelativosaDundee,equandoveri iqueiqueo

brigueLone Star esteve ali em janeiro de 1885 minha suspeita setransformouemcerteza.EmseguidaapureiquenaviosestãonoportodeLondresnestemomento.”

“Edaí?”“ OLone Star chegou aqui semana passada. Fui até o Cais Albert e

constatei que ele partira rio abaixo nesta manhã, com a primeira maré,comdestinoaSavannah.TelegrafeiparaGravesende iquei sabendoquepassara ali havia algum tempo, e, como está soprando o vento leste, nãotenho dúvidas de que a esta altura já terá passado das Goodwins e nãodeveestarmuitolongedailhadeWight.”

“Nessecaso,quevaifazer?”“Ah, ele está na minha mão. Ele e os dois comparsas são, pelo que

iquei sabendo, os únicos americanos natos a bordo. Os outros sãoinlandeses e alemães. Sei também que todos os três se ausentaram dobarco ontem à noite. Obtive estas informações com os estivadores queestiveram carregando oLone Star . Quando o navio a vela deles chegar aSavannah, o vapor que transporta o correio já terá chegado lá com estacartaeumcabogramateráinformadoàpolíciadeSavannahqueessestrêssenhores estão sendo extremamente desejados aqui, por conta de umaacusaçãodeassassinato.”

Há sempre uma falha, no entanto, no mais bem-urdido dos planoshumanos, e os assassinos de John Openshaw nunca receberiam as cinco

sementes de laranja que lhesmostrariam que outra pessoa, tão astuta edecididaquantoelesmesmos,estavanasuapista.Osventosdoequinócioforam prolongados e severos naquele ano. Esperamos notícias deSavannah sobre oLone Star por muito tempo, mas não recebemosnenhuma. Por im, icamos sabendo que em algum lugar, em plenoAtlântico, foravisto,gingandonacavadeumaonda,ocadastedepopadeum navio em que estavam entalhadas as letras “L.S.”. É só o que jamaissaberemossobreodestinodoLoneStar.

OHOMEMDABOCATORTA

ISA WHITNEY, IRMÃO do inado teólogo Elias Whitney, reitor da FaculdadeTeológicadeSt.George, era completamenteviciadoemópio.Peloque sei,adquiriuohábitoapartirdeumaideiatola,emseustemposdefaculdade:após ler a descrição que De Quincey faz de seus sonhos e sensações,passouamolharcomláudanootabacoqueconsumia,natentativadeobterosmesmosefeitos.Descobriu,comotantosoutros,queémaisfáciladquiriro costume que se livrar dele, e durante muitos anos continuou sendoescravo da droga e objeto de um misto de horror e piedade de seuscolegaseparentes.Possovê-loagoramesmo, como rostoamarelo, lívido,as pálpebras caídas, as pupilas contraídas, mais parecendo pontas deal inete, encolhido numa cadeira, os destroços e as ruínas de um nobrehomem.

Uma noite— foi em junho de 1889—, a campainha deminha casatocoumaisoumenosnahoraemqueumhomemdáseuprimeirobocejoeumaespiadelanorelógio.

Fiqueiquietoemminhapoltronaenquantominhamulherpousavaseutrabalho de agulha no colo e fazia uma pequena careta dedesapontamento.

“Umpaciente!”disseela.“Vocêterádesair.”Gemi,poisacabaradechegardeumdiacansativo.Ouvimos a porta se abrir, algumas palavras ditas às pressas, e em

seguidapassos rápidos sobreo linóleo.Aportada sala foi entãoabertaeumasenhora,comumtrajeescuroeumvéupreto,entrou.

“Perdoem-me por vir tão tarde”, começou ela, e então, perdendosubitamenteoautocontrole,correueabraçouopescoçodeminhamulher,soluçandoemseuombro. “Oh!Estounumaa lição tãogrande!”exclamou.“Precisotantodeumpoucodeajuda!”

“Ora”, disse minha mulher, puxando o véu da senhora, “é KateWhitney.Quesustovocêmepassou,Kate!Nãotinhaideiadequeeravocêquandoentrou.”

“Como não sabia o que fazer, vim imediatamente procurá-la.” Erasempreassim.Osatribuladossempreacorriamaminhamulhercomoavesaumfarol.

“Foimuitobomquetenhavindo.Agoratomeumpoucodevinhocomágua, sente-se comodamente aqui e conte-nos tudo. Ou prefere que eumandeoJamesparaacama?”

“Não,não;querooconselhoeaajudadodoutortambém.ÉsobreIsa.Nãoapareceemcasahádoisdias.Estoutãopreocupadacomele!”

Não era a primeira vez que nos falava dos problemas do marido, amimcomomédicoeàminhamulhercomovelhaamigaecolegadeescola.

Tentamos, tanto quanto podíamos, acalmá-la e reconfortá-la compalavras. Ela sabia onde estava o marido? Seria-nos possível levá-lo devoltaparaela?

Parecia que sim. Ela obtivera a informação segura de queultimamente,nosseusacessos,elerecorriaaumantrodeópionoextremolestedaCity.Atéentãosuasorgiashaviamselimitadosempreaumdia,eele voltava à noite, contraindo-se em espasmos, arrebentado. Mas agorapassaraquarentaeoitohorassoboencantamento,esemdúvidaestavalá,entrea ralédasdocas, inspirandoovenenooudormindo,derrubadoporele. Era lá que estava, ela tinha certeza, no Bar of Gold, em UpperSwandam Lane. Mas que podia ela fazer? Como podia ela, uma mulherjovem e tímida, ir a um lugar desse, e arrancar seumarido domeio dosfacínorasqueocercavam?

Aíestavaoproblema,e,evidentemente,sóhaviaumasoluçãoparaele.Eu não poderia acompanhá-la até lá? E, pensando bem, que necessidadehavia de ela ir? Eu era o médico de Whitney, e nessa qualidade tinhain luênciasobreele.Poderia lidarmelhorcomasituaçãoestandosozinho.Dei-lheminhapalavradeque,seelerealmenteestivessenoendereçoquemedava,euodespachariaparacasanumcarrodealugueldentrodeduashoras. Assim, em dezminutos eu havia deixadominha poltrona eminhasala prazerosa e rumava a toda velocidade para leste num hamson,incumbido de uma estranha missão. Pelo menos era o que me parecianaquelemomento;sóofuturopoderiamostrarquãoestranhaelaseria.

Não houve, porém, grande di iculdade no primeiro estágio deminhaaventura.UpperSwandamLaneéumavielasórdidaqueseescondeatrásdosaltosdesembarcadourosquemargeiamo ladonortedorio,a lestedaPonte de Londres. Entre uma loja de roupa barata e uma baiuca, um

íngreme lanço de escada levou-me a um vão negro como a boca de umacaverna; era ali o antro que eu procurava. Mandeimeu carro esperar edesci os degraus, cavados no meio de tão desgastados pelo incessantearrastardepassosbêbados,e,àluzincertadeumalâmpadadeóleosobreaporta,acheiotrinco.Entreinumcômodocompridoebaixo, tomadopelafumaça pardacenta, espessa e pesada do ópio, e forrado de beliches demadeira,comoocastelodeproadeumnaviodeemigrantes.

Emmeio à escuridão, era di ícil divisar os corpos deitados emposesextravagantes, ombros vergados, joelhos dobrados, cabeças jogadas paratrásequeixosempinados;aquieali,umpardeolhosescuros,embaçados,voltava-separaorecém-chegado.Dentreassombrasnegrasbruxuleavampequenoscírculosvermelhosdeluz,oraluminosos,oradébeis,conformeovenenoesbraseavaouseapagavanosfornilhosdoscachimbosdemetal.Amaioria dos homens permanecia em silêncio, mas alguns sussurravamalguma coisa para si mesmos e outros conversavam numa voz estranha,baixa, monótona, as palavras saindo em golfadas e depois, de repente,reduzindo-se a silêncio; cada ummurmurava os próprios pensamentos emal ouviao vizinho.No fundodo cômodovia-seumpequenobraseirodecarvão,juntodoqual,numtamboretedemadeiradetrêspernas,sentava-seumvelhoaltoemagro,comoqueixosobreosdoispunhos,oscotovelossobreosjoelhos,osolhosfixosnofogo.

Quando entrei, um criadomalaio de tez amarelada apressara-se emme levar um cachimbo e uma dose da droga, acenando para um belichevazio.

“Obrigado, não vim para icar”, disse eu. “Um amigo meu, Mr. IsaWhitney,estáaquiequerofalarcomele.”

Houveummovimento eumaexclamação àminhadireita e, forçandoosolhosnaescuridão,viWhitney,pálido, abatidoedesalinhado,olhando-mefixamente.

“MeuDeus,éoWatson!”exclamou.Estavanumestadodeplorável,osnervosàflordapele.“Diga-me,Watson,quehorassão?”

“Quaseonze.”“Dequedia?”“Desexta-feira,19dejunho.”“Misericórdia! Pensei que era quarta-feira. É quarta-feira. Por que

está querendome assustar?” Afundou o rosto entre os braços e caiu emsoluçosagudos.

“É sexta-feira, homem, eu lhe garanto. Suamulherpassou essesdoisdiasàsuaespera.Deveriaestarenvergonhado!”

“E estou. Mas você está fazendo confusão, Watson, pois só passeialgumashorasaqui,três,quatrocachimbos…nãomelembroquantos.Masvouparacasacomvocê.NãoqueroassustarKate…minhapobreKate.Dê-meamão!Estácomumcarroaí?”

“Sim,estáesperando.”“Entãovounele.Masdevoterumacontaparapagar.Descubraquanto

estoudevendo,Watson.Estouzonzo.Nãoconsigofazercoisaalguma.”Percorri a passagem estreita entre a dupla ileira de homens

adormecidos, segurando o fôlego para não respirar as emanaçõesrepugnantes, estupefacientes da droga, à procura do gerente. Quandopassei pelo homem alto sentado junto do braseiro senti um puxãorepentinonaabadomeupaletó,eumavozbaixasussurrou:“Sigaadiantee depois volte os olhos para mim.” Essas palavras chegaram aos meusouvidosmuitodistintamente.Olheiparabaixo.Elassópoderiamtervindodovelhoaomeu lado,masaliestavaele, tãoabsortocomosempre,muitomagro,muitoenrugado,encurvadopelaidade,umcachimbodeópiocaídoentreosjoelhos,comoseseusdedosotivessemsoltadoporpuralassidão.Deidoispassoseolheiparatrás.Preciseidetodoomeuautocontroleparanão soltar um grito de espanto. O homem havia virado as costas de talmaneiraqueninguémpodia vê-lo, só eu. Suas formashaviamse enchido,as rugashaviam sumido, os olhos baços haviam recobradoo brilho, e ali,sentado ao pé do fogo e sorrindo diante demeu pasmo, estava SherlockHolmes em pessoa. Com um pequeno aceno, pediu-me que meaproximassee,instantaneamente,quandodenovosevoltoudeper ilparaosoutros,caiunumasenilidadetrêmula,delábiosmurchos.

“Holmes!”sussurrei.“Quediabosestáfazendonestecovil?”“Omais baixoquepuder”, respondeu. “Tenhoouvidos excelentes. Se

me izesseagrande inezadeselivrardesseseuamigoborracho,gostariaimensamentedeterumaconversinhacomvocê.”

“‘Holmes!’sussurrei.”[SidneyPaget,StrandMagazine,1891]

“Tenhoumcarroláfora.”“Então, por favor, mande-o para casa. Pode con iar nele sem susto,

parecechumbadodemaisparaseenvolveremqualquertravessura.Eulherecomendaria tambémque enviasse pelo cocheiro umbilhete para a suamulher, dizendo que semeteu numa peripécia comigo para o que der evier.Seesperarláfora,estareicomvocêemcincominutos.”

Era di ícil recusar qualquer apelo de Sherlock Holmes, de tal modoeram sempre peremptórios e expressados com ar de sereno domínio.Pareceu-me também que, depois queWhitney fora devidamente fechadonocarro,minhamissãoestavapraticamente cumprida, e,quantoaomais,eu não podia desejar nada de melhor do que me associar a meu amigonumadaquelasaventurasqueerama condiçãonormalde suaexistência.Empoucosminutosescrevimeubilhete,pagueiacontadeWhitney,levei-oaté o carro e o vi partir emmeio à escuridão. Passado um tempomuitocurtouma iguradecrépitaemergiudoantrodeópio,eeucaminhavapelarua comSherlockHolmes.Ao longodeduas ruas ele avançouarrastandoospés, comas costasencurvadaseumpasso incerto.Depois,dandoumarápidaolhadaàsuavolta,endireitou-seecaiunumagostosagargalhada.

“Suponho, Watson, que você imaginou que eu havia acrescentado ofumodeópioaminhas injeçõesde cocaína, e a todasasoutraspequenasfraquezassobreasquaismeconcedeuseuspareceresmédicos.”

“Fiqueirealmentesurpresoaoencontrá-loali.”“Eeunãomenosaoencontrarvocê.”“Fuiàprocuradeumamigo.”“Eeuàprocuradeuminimigo.”“Uminimigo?”“Issomesmo,umdemeus inimigosnaturais,oumelhor,minhapresa

natural. Em suma,Watson, estou no meio de uma investigação das maisnotáveis, e tive a esperança de descobrir uma pista nas perambulaçõesincoerentes desses beberrões, como já iz antes. Se eu tivesse sidoreconhecido ali, minha vida não estaria valendo um tostão porque atéagorauseiaquelecovilparameusprópriosobjetivoseobandidodolascarqueodirige jurouvingançacontramim.Háumalçapãonofundodaqueleprédio,pertodocantodoCaisPaul,quepoderia contaralgumashistóriasestranhassobreoquepassouatravésdeleemnoitessemluar.”

“Quê?Estásereferindoacadáveres?”“Cadáveres,Watson.Seríamosricossetivéssemosmillibrasparacada

infeliz que foi mandado desta para melhor naquele covil. É o maismiserável antro de assassinatos em toda a margem do rio, e temo queNeville St. Clair tenha entrado ali para nuncamais sair.Mas nosso carrodeveria estar aqui!” Pôs os dois indicadores entre os dentes e deu umassobio agudo, sinal que foi respondido a distância por um somsemelhante,logoseguidoporumrumorderodasedecascosdecavalos.

“Agora,Watson”,disseHolmesnoinstanteemqueum dog-cartsurgiunaescuridão,aluzamareladesuaslanternaslateraislançandodoistúneisdourados.“Virácomigo,nãoé?”

“Seeupuderserútil.”“Ah, um camarada de con iança é sempre útil; e um cronista, mais

ainda.MeuquartonosCedrostemduascamas.”“NosCedros?”“É; esse é o nome da casa de Mr. St. Clair. Estou hospedado lá

enquantoconduzoainvestigação.”“Ondefica?”“Perto de Lee, em Kent. Temos uma viagem de mais de onze

quilômetrospelafrente.”“Nãoestouentendendocoisaalguma.”“Claroquenão.Masentenderá já, já.Puleaqui.Muitobem, John;não

precisaremosmaisdevocê.Aquiestámeiacoroa.Procure-meamanhã,porvoltadasonze.Solteocabresto!Atélogo,então!”

Holmes deu uma leve chicotada no cavalo e partimos a toda pressa,metendo-nos numa interminável sucessão de ruas sombrias e desertasque foram se ampliando pouco a pouco, até que nos vimos sobre umaponte de parapeitos largos sob a qual o rio sujo corria preguiçosamente.Da ponte em diante esperava-nos outro enfadonho ermo de tijolos eargamassa,seusilênciosóquebradopelospassospesadoseregularesdoguarda ou pelas canções e gritos de algum grupo extemporâneo depândegos.Umamassapesadadenuvensarrastava-selentamentepelocéu,e aqui e ali, entre suas brechas, uma ou duas estrelas cintilavampalidamente.Holmesdirigiaemsilêncio,comacabeçaafundadanopeitoeo ar de um homem perdido em pensamentos; ao seu lado, eu ia curiosopara saberquenova investigaçãopoderia ser aquela emque ele pareciatanto empenhar seus poderes e, ao mesmo tempo, receoso de romper acadeia de seus pensamentos. Havíamos percorrido vários quilômetros ecomeçávamos a chegar ao cinturão de casas suburbanas quando ele sesacudiu,deudeombroseacendeuocachimbocomardeumhomemqueseconvenceudeestaragindodamelhormaneirapossível.

“Vocêtemopreciosodomdosilêncio,Watson”,disse.“Issootornaumcompanheirodevalorinestimável.Palavra,gostomuitodeteralguémcomquem falar, porque meus pensamentos nem sempre são os maisagradáveis. Estava pensando no que deveria dizer a essa cara senhorahojeànoite,quandoelamereceberàporta.”

“Estáseesquecendodequenãoseidenada.”“Tereiexatamenteotemponecessárioparalheexporosfatosdocaso

antes de chegarmos a Lee. Parecem absurdamente simples, mas, apesardisso, não sei ao certo que pista seguir. Hámuitos ios, sem dúvida,masnão sei por onde puxar. Bem, vou lhe contar o caso de maneira clara econcisa,Watson, e talvez você consiga ver uma centelha onde tudo paramiméescuridão.”

“Váemfrente.”“Háalgunsanos,emmaiode1884paraserpreciso,chegouaLeeum

cavalheiro chamado Neville St. Clair que parecia ter muito dinheiro.Comprouumagrandemansão,ajardinoulindamenteoterrenoepassouaviver em grande estilo. Aos poucos fez amizades nas vizinhanças e em1887 casou-se com a ilha de um cervejeiro local, com quem teve doisilhos. Não tinha nenhuma ocupação, mas tinha participação em

companhias e costumava ir para a cidade de manhã e voltar todas astardespelo tremquepartedeCannonStreet às 17h14.Mr. St. Clair, quetem hoje trinta e sete anos, é um homem de hábitos moderados, bommarido,paimuitoafetuosoeestimadoportodososqueoconhecem.Possoacrescentar a isto que todas as suas dívidas no momento, pelo quepudemos apurar, somam oitenta e oito libras e dez xelins, ao passo quetemaseucréditoduzentasevinte librasnoCapital&CountiesBank.Nãohá razão alguma, portanto, para se pensar que ande oprimido porproblemasfinanceiros.

“Segunda-feira passada Mr. Neville St. Clair foi para a cidade bemmaiscedoquedehábito,comentandoantesdepartirquetinhaduascoisasimportantesafazerequetrariaumacaixadeblocosdemadeiraparaseugarotinho. Por mero acaso, sua mulher recebeu um telegrama naquelamesma segunda-feira, pouco após sua partida, comunicando-lhe que umpequeno pacote de considerável valor que esperava encontrava-se à suadisposiçãonosescritóriosdaCompanhiaAberdeendeNavegação.Ora, sevocêconhecebemasuaLondres,sabequeosescritóriosdessacompanhiaicam emFresno Street, que sai deUpper SwandamLane, onde vocêmeencontrouestanoite.Mrs.St.Clairalmoçou,partiuparaaCity,fezalgumascompras,foiaosescritóriosdacompanhiaepegouseupacote;exatamenteàs dezesseis e trinta e cinco, caminhava por Swandam Lane de volta àestação.Entendeubematéagora?”

“Estátudomuitoclaro.”“Talvez se lembre de que segunda-feira foi um dia extremamente

quente,eMrs.St.Clairandavadevagar,olhandoàsuavolta,naesperançadeverumcarrodealuguel, poisnãoestavagostandodaáreaemque seencontrava. Quando caminhava assim por Swandam Lane, ouviu derepente uma exclamação ou grito e icou gelada ao ver seumarido, queolhava para ela e, ao que lhe pareceu, fazia-lhe acenos da janela de umsegundo andar. A vidraça estava aberta e ela viu distintamente o rostodele, que descreve como terrivelmente transtornado. Depois de acenarfreneticamenteparaela, omaridodesapareceuda janela, demaneira tãosúbita que ela teve a impressão de que fora puxado por uma forçairresistível. Um detalhe singular que lhe saltou aos perspicazes olhosfemininosfoique,emborausasseumpaletóescuro,comonomomentoemquesaíraparaacidade,eleestavasemcolarinhonemgravata.

“Convencida de que havia alguma coisa errada com o marido, eladesceu rapidamente os degraus… pois o prédio não era outro senão o

antrodeópioemquevocêmeencontrouestanoite…,atravessoucorrendoasaladafrenteetentousubiraescadaquelevavaaoprimeiroandar.Aopédela,porém,encontrouessepatifedesse lascardequem falei,que lhebarrou a passagem e, ajudado por um dinamarquês que faz as vezes deassistente ali, empurrou-a de volta para a rua. Tomada dos maisenlouquecedoresreceiosedúvidas,elasaiucorrendopelaruae,porsorte,encontrouemFresnoStreetváriosguardaseuminspetorquesaíamparasuaronda.Oinspetoredoishomensacompanharam-nadevoltae,emboraoproprietáriotivessecontinuadoaresistir,chegaramàsalanaqualMr.St.Clairforavistopelaúltimavez.Nãohaviavestígiodeleali.Naverdade,emtodo esse andar não havia vivalma, exceto um aleijado de aspectomedonho,que,aoqueparece,moravaali.Tantoelecomoolascarjuraramirmemente que ninguémmais estivera na sala da frente durante aquelatarde.Tãoveementefoiasuanegativaqueoinspetor icoudesconcertadoeestavaquaseacreditandoqueMrs.St.Clairseenganaraquando,comumgrito,elaselançousobreumacaixinhadepinhoqueestavasobreamesaearrancou-lhe a tampa. Caiu uma cascata de tijolinhos de madeira. Era obrinquedoqueeleprometeralevarparacasa.

“A descoberta e a evidente confusão demonstrada pelo aleijadoizeram o inspetor compreender que o assunto era sério. As salas foramcuidadosamente examinadas e todos os resultados indicaram um crimeabominável.Ocômododafrentetinhaumamobíliasimplesdesaladeestaredavaparaumpequenoquartodedormircomvistaparaosfundosdeumdos cais. Entre o cais e a janela doquarto há uma faixa estreita, que icasecanamarébaixamasécobertaporpelomenosummetroequarentadeágua na maré alta. A janela do quarto era larga e abria-se por baixo. Oexamereveloumanchasdesanguenopeitoril;haviaváriasgotasdispersasno assoalho de madeira do quarto. Escondidas atrás de uma cortina, nasala da frente, estavam todas as roupas deMr. Neville St. Clair, exceto opaletó.Asbotas, asmeias, o chapéu, o relógio…estava tudo lá.Nãohaviasinal de violência em qualquer dessas peças, e tampouco se encontrouqualqueroutrovestígiodo cavalheiro.Aoque tudo indicava, eledevia terido emborapela janela, pois não se descobriunenhumaoutra saída, e asagourentasmanchasde sanguenopeitoril não levavammuito a crerquetivesse se safado nadando, porque a maré estava no ponto mais alto nomomentodatragédia.

“Aopédaescadaencontrouessepatifedesselascar.”[SidneyPaget,StrandMagazine,1891]

“Agorafalemosdoscanalhasquepareciamdiretamenteenvolvidosnatragédia.O indiano é tido e havido comopessoadospiores antecedentes,mascomo,pelahistóriacontadaporMrs.St.Clair, sabia-sequeeleestavanopédaescadapoucossegundosdepoisqueomaridodelaapareceranajanela, di icilmente poderia ter tido mais que um papel secundário nocrime. Em sua defesa, ele alegou desconhecimento absoluto da história,a irmounãosaberdosatosdeHughBoone,seulocatário,equenãopodiaexplicar de maneira alguma a presença das roupas do cavalheirodesaparecido.

“Isso quanto ao gerente lascar. Agora passemos ao sinistro aleijadoque mora no andar superior do antro de ópio, e que certamente foi oúltimoserhumanocujosolhospousaramsobreNevilleSt.Clair.Chama-seHughBooneeseurostohediondoéconhecidoportodosquecostumamirà City. É ummendigo pro issional, embora, para evitar problemas com apolícia, injavenderfósforosdecera.Umpoucoadiante,emThreadneedleStreet,no ladoesquerdo,há, comovocê talvez tenhanotado,umpequenoângulonaparede.Éaliqueessacriaturaseinstaladiariamente,aspernas

cruzadas, o pequeno estoque de fósforos no colo, num espetáculo tãolamentávelqueumapequenachuvadeesmolascaisobreogorrodecourosebentopousadonacalçadaaseulado.Observeiessesujeitomaisdeumavezantesdesequerpensaremtravarconhecimentoprofissionalcomele,eiquei surpreso como que ganhava em curto tempo. Sua aparência é tãosingular que ninguém pode passar por ele sem observá-lo. Uma bastacabeleira alaranjada, um rosto anêmico des igurado por uma horrívelcicatriz que, pela sua contração, suspendeu a parte externa do lábiosuperior, um queixo de buldogue e um par de olhos escuros muitopenetrantes,emsingularcontrastecomacordocabelo,tudoissoodestacadocomumdosmendigos;elesedistingueaindaporserespirituoso,tendosempre uma resposta pronta para qualquer caçoada que lhe lancem ospassantes.Esseéohomemque,agora icamossabendo,eraolocatáriodacasadeópioefoioúltimoaverocavalheiroqueestamosprocurando.”

“Masumaleijado!”exclamei. “Quepoderia ter feito semajudacontraumhomemnaflordaidade?”

“Seu aleijão consiste em coxear de uma perna; nos demais aspectosparece um homem forte e bem-nutrido. Sua experiência médicacertamentejálhemostrou,Watson,queafraquezanummembroémuitasvezescompensadaporforçaexcepcionalemoutros.”

“Porfavor,continuesuanarrativa.”“Mrs. St. Clair havia desmaiado à vista do sangue na janela e fora

levadapelapolíciaparaumcarrodealuguel, jáque suapresençanãoospoderia ajudar em suas investigações. O inspetor Barton, que seencarregoudocaso,fezumexamecuidadosodacasa,masnadaencontrouque lançasse luz sobre o assunto. Cometera-se um erro não prendendoBoone imediatamente,poiseledispôsdealgunsminutosduranteosquaispodia ter se comunicado como amigo, o lascar;mas logo corrigiramessafalhaeelefoidetidoerevistado,semqueseencontrasse,porém,nadaquepudesseincriminá-lo.Éverdadequehaviaalgumasmanchasdesanguenamangadireitadesuacamisa,maselemostrouumcortepertodaunhadoseu dedo anular e explicou que o sangue vinha dali, acrescentando queestivera à janela não muito antes e que as manchas nela observadasvinhamsemdúvidadamesma fonte.Negouperemptoriamente ter jamaisvisto Mr. Neville St. Clair e jurou que a presença das roupas em seuaposento era tão misteriosa para ele quanto para a polícia. Quanto àa irmação de Mrs. St. Clair de que realmente vira o marido à janela,declarou que ela devia estar louca ou sonhando. Foi levado, sob sonoros

protestos,paraadelegaciadepolícia,enquantoo inspetorpermanecianolocal,naesperançadequeamarévazantetrouxessealgumapistanova.

“Ede fato trouxe,emboraelesnãotenhamencontradooque temiamnamargemlamacenta.FoiopaletódeNevilleSt.Clair,nãoNevilleSt.Clair,que apareceu quando a maré baixou. E que acha que encontraram nosbolsos?”

“Nãofaçoideia.”“Defato,nãocreioquevocêseriacapazdeadivinhar.Todososbolsos

estavam cheios depennies ehalf-pennies: quatrocentas e vinte e umamoedasdeumpennyeduzentasesetentadehalf-penny.Nãoespantaqueo paletó não tivesse sido arrastado pelamaré. Um corpo, porém, é outraquestão.Háumredemoinhoterrívelentreocaiseacasa.Parecebastanteprovável que o pesado paletó tenha icado para trás quando o corpodesnudadofoitragadopelorio.”

“Maspeloqueentendi todasasoutras roupas foramencontradasnasala.Estariaocorpovestidosócomumpaletó?”

“Não, senhor, mas há uma explicação atraente, embora talvezfalaciosa,paraos fatos.SuponhaqueesseBoonetivesse jogadoNevilleSt.Clair pela janela, num gesto que nenhum olho humano teria podido ver.Que faria em seguida? Pensaria imediatamente, é claro, que precisava selivrar daquelas roupas reveladoras. Pegaria então o paletó, e, no ato dejogá-lofora, lembrariaqueeleiriaboiar,nãoafundar.Tinhapoucotempo,pois ouvira o tumulto lá embaixo quando Mrs. St. Clair tentava subir, etalvez já tivesse sido informado por seu aliado, o lascar, de que a políciavinha a toda pressa pela rua. Não havia um instante a perder. Ele correparaumesconderijo,ondeacumulaofrutodesuamendicânciaemetenosbolsos do paletó todas asmoedas que pode para assegurar sua imersão.Joga-opelajanela,eteriafeitoomesmocomasoutraspeças,senãotivesseouvido o tropel embaixo; só tivera tempo de fechar a janela quando apolíciaapareceu.”

“Semdúvidasoaplausível.”“Bem,usaremosessaexplicaçãocomohipótesedetrabalho,àfaltade

umamelhor. Boone, como lhe disse, foi preso e levado para a delegacia,masconstatou-sequenuncahouveranadacontraeleantes.Eraconhecidohavia anos como mendigo pro issional, mas parece ter levado uma vidamuito tranquila e inocente. É nesse pé que as coisas estão agora, e asperguntas que precisam ser respondidas—que faziaNeville St. Clair na

casadeópio, que lhe aconteceuali, onde está agora e oqueHughBoonetemavercomseudesaparecimento—estãotãolongedeserrespondidascomosempre.Confessoquenãoconsigome lembrardenenhumcasoemminhaexperiênciaqueparecessetãosimplesàprimeiravistaenoentantoapresentassetamanhasdificuldades.”

Enquanto SherlockHolmes detalhava essa singular série de eventos,estivéramosgirandopelosarrabaldesdagrandecidade,atéque,depoisdedeixarparatrásasúltimascasasdispersas,seguimoschocalhandoporumcaminho margeado dos dois lados por uma sebe. Quando ele estavaconcluindoseurelato,porém,atravessamosduasaldeias,emquealgumasluzesaindatremeluziamnasjanelas.

“Estamos nos arredores de Lee”, disse ele. “Passamos por trêscondados ingleses em nossa curta viagem; começamos em Middlesex,cortamosumângulodeSurreye terminamosemKent.Estávendoaquelaluz entre as árvores? É Cedros, e ao lado daquela lâmpada encontra-seuma mulher cujos ouvidos ansiosos já perceberam, não tenho dúvida, oruídodoscascosdonossocavalo.”

“Metenosbolsostodasasmoedasquepode.”[SidneyPaget,StrandMagazine,1891]

“Mas por que você não está conduzindo o caso a partir de BakerStreet?”

“Porque hámuitas investigações que devem ser feitas aqui. Mrs. St.

Clairpôsgentilmentedoisaposentosàminhadisposição,eeu lhegarantoquereceberámuitobemmeuamigoecolega.Detestoencontrá-la,Watson,quandonãopossolhedizernadadenovosobreomarido.Cáestamos.Eh,eh!”

Havíamos parado diante de uma ampla casa, cercada por vastoterreno. Um cavalariço correu para segurar as rédeas do cavalo e,apeando,acompanheiHolmespelatrilhasinuosadecascalhoquelevavaàcasa.Quandonosaproximávamos,aportaabriu-seeumamulherpequenaelourapostou-senovão.Seuvestidoeradeumaespéciedemousselinedesoie, com uma ita cor-de-rosa e felpuda no pescoço e nos punhos. Suasilhuetadelineava-secontraa luzquevinhado interior; seguravaaportacomumadasmãosetinhaaoutrasemierguidaemsuaansiedade,ocorpoligeiramente curvado, a cabeça e a face projetadas, os olhos ávidos e oslábiosentreabertos…todaelaumapergunta.

“Eentão?”exclamou.“Eentão?”E, vendo que éramos dois, soltou um gritinho de esperança que se

transformounumsoluçoquandomeucompanheiroacenounegativamenteacabeçaeencolheuosombros.

“Nenhumanotíciaboa?”“Nenhuma.”“Nemmá?”“Não.”“Graças a Deus! Mas entrem. Tiveram um longo dia, devem estar

exaustos.”“EsteéomeuamigoDr.Watson.Elemetemsidodeutilidadevitalem

várioscasos,eumafelizcoincidênciapossibilitou-metrazê-loeassociá-loaestainvestigação.”

“É um grande prazer conhecê-lo”, disse ela, apertando-mecalorosamente a mão. “O senhor certamente desculpará qualquer falhaque encontre em nossas acomodações, tendo em vista o golpe que seabateutãosubitamentesobrenós.”

“Minhaprezada senhora”, respondi, “souumveterano, emesmoquenão fosse, posso ver muito bem que nenhum pedido de desculpas énecessário. Se eupuder serde algumautilidade, para a senhoraouparameuamigoaqui,ficareirealmentefeliz.”

“Agora, Mr. Sherlock Holmes”, disse a senhora quando, entrandonuma sala de jantar bem-iluminada, vimos uma ceia fria sobre a mesa,

“gostariade lhe fazerumaouduasperguntas francas,aquepeçoquedêrespostasigualmentefrancas.”

“Certamente,senhora.”“Não se preocupe com osmeus sentimentos. Não sou histérica, nem

dada a desmaios. Desejo simplesmente ouvir sua opinião verdadeira,verdadeira.”

“Sobreoquê?”“Nofundodeseucoração,acreditaqueNevilleestávivo?”Sherlock Holmes pareceu embaraçado pela pergunta. “Diga

francamente!” insistiu ela, depé sobreo tapete e baixandoos olhosparaencararomeuamigo,sentadonumapoltronadevime.

“Poisbem,francamente,senhora,creioquenão.”“Pensaqueestámorto?”“Penso.”“Assassinado?”“Nãodigoisso.Talvez.”“Equediateriamorrido?”“Segunda-feira.”“Nessecaso,Mr.Holmes,talvezpossaterabondadedeexplicarcomo

foipossívelqueeurecebesseestacartadelehoje.”SherlockHolmesdeuumpulodacadeira, comose tivesse levadoum

choque.“Quê?”rugiu.“Issomesmo, hoje.” Ela sorria, sacudindo um pedacinho de papel no

ar.“Possoverisso?”“Maséclaro.”Ele arrancou o papel das mãos de Mrs. St. Clair em sua ânsia e,

abrindo-osobreamesa,aproximoualâmpadaeexaminou-oatentamente.Eumelevantaraeolhavaacartaporsobreseuombro.Oenvelope,muitogrosseiro, tinhao carimbodeGravesende adatadaquelemesmodia, oumelhor,davéspera,poisjápassaramuitodameia-noite.

“Uma letra tosca”,murmurouHolmes. “Com certeza não é a letra doseumarido,senhora.”

“Não,masoquevinhadentroédele.”

“Vejo também que quem quer que tenha endereçado o envelopeprecisouperguntarqualeraoendereço.”

“Comopodesaberisso?”“Veja,onomeestánumatintabempreta,quesecousozinha.Orestoé

de uma cor acinzentada, o que revela o uso de um mata-borrão. Se oendereçotivessesidoescritoimediatamente,depoissidosecadocommata-borrão,nãoteriaessacorpretacarregada.Essapessoaescreveuonome,eemseguidahouveumapausaantesqueescrevesseo endereço, oque sópode signi icar que não o conhecia. Trata-se, evidentemente, de umainsigni icância,masnadaétãoimportantequantoascoisasinsigni icantes.Vejamosacarta!Ah,elaenvolviaalgumacoisa.”

“Sim,umanel.Seuanelcomsinete.”“Asenhoratemcertezadequeestaletraédeseumarido?”“Éumadesuasletras.”“Uma?”“Sua letra quando ele escrevia às pressas. Émuito diferente de sua

cursivahabitual,maseuaconheçobem.”Minhaquerida,nãotenhamedo.Tudodarácerto.Háumenormeerro

cujaretificaçãopoderáexigiralgumtempo.Esperecompaciência.

NEVILLE

“Escritoa lápisna folhadeguardadeumlivro, in-oitavo,semmarca-d’água.PostonocorreiohojeemGravesendporumhomemcomopolegarsujo. Ah! E, ou muito me engano, ou a aba foi colada por alguém queestiveramascandofumo.Nãotemmesmonenhumadúvidadequeéaletradeseumarido,senhora?”

“Nenhuma.Nevilleescreveuessaspalavras.”“EelasforampostasnocorreiohojeemGravesend.Bem,Mrs.St.Clair,

o tempo se desanuvia, embora eu nãome aventure a dizer que o perigopassou.”

“Maselesópodeestarvivo,Mr.Holmes.”“Amenosqueistosejaumaengenhosafalsi icaçãoparanospôrnuma

pista errada.O anel, a inal de contas, nada prova. Poderia ter sido tiradodele.”

“Não,não;éaletradele,tenhocerteza!”

“Muito bem. Isto pode, porém, ter sido escrito segunda-feira e sóenviadohoje.”

“Issoépossível.”“Nessecaso,muitacoisapodeteracontecidonessemeio-tempo.”“Ah,nãodevemedesalentar,Mr.Holmes.Seiqueestátudobemcom

ele.Háentrenósumasintoniatãointensaqueeusaberiasealgumacoisademaulhetivesseacontecido.Noprópriodiaemqueovipelaúltimavez,elesecortounoquartodedormir,eeu,queestavanasaladejantar,corrino mesmo instante para o segundo andar, com absoluta certeza de quealguma coisa lhe acontecera. Pensaque eu reagiria a umabagatela comoessaenoentantoignorariaasuamorte?”

“Jávi coisasdemaisparanãosaberquea impressãodeumamulherpode sermais valiosa que a conclusãodeum raciocínio analítico. E nestacarta a senhora tem semdúvidaum indíciodepesopara corroborar suaopinião.Mas seestávivoeemcondiçõesdeescrever cartas,porque seumaridopermaneceafastadodasenhora?”

“Nãopossoimaginararazão.Éinimaginável.”“Nasegunda-feiraelenãofeznenhumcomentárioantesdesair?”“Não.”“Asenhoraficousurpresaaovê-loemSwandamLane?”“Extremamente.”“Avidraçaestavaaberta?”“Estava.”“Entãoelepoderiatê-lachamado?”“Poderia.”“Peloqueentendi,eleapenasdeuumgritoinarticulado,nãofoi?”“Issomesmo.”“Umpedidodesocorro,pareceu-lhe?”“Sim,elesacudiuasmãos.”“Mas poderia ter sido um grito de surpresa. O espanto ante a visão

inesperadadasenhorapoderiatê-lolevadoaerguerasmãos?”“Épossível.”“Epareceu-lhequeelefoipuxadoportrás?”“Desapareceumuitosubitamente.”“Poderiaterdadoumpuloparatrás.Nãoviumaisninguémnasala?”

“Não,mas aquelehomemhorrível confessou ter estado lá, e o lascarestavanopédaescada.”

“Éclaro.Peloquepôdever,seumaridovestiaasroupasdecostume?”“Massemcolarinhonemgravata.Vidistintamenteseupescoçonu.”“AlgumavezelefaloudeSwandamLane?”“Nunca.”“Algumavezrevelouindíciosdetertomadoópio?”“Nunca.”“Obrigado,Mrs.St.Clair.Essessãoosprincipaispontossobreosquais

eudesejavaterabsolutaclareza.Éhorade fazermosumapequenaceiaedepoisnosrecolhermos,teremosumdiamuitocheioamanhã.”

Um quarto amplo e confortável, com duas camas, havia sido posto ànossa disposição, e en iei-me logo entre os lençóis, exausto depois deminha noite de aventura. Sherlock Holmes, porém, era um homem que,quandotinhaumproblemaporresolvernacabeça,podiapassardias,atéuma semana, sem descansar, revolvendo os fatos, rearranjando-os,examinando-osdetodosospontosdevista,atétê-loscompreendidoouseconvencidodenãoterdadossu icientes.Logo icoupatenteparamimqueele estava se preparando para uma noite em claro. Tirou o paletó e ocolete, vestiu um amplo roupão azul e pôs-se a andar pelo quartorecolhendo os travesseiros de sua cama e as almofadas do sofá e daspoltronas.Com issomontouumaespéciededivãoriental, sobreoqual seinstalou de pernas cruzadas, com uma onça de tabaco e uma caixa defósforos à sua frente. À luz pálida da lâmpada, eu o via ali, um velhocachimbo de urze entre os lábios, os olhos ixos num canto do teto, afumaça azul subindo em espirais, silencioso, imóvel, com a luz brilhandosobre seus traços aquilinos e fortes. Assim estava quando mergulhei nosono, e assim continuava quando uma exclamação que soltou de repenteme despertou, e vi o sol de verão inundando o quarto. Ele ainda tinha ocachimboentreos lábios, a fumaçaainda subiaemespirais, eumanévoadensa enchia o quarto,mas nada restava domontinho de tabaco que euvirananoiteanterior.

“Acordado,Watson?”perguntouele.“Estou.”“Prontoparaumaviagemmatinal?”“Certamente.”“Entãovista-se.Ninguémestásemexendoainda,masseiondedorme

omoçodaestrebariae teremoso carropronto semdemora.”Ria consigomesmo ao falar, seus olhos faiscavam… parecia um homem diferente dopensadorsoturnodavéspera.

Enquanto me vestia, olhei o relógio. Não era de surpreender queaindanãohouvessemovimentonacasa.Eramquatroevinte.Eumal icarapronto quando Holmes voltou com a informação de que o rapaz estavaatrelandoocavalo.

“Queropôràprovaumapequenateoriaminha”,disseele,calçandoossapatos. “Creio,Watson, que você está diante de umdosmais rematadostolos da Europa.Mereço ser levado sob pontapés daqui a Charing Cross.Mascreioqueagoratenhoachavedaquestão.”

“Eondeestáela?”perguntei,sorrindo.“No banheiro”, respondeu. “Ora, não estou brincando”, acrescentou,

vendomeuardeincredulidade.“Estiveláaindaagora,tirei-aeapusnestamaleta Gladstone. Vamos, meu caro, e vejamos se ela entra ou não nafechadura.”

No maior silêncio possível, saímos para o luminoso sol da manhã.Nossodog-cart, com o cavalo atrelado, já estava na estrada, com ocavalariçosemivestidosegurandoasrédeas.PulamosnocarroerumamosatodapressaparaaLondonRoad.Vimosnaestradaumaououtracarroçalocal, levando legumesparaametrópole,masas ileirasdecasasdosdoisladosestavamtãosilenciosasesemvidacomoumacidadenumsonho.

“Sob certos aspectos, este foi um caso singular”, disse Holmes,instigando o cavalo a galopar. “Confesso que estive cego como umatoupeira,masantesabrirosolhostardedoquenunca.”

Nacidade,osmadrugadoresapenascomeçavamaabrirsuas janelas,sonolentos, quando passamos pelas ruas do lado de Surrey. Descemos aWaterloo Bridge Road, cruzamos o rio, e depois de subir a WellingtonStreet izemosumacurvaacentuadaàdireitaenosvimosemBowStreet.Sherlock Holmes era muito conhecido na polícia, e os dois guardas queestavamàporta lhebateramcontinência.Umdeles segurouas rédeasdocavalo,enquantoooutroabriu-nosaporta.

“Quemestádeplantão?”perguntouHolmes.“OinspetorBradstreet,senhor.”“Ah, Bradstreet, como vai?” Um policial alto e corpulento descera à

passagemlajeada,comumquepedepalaeopaletóamarrotado.“Gostariade ter uma conversa tranquila com o senhor.” “Certamente, Mr. Holmes.

Venhaatéaminhasala.Poraqui.”Eraumpequenoescritório comumenorme livro sobreamesaeum

telefonepresoàparede.Oinspetorsentou-seàsuamesa.“Emquelhepossoserútil,Mr.Holmes?”“Venhoapropósitodaquelemendigo,Boone…aquelequefoiacusado

departicipaçãonodesaparecimentodeMr.NevilleSt.Clair,deLee.”“Sei.Foitrazidoeficoudetidoparamaioresinvestigações.”“Foioquesoube.Eleestáaqui?”“Nacela.”“Estácalmo?”“Ah,nãodátrabalho.Maséumcanalhasujo.”“Sujo?”“Issomesmo. Só conseguimos fazer comque lave asmãos; seu rosto

estápretocomoodeumcarvoeiro.Bem,quandoseucasoforsolucionado,ele vai passar pelo banho em regra da prisão; acho que se o visseconcordariaqueestáprecisando.”

“Gostariamuitodevê-lo.”“Gostaria?Nadamaisfácil.Venhamcomigo.Podedeixaramaleta.”“Não,prefirolevá-lacomigo.”“Como queira. Por aqui, por favor.” Levou-nos por uma passagem,

abriuumaportagradeada,desceuumaescadaemcaracolenosconduziuporumcorredorcaiadocomportasenfileiradasdosdoislados.

“A terceira à direita é a dele”, disse o inspetor. “Aqui está!” Abriusilenciosamenteumpainelnoaltodaportaeespiou.

“Estádormindo”,disse.“Osenhorpoderávê-lomuitobem.”Ambos olhamos pela grade. O preso estava deitado com o rosto

voltado para nós, profundamente adormecido, respirando lenta epesadamente. Era um homem de porte médio, grosseiramente vestido,comoconvinhaàsuapro issão;umacamisacoloridasaíaporumrasgãodopaletó esfarrapado. Estava extremamente sujo, como o inspetor dissera,masasujeiraquelhecobriaorostonãodisfarçavasuafeiurarepulsiva.Ogrosso vergão de uma cicatriz antiga corria-lhe do olho ao queixo e, pelasua contração, havia repuxado para cima um lado do lábio superior, demodo que três dentes icavam àmostra num rosnado perpétuo. Sobre atestaestreitacresciaumabastacabeleira,deumvermelhomuitovivo.

“Éumabeleza,nãoé?”disseoinspetor.

“Sem dúvida precisa de um banho”, comentou Holmes. “Pensei queprecisaria… e tomei a liberdade de trazer comigo os apetrechosnecessários.”Enquanto falava,abriuamaletaGladstoneedela tirou,parameuespanto,umaenormeesponjadebanho.”

“Ah!Ah!Osenhoréengraçado”,riuoinspetor.“Agora,seme izeragentilezadeabriressaportasemfazernenhum

ruído,logolhedaremosumaspectomuitomaisrespeitável.”“Bem,nãovejoporquenão”,disseoinspetor.“Elenãofazjusàscelas

deBowStreet,nãoé?”En iousuachavenafechaduraeentramostodosnacelaemabsolutosilêncio.Opresovirou-se,depoisvoltouamergulharnumsonoprofundo.Holmescurvou-sesobreajarrad’água,molhouaesponjaedeuduasvigorosasesfregadasemtodaacaradohomem.

“Permitam-meapresentar-lhes”,bradou,“Mr.NevilleSt.Clair,deLee,noCondadodeKent.”

Eununcaviranadaparecidoemtodaaminhavida.Orostodohomemfoisedespregandosobaesponjacomoacascadeumaárvore.Ogrosseiromatizmarrom sumiu. Sumiu também a horrível cicatriz que o sulcava dealtoabaixo, eo lábio torcido lhedavaumsorrisodeescárnio!Umpuxãoarrancouacabeleiravermelhaemaranhada,eali,sentadonacama,vimosum homem pálido, de semblante triste, ar re inado, cabelo preto e peleina,aesfregarosolhoseolharàsuavoltanumaperplexidadesonolenta.Emseguida,dando-secontaderepentedodesmascaramento,deuumgritoejogou-sesobreacama,enterrandoorostonotravesseiro.

“Deuumgritoejogou-sesobreacama.”[SidneyPaget,StrandMagazine,1891]

“Deus do céu!” exclamou o inspetor. “É o próprio homemdesaparecido.Conheço-opelafotografia.”

O preso voltou-se como ar desesperado de quem se entrega ao seudestino.“Queseja”,disse.“Eagora,porfavor,dequesouacusado?”

“De ter dado sumiço em Mr. Neville St.… Ora, você não pode seracusado disso, a menos que mudem a incriminação para tentativa desuicídio”,disseo inspetor comumsorriso forçado. “Bem,estouhávinteeseteanosnaforça,masestarealmentelevaoprêmio.”

“SesouNevilleSt.Clair,éóbvioquenenhumdelitogravefoicometido,eque,portanto,estoudetidoilegalmente.”

“Não houve crime, mas cometeu-se um grande erro”, disse Holmes.“Teriafeitomelhorconfiandoemsuaesposa.”

“Nãofoiminhamulher,foramascrianças”,gemeuopreso.“QueDeusme ajude, não queria que se envergonhassem do pai. Meu Deus! Queescândalo!Quepossofazer?”

Sherlock Holmes sentou-se ao lado dele na cama e deu-lhe umapalmadasolidárianoombro.

“Se permitir que o caso seja elucidado num tribunal”, disse, “é claroque di icilmente poderá evitar publicidade. Por outro lado, se puderconvencerasautoridadespoliciaisdequenãopodeseracusadodenada,não vejo razão alguma para que os detalhes cheguem aos jornais. TenhocertezadequeoinspetorBradstreetregistraráquaisquerdeclaraçõesquenosqueirafazereasapresentaráàsautoridadescompetentes.Assim,seucasojamaischegariaaumtribunal.”

“Deus o abençoe!” exclamou o prisioneiro, comovido. “Eu teriapreferido a prisão, teria preferido até a execução, a deixar meu infamesegredocomoumamanchadefamíliaparaosmeusfilhos.

“Ossenhoressãoosprimeirosaouvirminhahistória.Meupai foiummestre-escola em Chester ield, onde recebi excelente educação. Najuventude viajei, iz teatro e inalmente tornei-me repórter de um jornalvespertino em Londres. Certo dia meu diretor quis uma série dereportagens sobre amendicânciana cidade, epropus-mea fazê-la. Foi aíque começaram todas as minhas aventuras. Só pude obter os fatos queembasariam meus artigos experimentando mendigar como amador.

Quando ator eu tinha, é claro, aprendido todos os segredos dacaracterização, era famoso nos bastidores porminha habilidade. Tirandopartidodela,pinteiorostoe,parametornaromaisdignodepenapossível,iz uma boa cicatriz e entortei um lado da boca com a ajuda de umesparadrapo cor de pele. Depois, com uma peruca ruiva e roupasapropriadas, instalei-me na área mais movimentada da City,ostensivamente como vendedor de fósforos, mas na realidade paramendigar.Passeisetehorasalie,aovoltarparacasaànoite,descobri,paraminhasurpresa,queganharanadamenosque26xelinse4pennies.

“Fiz as reportagens e quase não pensei mais no assunto, até que,algumtempodepois, fui iadordeumamigoetivedepagarumacontade25libras.Fiqueidesesperado,semsaberdeondetirarodinheiro,quandouma ideia me ocorreu de repente. Implorei ao credor o prazo de umasemana, pedi uma licença ao jornal e passei esse tempomendigando naCitycommeudisfarce.Emdezdiasconseguiodinheiroepagueiadívida.

“Bem,ossenhorespodemimaginarcomofoidi ícilmeconformarcomum trabalho árduo a duas libras por semana quando sabia que podiaganharissonumdia,bastandoespalharumpoucodetintanorosto,deixarmeugorronochãoe icarsentado.Foiumalongalutaentremeuorgulhoeodinheiro,masobolsoacaboufalandomaisalto.Abandoneiojornalismoepasseiamesentar,diaapósdia,naesquinaqueescolheradaprimeiravez,inspirando piedade com minha cara horrível e enchendo os bolsos decobres. Só um homem sabia o meu segredo. Era o zelador de uma casaonde eu me hospedava em Swandam Lane e de onde podia sair a cadamanhã comoummendigo esquálido e à tarde transformar-menumbem-vestidohomemdomundo.Comoeupagavabemaessesujeito,umlascar,peloscômodosquemealugava,sabiaquemeusegredoestavasegurocomele.

“Bem,logoeuestavapoupandosomasconsideráveis.Nãoquerodizerque todomendigo das ruas de Londres consegue ganhar 700 libras porano — o que é menos do que meus ganhos médios —, mas eu tinhavantagens excepcionais graças àminha capacidade deme caracterizar etambém ao fato de ter sempre uma resposta espirituosa na ponta dalíngua,umdomquemelhoroucomapráticaefezdemimumtipobastantepopularnaCity.Tododiaumachuvadepennies,eláumavezououtraumamoeda de prata, derramava-se sobre mim e só em dias muito ruins eufaturavamenosdeduaslibras.

“Àmedidaque fuienriquecendo, fui icandoambicioso; compreiuma

casa no campo e acabei me casando, sem que ninguém descon iasse daminha verdadeira ocupação. Minha querida mulher sabia que eu tinhanegóciosnaCity.Masnãotinhaideiadequaiserameles.

“Segunda-feirapassada,meuexpedientediárioterminaraeeuestavamevestindo emmeuquarto, em cimado antrode ópio, quando, ao olharpelajanela,vi,parameuhorroreespanto,minhamulherparadanarua,osolhos pregados emmim. Dei um grito de surpresa, ergui os braços paracobrirorostoefuicorrendoimploraraomeucon idente,olascar,quenãodeixasse ninguém subir. Ouvi a voz dela lá embaixo, mas sabia que nãopoderia subir. Despi-me rapidamente, vesti minhas roupas de mendigo,pintei-meepusaperuca.Nemosolhosdeumaesposaseriamcapazesdepenetrar disfarce tão completo. Mas ocorreu-me então que o quartopoderiaserrevistado,equeasroupaspoderiammetrair.Abriajanela,tãobruscamente que iz reabrir um pequeno corte que sofrera no dedo emmeuquartoaquelamanhã.Depoispegueiopaletó,pesadocomasmoedasqueacabarade tirarda sacolade couroemque carregavaminha féria ede transferir para seusbolsos, joguei-opela janela e o vi desaparecernoTâmisa. Teria jogado as outras roupas em seguida, mas nesse momentoouviumtropeldepoliciaissubindoaescadae,poucosminutosdepois,emvezdeseridenti icadocomoMr.NevilleSt.Clair,vi-me,confessoqueparameualívio,detidocomoseuassassino.

“Queeusaibanãohámaisnadaqueeudevaexplicar.Estavadecididoapreservarmeudisfarceportantotempoquantopossível,porissominhapreferência por um rosto sujo. Sabendo que minha mulher estariaterrivelmente a lita, tireimeu anel e entreguei-o ao lascar nummomentoemquenenhumpolicialolhavaparamim,juntocomumbilheterabiscadoàspressas,dizendo-lhequenãotinharazãoparatermedo.”

“Essebilhetesóchegouàsmãosdelaontem”,disseHolmes.“MeuDeus!Quesemanaeladeveterpassado!”“A polícia icou vigiando esse lascar”, disse o inspetor Bradstreet, “e

posso compreender perfeitamente que ele tenha tido di iculdade emenviar uma carta sem ser observado. Provavelmente entregou-a um deseusclientesmarinheiros,quesóselembroudelaalgunsdiasdepois.”

“Foi isso”,disseHolmes,aprovandocomacenodecabeça. “Nãotenhodúvida.Masnuncafoiprocessadopormendigar?”

“Muitasvezes.Masqueeraumamultaparamim?”“Issodevepararporaqui”,disseBradstreet. “Sequiserqueapolícia

abafeessecaso,HughBoonedevedesaparecer.”“Jurei que desapareceria com o mais solene juramento que um

homempodefazer.”“Nesse caso, parece-me provável que não se possa tomar mais

nenhuma medida. Mas se for encontrado de novo, tudo será divulgado.Estoucerto,Mr.Holmes,dequelhedevemosmuitopeloesclarecimentodaquestão.Gostariadesabercomochegaaseusresultados.”

“Cheguei a este”, disse meu amigo, “sentado em cinco almofadas econsumindoumaonçadetabaco.Creio,Watson,queseformosagoraparaBakerStreetchegaremosbemnahoradodesjejum.”

OCARBÚNCULOAZUL

NA SEGUNDA MANHÃ DEPOIS DO NATAL, fui visitar meu amigo Sherlock Holmescom a intenção de desejar-lhe boas-festas, como era de meu costume.Encontrei-o reclinado no sofá, metido num roupão roxo, um suporte decachimbos ao alcancedamão à direita e umapilha de jornais damanhã,amassadoseevidentemente recém-lidos,pertodamãoesquerda.Ao ladodo sofá havia uma cadeira de madeira e, pendurado num canto de seudorso, um chapéu de feltro duro muito sórdido e indecoroso, surrado ecom rasgões em vários lugares. Uma lupa e uma tenaz no assento dacadeira sugeriam que o chapéu fora suspenso dessa maneira para sersubmetidoaumexame.

“Vocêestáocupado”,disseeu;“talvezoestejainterrompendo.”“Emabsoluto.Estoufelizporterumamigocomquemdiscutirminhas

conclusões. O assunto é dosmais triviais”, apontou para o chapéu velho,“mascertospontosligadosaelenãosãodetododesprovidosdeinteresseepodematéserinstrutivos.”

Sentei-meemsuapoltronaeaqueciasmãosdiantedofogocrepitante,pois caíraumabruscageadaeas janelasestavamcobertasde cristaisdegelo. “Suponho”, observei, “que, pormais feia que pareça, esta coisa estáligada a alguma história fatal… que é a pista que o guiará na solução dealgummistérioenapuniçãodealgumcrime.”

“Não, não. Nenhum crime”, respondeu Sherlock Holmes, rindo. “Éapenasumdessespequenosincidentesesquisitosqueocorremquandoháquatro milhões de seres humanos, todos se acotovelando no espaço dealgunsquilômetrosquadrados.Emmeioàsaçõesereaçõesdeumenxametão denso de pessoas, pode-se esperar que toda combinação possível deeventos aconteça, e que surjam muitos probleminhas que podem serimpressionantes e estranhos sem serem criminosos. Já experimentamoscoisasassim.”

“Tantasvezes”,comentei, “quedosúltimosseiscasosqueacrescenteiàsminhasanotaçõestrêsestavamcompletamenteisentosdequalquertipodeinfraçãolegal.”

“Exatamente.VocêaludeàminhatentativaderecuperarospapéisdeIrene Adler, ao caso singular de Miss Mary Sutherland e à aventura dohomemdabocatorta.Bem,nãotenhodúvidadequeestapequenaquestãorecairánamesmacategoriainocente.ConhecePeterson,oestafeta?”

“Conheço.”“Éaelequeestetroféupertence.”“Ochapéuédele.”“Não,não,eleoencontrou.Nãosabemosqueméodono.Peço-lheque

o observe não como um chapéu-coco puído, mas como um problemaintelectual.Antes,porém,precisolhecontarcomoveiopararaqui.Chegouna manhã de Natal, na companhia de um belo e gordo ganso que nestemomento,nãotenhodúvida,estáassandonofornodePeterson.

“Osfatossãoosseguintes.Porvoltadasquatrohorasdamanhãdodiade Natal, Peterson, que, como você sabe, é um sujeito muito honesto,voltavaparacasadepoisdeumafarrinha,passandoporTottenhamCourtRoad.Àluzdoslampiõesdegás,eleviudiantedesiumhomemmaisparaalto, ligeiramente trôpego, carregando um ganso branco jogado sobre oombro.QuandochegouàesquinadeGoodgeStreet,viucomeçarumabrigaentreesseestranhoeumgrupinhodearruaceiros.Umdelesderrubou-lheochapéueohomemergueuabengalaparasedefender;aogirá-lasobresua cabeça, porém, quebrou a vitrine atrás de si. Peterson havia corridopara proteger o estranho dos agressores,mas o homem, chocado ao verquequebraraavitrineevendoumapessoadeuniformecorrendoemsuadireção, deixou cair o ganso e saiu na disparada, desaparecendo nolabirinto de ruelas que existe atrás de Tottenham Court Road. Como osarruaceirostambémfugiramquandoPetersonapareceu,eleficoudepossenãosódocampodebatalhacomodosdespojosdavitória,na formadestechapéusurradoedomaisimpecávelgansodeNatal.”

“OsarruaceirostambémfugiramquandoPetersonapareceu.”[SidneyPaget,StrandMagazine,1892]

“Que,naturalmente,eledevolveuaolegítimodono?”“Aíestáoproblema,meucaro.Éverdadequehavia,amarradoàpata

esquerdadaave,umcartãozinhocomosdizeres:‘ParaMrs.HenryBaker’,e é igualmenteverdadequeépossível ler as iniciais ‘H.B.’ no forrodestechapéu,mas, como hámilhares de Bakers e algumas centenas de HenryBakers nesta cidade, não é fácil restituir a propriedade perdida a algumdeles.”

“QuefezPeterson,então?”“Trouxe chapéu e ganso paramimnamanhã deNatal, sabendo que

atéosproblemasmais insigni icantesme interessam.Guardamosogansoaté estamanhã, quandohouve sinaisdeque, apesarda leve geada, seriaconveniente que ele fosse comido sem procrastinação desnecessária.Assim, Peterson o levou para lhe dar o destino inal de todo ganso,enquanto eu continuo com o chapéu do cavalheiro desconhecido queperdeuseualmoçodeNatal.”

“Elenãopôsumanúncionosjornais?”“Não.”“Nessecaso,quepistavocêtemdesuaidentidade?”“Sóoquenosépossíveldeduzir.”“Doseuchapéu?”

“Exatamente.”“Vocêestábrincando.Quepodededuzirdessevelhoesovadochapéu

defeltro?”“Cá está a minha lupa. Conhece meus métodos. Que pode você

depreenderdapersonalidadedohomemqueusouesteobjeto?”Peguei o chapéu andrajoso e revirei-o de todos os lados, com certa

comiseração. Era um chapéu-coco preto com o formato arredondado decostume,duroemuitosurrado.O forrohaviasidodesedavermelha,masestava bastante desbotado. Não se via o nome do fabricante; mas, comoHolmesobservara,viam-seas iniciais “H.B.” rabiscadasnum lado.Naaba,havia furos para um elástico que prenderia o chapéu sob o queixo, masnenhum elástico. De resto, estava rachado, extremamente empoeirado emanchado em diversos pontos, embora parecesse que se izera algumatentativadedisfarçarasmanchasdesbotadascomtintadeescrever.

“Nãoconsigovercoisaalguma”,disseeu,devolvendo-oaomeuamigo.“Pelocontrário,Watson,vocêpodevertudo.Nãoécapaz,contudo,de

raciocinarapartirdoquevê.Étímidodemaisemfazersuasinferências.”“Então, pode me dizer por favor o que consegue inferir desse

chapéu?”Eleopegouecontemploudamaneirapeculiar, introspectiva,que lhe

eracaracterística. “Talveznãoseja lámuitosugestivo”,comentou. “Apesardisso,permitealgumasinferênciasmuitoclarasealgumasoutrasquetêmpelomenosforteprobabilidade.Suaaparênciadeixabastanteóbvioqueohomem era altamente intelectualizado, e também que gozou de bastanteprosperidadenosúltimostrêsanos,emboraagoraestejaexperimentandodi iculdades.Eraumhomemprudente,mashojenãoétanto,oquesugereuma regressãomoral que, combinada com a reviravolta ocorrida em suasorte,pareceindicaraaçãodealgumain luêncianefasta,provavelmenteabebida, sobre ele. Isso talvez possa explicar também o fato óbvio de quesuamulherdeixoudeamá-lo.”

“Mas,meucaroHolmes!”“Ele conservou, contudo, certo grau de dignidade”, continuou o meu

amigo, ignorando meu protesto. “É um homem de vida sedentária, saimuitopouco,estáinteiramenteforadeforma,édemeia-idade,temcabelogrisalho, que cortou nestes últimos dias e que unta com creme de limão.Estessãoosfatosmaispatentesquepodemserdeduzidosdestechapéu.Etambém, aliás, que é extremamente improvável que tenha gás encanado

emcasa.”“Certamenteestábrincando,Holmes.”“Demaneiraalguma.Serápossívelquemesmoagora,depoisque lhe

apresenteiessasconclusões,vocênãoconsigavercomochegueiaelas?”“Não tenhodúvidadeque soumuitoburro,masdevo confessar que

nãoconsigoacompanharseuraciocínio.Porexemplo,comodeduziuqueohomemeraumintelectual?”

Como resposta, Holmes en iou o chapéu na cabeça. Este cobriu-lheinteiramente a testa e apoiou-se no osso do nariz. “É uma questão decapacidade cúbica”, disse. “Umhomem comum cérebro tão grande tinhadeteralgumacoisanele.”

“Eareviravoltadasorte?”“Estechapéutemtrêsanos.Foiquandolançaramessemodelodeabas

chatas,enroladasnasbordas.Éumchapéudamelhorqualidade.Vejaestaita de gorgorão e o excelente forro. Se esse homem pôde comprar umchapéutãocarotrêsanosatrásenãocomprouumnovodesdeentão,comcertezasuasituaçãopioroumuito.”

“Bem, isso está bastante claro, não resta dúvida. Mas e quanto àprudênciaeaodeclíniomoral?”

Sherlock Holmes riu. “Aqui está a prudência”, disse, pondo o dedosobre o pequeno disco e o aro destinados ao elástico para segurar ochapéu.“Oschapéusnuncavêmcomeles.Seohomemencomendouisso,ésinal de certa prudência, já que se deu ao trabalho de tomar essaprecauçãocontraovento.Mas,comovemosqueoelásticoserompeueelenãoteveocuidadodesubstituí-lo,éóbvioqueémenosprudenteagoradoqueantes,oqueéumaprovadistintadeumenfraquecimentodocaráter.Por outro lado, ele tentou esconder algumas dessas manchas no feltroborrando-ascomtintadeescrever,umsinaldequenãoperdeutotalmenteaautoestima.”

“Seuraciocínioécertamenteplausível.”“Os outros pontos, que o homem é demeia-idade, que seu cabelo é

grisalhoe foicortadorecentementeequeeleusacremede limão,podemser todos deduzidos a partir de um exame atento da parte inferior doforro. A lupa revela grande número de pontas de cabelo, habilmentecortadaspelatesouradeumbarbeiro.Todasparecempegajosasesente-seclaramente um cheiro de creme de limão. Esta poeira, observe, não é apoeira arenosa e cinzentadas ruas,mas apoeiramarrome fofade casa,

mostrando que esse chapéu icou pendurado entre quatro paredes amaiorpartedotempo,aopassoqueasmarcasdeumidadenointeriorsãoumaprovapositivadequeseudonotranspiravamuitoabundantementeeportantodificilmentepoderiaestaremsuamelhorformafísica.”

“Maseamulherdele…vocêdissequeeladeixoudeamá-lo.”“Estechapéunãoéescovadohásemanas.Quandoeuovir,meucaro

Watson, com a poeira de uma semana acumulada sobre seu chapéu, equando sua mulher permitir que saia nesse estado, temerei que vocêtambémtenhatidooinfortúniodeperderaafeiçãodela.”

“Maselepoderiasersolteiro.”“Não, estava levando o ganso para casa numa tentativa de

reconquistar as boas graças damulher. Lembre-se do cartão na pata daave.”

“Vocêtemrespostaparatudo.Mascomodiabospôdededuzirquenãohágásencanadonacasadele?”

“Umamanchadecera,oumesmoduas,podeser frutodoacaso;masquandovejonadamenosquecinco,pensoquenãopodehaverdúvidadeque esse indivíduo deve estar em contato frequente com sebo quente…provavelmente sobe as escadas à noite com o chapéu numa das mãos eumavelapingandonaoutra. Seja como for, deumbicodegás équenãopodeterconseguidoestasmanchas.Estásatisfeito?”

“Bem, émuito engenhoso”, disse eu, rindo; “mas uma vez que, comovocê acaba de declarar, nenhum crime foi cometido e nenhum dano foicausado exceto a perda de um ganso, tudo isso mais parece umdesperdíciodeenergia.”

Sherlock Holmes abrira a boca para responder quando a porta seabriu e Peterson, o estafeta, entrou correndo na sala com o rostoafogueadoeumaexpressãodepasmo.

“Vejaoqueminhamulherencontrounopapodele!”[SidneyPaget,StrandMagazine,1892]

“Oganso,Mr.Holmes!Oganso,senhor!”dissecomvozentrecortada.“Hã?Queaconteceucomele?Ressuscitouesaiuvoandopelajanelada

cozinha?” Holmes girou no sofá para ver melhor o rosto excitado dohomem.

“Veja aqui, senhor! Veja o que minha mulher encontrou no papodele!”Estendeuamão, exibindono centrodapalmaumapedra azul quecintilava esplendidamente; era um pouco menor que um grão de feijão,mas de tal pureza e radiância que faiscava como um ponto elétrico naconcavidadeescuradesuamão.

Sherlock Holmes sentou-se com um assobio. “Por Deus, Peterson!”exclamou. “Isso foi realmente um achado. Suponho que saiba o que temaí?”

“Umdiamante,senhor!Umapedrapreciosa!Cortavidrocomosefossemassadevidraceiro.”

“Émaisqueumapedrapreciosa.Éapedrapreciosa.”“NãoocarbúnculoazuldacondessadeMorcar!”exclamei.“Éprecisamenteele.Tenhodeconhecerseutamanhoeforma,porque

tenho lidooanúncioaseurespeitonoTimes todososdiasultimamente.Éúnico e seu valor pode ser apenas conjecturado, mas a recompensaoferecidademil librascertamentenãocorrespondenemàvigésimapartedeseupreçodemercado.”

“Mil libras!Misericórdia!”Oestafetacaiusentadonumacadeira,seus

olhosarregaladosziguezagueandoentrenósdois.“É essa a recompensa, e tenho motivos para supor que há por trás

dessapedra considerações sentimentais que levariama condessa a abrirmãodemetadedesuafortunaapenaspararecuperá-la.”

“Elafoiperdida,semelembrobem,noHotelCosmopolitan”,comentei.“Exatamente, no dia 22 de dezembro, apenas cinco dias atrás. John

Horner,umbombeiro, foiacusadode tê-lasubtraídodoestojode joiasdasenhora.Osindícioscontraeleeramtãofortesqueocasofoiencaminhadoao tribunal superior. Tenho um relato da matéria aqui, creio.” Remexeuentreseusjornais,olhandoasdatas,atéque inalmentealisouum,dobrou-o,eleuoseguinteparágrafo:

JoiaroubadanoHotelCosmopolitan.Nodia22docorrentemês, JohnHorner,26,bombeiro,foiacusadodeterfurtadodoestojodejoiasdacondessadeMorcaravaliosagemaconhecidacomoCarbúnculoAzul.JamesRyder,copeiro-chefe,declarou ter levadoHorneraoquartodevestir da condessa de Morcar no dia do roubo para que soldasse asegundabarrada lareira,queestavasolta.FicaracomHorneralgumtempo, mas por im tivera de sair. Ao voltar, viu que Hornerdesaparecera, a escrivaninha fora arrombada e o pequeno estojo demarroquim em que, como mais tarde transpirou, a condessacostumavaguardarajoiaestavavaziosobreapenteadeira.Ryderdeuo alarme imediatamente, eHorner foi presonamesmanoite; não foipossível, porém, encontrar a pedra com ele, nem em sua casa.Catherine Cusack, criada da condessa, depôs que ouviu o grito deconsternaçãodeRyderaodescobrirorouboecorreuaoquarto,ondeencontrou a cena conforme descrita pela última testemunha. OinspetorBradstreet, daDivisãoB, acabouprendendoHorner, que sedebateu furiosamente e protestou inocência nos mais veementestermos. Como o prisioneiro já fora condenado anteriormente porroubo, o magistrado se recusou a tratar sumariamente o delito eencaminhou-o ao tribunal superior. Horner, que revelara sinais deintensa emoção durante os procedimentos, desmaiou ao ouvir aconclusãoefoicarregadoparaforadotribunal.

“Hum!Foi istooqueaconteceuno tribunal”,disseHolmes,pensativo,jogandoojornaldelado.“Oproblemaquetemosderesolveréasequênciadosacontecimentosquelevoudeumcasoderoubodejoianumapontaao

papode um ganso naTottenhamCourtRoadna outra. Como vê,Watson,nossaspequenasdeduçõesassumiramderepenteumaspectomuitomaisimportanteemenosinocente.Aquiestáapedra;apedrasaiudoganso,eogansoveiodeMr.HenryBaker,ocavalheiroquetinhaochapéuetodasasoutras características com que o andei aborrecendo. Portanto, cabe-nosagoracomeçaraprocurarseriamenteessecavalheiroeverificarquepapelele desempenhou nesse pequeno mistério. Para tanto, devemos tentarprimeiro os meios mais simples, e estes consistem indubitavelmente napublicaçãodeumanúncio em todos os jornais vespertinos. Se isto falhar,recorrereiaoutrosmétodos.”

“Quevaidizer?”“Dê-meumlápiseaquelepedaçodepapel.Vejamos:

Encontrados: um ganso e um chapéu de feltro preto na esquina deGoodge Street. Mr. Henry Baker poderá reavê-los apresentando-sehojeàs6h30datardeemBakerStreet221B.

Estábemclaroeconciso.”“Muito.Masseráqueeleoverá?”“Bem,semdúvida icarádeolhonos jornais, jáque,paraumhomem

pobre, foi uma grande perda. Sua falta de sorte de quebrar a vitrine e aaproximação de Peterson sem dúvida o deixaram tão amedrontado quenão pensou senão em fugir, mas desde então deve estar lamentandoamargamenteoimpulsoqueolevouadeixaressegansocair.Alémdisso,aintroduçãodeseunomefarácomqueoveja,poistodososqueoconhecemchamarãoa suaatençãoparaele.Aqui está,Peterson, corraà agênciadeanúnciosepeçaquepubliquemistonosjornaisdatarde.”

“Emquais,senhor?”“Ah,noGlobe,Star,PallMall,St. James’s,EveningNews,Standard,Echo,

etodososoutrosdequeselembre.”“Muitobem,senhor.Eestapedra?”“Ah, sim, icareicomapedra.Obrigado.Maisumacoisa,Peterson:na

volta,compreumgansoedeixe-oaquicomigo,poistemosdeterumparadar a esse cavalheiro em lugar daquele que sua família está devorandonestemomento.”

Depois que o estafeta partiu, Holmes pegou a pedra e segurou-acontraa luz. “Éumacoisa linda”,disse. “Vejacomocintilae faísca.Éclaro

queéumnúcleoefocodecrime.Todaboapedraé.Sãoasiscasprediletasdo demônio. Nas gemas maiores e mais antigas, cada faceta poderepresentar um ato sangrento. Esta pedra ainda não tem vinte anos. Foiencontradanas ribanceirasdo rioAmoy,no suldaChina, e énotávelporter todasas característicasdocarbúnculo, excetopor serazul, emvezderubi.Apesardesuapoucaidade,játemumahistóriasinistra.Cometeram-se dois assassinatos, jogou-se vitríolo, houve uma tentativa de suicídio evários assaltos, tudo por causa desse carvão cristalizado de 2,5 gramas.Quemdiriaqueumbrinquedo tão lindo seriao caminhoparaa forcae acadeia?Voutrancá-lonomeucofreagoraemandarumbilheteàcondessacomunicando-lhequeestácomigo.”

“PensaqueessetalHorneréinocente?”“Nãoseiaocerto.”“Bem, nesse caso, imagina que esse outro sujeito, Henry Baker, tem

algumacoisaavercomocaso?”“Émuitomaisprovável,ameuver,queHenryBakersejaumhomem

inteiramente inocente, que não tivesse a menor ideia de que a ave quecarregava valia consideravelmente mais do que se fosse feita de ouromaciço.Mas veri icarei isso comum testemuito simples se tivermosumarespostaanossoanúncio.”

“Entãonãopodefazernadaatélá?”“Nada.”“Nesse caso, vou continuar minha ronda pro issional. Mas voltarei à

tarde, na hora que vocêmencionou, pois gostaria de ver a solução dessahistóriatãoconfusa.”

“Foiumprazervê-lo.Eujantoàssete.Creioqueteremosumagalinha-d’angola. Por falar nisso, tendo em vista ocorrências recentes, talvez eudevapediraMrs.Hudsonqueexamineopapodaave.”

Umcasomeatrasara,epassavaumpoucodasseisemeiaquandomevidenovoemBakerStreet.Aomeaproximardacasa,viumhomemalto,de boné escocês, o paletó abotoado até o queixo, esperando do lado defora,nosemicírculoiluminadoqueabandeiradaportaprojeta.Assimquecheguei a porta se abriu e fomos levados juntos para os aposentos deHolmes.

“Mr. Henry Baker, creio”, disse ele, levantando-se de sua poltrona erecebendo o visitante com a afabilidade natural que sabia assumir tãoprontamente.“Porfavor,sente-senestacadeirajuntodalareira,Mr.Baker.

A noite está fria e noto que seu sistema circulatório émais adaptado aoverãodoqueaoinverno.Ah,Watson,chegounahoraexata.Estechapéuéseu,Mr.Baker?”

“Sim,senhor,essechapéuésemdúvidameu.”Era um homem grandalhão, de ombros arredondados, cabeça

avantajada e um rosto largo, inteligente, arrematado por uma barba empontadeumcastanhogrisalho.Onarizeasfacesumpoucoavermelhadose um ligeiro tremor na mão estendida lembraram-me a conjectura deHolmessobreseushábitos.Opaletópretodesbotadoestavaabotoadoatéemcima,comagolalevantada,eospulsosdelgadossaíamdasmangassemsinal de punho ou camisa. Falava devagar e de maneira entrecortada,escolhendo as palavras com cuidado, e dava a impressão geral de umhomeminstruído,culto,queforamaltratadopelasorte.

“Guardamos essas coisas por alguns dias”, disse Holmes, “porqueesperávamos que publicasse um anúncio com seu endereço. Não consigoentenderporquenãoofez.”

Nosso visitante deu uma risadinha bastante envergonhada. “Estoupassandoporumtempodevacasmagras,”observou.“Estavacertodequeaquele bando de valentões que me atacou havia levado tanto o chapéuquanto a ave. Não quis gastar mais ainda numa tentativa inútil derecuperá-los.”

“Muitonaturalmente.Por falarnisso,quantoàave…fomosobrigadosacomê-la.”

“Comê-la!” Nosso visitante chegou a se erguer da cadeira,sobressaltado.

“Isso mesmo. Do contrário, ela não teria tido utilidade alguma paraninguém.Massuponhoqueesseoutroganso,sobreoaparador,queémaisou menos do mesmo peso e está bem fresco, servirá a seu propósitoigualmentebem,nãoé?”

“Oh, certamente, certamente!” respondeuMr. Baker comum suspirodealívio.“Masaindatemos,éclaro,aspenas,aspatas,opapoetc.,desuaprópriaave,assim,sequiser…”

O homem deu uma risada gostosa. “Poderiam servir-me comorelíquias da minha aventura”, disse, “mas, fora isso, não vejo como osdisjectamembra do inado me poderiam ser úteis. Não, senhor, com sualicença, penso que limitareiminhas atenções à bela ave que vejo em seuaparador.”

Sherlock Holmes lançou-me um olhar signi icativo, encolhendoligeiramenteosombros.

“Nessecaso,aíestáoseuchapéu,então,ealiestáoseuganso”,disse.“Por falar nisso, veria algum inconveniente emmedizer onde comprouooutro? Sou um conhecedor de aves e poucas vezes vi ganso tão bemcriado.”

“Claro que não, senhor”, disse Baker, que se levantara e segurava apropriedade que acabara de ganhar debaixo do braço. “Somos umpequenogrupoquefrequentaoAlphaInn,pertodoMuseu…énopróprioMuseu que passamos o dia, o senhor entende. Este ano, nosso boman itrião,quesechamaWindigate, instituiuumclubedoganso,peloqual,emtrocadepoucospenceporsemana,cadaumdenósreceberiaumaavenoNatal.Pagueimeuspence religiosamente,eorestoosenhorsabe.Sou-lhemuitograto,porqueumbonéescocêsnãocondiznemcomminhaidadenem com minha seriedade.” Com maneiras comicamente pomposas, fezumaprofundareverênciaparanósdoiseretirou-secomlargaspassadas.

“Encerramos o capítulo Mr. Henry Baker”, disse Holmes depois defechar aporta atrásde si. “É absolutamente certoque elenão sabenadasobreoassunto.Estácomfome,Watson?”

“Nãoparticularmente.”“Então sugiro que transformemos nosso jantar numa ceia e sigamos

essapistaenquantoaindaestáquente.”Comofaziaumanoite tenebrosa,vestimosnossosulsters e enrolamos

cachecóis no pescoço. Lá fora as estrelas brilhavam friamente num céusem nuvens, e a respiração dos transeuntes soltava fumaça no ar comotiros de pistola. Nossos passos ressoavam nitidamente quando passamospeloquarteirãodosmédicos,Wimpole Street,Harley Street e em seguidatomamos Wigmore Street até Oxford Street. Num quarto de horaestávamosemBloomsbury,noAlphaInn,umpequenopubnaesquinadeumadas ruasque levamaHolborn.Holmesabriuaportadobarepediudoiscoposdecervejaaoproprietário,umhomemcoradocomumaventalbranco.

“Sua cerveja deve ser excelente, se for tão boa quanto seus gansos”,disse.

“Meusgansos!”Ohomempareceusurpreso.“Isso mesmo. Há menos de meia hora estava conversando com Mr.

HenryBaker,quepertenceuaoseuclubedoganso.”

“Ah!Agoraentendo.Mas,senhor,aquelesgansosnãosãomeus.”“Não?Entãodequemsão?”“Bem,compreiasduasdúziasdeumnegociantedoCoventGarden.”“Foimesmo?Conheçoalgunsdeles.Quemfoi?”“Chama-se Breckinridge.” “Ah! Não o conheço. Bem, bebamos à sua

saúdeeàprosperidadedeseuestabelecimento.Boanoite.”“Agora tratemos desse Mr. Breckinridge”, continuou, abotoando o

casacoquandosaímosnoargelado. “Lembre-se,Watson,deque, emboratenhamos algo tãoprosaico comoumgansonumapontadessa cadeia, naoutra há um homem que certamente será condenado a sete anos detrabalhos forçados, a menos que consigamos provar sua inocência. Épossível que nossas investigações venham apenas a con irmar sua culpa.Seja como for, temos uma linha de investigação que escapou à polícia, equeumgolpedesorteexcepcionalpôsemnossasmãos.Vamossegui-laatéofim,custeoquecustar.Portanto,paraosul,emmarchabatida!”

AtravessamosHolborn, descemos aEndell Street e seguimospor umzigue-zaguedebairrosmiseráveis atéomercadodeCoventGarden.Umadasmaiores bancas exibia o nome de Breckinridge, e o proprietário, umhomem com jeito dehabitué de corridas de cavalo, isionomia esperta esuíçasaparadas,ajudavaummeninoteafecharabanca.

“Boa noite. Noite fria, esta”, disse Holmes. “Está fazendo muito frio,não?”

Omercador concordou coma cabeça e lançouumolhar indagativo ameucompanheiro.

“Peloquevejo,vendeutodososgansos”,continuouHolmes,apontandoparaasprateleirasdemármorevazias.

“Possolhevenderquinhentosamanhãcedo.”“Nãoadianta.”“Bem,háalgunsnaquelabancadailuminadaagás.”“Ah,masfoiosenhorquemefoirecomendado.”“Porquem?”“OproprietáriodoAlpha.”“Ah,éverdade;vendi-lheduasdúzias.”“Excelenteaves,aquelas.Ondefoiqueasadquiriu?”Para meu espanto, essa pergunta provocou um ataque de fúria no

homem.

“Altolá,cavalheiro”,respondeu,comacabeçaempinadaeasmãosnosquadris.“Aondequerchegar?Ponhamosascoisasempratoslimposjá.”

“Estátudomuitoclaro.GostariadesaberquemlhevendeuosgansosqueforneceuaoAlpha.”

“Poisbem,nãolhedirei.Eagora?”“Ora,nãotemimportância.Masnãoseiporque icoutãoagastadopor

causadeumabobagemdessa.”“Agastado! O senhor icaria igualmente agastado, talvez, se fosse tão

importunado quanto eu. Quando pago um bom dinheiro por um bomartigo, o negócio deveria estar encerrado; mas não; é ‘Onde estão osgansos?’, ‘Aquemvendeuosgansos?’ e ‘Porquantovenderáosgansos?’.Ouvindo-se o rebuliço que está sendo feito em torno deles, tem-se aimpressãodequesãoosúnicosgansosdomundo.”

“Bem, nada tenho a ver com quaisquer outras pessoas que tenhamandado lhe fazendo perguntas”, disse Holmes com indiferença. “Se nãoquernoscontar,aapostaestáencerrada,ésó.Masestousempredispostoa comprovar minha opinião em matéria de aves, e apostei uma nota decincolibrasqueaavequecomifoicriadanocampo.”

“Nesse caso, perdeu cinco libras, porque foi criada na cidade”, disseasperamenteonegociante.

“Estáredondamenteenganado.”“Estoudizendoquefoi.”“Nãoacreditonisso.”“Pensaquesabemaissobreavesdoqueeu,que lidocomelasdesde

criança?Ouça,todosaquelesgansosqueforamparaoAlphaforamcriadosnacidade.”

“Nuncameconvencerádisso.”“Nessecaso,querapostar?”“Seriasimplesmentetirar-lheoseudinheiro,poisseiquetenhorazão.

Mas apostarei um soberano com o senhor, só para ensiná-lo a não serteimoso.”

Onegocianteabriuumlargosorriso.“Traga-meoslivros,Bill”,disse.O garotinho trouxeumvolumepequeno e ino e umgrandede capa

ensebadaeosdispôsjuntossobalâmpadapendente.“E agora, senhor Sabe-Tudo?” disse omercador. “Pensei queminhas

aveshaviamacabado,mas,antesqueeutermine,vaidescobrirqueainda

sobrouumpatonaminhabanca.Estávendoaquelelivrinho?”“Edaí?”“Éa listadosmeusfornecedores.Estávendo?Poisbem,nestapágina

estãooscamponeses;osnúmerosapósosseusnomesindicamaspáginasondeestãosuascontasnograndelivro-razão.Estávendoestaoutrapáginaemtintavermelha?Poiséa listadosmeusfornecedoresdacidade.Agoraolheoterceironome.Leia-oparamim.”

“Mrs.Oakshott,BrixtonRoad117,página249”,leuHolmes.“Exatamente.Agoraabraolivro-razãonessapágina.”Holmesprocurou a página indicada. “Cá está, ‘Mrs.Oakshott, Brixton

Road117,fornecedoradeovoseaves’.”“Muitobem,qualéaúltimaentrada?”“‘Vinteedoisdedezembro.Vinteequatrogansosasetexelinseseis

pence.’”“Naturalmente.Aíestá.Eembaixo?”

“Leia-oparamim.”[SidneyPaget,StrandMagazine,1892]

“‘VendidosaMr.WindigatedoAlphaadozexelins’.”“Quetemadizeragora?”Sherlock Holmes pareceu profundamente consternado. Tirou um

soberano do bolso e jogou-o sobre o balcão, dando meia-volta com aexpressão de um homem cujo dissabor fosse profundo demais para ser

expressoempalavras.Algunsmetrosadiante,parousobumpostedeluzeriudamaneirasinceraesilenciosaquelheerapeculiar.

“Quandosevêumhomemcomcosteletascomoaquelaseumapontado‘Pink‘un’projetando-sedobolso,sempreseconseguearrancaralgumacoisa dele por meio de uma aposta”, disse. “Acho até que se eu tivesseposto cem libras diante dele, aquele homem não teria me dado umainformação tão completa como a que consegui ao fazê-lo acreditar queestava levando amelhor sobremim numa aposta. Bem,Watson, acreditoque estamos chegando ao imde nossa investigação; só resta resolver sedevemos visitar essaMrs. Oakshott agora ou deixar isso para amanhã. Éevidente, pelo que disse aquele homem, que há várias pessoas, além denós,extremamenteinteressadasnoassunto,eeudeveria…”

Suaspalavrasforaminterrompidasderepenteporumgrandealaridoque irrompeu exatamente na banca que acabávamos de deixar. Virando-nos,vimosumsujeitomiúdo,comcaraderato,nocentrodocírculodeluzamarela lançado pela lâmpada pendente, enquanto Breckinridge, ovendedor, emoldurado pela porta de sua banca, sacudia os punhosfuriosamenteparaafiguraencolhida.

“Estoufartodevocêedosseusgansos”,gritava.“Queroquevãotodosparaodiabo.Seviermeaborrecermaisumavezcomessaconversa tola,soltarei o cachorro em cima de você. Traga Mrs. Oakshott aqui erespondereiaela,masquetemvocêavercomisso?Poracasofoidevocêquecompreiosgansos?”

“Não;masapesardissoumdeleserameu”,gemeuohomenzinho.“EntãováperguntarporeleaMrs.Oakshott.”“Elamedissequeperguntasseaosenhor.”“Por mim, pode perguntar ao rei da Prússia. Estou farto disso. Caia

foradaqui!”Avançou,furioso,eohomenzinhosumiunaescuridão.“Ah, isso pode nos poupar uma visita a Brixton Road”, sussurrou

Holmes. “Venha comigo e vejamos quem é esse sujeito.” Andando compassadas largas entre os grupinhos dispersos de pessoas queperambulavam em torno das bancas iluminadas, meu companheiroalcançou rapidamenteohomemebateu-lhenoombro.Ele se voltounumpulo,epudeverà luzdogásquenãorestouumsóvestígiodecornoseurosto.

“Queméosenhor?Quequer?”perguntoucomvoztrêmula.“Desculpe-me”,disseHolmesbrandamente, “masnãopudedeixarde

ouvir as perguntas que estava fazendo ao vendedor agora mesmo.Acreditoquepossolheserútil.”

“Osenhor?Queméosenhor?Comopoderiasaberalgumacoisasobreoassunto?”

“Meu nome é SherlockHolmes.Meu o ício é saber o que outros nãosabem.”

“Masnãopodesabernadasobreisso!”“Perdão,seitudosobreisso.Estáprocurandodescobriroquefoifeito

de uns gansos que foram vendidos porMrs. Oakshott, da Brixton Street,para ummercador chamado Breckinridge, e por ele aMr.Windigate, doAlpha,eporeleaseuclube,doqualMr.HenryBakerésócio.”’

“Oh,osenhoréexatamenteohomemqueeuansiavaporencontrar”,exclamouohomenzinhocomasmãosestendidaseosdedostrêmulos.“Nãopossonemlheexplicaroquantoestouinteressadonesseassunto.”

SherlockHolmeschamouumfour-wheelerquepassava.“Nessecaso,émelhor conversarmos sobre ele numa sala confortável do que nestemercado varrido pelo vento”, disse. “Mas, por favor, antes de irmosmaislonge,diga-mecomquemtenhooprazerdefalar.”

Ohomemhesitouuminstante.“Chamo-meJohnRobinson”,respondeu,olhando-odesoslaio.

“Não,não,onomeverdadeiro”,disseHolmes,suavemente. “Ésempreincômodotratardeumassuntocomalguémqueusaumnomefalso.”

As facesbrancasdoestranhoenrubesceram. “Poisbem”,disse, “meuverdadeironomeéJamesRyder.”

“Exatamente. Copeiro-chefedoHotel Cosmopolitan.Tenha abondadedeentrarnestecarro,logopodereilhecontartudoquequeirasaber.”

Os olhos do homenzinho passeavam entre ele e mim,semiatemorizados, semiesperançosos, como se ele não soubesse ao certose estava na iminência de um golpe de sorte ou de uma catástrofe. Emseguidaentrounocarro,eemmeiahoraestávamosdevoltaàsaladeestardeBakerStreet.Nadaforaditoduranteaviagem,masarespiraçãoagudae ofegante do nosso novo companheiro e as mãos que ele apertava esoltavarevelavamsuatensãonervosa.

“Cáestamos!”disseHolmesalegrementequandoentramosnasala.“Ofogovemacalhar,comumtempodesses.Pareceestarcomfrio,Mr.Ryder.Sente-se naquela cadeira de vime. Vou só calçarmeus chinelos antes deresolvermos esse seu probleminha. Então! Quer saber o que foi feito

daquelesgansos?”“Sim,senhor.”“Oumelhor, acho eu, com aquele ganso. Era numa determinada ave,

suponho, que estava interessado. Um ganso branco, comuma faixa pretanacauda.”

Ryderestremeceudeemoção.“Oh,senhor!”exclamou.“Podemedizerparaondeelefoi?”

“Veioparacá.”“Paracá?”“Issomesmo,eprovou-seumaavedasmaisextraordinárias.Nãome

espantaquetenhatantointeresseporela.Pôsumovodepoisdemorta…omais lindo e brilhante ovinho azul que jamais se viu. Está aqui no meumuseu.”

Nosso visitante levantou-se cambaleando e agarrou-se no consolo dalareira com a mão direita. Holmes destrancou seu cofre e exibiu oCarbúnculo Azul, que reluzia como uma estrela, com uma radiânciamultifacetada, fria ebrilhante.Ryder itouapedra como rosto contraído,semsabersedeviareconhecê-laoufingirignorá-la.

“O jogo terminou, Ryder”, disse Holmes serenamente. “Segure-se,homem, ou cairá na lareira! Ajude-o a voltar para a cadeira,Watson. Elenãotemsangue-friobastanteparapraticarumcrimeimpunemente.Dê-lheum gole de conhaque. Agora sim! Agora parece um poucomais humano.Realmente,quevermeeleé!”

Poruminstanteohomemcambalearaequasecaíra,masoconhaquedevolveu-lhealgumacoraorosto,eelesesentou,encarandoseuacusadorcompavornosolhos.

“Comotenhoquase todososelosemminhasmãos,e todasasprovasdequepoderiaprecisar,hámuitopoucoquevocêdevamedizer.Masessepouco deve ser esclarecido para completarmos o caso. Já ouvira falar,Ryder,dessapedraazuldacondessadeMorcar?”

“FoiCatherineCusackquemme falousobreela”, respondeucomvozentrecortada.

“Certo…acriadadacondessa.Bem,atentaçãodeumasúbitariquezatão fácil de adquirir foidemaisparavocê, como já foi antesparahomensmelhores;masvocênãofoimuitoescrupulosonosmeiosqueusou.Parece-me, Ryder, que tem tudo para ser um perfeito canalha. Sabia que esseHorner,obombeiro,estiveraenvolvidoemalgumacoisasemelhanteantes,

equeassuspeitasrecairiamnaturalmentesobreele.Quefezvocê,então?Inventou um conserto qualquer nos aposentos da condessa… você e suacúmplice,CatherineCusack…edeuumjeitoparaquefosseeleooperáriochamado.Assim,depoisqueelesaiu,vocêroubouapedra,deuoalarme,efezcomqueessepobre-diabofossepreso.Depois…”

De repente Ryder jogou-se no tapete e agarrou os joelhos do meucompanheiro. “PeloamordeDeus, tenhapiedade!”gritou. “Pensenomeupai,naminhamãe!Issolhescortariaocoração!Nunca iznadadeerradoantes.Enuncamaisfarei.Eujuro.JurosobreaBíblia.Oh,nãoleveissoaostribunais!PeloamordeDeus,nãoleve!”

“Volte para sua cadeira”, disse Holmes severamente. “É fácilacachapar-se e rastejar agora, mas pensou muito pouco naquele pobreHornernobancodosreúsporumcrimedequenadasabia.”

“Fugirei,Mr. Holmes. Deixarei o país, senhor. Nesse caso a acusaçãocontraeleserásuspensa.”

“Hum! Conversaremos sobre isso.Mas agora conte-nos a verdadeirahistória do ato seguinte. Como a pedra foi parar no papo do ganso e oganso,nomercado?Diga-nosaverdade,poisaíresidesuaúnicaesperançadeescapar.”

Ryder passou a língua nos lábios secos. “Vou lhes contar tudoexatamente como aconteceu, senhor”, disse. “Quando Horner foi preso,pareceu-me que o melhor seria eu dar sumiço na pedra imediatamente,poisnãosabiaquandoapolíciapoderia tera ideiademerevistaroudaruma busca emmeu quarto. Não havia nenhum lugar no hotel em que apedraestariaemsegurança.Saí, comoseemalguma incumbência,e fuiàcasa de minha irmã. Ela se casara com um homem chamado Oakshott emorava na Brixton Street, onde engordava aves para o mercado. Acaminho da casa dela, todos os homens que encontrei me pareciam serpoliciais ou detetives, e, embora fosse uma noite fria, o suorme escorriapelorostoantesdeeuchegaràBrixtonStreet.Minha irmãmeperguntouqualeraoproblema,eporqueestavatãopálido,masrespondique icaramuitoperturbadoporcausadoroubodeumajoianohotel.Depoisfuiatéoquintalefumeiumcachimbo,pensandooqueseriamelhorfazer.

“‘PeloamordeDeus,tenhapiedade!’gritou.”[SidneyPaget,StrandMagazine,1892]

“Certa época, tive um amigo chamado Maudsley que tomou o maucaminho e cumpriu pena em Pentonville. Um dia nós nos encontramos ecomeçamos a conversar sobre os métodos dos ladrões, e como eles selivravamdoprodutode seus roubos.Tinha certezadequeelemediria averdade, pois eu sabia uma ou duas coisas sobre ele; resolvi então irimediatamente a Kilburn, onde morava, e contar-lhe tudo. Maudsley memostrariacomoconverterapedraemdinheiro.Mascomochegaratéláemsegurança? Pensei nas a lições que sentira do hotel até a casa deminhairmã. A qualquermomento poderia ser detido e revistado, e lá estaria apedra no bolso do meu colete. Eu estava encostado no muro nessemomento,vendoosgansosquegingavamporaliameuspés,ederepenteocorreu-me uma ideia queme permitiria enganar omelhor detetive quejamaisexistiu.

“Minha irmã dissera-me algumas semanas antes que eu podiaescolherumdeseusgansoscomopresentedeNatal,eeusabiaqueelaeradepalavra.EupegariameugansonaqueleinstantemesmoelevariaminhapedraparaKilburndentrodele.Havia umpequeno telheironoquintal, epara lá conduzi uma das aves… uma grande e bonita, branca, com umafaixa preta na cauda. Peguei-a e, forçando-a a abrir o bico, en iei-lhe apedragargantaabaixo,atéondemeudedochegou.Aaveengoliuesentia

pedrapassarpelagoelaeentrarnopapo.Mas,comoacriaturabateuasase resistiu,minha irmã foi veroqueestavaacontecendo.Quandomevireiparafalarcomela,obichosesoltoueesvoaçouparaomeiodosoutros.

“‘Quediabovocêestavafazendocomessaave,Jem?’perguntouela.“‘Bem’,respondi, ‘comovocêdissequemedariaumadepresente,eu

estavalhesdandoumasapalpadelasparaverqualéamaisgorda.’“‘Ah’, disse ela, ‘já separamos a sua… a ave do Jem, é como a

chamamos.Éaquelagrandeebrancaacolá.Sãovinteeseisgansosaotodo,oquedáumparavocê,umparanós,eduasdúziasparaomercado.’

“‘Obrigado,Maggie’, disse eu; ‘mas se não izer diferença para você,prefiroficarcomaquelequeestavaapalpandoagoramesmo.’

“‘Ooutroéquaseumbomquiloemeiomaispesado’,elainsistiu;‘nósoengordamosespecialmenteparavocê.’

“‘Nãofazmal.Ficocomaquele,evoulevá-lojá’,disseeu.“‘Ora,comoqueira’,disseela,umpoucoirritada.“A inal,qualéoque

vocêquer?’“‘Aquelebrancocomumafaixanacauda,bemnomeiodobando.’“‘Muitobem.Mate-oeleve-o.’“Bem, iz o que ela disse, Mr. Holmes, e carreguei o ganso todo o

caminhoatéKilburn.Conteiaomeucamaradaoquehaviafeito,porqueeleé um homem para quem é fácil contar uma coisa dessas. Ele riu atéengasgar, pegamos uma faca e abrimos o ganso. Meu coração quase mesaiupelaboca,porquenãohavianemsinaldapedra,eviquecometeraumerroterrível.Largueiaavelá,volteiimediatamenteàcasadaminhairmãecorriparaoquintal.Nãohavianemsombradegansoali.

“‘Ondeestãoeles,Maggie?’perguntei.“‘Foramparaonegociante,Jem.’“‘Quenegociante?’“‘Breckinridge,deCoventGarden.’“‘Mas havia outro ganso com uma listra preta na cauda?’ perguntei.

‘Comooqueescolhi?’“‘Havia, Jem; eram dois com a cauda listrada, eu nunca conseguia

distinguirumdooutro.’“Bem,compreenditudo,éclaro,ecorriomaisrápidoquepudeparao

mercado; acontece que Breckinridge vendera o lote todo de uma vez,recusando-se a me dizer uma palavra sobre o paradeiro das aves. Os

senhores mesmos o ouviram esta noite. Era sempre assim que merespondia. Minha irmã pensa que estou icando louco. Às vezes, eutambém. E agora… agora sou um ladrão demarcamaior, sem jamais tertocadonafortunapelaqualvendiaalma.QueDeustenhapiedadedemim!QueDeustenhapiedadedemim!”Caiunumprantoconvulsivo,comorostoenterradonasmãos.

Seguiu-se um longo silêncio, quebrado apenas por sua respiraçãoofegante e pela batida cadenciada das pontas dos dedos de SherlockHolmesnabordadamesa.Depoismeuamigolevantou-seeabriuaporta.

“Saia!”ordenou.“Oquê,senhor?Oh,queDeusoabençoe!”“Nemmaisumapalavra.Saia!”E nem mais uma palavra foi necessária. Houve uma arrancada, um

tropel nos degraus, a batida de uma porta e o estrépito nítido de passoscorrendoruaabaixo.

“A inal de contas, Watson”, disse Holmes, estendendo a mão parapegarseucachimbodebarro,“nãosoucontratadopelapolíciaparasuprirsuas de iciências. Se Horner estivesse em perigo seria outra coisa; masessesujeitonãotestemunharácontraeleeocasoseráencerrado.Suponhoque estou comutando um crime, mas é igualmente possível que estejasalvandoumaalma.Essesujeitonãocometeráoutroerro; icouapavoradodemais.Mande-oparaaprisãoagora,efarádeleumprisioneiropelorestoda vida. Além disso, este é o tempo do perdão. O acaso pôs em nossocaminho um problema dos mais inusitados e sua solução é sua própriarecompensa. Se tiver a bondade de tocar a campainha, doutor, daremosinícioaumaoutra investigação,emqueumaaveserátambémaprincipalatração.”

ABANDAMALHADA

AOPASSAROSOLHOSporminhasanotaçõesdossetentaetantoscasosemque,durante os últimos oito anos, estudei osmétodos demeu amigo SherlockHolmes, encontro alguns trágicos, outros cômicos, muitos simplesmenteestranhos,masnenhumbanal;pois, trabalhandocomoofazia,poramoràarteenãopara fazer fortuna,eleserecusavaaseassociarcomqualquerinvestigação que não tendesse para o inusitado, até para o fantástico. Detodos esses variados casos, no entanto, não consigo me lembrar denenhum que apresentasse característicasmais singulares do que aquelerelacionado à conhecida família de Surrey, osRoylott de StokeMoran.OseventosemquestãoocorreramnosprimeirostemposdeminhaassociaçãocomHolmes,quandodividíamosumapartamentocomosolteirosemBakerStreet.Épossívelqueeuostenharegistradoanteriormente,masnaépocaizumapromessadesigilodequesómeliberteimêspassado,comamorteprematura da senhora a quem o juramento foi feito. Talvez seja melhorqueos fatosvenhamà luzagora,pois tenhorazõesparacrerquecorrempor toda parte rumores sobre a morte do Dr. Grimesby Roylott quetendematornaraquestãoaindamaisterrívelqueaverdade.

Erainíciodeabrildoanode1883quando,aoacordarumamanhã,deicomSherlockHolmesdepé,completamentevestido, juntodaminhacama.Elecostumavaacordartarde,equandoorelógiosobreoconsolodalareiramemostrouqueeramapenasseteequinze,encarei-ocomcertasurpresa,etalvezumapontinhaderessentimento,porqueeumesmoeraregularemmeushábitos.

“Sinto muito acordá-lo, Watson”, disse ele, “mas ninguém escapoudisso estamanhã.Mrs.Hudson foi acordada, descontou emmime eu emvocê.”

“Masquehouve…umincêndio?”“Não, uma cliente. Parece que chegou aí uma jovem senhora em

estadodeconsiderávelalvoroço,einsisteemmever.Estáesperandoagorana sala de estar. Ora, quando jovens senhoras andam pela metrópole aestahoradamanhã,tirandoaspessoasdacama,presumoquetêmalgode

muito urgente a comunicar. Se este viesse a se revelar um casointeressante, você teria gostado, tenho certeza, de tê-lo acompanhadodesde o início. Assim concluí que, pelo sim, pelo não, deveria chamá-lo edar-lheachance.”

“Eunãoperderiaissopornada,meucaro.”Nadamedavamais intensoprazerqueacompanharHolmesemsuas

investigações pro issionais e admirar as deduções rápidas, tãoinstantâneasquantointuições,enãoobstantesemprefundadasnumabaselógica, com que destrinchava os problemas que lhe eram submetidos.En iei minhas roupas rapidamente e em poucos minutos estava prontopara descer com meu amigo à sala de estar. Quando entramos, umasenhora vestida de preto, o rosto coberto por pesado véu, que estiverasentadajuntoàjanela,levantou-se.

“Bom dia, senhora”, disse Holmes em tom animado. “Meu nome éSherlockHolmes.Esteémeuamigoíntimoeassociado,Dr.Watson,emcujapresença pode falar com tanta liberdade quanto a sós comigo. Ah! FicosatisfeitodeverqueMrs.Hudson teveobom-sensodeacendera lareira.Porfavor,aproxime-sedofogo;voupedirumaxícaradecaféquenteparaasenhora,poisobservoqueestátremendo.”

“Nãoéofrioquemefaztremer”,disseamulher,bembaixo,mudandodelugarcomoelelhesugerira.

“Queé,então?”“É medo, Mr. Holmes. É terror.” Enquanto falava, ergueu o véu, e

pudemos ver que estava realmente em lamentável estado de agitação, osemblantecontraídoesombrio,osolhosinquietoseamedrontadoscomoosdeumanimalacossado.Tinhaostraçoseotalhedeumamulherdetrintaanos,mas o cabelo era prematuramente grisalho e o semblante fatigado,abatido.SherlockHolmescorreuparaelacomumdeseusolharesrápidos,aquenadaescapa.

“Não deve termedo”, tranquilizou-a, inclinando-se em sua direção eafagando-lheoantebraço.“Logoresolveremostudo,nãotenhodúvida.Vejoqueveiodetremestamanhã.”

“Entãomeconhece?”“Não,masobservoasegundametadedeumbilhetedevoltanapalma

dasualuvaesquerda.Devetersaídocedo,eaindafezumlongopercursonumdog-cart,porestradasruins,antesdechegaràestação.”

A senhora teve forte sobressalto e encarou o meu companheiro,

perplexa.“Não hámistério, cara senhora”, disse ele, sorrindo. “O braço direito

deseucasacoestásalpicadode lamaemnadamenosquesetepontos.Asmarcassãoperfeitamentefrescas.Nãohánenhumveículo,excetoum dog-cart,queenlameieumpassageirodessamaneira,e,mesmonessecaso,sóquandoelesesentaàesquerdadococheiro.”

“Sejamquais foremsuasrazões,estáabsolutamentecerto”,disseela.“Saídecasaantesdasseis,chegueiaLeatherheadàsseisevinteepegueio primeiro trem para Waterloo. Não posso mais suportar esta tensão,senhor; se isso continuar, icarei louca. Não tenho a quem recorrer…ninguém,excetoumasópessoa,quegostademim,eele,coitado,nãopodefazermuitoparameajudar.Ouvifalardosenhor,Mr.Holmes;ouvifalardosenhorporMrs.Farintosh,aquemajudouquandoelamuitoprecisava.Foiela quem me deu seu endereço. Oh, senhor, não acha que poderia meajudar,amimtambém,epelomenoslançaralgumaluznadensaescuridãoquemeenvolve?Nomomentoestá forademeupoderrecompensá-loporseus serviços, mas dentro de um ou dois meses estarei casada, terei ocontrole de meus rendimentos, e então pelo menos não me julgaráingrata.”

Holmes voltou-se para sua escrivaninha, destrancou-a e tirou umapequenaagenda,queconsultou.

“Farintosh”,disse. “Ahsim, lembro-medocaso; teve ligaçãocomumatiara de opala. Creio que foi antes do seu tempo,Watson. Só posso dizer,senhora, que icarei feliz em dedicar ao seu caso a mesma atenção quedediquei ao de sua amiga. Quanto à recompensa, minha pro issão é suaprópria recompensa; a senhora está livre, porém, para reembolsarquaisquer despesas em que eu possa incorrer, no momento que lhe formais conveniente. Agora, peço-lhe que exponha para nós tudo que nospossaajudaraformarumaopiniãosobreoassunto.”

“Aidemim!” respondeunossavisitante. “Ohorrordeminhasituaçãoconsisteprecisamenteno fatodemeusmedos serem tãovagos, eminhassuspeitas se fundarem em detalhes tão pequenos que poderiam parecertriviaisparaoutrapessoa.Atémesmoaqueleparaquem,dentre todososdemais, tenho o direito de pedir auxílio e conselho vê em tudo que lhecontosobreoproblemaapenasas fantasiasdeumamulhernervosa.Nãodiz isso,masposso lê-lonas respostas comqueprocurameacalmarenomodo como desvia os olhos de mim. Mas ouvi falar, Mr. Holmes, que osenhor é capaz de enxergar profundamente nas múltiplas formas da

crueldade do coração humano. Pode me dizer como andar em meio aosperigosquemecercam.”

“Soutodoouvidos,senhora.”“Meu nome é Helen Stoner, e moro com meu padrasto, último

sobrevivente de uma das mais antigas famílias saxãs da Inglaterra, osRoylottdeStokeMoran,nafronteiraoestedeSurrey.”

Holmesfezsinaldeassentimento.“Onomemeéfamiliar”,disse.“Houve tempo em que a família foi amais rica da Inglaterra, e suas

propriedades estendiam-se por Berkshire ao norte e Hampshire a oeste.No último século, contudo, houve quatro herdeiros sucessivos de índoledissoluta e perdulária, e a ruínada família foi inalmente consumadaporum jogador no tempo da Regência. Não sobrou nada, a não ser algunsacresdeterraeacasadeduzentosanos,mesmoelaesmagadaporpesadahipoteca. O último senhor vegetou ali, vivendo a horrível vida de umaristocratanamiséria;masseuúnico ilho,meupadrasto,vendoquetinhade se adaptar àsnovas condições, obtevedeumparenteumempréstimoquelhepermitiuseformaremmedicina.DepoispartiuparaCalcutá,onde,graças à sua competência e força de caráter, angariou grande clientela.Numacessoderaiva,porém,causadoporalgunsroubosquehaviamsidoperpetradosnasuacasa,eleespancouatéamorteseumordomonativoeescapouporpoucodeumapenacapital.Cumpriulongasentençadeprisãoe quando voltou à Inglaterra posteriormente era um homem frustrado erabugento.

“Na Índia, oDr.Roylott casou-se comminhamãe,Mrs. Stoner, jovemviúva do general de divisão Stoner, daArtilharia deBengala.Minha irmãJulia e eu, que éramos gêmeas, tínhamos apenas dois anos de idadequandominhamãevoltoua se casar.Elapossuíaumaconsiderável somadedinheiro—nãomenosquemillibrasporano—elegou-ainteiramenteaoDr.Roylottenquantomorássemoscomele,comumaestipulaçãodequecerta soma anual nos deveria ser concedida se nos casássemos. PoucodepoisdenossavoltaparaaInglaterraminhamãemorreu…foivítimadeumacidenteferroviáriopertodeCreweoitoanosatrás.ApartirdeentãooDr. Roylott abandonou suas tentativas de estabelecer uma clínica emLondreselevou-nosparamorarcomelenavelhacasaancestralemStokeMoran. O dinheiro que minha mãe deixara supria todas as nossasnecessidades,eparecianãohaverobstáculoparanossafelicidade.

“Mas nosso padrasto sofreu uma terrível mudança mais ou menosnessaépoca.Aoinvésdefazeramigosetrocarvisitascomnossosvizinhos,

quedeiníciohaviamgostadodeverumRoylottdeStokeMorandevoltaaoantigosolardafamília,fechou-seemcasaeraramentesaía,excetoparaseentregar a brigas ferozes com quem quer que lhe cruzasse o caminho.Umaviolênciadetemperamentoqueseaproximavadainsanidadeeraumtraçohereditárionoshomensda família,enocasodemeupadrastocreioquehaviasidointensi icadaporsualongaresidêncianostrópicos.Ocorreuuma série de rixas vergonhosas, duas das quais chegaram ao tribunalpolicial, até que ele acabou por se tornar o terror da aldeia; as pessoasfugiam à sua aproximação, pois era um homem de imensa força eabsolutamenteincontrolávelemsuafúria.

“Semana passada ele jogou o ferreiro local num riacho, por sobre oparapeito, e só pude evitar outra exposição pública pagando todo odinheiroqueconseguireunir.Elenãotinhaabsolutamentenenhumamigo,a não ser os ciganos errantes, e autorizava esses vagabundos a acamparnospoucosacresdeterracobertadesarçasquerepresentaopatrimôniodafamília;emtroca,aceitavaahospitalidadedesuasbarracas,eàsvezessaía para perambular comeles semanas a io. É tambémapaixonadoporanimais indianos, que lhe são enviados por um correspondente; nomomentotemumguepardoeumbabuíno,quevagamlivrementenassuasterraseinspiramquasetantomedoaosaldeõesquantoseusenhor.

“Pode imaginar por que digo que minha pobre irmã Julia e eu nãotínhamos grandes prazeres em nossas vidas. Nenhum criado icariaconosco,edurantemuito tempo izemostodoo trabalhodoméstico.Elasótinha trinta anos quando morreu, e no entanto seu cabelo começava abranquear,comoomeu.”

“Jogouoferreiroporsobreoparapeito.”[SidneyPaget,StrandMagazine,1892]

“Entãosuairmãmorreu?”“Morreu dois anos atrás, e é sobre sua morte que quero lhe falar.

Pode entender que, vivendo a vida que descrevi, tínhamos poucaoportunidade de ver quem quer que fosse de nossa idade e posição.Tínhamos,porém,umatia,umairmãsolteirademinhamãe,MissHonoriaWestphail,quemorapertodeHarrow,evezporoutratínhamospermissãoparafazerbrevesvisitasàsuacasa.JuliaestevelánoNatal,hádoisanos,econheceuummajorameiosoldodosfuzileirosnavais,dequemficounoiva.Quando minha irmã voltou, meu padrasto soube do noivado e não fezobjeção algumaao casamento;masmenosdeduas semanas antesdodiamarcado para a cerimônia ocorreu o evento terrível que me privou deminhaúnicacompanheira.”

SherlockHolmesestiverarecostadoemsuacadeira,deolhosfechadose a cabeça afundada numa almofada, mas nessemomento entreabriu aspálpebrasefitounossavisitante.

“Porfavor,sejaprecisaquantoaosdetalhes”,disse.“Issoé fácilparamim,porquecada fatodesseperíodopavorosoestá

marcadocomferroembrasaemminhamemória.Osolaré,comojádisse,muito antigo e atualmente só uma ala é habitada. Os quartos nessa ala

icam no térreo, as salas situando-se no bloco central do prédio. Dessesquartos,oprimeiroédoDr.Roylott,osegundodeminhairmãeoterceiromeu.Não há comunicação entre eles,mas todos se abrempara omesmocorredor.Estousendoclara?”

“Perfeitamente.”“Asjanelasdostrêsquartosabrem-separaogramado.Naquelanoite

fatal, o Dr. Roylott fora para seu quarto cedo, embora soubéssemos quenão se recolhera para descansar, porque minha irmã icou incomodadacom o cheiro dos fortes charutos indianos que ele costumava fumar. Porisso ela deixou seu quarto e foi para o meu, onde icou algum tempo,conversando sobre seu casamento que se aproximava. Às onze horas elaselevantouparamedeixar,masaochegaràportaparoueolhouparatrás.

“‘Diga-me, Helen’, falou, ‘já ouviu alguém assobiando altas horas danoite?’

“‘Nunca’,respondi.“‘Vocêmesmanãoseriacapazdeassobiarenquantodorme…seria?’“‘Certamentenão.Masporquê?’“‘Porqueduranteestasúltimasnoitestenhoouvidosempre,porvolta

dastrêsdamadrugada,umassobiobaixo,muitoclaro.Meusonoé leve,eelemedespertou.Nãosabiadeondevinha,talvezdoquartoaolado,talvezdogramado.Penseiemlheperguntarsetambémouvira.’

“‘Não,nãoouvi.Devemseressesmalditosciganosnaplantação.’“‘Émuitoprovável.Mas,se foinogramado,espanta-mequevocênão

tenhaouvidotambém.’“‘Ah,maseutenhoosonomaispesadoqueoseu.’“‘Bem,sejacomofor,issonãotemmuitaimportância.’Elasorriupara

mim, fechou a porta e momentos depois ouvi sua chave girar nafechadura.”

“Foimesmo?”perguntouHolmes. “Tinhamocostumede se trancarànoite?”

“Sempre.”“Porquê?”“Creio que mencionei para o senhor que o médico mantinha um

guepardoeumbabuíno.Nãonos sentíamos seguras amenosquenossasportasestivessemtrancadas.”

“Naturalmente.Porfavor,prossiga.”

“Não consegui dormir aquela noite. Fui tomada por uma vagasensação de desgraça iminente. Minha irmã e eu, como há de lembrar,éramosgêmeas,eosenhorsabecomosãosutisosvínculosqueunemduasalmas tão estreitamente associadas. Foi uma noite tenebrosa. O ventouivavaláforaeachuvafustigavaasjanelas.Derepente,emmeioatodooestrépitodovendaval,irrompeuogritoselvagemdeumamulheraterrada.Eusabiaqueeraavozdaminhairmã.Puleidacama,enrolei-menumxalee corri para o corredor. Ao abrir a porta tive a impressão de ouvir umassobiobaixo, comooqueminha irmãdescrevera, e instantesdepois umoutrosom,metálico,comoseumvolumedemetaltivessecaído.Corripelocorredor, a porta deminha irmã estava destrancada e a fechadura giroulentamente. Olhei para aquilo horrorizada, sem saber o que entender doque via. Pela luz do corredor, viminha irmã aparecer no vão da porta, orostolívidodeterror,asmãosbuscandosocorroàsapalpadelas,todooseucorpocambaleandocomoodeumbêbado.Corriparaelaeabracei-a,masnesse momento seus joelhos pareceram ceder e ela caiu no chão.Contorceu-se como alguém que sente dores atrozes, sacudindo osmembrospavorosamente.De iníciopenseiquenãome reconhecera,mas,quando me debrucei sobre ela, gritou de repente numa voz que nuncaesquecerei:‘Oh,meuDeus!Helen!Foiabanda!Abandamalhada!’Queriadizermaisalgumacoisa,eapontouodedonadireçãodoquartodomédico,masumanovaconvulsão tomoucontadelaeestrangulou-lheaspalavras.Saí correndo, chamandomeupadrasto aos gritos, e encontrei-o saindo àspressasdeseuquartovestidocomseuroupão.Quandochegamosjuntodeminha irmã ela estava inconsciente, e, embora ele lhe tenha derramadoconhaquepelagargantaemandadobuscarauxíliomédiconaaldeia,todosos esforços foram vãos; ela esmoreceu lentamente e morreu sem terrecobradoaconsciência.Foiesseopavorosofimdeminhaamadairmã.”

“Orostolívidodeterror.”[SidneyPaget,StrandMagazine,1892]

“Ummomento”,atalhouHolmes,“temcertezaquantoaesseassobioeaessesommetálico?Poderiajurarqueosouviu?”

“Foi o que o investigador do condado me perguntou no inquérito.Tenho forte impressãodetê-losouvido,mas,entreazoadadovendavaleosrangidosdeumacasavelha,épossívelqueeutenhameenganado.”

“Suairmãestavavestida?”“Não, usava sua camisola. Na sua mão direita encontrei um fósforo

queimadoenadireitaumacaixadefósforos.”“Oquemostrouqueelaacenderaumaluzeolharaàsuavoltaquando

o alarme ocorreu. Isso é importante. E a que conclusões chegou oinvestigador?”

“Ele examinou o caso com muito cuidado, porque o Dr. Roylott eramal-afamado no condado por sua conduta havia muito tempo, mas nãoconseguiu encontrar nenhuma causa satisfatória para a morte. Meudepoimento mostrou que a porta fora trancada por dentro, e as janelastinham persianas antigas, bloqueadas com grossas barras de ferro, queeram presas todas as noites. As paredes foram cuidadosamenteauscultadas e mostraram-se todas inteiramente sólidas, e o assoalho foitambém todo examinado, com igual resultado. A chaminé é ampla, masfechada por quatro barras. É certo, portanto, que minha irmã estavacompletamente só quando encontrou seu im. Ademais, não haviaquaisquermarcasdeviolênciaàsuavolta.”

“Equantoaveneno?”“Osmédicosprocuraramsinaisdeenvenenamento,massemsucesso.”“Doquepensaentãoqueessainfelizsenhoramorreu?”“Acredito quemorreu de puromedo e choque nervoso, embora não

façaideiadoquefoiqueaamedrontou.”“Haviaciganosnaplantaçãonaépoca?”“Havia.Quasesemprehaviaalgunsporlá.”“Eoquevocêentendeudessaalusãoaumabandamalhada?”“Algumasvezespenseiqueforamapenasaspalavrasdesvairadasde

umdelírio,outrasquepodiaserumareferêncianãoaumabanda,oufaixa,masaumbando,umbandodepessoas,talvezaquelesprópriosciganosdaplantação. Não sei se os lenços manchados que muitos deles usam nacabeçapoderiamtersugeridoapalavraestranhaqueelausou.”

Holmessacudiuacabeçacomoumhomemlongedeestarsatisfeito.“Estas são águas profundas”, disse, “por favor, continue sua

narrativa.”“Dois anos sepassaramdesdeentão, e até recentementeminhavida

foimaissolitáriaquenunca.Ummêsatrás,porém,umqueridoamigo,queconheço há muitos anos, deu-me a honra de pedir-me a mão emcasamento. Seu nome é Armitage… Percy Armitage… o segundo ilho deMr. Armitage, de Crane Water, perto de Reading. Meu padrasto não feznenhuma oposição e devemos nos casar na próxima primavera. Há doisdias alguns reparos começaram a ser feitos na ala oeste da casa, e aparededomeuquarto foi furada,por isso transferi-meparaoquartoemqueminhairmãmorreu,paradormirnaprópriacamaemqueeladormia.Imagine,então,meuterrornomomentoemque,nanoitepassada,quandoeu estava acordada na cama, pensando em seu terrível destino, ouvi derepentenosilênciodanoiteoassobiobaixoqueprenunciara suaprópriamorte.Puleida camaeacendi a lâmpada,masnãohavianadanoquarto.Mas, como estava abalada demais para me deitar de novo, vesti-me, eassimqueodiaraiouesgueirei-me,pegueiumdog-cartnoCrownInn,queicaemfrente,erumeiparaLeatherhead,deondevimestamanhãcomoúnicoobjetivodevê-loepedirseuconselho.”

“Fezmuitobem”,dissemeuamigo.“Mascontou-metudo?”“Sim,contei.”“Miss Roylott, a senhorita não me contou tudo. Está protegendo seu

padrasto.”

“Como?Quequerdizer?”EmrespostaHolmes levantouobabadopretoqueorlavaopunhoda

mão que nossa visitante mantinha sobre o joelho. Cinco manchasdescoloridas,asmarcasdequatrodedoseumpolegar,estavamimpressasnopunhobranco.

“Foicruelmentemaltratada”,disseHolmes.A senhora corou intensamente e cobriu o punho machucado. “Ele é

umhomembrusco”,disse,“etalvezmalconheçaaprópriaforça.”Seguiu-se um longo silêncio, durante o qual Holmes apoiou o queixo

nasmãosefitouofogocrepitante.“Esteéumcasomuitocomplexo”,dissepor im.“Hámildetalhesque

eugostariadesaberantesdemedecidirporuma linhadeação.Masnãotemos um minuto a perder. Se chegássemos a Stoke Moran ainda hoje,teríamos alguma possibilidade de examinar esses cômodos sem oconhecimentodeseupadrasto?”

“Defato,elefaloudeviràcidadehojeparatratardealgunsnegóciosimportantes. É provável que passe o dia todo fora e que não haja nadaparaperturbá-los.Temosumacriadaagora,maseleévelhae tonta, eeupoderiatirá-ladocaminhofacilmente.”

“Esplêndido.Vêessaviagemcommausolhos,Watson?”“Demaneiraalguma.”“Entãoiremososdois.Easenhorita,oquevaifazer?”“Tenhoumaouduas coisasquegostariade fazer enquanto estouna

cidade.Masvoltareipelotremdasdoze,demodoquechegareiatempoderecebê-los.”

“Podenosesperarnoiníciodatarde.Eumesmotenhoumascoisinhaspararesolver.Nãoqueresperaretomarodesjejum?”

“Não,preciso ir.Meucoração já icoumais levedesdeque lhecon ieiminha inquietação. Espero vê-lo novamente esta tarde.” Baixou seuespessovéusobreorostoedeslizouparaforadasala.

“Quepensa vocêde tudo isso,Watson?” perguntou SherlockHolmes,recostando-senacadeira.

“Parece-meumahistóriadasmaismisteriosasesinistras.”“Bastantemisteriosaesinistra.”“Noentanto,seadamaestácertaaodizerqueoassoalhoeasparedes

são sólidos, e que a porta, a janela e a chaminé são intransponíveis, sua

irmã estava sem sombra de dúvida sozinha quando encontrou seumisteriosofim.”

“Nesse caso, como interpretar esses assobios noturnos, e que dizerdaspalavrasmuitopeculiaresdamoribunda?”

“Nãopossoimaginar.”“Quando combinamos a ideia de assobios à noite, a presença de um

bandodeciganosemrelaçõesdeintimidadecomovelhomédico,ofatodetermos todas as razões para acreditar que omédico tenha interesse emevitar o casamento da enteada, a alusão a uma banda ou bando e,inalmente, o fato deMissHelen Stoner ter ouvido um sommetálico, quepoderia ter sido causado pelo ruído de uma daquelas barras queseguravamaspersianas caindode voltano lugar, pensoqueháumaboabase para se pensar que o mistério pode ser elucidado segundo essalinha.”

“Masquefizeramosciganos,afinal?”“Nãotenhoamínimaideia.”“Vejomuitasobjeçõesaqualquerteoriadessetipo.”“Eu também.Éprecisamentepor issoquevamosaStokeMoranhoje

mesmo. Quero ver se as objeções são decisivas, ou se podem serexplicadas.Masquediabos…!”

Aexclamaçãoforaarrancadademeucompanheiropelofatodequeaportahavia sido subitamente aberta, e umhomemenorme sepostaranovão. Seu traje era uma mistura peculiar do pro issional e do agrícola,incluindoumacartolapreta,umasobrecasaca longaeumpardepolainasaltas, comum chicote demontaria balançando namão. O homem era tãoalto que seu chapéu realmente roçava na verga da porta e seu corpopareciaocupá-ladeladoalado.Umrostogrande,encarquilhado,queimadode sol emarcado por todas as paixõesmalévolas, virava-se ora para um,ora para outro de nós, enquanto os olhos fundos e injetados de bile e onariz adunco, descarnado, davam-lhe certa semelhança com uma feroz evelhaavederapina.

“QualdosdoiséHolmes?”perguntouessaaparição.“Esseémeunome;masosenhorestáemvantagemsobremim”,disse

serenamenteomeucompanheiro.“SouoDr.GrimesbyRoylott,deStokeMoran.”“Muitobem,doutor”,disseHolmesbrandamente.“Porfavor,sente-se.”“Nãofareinadaparecido.Minhaenteadaesteveaqui.Euasegui.Que

andouelalhedizendo?”“Estáumpoucofrioparaestaépocadoano”,disseHolmes.“Queandouelalhedizendo?”berroufuriosamenteovelho.“Mas ouvi dizer que o açafrão está prometendo”, continuou meu

companheiro,imperturbável.“Ah,estámeignorando,nãoé?”dissenossonovovisitante,dandoum

passoadianteesacudindoseuchicote.“Euoconheço,seucanalha.Jáouvifalardevocêantes.VocêéHolmes,ointrometido.”

Meuamigosorriu.“Holmes,oabelhudo!”Seusorrisoalargou-se.“Holmes,oagentezinhoatrevidodaScotlandYard!”Holmes deu uma risada gostosa. “Sua conversa é muito divertida”,

disse.“Quandosair,fecheaporta,poisháumaperceptívelcorrentedear.”“Irei quando tiver dito o que tenho a dizer. Não se atreva a se

intrometernosmeusnegócios.SeiqueMissStoneresteveaqui.Euasegui!Émelhornão criar caso comigo, souumhomemperigoso!Veja.”Deuumpassorápidoadiante,agarrouoatiçadordebrasaseentortou-ocomsuasmanzorrastostadas.

“Trate de icar fora deminhas garras”, rosnou e, jogando o atiçadorretorcidonalareira,saiudasala.

“Pareceumapessoamuito agradável”, disseHolmes, rindo. “Não soutãocorpulento,masseele tivesse icadoeupoderia ter lhemostradoqueminhas garras não sãomuito mais fracas que as dele.” Enquanto falava,pegouoatiçadordeaçoe,comumesforçorepentino,endireitou-o.

“Imagine,eletevea insolênciademeconfundircoma forçao icialdedetetives!Masesseincidentedáumsaborespecialànossainvestigação,esó espero que nossa amiguinha não sofra por ter tido a imprudência depermitir que esse brutamontes a seguisse. Agora,Watson, vamospedir odesjejumedepoiscaminhareiatéoDoctor’sCommons,ondeesperoobteralgunsdadosquepossamnosajudarnesteassunto.”

ERAQUASEUMAHORAquandoSherlockHolmesvoltoudesuaexcursão.Trazianamãoumafolhadepapelazulrabiscadacomanotaçõesenúmeros.

“Vi o testamento da esposa falecida”, disse. “Para determinar seusentidoexato,fuiobrigadoapesquisarospreçosatuaisdosinvestimentos

envolvidos.Arendatotal,quenaépocadamortedamulhereradepoucomenos de 1.100 libras, não passa hoje, em razão da baixa dos preçosagrícolas, de 750 libras. Cada ilha pode reivindicar uma renda de 250libras se vier a se casar. É evidente, portanto, que, se ambas as moçastivessemsecasado,estabelezafaria jusaumaninharia,aomesmotempoemqueocasamentodeumadelasrepresentariaumasériaperdaparaele.Meutrabalhomatinalnãofoiinútil,poisprovouqueeletemosmaisfortesmotivos para tentar impedir qualquer coisa desse tipo. E agora,Watson,isto é sério demais para remancharmos, sobretudo porque o velho sabeque estamos interessados em seus negócios; portanto, se está pronto,vamos chamar um carro e partir para Waterloo. Eu icaria muitoagradecido se você en iasse seu revólver no bolso. Um Eley n o 2 é umexcelenteargumentojuntoacavalheiroscapazesdedarnóematiçadores.Achoque,aforaisso,sóprecisaremosdeumaescovadedentes.”

EmWaterloo, tivemos a sorte de pegar um trem para Leatherhead,ondealugamosumacharretenaestalagemdaestaçãoeviajamosunsseisou sete quilômetros pelas lindas estradinhas de Surrey. Era um diaperfeito, com um sol brilhante e algumas nuvens lanosas no céu. Osprimeiros rebentos verdes mal nasciam nas árvores e sebes à beira docaminhoeoarestavaimpregnadodeumcheiroagradáveldeterraúmida.Para mim, havia um estranho contraste entre a doce promessa daprimavera e a investigação sinistra emque estávamos empenhados.Meucompanheiro ia sentadona frentedocarro,osbraçoscruzados,o chapéupuxadosobreosolhoseoqueixoafundadonopeito, imersoemprofundare lexão.Derepente,contudo,elesemoveu,bateu-menoombroeapontouparaosprados.

“Olhe!”disse.Um parque densamente arborizado estendia-se por uma encosta

acima, adensando-senumbosquenopontomaisalto.Domeiodosgalhosprojetavam-se as empenas cinzentas e a cumeeira alta de uma mansãomuitoantiga.

“StokeMoran?”eleperguntou.“Sim,senhor,éacasadoDr.GrimesbyRoylott”,informouococheiro.“Há algumas construções ali adiante”, disse Holmes; “é para lá que

vamos.”“Éaaldeia”,disseococheiro,apontandoparaumgrupodetelhadosa

alguma distância à esquerda; “mas se é para a casa que os senhores

querem ir, o caminho será mais curto se atravessarem a cerca subindoaqueles degraus e tomarem a trilha de pedestres pelos campos. Veja, asenhoraestácaminhandoporela.”

“E a senhora, eu imagino, é Miss Stoner”, observou Holmes,protegendo os olhos contra o sol com amão. “De fato, parece-memelhorfazercomosugere.”

Apeamos, pagamos a corrida, e a charrete deu meia-volta e rumouparaLeatherhead.

“Pareceu-me conveniente”, disse Holmes enquanto subíamos osdegraus, “queesse sujeitopensassequeviemoscomoarquitetos,ouparaalguma atividade de inida. Talvez assim não dê com a língua nos dentesporaí.Boatarde,MissStoner.Comovê,cumprimosnossapalavra.”

Nossa cliente da manhã havia apressado o passo para ir ao nossoencontro, suaalegriaestampadanorosto. “Estavaesperandoossenhorescom tanta ansiedade”, exclamou, apertando-nos calorosamente as mãos.“Tudo deu esplendidamente certo. O Dr. Roylott foi para a cidade e éimprovávelqueestejadevoltaantesdoentardecer.”

“Tivemosoprazerdeconhecerodoutor”,disseHolmes,eempoucaspalavrasdelineouoque acontecera.Até os lábiosdeMiss Stoner icarambrancos.

“MeuDeus!”exclamouela.“Entãoelemeseguiu.”“Éoqueparece.”“É tão astuto que nunca sei quando estou protegida contra ele. Que

diráquandovoltar?”“Teráde tomar cuidado,porquepodedescobrirqueháalguémmais

astutodoqueelemesmonasuacola.Asenhoritadevefecharseuquartoàchaveestanoite.Seeleforviolento,nósalevaremosparaacasadesuatia,em Harrow. Como agora temos de usar o tempo de que dispomos damelhormaneirapossível,tenhaabondadedenoslevarimediatamenteaosquartosquedevemosexaminar.”

Aconstruçãoeradepedrascinzentas,manchadasdelíquen,comumaparte central alta e duas alas curvas, como as patas de um caranguejo,emergindodosdois lados.Umadessas alas eraumquadrode ruína, comjanelas quebradas e bloqueadas com tábuas, e o telhado em partedesmoronado. A parte central estava em condições um pouco melhores,mas o bloco da direita era comparativamentemoderno, e os estores nasjanelas, bem como a fumaça azul que subia em espirais das chaminés,

mostravamqueeraaliqueafamíliaresidia.Algunsandaimeshaviamsidoerguidos contra a última parede, e havia um furo na alvenaria, mas nãohavia nem sinal de operários no momento de nossa visita. Holmescaminhoudevagarparacimaeparabaixonogramadoprecisandodepodaeexaminoucomprofundaatençãooexteriordasjanelas.

“Esta pertence ao quarto em que a senhorita dormia antes, a docentroaodasuairmãeaque icapertodocorpodacasaaoquartodoDr.Roylott,nãoémesmo?”

“Exatamente.Masagoraestoudormindonoquartodomeio.”“Enquantodurarareforma,peloqueentendi.Aliás,nãoparecehaver

necessidademuitoprementedereparosnaúltimaparede.”“Nãohavianenhuma.Acreditoquefoiumpretextoparameafastarde

meuquarto.”“Ah!Issoésugestivo.Dooutroladodestaalaestreitacorreocorredor

paraondeestestrêsquartosdão.Hájanelasnele,nãoé?”“Há, mas são muito pequenas. Estreitas demais para que alguém

passeporelas.”“Comoasduasestavamdeportatrancada,nãoerapossívelentrarem

seusquartosporaquelelado.Agora,fariaagentilezadeiraoseuquartoebarraraspersianasdasuajanela?”

Miss Stoner obedeceu, e Holmes, após cuidadoso exame pela janelaaberta, tentou forçar a persiana de todas asmaneiras,mas sem sucesso.Nãohaviaumafendaporondesepudesseen iarumafacaparalevantarabarra. Depois, com sua lupa, examinou as dobradiças, mas elas eram deferromaciço, irmementeencravadasnaalvenaria. “Hum!”disse, coçandoo queixo com certa perplexidade. “Minha teoria sem dúvida apresentacertas di iculdades. Ninguém poderia passar por estas persianas seestivessem presas com a barra. Bem, vejamos se o interior lança algumaluzsobreamatéria.”

Uma portinha lateral dava para o corredor caiado para onde osquartosseabriam.ComoHolmesrecusou-seaexaminaroterceiroquarto,fomos imediatamente ao segundo, aquele em que Miss Stoner passara adormir recentemente,eemquesua irmãencontraraseudestino.Eraumquartinhosemgraça,comtetobaixoeumalareiraescancarada,àmaneiradasvelhas casasde campo.Haviauma cômoda castanhanumcanto, umacama estreita com uma colcha branca e uma penteadeira à esquerda dajanela. Essas peças, com duas cadeirinhas de vime, compunham todo o

mobiliáriodoquarto,excetoporumtapeteWiltonquadradonocentro.Asvigaseastábuasqueapainelavamasparedeseramdecarvalhocastanho,carcomido por vermes, tão velho e desbotado que podia datar daconstrução original da casa. Após levar umadas cadeiras para um canto,Holmes icou sentado em silêncio, enquanto seus olhos viajavam de umlado para outro, para cima e para baixo, analisando cada detalhe docômodo.

“Com que lugar aquela campainha se comunica?” perguntouinalmente, apontando para uma grossa corda de campainha que pendiajuntodacama,aborlapousadasobreotravesseiro.

“Tocanoquartodacriada.”“Parecemaisnovaqueasoutrascoisas.”“Éverdade,sófoiinstaladaháunsdoisanos.”“Suairmãpediu-a,suponho?”“Não,epeloqueseinuncaautilizou.Semprecostumávamospegarnós

mesmasaquiloquequeríamos.”“Realmente, parecia desnecessário instalar uma corda de campainha

tãolindaali.Podemedarlicençaporalgunsminutosenquantocuidodesteassoalho?” Ficou de quatro no chão com sua lupa na mão e engatinhourapidamente para trás e para frente, examinando minuciosamente asfendas entre as tábuas. Depois fez o mesmo com o madeiramento dospainéis. Por im, andou até a cama e passou algum tempo itando-a ecorrendoosolhospelaparede,paracimaeparabaixo.Finalmenteagarrouocordãodacampainhaedeu-lheumenérgicopuxão.

“Ora,vejam,nãoédeverdade”,disse.“Nãotoca?”“Não.Nãoestánemmesmopresaaumfio.Issoémuitointeressante.A

senhoritapodeverqueestápresaaumganchologoacimadeondeestáopequenovãodeventilação.”

“Quecoisamaisabsurda!Nuncanoteiissoantes.”“Estranhíssimo!” murmurou Holmes, puxando a corda. “Há uns dois

detalhesmuitosingularesnestequarto.Porexemplo,quemestredeobrasfaria a burrice de abrir um vão de ventilação dando para outro cômodo,quando, com o mesmo trabalho, poderia tê-lo aberto dando para o arlivre?”

“Issotambémémuitorecente”,disseasenhora.

“Instalado na mesma época que a corda de campainha?” perguntouHolmes.

“Foi;váriaspequenasmudançasforamfeitasnessaocasião.”“Elas parecem ter um caráter dos mais interessantes… campainhas

que não chamam e ventiladores que não ventilam. Com sua licença,MissStoner, passaremos agora a fazer nossas pesquisas no quarto maisinterno.”

O quarto do Dr. Grimesby Roylott eramaior que o da enteada, masmobiliado com a mesma falta de graça. Um leito de campanha, umaestantezinhademadeiracheiadelivros,amaioriadecarátertécnico,umapoltronajuntodacama,umacadeirasimplesdemadeiracontraaparede,umamesa redonda e um grande cofre de ferro eram as coisas quemaisdavamnavista.Holmescaminhoulentamentepelapeça,examinandoumaporumacomomaisagudointeresse.

“Queháaquidentro?”perguntou,batendonocofre.“Ospapéisdosnegóciosdomeupadrasto.”“Oh!Entãoasenhoritaviuointerior?”“Sóumavez,algunsanosatrás.Lembroqueestavacheiodepapéis.”“Nãoháumgatoaídentro,porexemplo?”“Não!Queideiaestapafúrdia!”“Bem, veja isto!” Pegou um pequeno pires com leite que estava em

cimadocofre.“Não,nãotemosgato.Masháumguepardoeumbabuínoaqui.”“Ah, sim, mas é claro! Bem, embora um guepardo não passe de um

gato grande, meu palpite é que um pires de leite provavelmente icarialonge de satisfazer suas necessidades. Há um ponto que gostaria deelucidar.”Agachou-sediantedacadeirademadeiraeexaminouoassentocomamáximaatenção.

“Muitoobrigado.Istoestáresolvido”,disse,levantando-seeen iandoalentenobolso.“Ora!Cáestáalgointeressante!”

O objeto que lhe chamara a atenção era um chicote para cachorropendurado num canto da cama. A ponta da correia, contudo, estavaenroladaeamarradanaformadeumlaço.”

“Queachadaquilo,Watson?”

“Bem,vejaisto!”[SidneyPaget,StrandMagazine,1892]

“Éumchicotebastantecomum.Masnãoseisedeveriaterumlaço.”“Issonãoéassimtãocomum,nãoé?Ah!Esteéummundoperverso,e

o pior é quando um homem inteligente volta seu cérebro para o crime.Penso que já vi o su iciente, Miss Stoner, e, com sua permissão, vamosandarpelogramado.”

Nunca vi a isionomia de meu amigo tão soturna ou sua fronte tãocarregada como no instante em que nos desviamos da cena dessainvestigação. Caminhamos várias vezes para cima e para baixo nogramado, nem Miss Stoner nem eu querendo interromper seuspensamentos,antesqueeledespertasseporsimesmodeseusdevaneios.

“Éessencial,MissStoner”,disse,“quesigaestritamentemeuconselhoemtodososaspectos.”

“Certamenteofarei.”“O caso é sério demais para qualquer hesitação. Sua vida pode

dependerdesuaobediência.”“Eulheasseguroqueestouemsuasmãos.”“Emprimeirolugar,meuamigoeeupassaremosambosanoitenoseu

quarto.”MissStonereeuofitamos,ambospasmos.“Isso mesmo, tem de ser assim. Deixem-me explicar. Acredito que

aquiloalisejaoalberguedaaldeia?”“Issomesmo,éoCrown.”

“Ótimo.Suasjanelasseriamvisíveisdelá?”“Certamente.”“Quando seu padrasto chegar, a senhorita deve se fechar em seu

quarto,apretextodeumadordecabeça.Mais tarde,quandoouvireleserecolhendo para dormir, deve abrir as persianas de sua janela, abrir ocadeado,pôrsua lamparina lácomoumsinalparanós,eemseguidasairsilenciosamente, levando tudo que possa querer, e entrar no quarto queocupava antes. Não tenho dúvida de que, apesar das obras, poderá seajeitarláporumanoite.”

“Ah,sim,facilmente.”“Orestoasenhoritadeixaráemnossasmãos.”“Masquefarãoossenhores?”“Passaremos a noite em seu quarto, e investigaremos a causa desse

barulhoqueaperturbou.”“Creio,Mr.Holmes,quejáchegouaumaconclusão”,disseMissStoner,

pousandoamãosobreamangademeucompanheiro.“Talveztenhachegado.”“Nessecaso,porpiedade,diga-mequalfoiacausadamortedeminha

irmã.”“Euprefeririaterprovasmaisclarasantesdefalar.”“Podeaomenosmedizersemeuprópriopensamentoestácorreto,se

elamorreudeumpavorrepentino?”“Não, não penso isso. A meu ver provavelmente houve uma causa

maistangível.Eagora,MissStoner,devemosdeixá-la,poisseoDr.Roylottvoltasseenosvisse,teríamosvindoaquiemvão.Atélogo,eânimo,poisseizer o que eu lhe disse, pode icar certa de que logo afastaremos osperigosqueaameaçam.”

SherlockHolmeseeunãotivemosnenhumadi iculdadeemconseguirumquartoeumasaladeestarnoCrownInn.Ficavamnosegundoandar,ede nossa janela tínhamos uma vista da alameda de entrada e da alahabitada do solar de Stoke Moran. Ao anoitecer vimos o Dr. GrimesbyRoylottpassardecarro,sua forma imensaavultandoao ladoda igurinhado garoto que o conduzia. Omenino teve algumadi iculdade em abrir ospesados portões de ferro, e ouvimos o rugido rouco da voz domédico evimos a fúria com que sacudiu os punhos fechados para ele. A charreteavançoueminutosmais tardevimosuma luzbrilharde repenteentreasárvoresquandoalâmpadadeumadassalasfoiacesa.

“Atélogo,eânimo.”[SidneyPaget,StrandMagazine,1892]

“Sabe,Watson”, disse Holmes quando estávamos sentados juntos nanoitecadavezmaisescura,“realmentetenhoalgunsescrúpulosdelevá-loestanoite.Háumclaroelementodeperigo.”

“Possoserdealgumautilidade?”“Suapresençapoderiaserinestimável.”“Nessecaso,certamenteirei.”“Émuitabondadesua.”“Vocêfaladeperigo.Evidentementeviunaquelesquartosmaisdoque

foivisívelparamim.”“Não,maspenso que talvez tenhadeduzidoumpoucomais. Imagino

quevocêviutudoquevi.”“Nãovinadadenotável, anãosera cordadacampainha, e confesso

quenãoconsigoatinarcomoobjetivoqueelapoderiater.”“Viuoventiladortambém,nãoé?”“Vi,masnãomepareceque sejamuito inusitadohaverumpequeno

vãoentredoiscômodos.Étãopequenoquedi icilmentedariapassagema

umrato.”“Eu sabia que encontraríamos um vão como aquele antesmesmode

chegarmosaStokeMoran.”“MeucaroHolmes!”“Éverdade,eusabia.Vocêselembraqueeladisse,emsuaexposição,

que sua irmãsentiuo cheirodo charutodoDr.Roylott?Ora, isso sugeriuclaramenteedeimediatoquedeviahaverumacomunicaçãoentreosdoisquartos. Só podia ser uma abertura pequena, ou teria sido notada noinquéritodoinvestigador.Deduziqueeraumvãoparaventilação.”

“Masquemalpodehavernisso?”“Bem,hánomínimoumacuriosacoincidênciadedatas.Umvãopara

ventilação é aberto, uma corda é pendurada e uma dama que dorme nacamamorre.Issonãooimpressiona?”

“Aindanãoconsigovernenhumaconexão.”“Nãoobservoualgumacoisamuitopeculiarnaquelacama?”“Não.”“Estavapregadanoassoalho.Jáviualgumdiaumacamaassimantes?”“Nãoqueeumelembre.”“A jovem não podia tirar a cama do lugar. Ela tinha de permanecer

sempre na mesma posição relativamente ao ventilador e à corda… quealiás,comovimos,jamaispretendeuserumacordadecampainha.”

“Holmes”, exclamei, “começo a perceber vagamente o que você estáinsinuando. Só temos o tempo necessário para impedir um crime sutil ehorrível.”

“Extremamentesutilehorrível.Quandoummédicosedesencaminha,é o mais consumado dos criminosos. Tem audácia e tem conhecimento.Palmer e Pritchard estiveram entre os notáveis de sua pro issão. Estehomem irá mais longe; mas penso, Watson, que conseguiremos ir maislongeaindaqueele.Teremos,porém,devermuitoshorroresantesqueanoite termine; por Deus, vamos fumar um cachimbo tranquilo e, poralgumashoras,voltarnossasmentesparaalgomaisalegre.”

Por volta das nove horas, a luz entre as árvores foi apagada e tudoicou escuro na direção deManorHouse. Passaram-se duas horas,muitolentamente, e então, de repente, exatamente quando soavam as onzehoras,umaúnicaluzbrilhouvividamentebemdiantedenós.

“É o nosso sinal”, disse Holmes, levantando-se de um pulo; “vem da

janeladomeio.”Ao passarmos, trocamos algumas palavras com nosso hospedeiro,

explicando que faríamos uma visita tardia a um conhecido e que erapossívelquepassássemosanoitelá.Segundosdepoisestávamosláfora,naestrada escura, um vento frio soprando em nossas faces, e uma luzamarelacintilandoànossafrenteatravésdaescuridãoparanosguiaremnossasombriamissão.

Nãotivemosgrandedi iculdadeparaentrarnoparque,porquehaviaburacos não consertados no velho muro. Avançando entre as árvores,chegamos ao gramado; já o havíamos atravessado e estávamos prestes aentrarpela janelaquando,deumamoitade loureiros-de-jardim,atirou-seo que pareceu ser uma criança medonha e disforme; lançou-se sobre ogramado contorcendo os membros e em seguida atravessou-o correndovelozmenteepenetrounastrevas.

“MeuDeus!”sussurrei.“Vocêviuisso?”PoruminstanteHolmes icoutãoassustadoquantoeu.Emsuaagitação,apertoumeupunhocomaforçade um torno. Em seguida começou a rir baixinho e cochichou no meuouvido:

“Éumafamíliaencantadora”,murmurou.“Aquiloéobabuíno.”Eu me esquecera dos estranhos bichos de estimação que o médico

apreciava.Haviaumguepardotambém;podíamosvê-losobrenossoombroa qualquer momento. Confesso que me senti um pouco mais tranquiloquando,tendotiradomeussapatos,aexemplodeHolmes,mevidentrodoquarto. Meu companheiro fechou as persianas sem fazer nenhum ruído,passoualâmpadaparaamesaecorreuosolhospeloquarto.Tudoestavacomo víramos de dia. Depois, aproximando-se furtivamente de mim eusando as mãos como proteção, sussurrou de novo em meu ouvido, tãobaixinhoquesópudedistinguirestaspalavras:

“Omenorruídoseriafatalparaosnossosplanos.”Comumacenodecabeça,mostreiqueouvira.“Devemos icar sentados no escuro. Ele veria a luz pelo buraco de

ventilação.”Fiznovoaceno.“Não durma; sua própria vida pode depender disso. Tenha a pistola

prontaparaocasodeprecisarusá-la.Eumesentareinabeiradacamaevocênaquelacadeira.”

Puxeimeurevólvereodepositeinocantodamesa.

Holmespôs sobre a cama, a seu lado, umavara comprida e inaquetrouxeraconsigo.Juntodelapôsacaixadefósforoseumtocodevela.Emseguidaapagoualamparinaeaescuridãonosenvolveu.

Como conseguirei jamais esquecer aquela vigília pavorosa? Eu nãoconseguia ouvir um som, sequer o de uma inspiração, e no entanto sabiaque meu companheiro estava sentado, de olhos abertos, a cerca de ummetrodemim,nomesmoestadodetensãonervosaemqueeumesmomeencontrava.Aspersianasbloqueavamomenorraiodeluz,eesperamosnamaisabsolutaescuridão.Defora,chegava-nosogritoocasionaldeumaavenoturna,eumavezouvimos,bemjuntoànossajanela,umgemidolongoearrastado, como o de um gato, que nos informou que o guepardo estavarealmenteemliberdade.Podíamosouvir,muitoaolonge,asbatidasgravesdorelógiodaparóquia,quesoavaacadaquartodehora.Comopareciamlongosaquelesquartosdehora! Sooumeia-noite, soouumahora, soaramduasetrêshoras,eláestávamosnós,sempreesperandosilenciosamenteoquequerquepudesseacontecer.

Derepentevimosum lampejo fugaznadireçãodovãodeventilação;desapareceu imediatamente,mas foi seguidopor um forte cheiro de óleoem combustão e metal aquecido. Alguém acendera uma lanterna comobturador no quarto ao lado. Ouvi um som suave de movimento, depoistudofoisilênciodenovo,emboraocheirofosse icandomaisforte.Durantemeiahora iqueideorelhaempé.Então,subitamente,outrosomtornou-seaudível… um sommuito suave, calmante, como o de um pequeno jato devapor escapando continuamente de uma chaleira. No instante em que oouvimos,Holmespuloudacama,acendeuumfósforoebateufuriosamentesuavaranocordãodacampainha.

“Holmesbateufuriosamente.”[SidneyPaget,StrandMagazine,1892]

“Estávendo,Watson?”gritou.“Estávendo?”Mas eu não via coisa alguma. Assim queHolmes acendeu a luz, ouvi

um assobio baixo, claro,mas o clarão repentino nosmeus olhos ofuscou-me, e foi-me impossível discernir o que meu amigo açoitava tãofuriosamente.Pudever,contudo,queseurostoestavamortalmentepálido,cheiodehorroreasco.

Ele cessara de golpear e olhava para cima, itando o vão, quando osilêncio da noite foi subitamente rompido pelo mais horrível grito quejamais ouvi. Ele foi se avolumando, icando mais e mais alto, um berroroucodedor,medoeraivamisturadosnumguinchopavoroso.Dizemquelánaaldeia,eaténodistantepresbitério,aquelegritoarrancoudacamaosque dormiam. Ele congelou nossos corações, e ali iquei olhando paraHolmes,eeleparamim,atéqueseusúltimosecoshaviamdesaparecidonosilênciodequeelenascera.

“Quepodeissosignificar?”perguntei,ofegante.“Signi icaque tudo terminou”, respondeuHolmes. “E talvez, a inal de

contas, pelo melhor. Pegue sua pistola, vamos entrar no quarto do Dr.Roylott.”

Comumaexpressãograve,eleacendeualamparinaeseguiuàminhafrente pelo corredor. Bateu duas vezes à porta do quarto, sem nenhumaresposta.Emseguidagirouamaçanetaeentrou,eunosseuscalcanhares,

apistolaengatilhadanamão.Meusolhosdepararamcomumavisãosingular.Namesaestavauma

lanternacomoobturador semiaberto, lançandoumbrilhante feixede luzsobreocofredeferro,cujaportaestavaentreaberta.Aoladodessamesa,na cadeira de madeira, sentava-se o Dr. Grimesby Roylott, num longoroupão, os tornozelos nus salientando-se embaixo, e os pés en iados emchinelos turcos vermelhos, sem salto. Sobre seu colo estava o chicote decabocurtoecorreiacompridaquehavíamosnotadoduranteodia.Tinhaoqueixoempinadoparacimaeosolhos ixos,numolharrígido,medonho,nocanto do teto. Em volta da testa, usava uma faixa amarela peculiar, commanchas acastanhadas, que parecia estar fortemente amarrada em voltadesuacabeça.Quandoentramos,nãofeznenhumsomnemmovimento.

“Abanda!Abandamalhada!”sussurrouHolmes.Dei um passo adiante. Num instante aquele estranho adorno de

cabeçacomeçouasemover,edoscabelosdohomemergueu-seacabeçaachatada, em forma de losango, e o pescoço in lado de uma repugnanteserpente.

“É uma serpente-do-pântano!” exclamou Holmes. “A serpente maismortíferadaÍndia.Elemorreramenosdedezsegundosapósserpicado.Aviolência volta-se, na verdade, contra o violento, e o maquinador cai nopoço que cava para outro. Joguemos esta criatura de volta em sua toca,depoispoderemosremoverMissStonerparaalgumabrigoecomunicaroqueaconteceuàpolíciadocondado.”

Enquantofalava,puxourapidamenteochicotedecachorrodocolodohomemmorto,e, jogandoo laçoemvoltadopescoçodoréptil,puxou-odeseuhorrendopoleiroe,carregando-ocomobraçoesticado,jogou-odentrodocofredeferro,fechando-odepoissobreele.

Estes são os verdadeiros fatos damorte doDr. GrimesbyRoylott, deStokeMoran.Nãoénecessárioqueeuprolongueumanarrativaquese jáestendeudemaiscontandocomodemosatristenotíciaàmoçaterri icada,comoa conduzimospelo tremdamanhãparaos cuidadosde suaboa tiaemHarrow,comoo lentoprocessodoinquéritoo icialchegouàconclusãode que o médico encontrou seu destino quando brincava de maneiraimprudente com seuperigosobichode estimação.Opoucoque aindamerestava icar sabendo sobre o caso me foi contado por Sherlock Holmesquandofizemosaviagemdevoltanodiaseguinte.

“Eu havia”, disse-me ele, “chegado a uma conclusão inteiramente

errônea, o que mostra, meu caro Watson, como é sempre perigosoraciocinarapartirdedados insu icientes.Apresençadosciganoseousodapalavra ‘banda’ou ‘bando’pelapobremoça,semdúvidaparaexplicaralgo que ela vislumbrara rapidamente à luz de seu fósforo, foramsu icientesparamepôrnumapistacompletamenteerrada.Oúnicoméritoque posso reivindicar é o de ter reconsiderado minha posiçãoimediatamente quando, apesar disso, icou claro para mim que o perigoque teria podido ameaçar um ocupante daquele quarto, fosse qual fosse,nãopoderiaterentradonempelajanelanempelaporta.Minhaatençãofoirapidamenteatraída,comojácomenteicomvocê,paraaquelevãoeparaacorda de campainha que descia até a cama. A descoberta de que ela erauma simulação, e de que a cama estava pregada no assoalho, fez surgirinstantaneamente a suspeita de que a corda estava ali como uma ponte,parapermitirquealgumacoisapassassepeloburacoechegasseàcama.Aideia de uma cobra ocorreu-me de imediato, e, quando juntei a ela ainformação de que omédico era abastecido com animais da Índia, tive aimpressãodequeprovavelmenteestavanapistacerta.Aideiadeusarumtipo de veneno que nenhum teste químico seria capaz de detectar eraexatamenteaqueocorreriaaumhomem inteligentee cruel, comalgumaformaçãooriental.A rapidez comqueessa espéciedeveneno faria efeitoseria, de seu ponto de vista, uma vantagem adicional. De fato, só uminvestigador muito arguto seria capaz de distinguir os dois furinhosmínimos que mostrariam onde as presas da cobra teriam instilado seuveneno.Depoispenseinoassobio.Omédicoprecisava,éclaro,chamarsuacobra de volta antes que a luz da manhã a revelasse à vítima. Ele atreinara,provavelmenteusandooleitequevimos,avoltarparaelequandochamada. Ele a en iava por esse vão de ventilação na hora que julgava amelhor,comacertezadequeaserpentesearrastariapelacordaabaixoechegaria à cama. Poderiamorder ou não a ocupante, talvez esta pudesseescapar todas as noites durante uma semana; mais cedo ou mais tarde,porém,seriapicada.

“Euhaviachegadoaestasconclusõesantesdeentrarnoquartodele.Uma inspeção da sua cadeiramostrou-me que ele costumava icar de pésobreela,oqueevidentementelheserianecessárioparaalcançarovãodeventilação. A visão do cofre, do pires de leite e do laço da correia foisu iciente para dissipar por im quaisquer dúvidas que ainda merestassem. O ruído metálico ouvido por Miss Stoner era obviamentecausadoporseupadrastoaofecharaportadeseucofreàspressassobre

suaterrívelocupante.Depoisqueformeiumaopinião,vocêsabeospassosquedeiparapô-laàprova.Ouviacriaturasibilar,comonãotenhodúvidadequevocêtambémouviu,einstantaneamenteacendialuzeataquei-a.”

“Comoresultadodeimpeli-ladevoltapelovãodeventilação.”“Etambémcomoresultadode fazê-lavoltar-secontraseusenhorno

outro lado.Algunsgolpesdeminhavaraatingiram-naedespertaramseutemperamento viperino, levando-a a saltar sobre a primeira pessoa queviu.Assim, tenhosemdúvidaresponsabilidade indiretapelamortedoDr.Grimesby Roylott, e não acredito que ela venha a pesarmuito emminhaconsciência.”

OPOLEGARDOENGENHEIRO

ENTRETODOSOSPROBLEMASsubmetidosameuamigoSherlockHolmesduranteosanosemquepriveidesuaintimidade,somentedoisforamlevadosàsuaatenção por meu intermédio — o do polegar de Mr. Hatherley e o daloucura do coronel Warburton. Destes, é possível que o último tenhaproporcionadomelhorterrenoparaumobservadorargutoeoriginal,masooutro foi tãoestranhoemseucomeçoe tãodramáticoemseusdetalhesque talvez seja mais digno de registro, mesmo que tenha dado a meuamigo menos oportunidades de usar aqueles métodos dedutivos deraciocínio mediante os quais logrou tão notáveis resultados. A história,acredito, foi relatadamaisdeumaveznos jornais,mas, comoocorre comtodas as narrativas desse tipo, seu efeito é muito menos impressionantequandoexpostanumaúnicameiacolunadetextoimpressodoquequandoosfatosevoluemlentamentediantedenossosprópriosolhos,eomistériosedissipapoucoapoucoàmedidaquecadanovadescobertanospermitedarumpassonadireçãodaverdadecompleta.Naépoca,ascircunstânciascausaram-me profunda impressão, e o lapso de dois anos praticamentenãoreduziuseuefeito.

Foi no verão de 1889, não muito depois de meu casamento, que oseventos que passo a resumir tiveram lugar. Eu havia voltado à clínicaprivada, e inalmente abandonara Holmes em seus aposentos da BakerStreet, embora o visitasse sempre e, uma vez ou outra, conseguisse atéconvencê-lo a abrirmão de seus hábitos boêmios e fazer-nos uma visita.Minhaclientelaforaaumentandoconstantemente,e,comoeumorassenãomuito longedaestaçãodePaddington, tinhaalgunsclientesentreosseusfuncionários.Umdesses,queeuhaviacuradodeumapenosaeprolongadadoença,nuncasecansavadeapregoarminhasvirtudesedeseempenharem me enviar todos os doentes sobre quem pudesse exercer algumainfluência.

Certamanhã,poucoantesdassetehoras,fuiacordadoporumabatidaàporta; era a criada, anunciandoquedoishomensvindosdePaddingtonestavamàminhaesperanoconsultório.Vesti-meàspressas,sabendopor

experiênciaquecasosdeestradadeferroraramenteeramtriviais,ecorriao térreo. Lá embaixo,meu antigo aliado, o guarda, saiu da sala e teve ocuidadodefecharbemaportaatrásdesi.

“Trouxe-o para cá”, sussurrou, sacudindo o polegar sobre o ombro;“eleestábem.”

“Mas quem é?” perguntei, pois seus modos sugeriam que prenderaalgumaestranhacriaturanaminhasala.

“É um novo paciente”, sussurrou. “Resolvi trazê-lo eumesmo; assimnãopoderiaescapulir.Estáali,sãoesalvo.Agoraprecisoir,doutor;tenhominhas obrigações, tanto quanto o senhor.” E lá se foi o meu con iávelaliciadordeclientes,semmedartemposequerparalheagradecer.

Entrandoemmeuconsultório,deicomumcavalheirosentadojuntoàmesa. Estava discretamente vestido com um terno detweed e trazia umbonémoledepano,quepousara sobremeus livros.Tinhaumadasmãosenroladanumlençotodomanchadodesangue.Erajovem,eudiriaquenãotinhamaisdevinteecincoanos,comumrostoforte,masculino;masestavaextremamente pálido e deu-me a impressão de um homem fortementeconturbado,queprecisadetodaasuaforçadevontadeparasecontrolar.

“Lamento acordá-lo tão cedo, doutor”, disse ele, “mas sofri um graveacidenteduranteanoite.Chegueidetremestamanhã,equandopergunteiem Paddington onde poderia encontrar um médico, um bom sujeitoescoltou-me muito bondosamente até aqui. Dei um cartão à criada, masvejoqueelaodeixousobreaquelamesa.”

Peguei-o e dei uma olhada. “Mr. Victor Hatherley, engenheirohidráulico,VictoriaStreet16A(3 oandar).”Taiseramonome,apro issãoeo domicílio demeu visitantematinal. “Sinto tê-lo feito esperar”, disse eu,sentando-meemminhapoltrona. “Peloquevejo,acabadechegardeumaviagemnoturna,oqueéemsimesmoumaocupaçãomonótona.”

“Oh, minha noite não teria podido ser quali icada de monótona”,respondeu, caindo na risada. Ria às bandeiras despregadas, num tomestridente, recostando-se em sua cadeira e sacudindo-se. Todos osmeusinstintosmédicosergueram-secontraaquelagargalhada.

“Parecomisso!”exclamei.“Controle-se!”eservi-lheumpoucodaáguadeumajarra.

Mas foi inútil. Aquele era um desses ataques histéricos que seapoderam de uma natureza forte quando uma crise grave foi superada.Daliapoucoohomemvoltouasi,exaustoeruborizando-semuito.

“Quepapelãoeufiz”,disse,arquejante.“De maneira alguma. Beba isto.” Joguei um pouco de conhaque na

água,eacorcomeçouavoltaràssuasfacesexangues.“Jámesintomelhor!”disseele. “Agora,doutor, talvezosenhorpossa

ter a bondade de cuidar do meu polegar, ou melhor, do lugar onde elecostumavaficar.”

Desatou o lenço e estendeu a mão. Até eu, com meus nervosempedernidos,estremeciaoolharparaaquilo.Viquatrodedosestendidoseumasuper ícieesponjosa,deumvermelhohorrendo,ondedeveriaestaropolegar.Odedoforacortadoouarrancadopelaraiz.

“Céus!”exclamei.“Queferimentoterrível.Devetersangradomuito.”“Sangrousim.Desmaieinahora,eacreditoquepasseiumbomtempo

semsentidos.Quandovolteiamim,viquecontinuavasangrando,por issoamarreiumapontademeu lençoem tornodopunho, aperteibemeuseiumgravetocomotorniquete.”

“Excelente!Deviatersidocirurgião.”“Ora,trata-sedeumproblemadehidráulica,eessaéaminhaseara.”“Issofoiobra”,disseeu,examinandooferimento,“deuminstrumento

muitopesadoeafiado.”“Pareciaumcutelo”,disseele.“Umacidente,presumo?”“Não,emabsoluto.”

“Desatouolençoeestendeuamão.”[SidneyPaget,StrandMagazine,1892]

“Quê?Umataqueassassino?”“Exatamente,edosmaismortíferos.”“Osenhormehorroriza.”Passei uma esponja no ferimento, limpei-o, iz um curativo e por im

cobri-o com um chumaço de algodão e ataduras embebidas em fenol. Oengenheiro permaneceu recostado na cadeira sem um estremecimento,emboramordesseoslábiosàsvezes.

“Comoestáisso?”pergunteiapósterminar.“Excelente! Entre seu conhaque e sua atadura, sinto-me um novo

homem.Estavamuitofraco,masnãofoipoucooquetivedeenfrentar.”“Talvezsejamelhornão falardoassunto.Éevidentequeele lheestá

fazendomalaosnervos.”“Ah,não,nãoagora.Tereide contarminhahistóriaparaapolícia; cá

entrenós,porém,senãofossepelaprovairrefutáveldestemeuferimento,eu icaria surpreso se eles acreditassem na minha declaração, porque éextraordinária demais e não tenho muitas provas com que ampará-la;ademais,mesmoqueacreditememmim,aspistasquepossolhesfornecersãotãovagasqueémuitoduvidosoquevenhaasefazerjustiça.”

“Ah!” exclamei. “Se o senhor deseja ver resolvida alguma coisa danaturezadeumproblema,eulherecomendariacomveemênciaquefossetercommeuamigoMr.SherlockHolmesantesdeiràpolíciaoficial.”

“Oh, já ouvi falar desse sujeito”, respondeu meu visitante, “e icariamuitosatisfeitoseeleseincumbissedoproblema,embora,éclaro,eudevarecorrer também à polícia o icial. O senhor me daria um cartão deapresentaçãoparaele?”“Fareimelhor.Voulevá-loeumesmoatéele.”

“Eulheficariaimensamentegrato.”“Podemos ir juntos, vou chamar um carro de aluguel. Chegaremos

justamenteatempodetomarumpequenodesjejumcomele.Acreditaqueestáemcondiçõesdeir?”

“Estou;nãosossegareienquantonãotivercontadoomeucaso.”“Então minha criada chamará um carro; estarei com o senhor num

instante.” Corri ao segundo andar, expliquei o assunto rapidamente àminhamulhereemcincominutosvi-meaboletadonumhansom,acaminhodeBakerStreetcommeunovoconhecido.

SherlockHolmes,comoeuprevia,perambulavaporsuasaladeestar,metidoemseuroupão, lendoaseçãodeanúnciospessoaisnoTheTimesefumandoseucachimbodeantesdodesjejum,compostodetodasascinzase borras remanescentes dos cachimbos fumados na véspera,cuidadosamente secas e arrumadasnummontinhonumcantodo consoloda lareira. Recebeu-nos à sua maneira serenamente afável, mandou virovosefatiasdebaconejuntou-seanósnumarefeiçãosubstanciosa.Assimque terminamos, instalou nosso novo conhecido no sofá, ajeitou umaalmofada sob a sua cabeça e pôs um copo de conhaque com água a seualcance.

“É fácil ver que passou por uma experiência nada comum, Mr.Hatherley”, disse. “Por favor, deite-se ali e ique inteiramente à vontade.Conte-nosoquepuder,masparequandoestivercansadoerestauresuasforçascomumgoleestimulante.”

“Muitoobrigado”,dissemeupaciente,“massinto-meoutrodesdequeo doutor me fez o curativo e creio que seu desjejum completou a cura.Como quero tomar tão pouco quanto possível do seu valioso tempo,começareianarrarimediatamenteminhaspeculiaresexperiências.”

Holmessentou-seemsuagrandepoltrona,comaexpressãofatigadaeas pálpebras pesadas com que dissimulava sua natureza intensa eimpaciente,eumeinstaleidefrontedele,eouvimosemsilêncioaestranhahistóriaquenossovisitantedesfiou.

“Precisa saber”, disse, “que sou órfão, solteiro e moro sozinho numapartamento em Londres. Por pro issão sou engenheiro hidráulico, eadquiri considerável experiência durante os sete anos em que trabalheicomo aprendiz na Venner &Matheson, a conhecida irma de Greenwich.Doisanosatrás,comomeutempodeaprendizadoseesgotaraeeuentraranapossederazoávelsomadedinheiroemrazãodamortedemeupobrepai,decidi fundarumnegóciopróprioe instaleiumescritórioemVictoriaStreet.

“Suponhoqueosprimeirostemposdetrabalhoporcontaprópriasãosempre uma experiência enfadonha. Para mim, foram excepcionalmentemonótonos. Durante dois anos recebi três consultas e iz um pequenoserviço;foisóoqueminhapro issãomevaleu.Meusganhosbrutosforamdevinteesetelibrasedezxelins.Tododia,dasnovedamanhãàsquatrodatarde,euesperavanaminhasalinha,atéquepor imcomeceiaperderoalentoeaacreditarquenuncateriaabsolutamentenenhumtrabalho.

“Ontem, contudo, exatamente quando eu pensava em sair do

escritório,meuempregadoentrouparadizerqueestava láumcavalheiroquedesejavafalarcomigosobrenegócios.Nocartãoquemetrazia,estavaimpresso o nome ‘Coronel Lysander Stark’. Logo em seguida entrou opróprio coronel, um homem de altura bem acima da média eextremamentemagro. Acho que nunca vi homem tãomagro. Todo o seurosto se a inava em nariz e queixo, e a pele das faces parecia muitoesticada sobreosossos salientes.Essaemaciação,noentanto,parecia seruma condição natural dele, e não o resultado de alguma doença, porqueseuolhareravivo,opasso lépidoeaposturaempertigada.Vestia-secomsimplicidade,mascorretamente,esuaidade,eudiria,aproximava-semaisdosquarentaquedostrinta.

“‘Mr.Hatherley?’disseele,comlevesotaquealemão.‘Osenhormefoirecomendado,Mr.Hatherley,comoumhomemnãoapenascompetenteemsuaprofissãomastambémdiscretoecapazdeguardarumsegredo.’

“Fiz uma vênia, sentindo-me lisonjeado, como qualquer jovem sesentiria,comtalcumprimento. ‘Possolheperguntarquemmeatribuiutãobomcaráter?’

“‘Bem, talvez sejamelhor eunão lhedizer por enquanto. Soubepelamesmafontequeéórfão,solteiroemorasozinhoemLondres.’

“‘É verdade’, respondi, ‘mas, se me desculpa, eu diria que não vejoque relação tem isso com minhas quali icações pro issionais. Parece-mequeerasobreumassuntoprofissionalquedesejavafalarcomigo,não?’

“‘Semdúvida.Masveráquetudooquedigovemmuitoaocaso.Tenhoum trabalho pro issional a con iar-lhe,mas o sigilo absoluto é essencial…sigiloabsoluto,osenhorentende,eéclaroquepodemosesperarissomaisdeumhomemsolitárioquedeumquevivenoseiodesuafamília.’

“‘Se eu prometer guardar um segredo’, respondi, ‘pode ter absolutacertezadequeofarei.’

“Quando disse isso, ele me encarou com muita severidade; tive aimpressãodenuncatervistoolhartãodesconfiadoeinquisitivo.

“‘Entãopromete?’disseeleporfim.“‘Sim,prometo.’“‘Silêncio absoluto e completo antes, durante e depois? Nenhuma

referênciaaoassunto,sejaoralouescrita?’“‘Jálhedeiaminhapalavra.’“‘Muitobem.’Ohomemlevantou-sedeumsaltoe,atravessandoasala

com a rapidez de um raio, abriu a porta num rompante. Não havia

ninguémnocorredor,doladodefora.“‘Está tudo certo’, disse ele, retornando. ‘Sei que os funcionários às

vezessãocuriososacercadosnegóciosdopatrão.Agorapodemosfalaremsegurança.’Puxousuacadeiraparamuitopertodaminhaevoltoua ixaremmimomesmoolhargraveeinquisitivo.

“Umsentimentoderepulsa,edealgosemelhanteamedo,começaraaganhar formadentrodemimdiantedosesgaresdaquelehomemqueerasópeleeosso.Nemmeutemordeperderumclientepôdemeimpedirdemostrarcertaimpaciência.

“‘Peço-lhequeexponha seunegócio, senhor’, disse eu; ‘meu tempoévalioso.’ Que Deus me perdoe por essa última frase, mas as palavrasvieramaosmeuslábios.

“‘Quetalcinquentaguinéusporumanoitedetrabalho?’“‘Excelente.’“‘Digoumanoitede trabalho,mas trata-seabemdizerdeumahora.

Simplesmente desejo sua opinião sobre uma prensa hidráulica que nãoestá funcionando bem. Se nosmostrar qual é o problema, nósmesmos aconsertaremosrapidamente.Queachadeumserviçocomoesse?’

“‘Otrabalhopareceleveearemuneraçãogenerosa.’“‘Exatamente.Queremosqueváestanoitepeloúltimotrem.’“‘Paraonde?’“‘Para Eyford, em Berkshire. É um lugarejo perto da fronteira de

Oxfordshire,amenosdedozequilômetrosdeReading.UmtremquesaidePaddingtonodeixarialáporvoltadasonzeequinze.’

“‘Muitobom.’“‘Ireiesperá-lonumacarruagem.’“‘Teremosdeandardecarro,então?’“‘Sim, nossa pequena propriedade émuito retirada. Fica a uns bons

dozequilômetrosdaestaçãodeEyford.’“‘Nesse caso, di icilmente poderemos chegar lá antes da meia-noite.

Suponho que não haveria a menor possibilidade de conseguir um tremparavoltar.Euseriaobrigadoapassaranoitelá.’

“‘Defato,masnãoseriadifícilimprovisar-lheumacama.’“‘Isso é muito embaraçoso. Eu não poderia chegar numa hora mais

conveniente?’“‘Pareceu-nos melhor que vá mais tarde. É para recompensá-lo por

qualquer incômodo que estamos pagando ao senhor, homem jovem edesconhecido,honoráriosquesatisfariamaosmaiseminentespro issionaisdo seu campo. Apesar disso, é claro, se quiser sair do negócio, ainda étempo.’

“Pensei nos cinquenta guinéus e no quanto me seriam úteis. ‘Demaneiraalguma’,disse,‘ icareimuitofelizemmeacomodaraseusdesejos.Gostaria de compreender um pouco mais claramente, contudo, o quedesejaqueeufaça.’

“‘Mas é claro. Émuito natural que a promessade sigilo que exigi dosenhor tenha despertado sua curiosidade. Longe de mim querercomprometê-lo comoquequerque seja semantes lhe expor claramentede que se trata. Suponho que estamos inteiramente a salvo de ouvidoscuriosos?’

“‘Inteiramente.’“‘Pois bem, trata-se do seguinte. Provavelmente sabe que greda de

pisoeiro é um produto muito valioso, só encontrado em dois lugares naInglaterra…’

“‘Ouvifalarnisso.’“‘Pouco tempo atrás comprei uma pequena propriedade… uma

propriedademinúscula…apoucomaisdequinzequilômetrosdeReading.Tive a grande sorte de descobrir que havia um depósito de greda depisoeironumdemeuscampos.Examinando-o,noentanto,verifiqueiquesetratavadeumdepósitorelativamentepequeno,equefaziaaligaçãoentredois outros muito maiores, à direita e à esquerda… ambos, porém, emterrenosdemeusvizinhos.Essesbons senhores ignoravampor completoque sua terra continha algo tão valioso quanto uma mina de ouro.Naturalmente, era domeu interesse comprar-lhes suas terras antes quedescobrissemseuverdadeirovalor,mas infelizmenteeunãodispunhadecapitalparatanto.Assim,pusalgunsamigosmeusapardosegredoeelessugeriramque começássemosa explorar silenciosae secretamentenossopróprio pequeno depósito; assim, disseram, ganharíamos o dinheironecessárioparacompraroscamposvizinhos.Éoqueestamosfazendoháalgum tempo, e, para nos ajudar em nossas operações, montamos umaprensa hidráulica. Essa prensa, como já lhe expliquei, avariou-se, edesejamosterseuparecersobreoassunto.Masguardamosnossosegredomuito ciosamente, e assim que se soubesse que levamos engenheiroshidráulicosparanossacasinha,issodespertariaindagações,edepois,seosfatos viessem a público, teríamos de dar adeus a qualquer chance de

comprar aqueles campos e realizar nossos planos. Foi por isso que o izprometerquenãocontariaaabsolutamenteninguémqueiráaEyfordestanoite.Tereideixadotudobemclaro?’

“‘Eu o entendi perfeitamente’, respondi. ‘O único ponto que nãoconsigo compreender é qual poderia ser a utilidade de uma prensahidráulica em se tratandode escavar greda, que, peloque sei, é extraídacomocascalhodeumamina.’

“‘Ah!’ disse ele negligentemente, ‘temos nosso próprio processo.Comprimimosa terrana formade tijolos,para removera greda semquesevejaoqueé.Masissoéummerodetalhe.Agorajálhereveleitudo,Mr.Hatherley,elhemostreioquantocon ionosenhor.’Levantou-seenquantofalava.‘Vouesperá-lo,então,emEyford,àsonzeequinze.’

“‘Certamenteestareilá.’“‘E nem uma palavra a ninguém!’ Após ixar emmim um último de

seusolhareslongos,indagativos,edar-meumapertodemãofrioeúmido,saiuàspressasdasala.

“Pois bem, quando pude pensar sobre tudo aquilo de cabeça fria,iquei muito espantado, como os senhores podem imaginar, com aqueletrabalhoquemeforasubitamentecon iado.Porumlado,éclaro,senti-mesatisfeito,porquearemuneraçãoeranomínimodezvezesoqueeumesmoteriapedidoporaqueleserviço,eerapossívelqueeleconduzisseaoutros.Por outro lado, o semblante e as maneiras de meu cliente haviam mecausadouma impressãodesagradável, e sua explicação sobre a gredadepisoeironãomeparecerajusti icardemaneiraconvincenteanecessidadede eu ir fazer o serviço àmeia-noite, nem seu extremo temor de que eufalasse com alguém sobre meu serviço. Mas resolvi calar meus medos,jantei muito bem, peguei um carro para Paddington e parti, tendoobedecidoaopédaletraàimposiçãodemanterabocafechada.

“‘Enemumapalavraaninguém!’”[SidneyPaget,StrandMagazine,1892]

“Em Reading, tive de trocar não só de vagão como de estação. MaschegueiatempodepegaroúltimotremparaEyfordejápassavadasonzehoras quando desembarquei na pequena e mal-iluminada estação. Fui oúnico passageiro a saltar do trem naquele lugar; na plataforma haviaapenas um carregador sonolento com uma lanterna. Quando cruzei acancela,porém,encontreimeuconhecidodamanhãesperandonoescurodo outro lado. Sem uma palavra ele me agarrou o braço e memeteu àspressas numa carruagem, cuja porta já estava aberta. Fechou as janelasdos dois lados, bateu no madeiramento e lá fomos nós, tão velozmentequantoocavaloeracapazdeir.”

“Umcavalo?”atalhouHolmes.“É,sóum.”“Observouacor?”“Sim,vipelaslanternaslateraisaosubirnacarruagem.Eracastanho.”“Pareciacansadoounão?”“Ah,descansadoelustroso.”“Obrigado. Desculpe a interrupção; por favor, continue seu

interessantíssimorelato.”“Lá fomosnós, comoeudizia,eviajamospornomínimoumahora.O

coronel Lysander Stark dissera que eram apenas doze quilômetros,mas,pelavelocidadecomqueparecíamosirepelotempoquelevamos,eudiriaqueforampelomenosunsvinte.Elepermaneceuemsilêncioameuladootempotodo,epercebimaisdeumavez,aoolhardesoslaioemsuadireção,queme itavacomgrandeintensidade.Asestradasruraisparecemnãosergrande coisa naquela parte do mundo, porque cambaleávamos esacolejávamos terrivelmente. Tentei olhar pelas janelas para ter algumaideiadeondeestávamos,maselaseramdevidrofoscoeeunãoconseguiaver nada além da mancha brilhante de uma luz ou outra por quepassávamos. De vez em quando eu arriscava algum comentário paraquebrar a monotonia da viagem, mas o coronel só respondia commonossílabos e a conversa logo murchava. Finalmente, porém, ossolavancosdaestradaforamtrocadospelosuavecrepitardeumatrilhadecascalho,eacarruagemparou.OcoronelLysanderStarkpulounochãoe,quando apeei atrás dele, puxou-me rapidamente para dentro de umpórtico que se escancarava à nossa frente. Saímos, por assim dizer,diretamenteda carruagemparaovestíbulo,demodoquenãopude teromenorvislumbredafachadadacasa.Assimquetranspusasoleira,aportabateupesadamenteatrásdenós, eouvidebilmenteo ruídodas rodasdacarruagemquepartia.

“Estavaescurocomobreudentrodacasa,eocoronelpôs-seaandaràs tontas à procura de fósforos, sussurrando alguma coisa. De repenteuma porta abriu-se na outra ponta do corredor, e uma longa e douradabarra de luz estendeu-se em nossa direção. Alargou-se, e apareceu umamulher com uma lamparina na mão, que segurava acima da cabeça,enquanto projetava a cabeça para frente e nos examinava. Pude ver queera bonita e, pelomodo como a luz cintilava sobre seu vestido escuro, vique era feito de um tecido caro. Ela disse algumas palavras numa línguaestrangeira; pelo tom, fez uma pergunta, e quando meu companheirorespondeu com um áspero monossílabo teve tal sobressalto que quasesoltoua lamparina.OcoronelStark foiatéela,cochichou-lhealgumacoisanoouvidoedepois,empurrando-adevoltanocômododeondeviera,foidenovonaminhadireçãosegurandoalamparina.

“‘Talvezpossafazeragentilezadeesperaralgunsminutosnestasala’,disse, abrindo uma outra porta. Era uma sala sossegada, pequena, commobília simples. Sobre uma mesa redonda, no centro, espalhavam-sevários livros em alemão. O coronel Stark pousou a lamparina sobre umharmônio,juntodaporta.‘Nãoofareiesperarmuito’,disse,edesapareceu

naescuridão.“Deiumaolhadanoslivrossobreamesae,apesardeminhaignorância do alemão, pude ver que dois eram tratados cientí icos e osdemais, volumes de poesia. Depois fui até a janela, na esperança deentrever o campo, mas uma persiana de carvalho, presa por uma barrapesada,aobliterava.Eraumacasamaravilhosamentesilenciosa.Umvelhorelógio tiquetaqueava em algum lugar no corredor, mas fora isso tudoestavanumsilênciomortal.Umavagasensaçãodedesconfortocomeçouatomar conta demim. Quem eram aqueles alemães, e que faziam naquelelugar estranho, no im do mundo? E que lugar era aquele? Eu estava amaisdequinzequilômetrosdeEyford,erasóoquesabia,masseeraparanorteousul,lesteouoeste,nãotinhaamínimaideia.Aliás,comoReadingeprovavelmenteoutrascidadesgrandesestavamdentrodesseraio,olugartalvez não fosse, a inal de contas, tão retirado. Apesar disso, eraindubitável, pela tranquilidade absoluta, que estávamos no campo. Andeide um lado para outro da sala, cantarolando baixinho umamelodia paramanteromoralesentindoqueestavamerecendoplenamenteminhapagadecinquentaguinéus.

“De repente, sem que nenhum som anunciasse isso em meio àquietudeabsoluta,aportadasalaseabriulentamente.Amulherpostou-seno vão, a escuridão do corredor atrás de si, a luz amarela de minhalamparinabatendoemseurostoansiosoebelo.Pudeverdeimediatoqueelaestavaempânico,oquecongeloumeuprópriocoração.Ela levantouesacudiu um dedo para me impor silêncio e dirigiu-me algumas palavrasnum inglês estropiado, voltando os olhos para trás, como um cavaloamedrontado,paraperscrutaraescuridãoatrásdesi.

“‘Váemboradaquiantesquesejatardedemais!’”[SidneyPaget,StrandMagazine,1892]

“‘Eu iria embora’, disse ela, fazendo um grande esforço, ao que mepareceu,para falarcalmamente; ‘eu iriaembora.Não icariaaqui.Nãohánadadebomparaosenhorfazer.’

“‘Mas, senhora’, respondi, ‘ainda não iz o que vim fazer. Não possopartirantesdeveramáquina.’

“‘Nãovaleapenaesperar’,elacontinuou.‘Podepassarpelaporta;nãoháninguém impedindo.’Eentão,vendoqueeusorriae sacudiaa cabeça,ela venceu de repente seu constrangimento e deu um passo adiante,apertando as mãos. ‘Pelo amor de Deus!’ sussurrou. ‘Vá embora daquiantesquesejatardedemais!’

“Massouumpoucoteimosopornatureza,e icoaindamaisdispostoame envolver numa situação quando há um obstáculo no caminho. Penseinosmeushonoráriosdecinquentaguinéus,emminhaexaustivaviagemena noite desagradável que parecia estar àminha espera. Teria tudo issosido em vão? Por que deveria sair sorrateiramente sem ter realizado omeuserviçoesemopagamentoquemeeradevido?Comosaberseaquelamulher não era uma monomaníaca? Assim, embora suas maneiras meabalassemmais do que eu admitia paramimmesmo, continuei a sacudirresolutamente a cabeça e declarei minha intenção de continuar onde

estava.Elaestavaprestesarenovarsuassúplicasquandoumaportabateunoandardecimaeouvimososomdeváriospassosnaescada.Elaescutouporuminstante,levantouasmãosnumgestodedesesperoedesapareceutãorepentinaesilenciosamentequantosurgira.

“ChegouocoronelLysanderStarknacompanhiadeumhomembaixoe balofo, com tufos de barba crescendo das pregas de seu queixo duplo,quemefoiapresentadocomoMr.Ferguson.

“‘Esteémeusecretárioegerente’,disseocoronel.‘Apropósito,tenhoa impressãodeterdeixadoestaporta fechadahápouco.Temoquetenhaseexpostoaumacorrentedear.’

“‘Ao contrário’, contestei, ‘eu mesmo abri a porta porque a sala mepareceuumpoucoabafada.’

“Eleme lançou um de seus olhares descon iados. ‘Bem, agora talvezseja melhor tratarmos dos nossos negócios’, disse. ‘Mr. Ferguson e euvamoslevá-loparaveramáquina.’

“‘Seriaconvenienteeupôrochapéu,suponho.’“‘Oh,não;ficadentrodecasa.’“‘Quê?Osenhorescavagredadentrodecasa?’“‘Não,não.Sóacompactamosaquidentro.Masnãosepreocupecom

isso.Queremosapenasqueexamineamáquinaenosinformeoquehádeerradocomela.’

“Subimos juntos ao segundo andar, o coronel à frente com alamparina, o gerente gordo e eu atrás. Era uma casa antiga em labirinto,com corredores, passagens, escadinhas em caracol e portinhas baixas, assoleirasafundadaspelasgeraçõesqueashaviamtransposto.Deixando-seo térreo, não se viam mais tapetes nem qualquer sinal de mobília; oestuquedasparedesdescascavae aumidadeemergia embolhasverdes,insalubres. Eu tentava aparentar um ar tão despreocupado quantopossível, mas não esquecera as advertências da senhora; embora astivesse desconsiderado, não despregava os olhos dos meus doiscompanheiros. Ferguson parecia um homem macambúzio e quieto, maspelopoucoquedissepudeperceberqueerapelomenosumcompatriota.

“Por imocoronelLysanderStarkparoudiantedeumaportabaixaedestrancou-a. Entrando, vimo-nos num cômodo pequeno, quadrado, quemal nos comportaria os três aomesmo tempo. Ferguson icoudo ladodeforaeocoronelfez-meentrar.

“‘Estamosagora’,disseele,‘narealidade,dentrodaprensahidráulica,

eseriaalgoparticularmentedesagradávelparanóssealguémaligasse.Otetodestequartinhoédefatoaextremidadedopistom,eelebaixacomaforça de muitas toneladas sobre este piso de metal. Fora, há pequenascolunas d’água laterais que recebem o impacto e o transmitem emultiplicam da maneira que o senhor conhece bem. A máquina éfacilmente acionada, mas está apresentando certa rigidez em seufuncionamento e perdeu parte de sua força. Talvez o senhor possa ter abondade de examiná-la e mostrar-nos como consertá-la.’ “Tomei alamparina dele e examinei a máquina meticulosamente. Era realmenteuma prensa gigantesca, capaz de exercer enorme pressão. Mas quandopassei para o lado de fora e acionei as alavancas que a controlavam,percebi instantaneamente, pelo som sibilante, que havia um ligeirovazamento, o que permitia que a água regurgitasse através de um doscilindros laterais. Um examemostrou que uma das correias de borrachaque envolvia a cabeça de uma biela propulsora encolhera e não estavapreenchendointeiramenteosoqueteaolongodoqualtrabalhava;essaeraclaramente a causa da perda de potência. Mostrei isso a meuscompanheiros, que ouviram minhas observações com muita atenção eizeram várias perguntas práticas sobre como deveriam proceder parasanarodefeito.Apósexplicar-lhesoquefazer,volteiàcâmaraprincipaldamáquina e examinei-a longamente para satisfazer minha própriacuriosidade.Eraóbvionumrelancequeahistóriadagredadepisoeiroerapura invenção, pois seria absurdo destinar mecanismo tão poderoso apropósito tão inadequado. As paredes eram de madeira, mas o pisoconsistianumgrandecochode ferro,eaoexaminá-lomaisdepertopudever que uma crosta de sedimento metálico se espalhava por toda a suasuper ície. Eu me abaixara, e estava raspando esse material para verexatamente do que se tratava quando ouvi uma exclamaçãomurmuradaemalemãoeviorostocadavéricodocoronelmeolhandodecima.

“‘Queestáfazendoaí?’perguntou.“Senti raivade ter caídonumahistória tãomal-contadacomoaquela.

‘Estava admirando sua greda’, respondi. ‘Creio que teria melhorescondições de aconselhá-lo quanto ao que fazer com sua máquina sesoubesseexatamentecomquefiméutilizada.’

“Mal dissera estas palavras, lamentei sua aspereza. O semblante dohomemendureceueumbrilhomalignoperpassouseusolhoscinzentos.

“‘Muitobem’,disseele, ‘o senhorsaberá tudosobreamáquina.’Deuumpassoatrás,bateuaportinhaegirouachavenafechadura.Corripara

elaepuxeiotrinco,masestavabem-trancadaenãocedeuummilímetroameuschuteseempurrões.‘Ei!’gritei.‘Ei!Coronel!Deixe-mesair!’

“Foientãoquederepente,nosilêncio,ouviumsomquemefezsentirocoraçãonaboca.Eraotinidodasalavancaseozumbidodocilindroqueestavavazando.Elehaviaacionadoamáquina.Alamparinacontinuavanopiso onde eu a pusera ao examinar o cocho. À sua luz, vi o teto preto irbaixando lentamente, aos solavancos,mas, como eu sabiamelhor do queninguém, com uma força que dentro de umminuto me reduziria a umapasta sem forma. Joguei-me, aos gritos, contra a porta e arranhei afechadura. Implorei ao coronel queme deixasse sair,mas o clangor semremorso das alavancas abafava meus gritos. O teto estava apenas unscinquentacentímetrosacimademinhacabeça,levantandoamãoeupodiasentir sua super ície dura e áspera. De repente, veio-me à cabeça que adordeminhamortedependeriamuitodaposiçãoemqueeuaenfrentasse.Semedeitassedebruços,opesocairiasobreminhaespinha,eestremeciaopensarnessepavorosoestalo.Talvezdecostasfossemelhor;masteriaeu coragem de encarar aquela mortífera sombra negra baixando sobremim? Eu já não podia mais memanter ereto quandomeus olhos deramcomalgoquemeencheunovamenteocoraçãodeesperança.

“Comodisse,emboraopisoeotetofossemdeferro,asparedeseramdemadeira.Aopassarosolhosameuredorrapidamentepelaúltimavez,vi,entreduastábuas,uma inaréstiade luzamarelaquefoisealargandopoucoapoucoàmedidaqueempurreiumpequenopainelpara trás.Porum instantemal pude acreditar que ali estava realmente uma porta queme permitiria escapar damorte. Um segundo depois en iei-me por ela, ecaíquasesemsentidosdooutrolado.Opainelfechara-senovamenteatrásdemim,maso ruídodoesmagamentoda lamparinae, instantesdepois,osom metálico provocado pelo choque das duas pranchas mostraram-mecomoeuescaparaporpouco.

“Um violento safanão no pulso me fez recobrar os sentidos; vi-medeitadonopisodepedradeumestreitocorredor;umamulhercurvava-sesobremimepuxava-mecomamãoesquerdaenquantoseguravaumavelacom a direita. Era a mesma boa amiga cujos conselhos eu rejeitara demaneiratãoinsensata.

“‘Venha! Venha!’ exclamava ela, ofegante. ‘Eles estarão aqui numinstante.Verãoquenãoestálá.Ah,nãopercatempo,eleépreciosodemais,venhajá!’

“Dessa vez, pelo menos, não desprezei seu conselho. Levantei

cambaleando,corricomelapelocorredoredesciumaescadaemcaracol.Esta levava a uma outra passagem larga, e assim que a alcançamosouvimos o somde passos correndo e os gritos de duas pessoas; uma, nomesmo andar que nós, respondia a outra que falava do andar superior.Minhaguiaparoueolhouàsuavoltacomoalguémque jánãosabeoquefazer.Emseguidaabriuumaportaquelevavaaumquartodedormircujajaneladeixavaentrarumintensoluar.

“‘Ésuaúnicachance’,disseela.‘Éalto,mastalvezconsigapular.’“Enquantoelafalava,apareceuumaluznaoutrapontadocorredor,e

vi a igura seca do coronel Lysander Stark correr em nossa direção comuma lanterna emumadasmãos e uma armaparecida comum cutelo deaçougueiro na outra. Atravessei o quarto correndo, escancarei a janela eolhei para fora. O jardim parecia extremamente sereno e exuberante aoluar,enãopodiaestaramuitomaisdenovemetrosabaixodemim.Trepeinoparapeito,mashesiteiemsaltaratéouviroquesepassariaentreminhasalvadoraeofacínoraquemeperseguia.Seelefosseviolentocomela,euestava decidido a correr em sua ajuda, fosse qual fosse o risco.Mal essepensamentomecruzaraamente,elejáestavaàporta,empurrando-aparapassar;maselajogouosbraçosàvoltadeleetentoudetê-lo.

“‘Fritz! Fritz!’ gritou, e falou-lhe em inglês. ‘Lembre-se da promessaque me fez da última vez. Você disse que aquilo não se repetiria. Eleguardarásilêncio!Oh,elenãofalará!’

“‘Você está louca, Elise!’ gritou ele, tentando desvencilhar-se damulher. ‘Você será a nossa ruína. Ele viu demais.Deixe-mepassar, estoudizendo!’ Jogou-a para um lado e, correndo até a janela, golpeou-me comsuapesadaarma.Eujogarameucorpoparafora,eestavapendurado,commeus dedos na fenda da janela e asmãos sobre o parapeito, quando eledesferiu o golpe. Tive consciência de uma dor vaga, minhas mãosdesprenderam-seecaínojardimláembaixo.

“Fiquei abaladomasnão feridopelaqueda; trateideme recomporesaí correndopor entre os arbustos tão depressa quanto pude, pois sabiaqueaindanãoestava,nemdelonge,foradeperigo.Derepente,noentanto,enquantoeucorria,umavertigemeumanáusea terríveis tomaramcontademim.Olheiparaminhamão,que latejavadolorosamente, e só entãovique meu polegar havia sido cortado fora e minha mão sangravacopiosamente. Tentei atarmeu lenço em volta dela,mas de repente ouvium zumbido nos ouvidos e no instante seguinte caí desmaiado entre asroseiras.

“Golpeou-me.”[SidneyPaget,StrandMagazine,1892]

“Não sei dizer por quanto tempo permaneci inconsciente. Deve tersido muito tempo, porque a lua desaparecera e uma luminosa manhãirrompia quando voltei a mim. Minhas roupas estavam encharcadas deorvalhoe amangadomeupaletó ensopada como sanguedeminhamãoferida.Asaguilhoadasquevinhamdalime izeramlembrarnumsegundotodos os detalhes da minha noite de aventuras, e pulei em pé com asensaçãodequetalvezaindanãoestivesseasalvodemeusperseguidores.Parameuespanto,porém,quandomevireiparaolharàminhavolta,nãovicasanemjardim.Euestiveradeitadonumângulodacercajuntoàestradaprincipal, e um pouco abaixo vi um edi ício comprido que, quando meaproximei, provou ser a própria estação a que eu chegara na noiteanterior. Não fosse a feia ferida em minha mão, tudo que aconteceraduranteaquelashorashorríveispoderiatersidoapenasumsonhomau.

“Bastante atordoado, entrei na estação e perguntei pelo trem damanhã. Haveria um para Reading em menos de uma hora. Notei que omesmo carregador que lá estava quando cheguei continuava de serviço.Perguntei-lhe se já ouvira falar do coronel Lysander Stark. O nome era

estranhoparaele.Poracasonotaraumacarruagemesperandopormimláforananoiteanterior?Não,nãoavira.Haviaalgumadelegaciaporperto?Haviaumaacercadecincoquilômetros.

“Era longe demais para mim, fraco e ferido como estava. Resolvideixar para contar minha história à polícia depois de chegar à cidade.Comopassavaumpoucodasseisquandochegueiaqui, fuiprimeiro fazerumcurativonamão,edepoisodoutorteveabondadedemetrazeràsuacasa.Ponhoocasoemsuasmãos,fareiexatamenteoquemeaconselhar.”

Nós dois icamos em silêncio por algum tempo após ouvir essaextraordinárianarrativa.DepoisSherlockHolmespuxoudaprateleiraumadaspesadasagendasemqueguardavaseusrecortes.

“Háaquiumanúncioqueserádoseuinteresse”,disse.“Apareceuemtodososjornaiscercadeumanoatrás.Ouçaisto:

Desapareceu,nodia9docorrentemês,Mr.JeremiahHayling,vinteeseis anos, engenheiro hidráulico. Deixou seu apartamento às dezhorasdanoiteenãosetevenotíciadeledesdeentão.Trajavaetc.etc.

Vê? Isto representa, eu imagino, a última vezqueo coronel precisoudeumarevisãonasuamáquina.”

“MeuDeus!”exclamoumeupaciente.“Entãoissoexplicaoqueamoçadisse.”

“Semdúvida alguma. Está perfeitamente claro que o coronel era umhomemfrioedesesperado,absolutamentedecididoanãodeixarquenadaestorvasse seu joguinho, como aqueles piratas consumados que nãodeixamninguémescaparparacontarahistórianumnaviocapturado.Bem,agoracadasegundoéprecioso;portanto,casosesintaemcondiçõesparatanto,vamosimediatamenteàScotlandYardedepoisparaEyford.”

Cerca de três horas depois estávamos todos juntos num trem,rumando de Reading para a pequena aldeia de Berkshire. Éramos cinco:Sherlock Holmes, o engenheiro hidráulico, o inspetor Bradstreet, daScotland Yard, um policial à paisana e eu. Bradstreet abriu um mapaOrdnancedo condado sobreumassento e, comseu compasso, traçouumcírculocomEyfordcomocentro.

“Aí está”, disse ele. “Tracei este círculo num raio de quinzequilômetrosapartirdaaldeia.Olugarquedesejamosdeveestaremalgumpontopróximodessalinha.Osenhordissequinzequilômetros,nãofoi?”

“Foiumahoradeviagemaumaboavelocidade.”

“Eacreditaquepercorreramtodoessecaminhodevoltacomosenhorquandoestavainconsciente?”

“Devemterpercorrido.Tenhotambémumalembrançaconfusadetersidoerguidoetransportadoparaalgumlugar.”

“Oquenãoconsigoentender”,disseeu,“éporqueoteriampoupadoquando o encontraram caído sem sentidos no jardim. Talvez o canalhatenhasidoamolecidopelassúplicasdamulher.”

“Isso me parece muito pouco provável. Nunca vi semblante maisinexorávelnaminhavida.”

“Oh, logo tiraremos tudo isso a limpo”, disse Bradstreet. “Bem, meucírculo está traçado; só gostaria de saber em que ponto dele as pessoasqueprocuramospoderãoserencontradas.”

“Penso que eu poderia pôr o dedo no lugar exato”, disse Holmescalmamente.

“Ora,comefeito!”exclamouo inspetor. “Então já formousuaopinião?Vamos, vejamos quem concorda com o senhor. Naminha opinião o lugarficanosul,porqueessaregiãoémaisdeserta.”

“Eeudigoleste”,manifestou-semeupaciente.“Soupelooeste”,observouopolicialàpaisana.“Háváriasaldeiazinhas

pacatasali.”“E eu pelo norte”, disse eu, “porque não há montanhas ali, e nosso

amigodiznãoterpercebidoacarruagemsubindonenhuma.”“Vejam só”, exclamou o inspetor, rindo, “quanta diversidade de

opiniões!Fizemosumarotaçãocompletaentrenós.AquemdáseuvotodeMinerva?”

“Ossenhoresestãotodoserrados.”“Masnãopodemosestartodoserrados.”“Ah, sim, podem. Meu ponto é este.” Cravou o dedo no centro do

círculo.“Éaquiqueosencontraremos.”“Mas e a viagem de quinze quilômetros?” perguntou Hatherley,

arfante.“Uns sete para lá e uns sete para cá. Nada mais simples. O senhor

mesmodissequeocavaloestavadescansadoelustrosoquandoentrounacarruagem. Como isso teria sido possível se ele tivesse viajado quinzequilômetrosemestradasruins?”

“De fato é um estratagema bastante provável”, observou Bradstreet,

pensativo. “Claro que não pode haver dúvida quanto à natureza dessaquadrilha.”

“Nenhuma”, disse Holmes. “Eles cunham moedas falsas em grandeescala;usamamáquinaparaformaroamálgamaquesubstituiaprata.”

“Sabíamosháalgumtempoqueumahábilquadrilhaestavaemação”,disseoinspetor.“Vêmfabricandomeiascoroasaosmilhares.Conseguimosseguir a pista deles atéReading,mas não pudemos irmais longe porquehaviam apagado completamente os seus rastros, revelando ser raposasvelhas. Agora, porém, graças a este golpe de sorte, acho que estão nopapo.”

Mas o inspetor estava enganado, aqueles criminosos não estavamdestinados a cair nas mãos da justiça. Quando entramos na estação deEyford,vimosumaenormecolunadefumaçaquesubiadeumpontoatrásdeumpequenoarvoredonavizinhançaepairavacomoumaimensaplumadeavestruzsobreapaisagem.

“Uma casa pegando fogo?” perguntou Bradstreet quando o tremfumegoudenovo,afastando-se.

“Issomesmo,senhor!”respondeuochefedaestação.“Quandocomeçou?”“Ouvi dizer que foi durante a noite, senhor,mas piorou; a casa toda

estáemchamas.”“Dequeméacasa?”“DoDr.Becher.”“Diga-me”,intrometeu-seoengenheiro,“esseDr.Becheréumalemão

muitomagro,comumnarizgrandeepontudo?”O chefe da estação deuuma gostosa gargalhada. “Não, senhor.ODr.

Becheré inglês,eohomemmaisbem-fornidodaparóquia.Mashaviaumcavalheirohospedadoemsuacasa,umpacienteseu,peloqueentendi,queéestrangeiroedáa impressãodequeumbombifedeBerkshirenão lhefariamal.”

Antes que o chefe da estação terminasse de falar, estávamos todoscorrendonadireçãodo fogo.Quandoaestradasubiuummorrote,vimos-nos diante de uma vasta construção, toda caiada, lançando fogo por cadafresta e janela, enquanto no jardim, diante dela, três carros de bombeiroesforçavam-seemvãoparadebelaraschamas.

“É ali!” gritou Hatherley, quase fora de si. “Lá está o caminho decascalho,vejamasroseirasjuntodasquaiscaí.Foidaquelasegundajanela

aliquesaltei.”“Bem,pelomenos”, disseHolmes, “o senhor teve sua vingança sobre

eles. Não há dúvida alguma de que foi sua lamparina a querosene que,quandoesmagadanaprensa,ateoufogonasparedesdemadeira.Naquelemomento eles estavam certamente empolgados demais em persegui-lopara observar isso. Agora, olho vivo, veja se consegue identi icar os seusamigos de ontem à noite nessa multidão, embora eu tenha razões paratemerque,aestaaltura,estejamamaisdecemquilômetrosdaqui.”

OstemoresdeHolmescon irmaram-se,poisdaquelediaatéhojenãoseteveumanotíciaquefosse,sejadamulherbonita,doalemãosinistrooudo inglês taciturno. Bem cedo naquela manhã um camponês encontrarauma carroça, levando várias pessoas e alguns volumosos caixotes,rumando a toda para Reading, mas ali todos os rastros dos fugitivosdesapareceram.NemasagacidadedeHolmesconseguiu jamaisdescobriramenorpistadoparadeirodeles.

Os bombeiros icaram perplexos com os estranhos mecanismos queencontraramno interiordoprédio,emaisaindaaodescobrirumpolegarhumano recém-cortado sobre umparapeito do segundo andar. Quando osol sepunha,noentanto, seusesforços inalmente tiveramsucessoe elesdominaram o fogo. Nessa altura, porém, o telhado despencara e todo olugar fora reduzido a uma ruína tão absoluta que, exceto por algunscilindros e canos de ferro retorcidos, não restava um só vestígio damáquinaquecustaratãocaroaonossoinfelizengenheiro.Descobriram-segrandes quantidades de níquel e estanho armazenadas num galpão,masnão se conseguiu encontrarumamoeda sequer, oquepoderia explicar apresençadaquelesimensoscaixotesjámencionadosnacarroça.

O modo como nosso engenheiro hidráulico fora transportado dojardim ao ponto onde recobrou os sentidos poderia ter permanecido ummistério para sempre, não tivesse sido a terra fofa, que nos contou umahistóriamuito simples. Ele havia evidentemente sido carregado por duaspessoas, uma das quais tinha pés notavelmente pequenos, e outra,inusitadamente grandes. Pensando bem, é extremamente provável que oinglês carrancudo, sendo menos atrevido ou menos homicida que seucompanheiro, tenha ajudado amulher a carregar o homem inconsciente,pondo-oforadeperigo.

“Bem”, disse com pesar nosso engenheiro quando nos sentamos notrem para voltar a Londres, “foi um belo negócio para mim! Perdi meupolegar,perdicinquentaguinéus,eganheioquê?”

“Experiência”, disse Holmes, rindo. “Indiretamente, ela pode lhe servaliosa, sabe?Bastaqueaponhaempalavrasparaganhara famadeserumaexcelentecompanhiapelorestodeseusanos.”

ONOBRESOLTEIRÃO

OCASAMENTODELORDST.SIMON e seucurioso imhámuitodeixaramdeserassuntode interessenaquelescírculoselevadosemqueo infeliznoivosemovimenta.Novosescândaloseclipsaram-no,eseusdetalhesmaispicantesdesviaram os mexericos desse drama ocorrido já há quatro anos. Comotenhorazõesparaacreditar,porém,queosfatosnuncaforaminteiramentetrazidos a público, e comomeu amigo SherlockHolmes teve considerávelparticipaçãonoesclarecimentodaquestão,parece-mequenenhumrelatode sua vida estaria completo sem um pequeno esboço desse notávelepisódio.

Foi algumas semanas antes de meu próprio casamento, quando euaindapartilhava aposentos comHolmes emBaker Street, que uma tarde,ao voltar de um passeio, ele encontrou uma carta à sua espera sobre amesa. Eu passara o dia todo em casa, porque o tempo tornara-sesubitamentechuvoso,comfortesventosoutonais,eabaladeJezailqueeutrouxera de volta num de meus membros como relíquia de minhacampanha afegã latejava com vaga persistência. Com meu corpo numaespreguiçadeirae aspernas sobreumaoutra, eumeenvolvera comumamontanha de jornais, até que inalmente, saturado das notícias do dia,joguei-os todos de lado e iquei imóvel, observando o timbre e omonograma enormes no envelope sobre a mesa, e perguntandoociosamenteamimmesmoquempoderia seressenobre correspondentedemeuamigo.

“Há aqui uma epístola da maior elegância”, observei quando eleentrou.“Semelembrobem,ascartasquerecebeudemanhãforamdeumpeixeiroedeumfuncionáriodaalfândega.”

“É verdade, minha correspondência tem sem dúvida o encanto davariedade”,respondeuele,sorrindo,“easmaishumildescostumamserasmais interessantes. Istoaquipareceumdesses indesejáveisconvitesparaeventossociaisquenosobrigamanosentediarouamentir.”

Rompeuolacreepassouosolhospeloconteúdo.“Oraveja,nãoéqueistopoderáserevelar,afinal,umacoisainteressante?”

“Nãoéconviteparaumeventosocial,então?”“Não,écoisaindubitavelmenteprofissional.”“Edeumclientenobre?”“UmdosmaisnobresdaInglaterra.”“Entãoaceitemeusparabéns,meucaro.”“Eu lhe garanto, Watson, sem afetação, que o status de meu cliente

tem menos importância para mim que o interesse que seu caso possaapresentar. É possível, contudo, que também isto esteja presente nestanova investigação. Você tem lido os jornais diligentemente nos últimostempos,nãoé?”

“Éoqueparece”,disseeu,apontandoconstrangidoumgrandemontedejornaisnumcanto.“Nãotenhotidomaisnadaparafazer.”

“Éumasorte,porquetalvezvocêpossamecontarasúltimasnotícias.Nãolinadaanãoserasnotíciaspoliciaiseacolunadeanúnciospessoais.Esta última é sempre instrutiva. Mas se você acompanhou os últimosacontecimentos tãoatentamente,deve ter lidosobreLordSt. Simone seucasamento,não?”

“Ahsim,comomaiorinteresse.”“Ótimo.AcartaquetenhoemmãosédeLordSt.Simon.Voulê-lapara

você; em troca, revire todos esses jornais e me informe tudo que digarespeitoaoassunto.Eledizoseguinte:

MEUCAROMR.SHERLOCKHOLMES,LordBackwatermeasseguraquepossocon iarsemreservasemseutirocínioediscrição.Decidi,portanto,recorreraosenhoreconsultá-lono tocante ao evento extremamente penoso que se associou a meucasamento. Mr. Lestrade, da Scotland Yard, já está atuando no caso,maselemegarantequenãovênenhumempecilhoàsuacooperação;achamesmoqueelapoderia serdealgumautilidade. Irei à sua casaàsquatrohorasda tarde; caso tenhaalgumoutrocompromissoparaessa hora, peço-lhe que o adie, pois este assunto é de supremaimportância.

Respeitosamente,ROBERTST.SIMON

Está datada de Grosvenor Mansions, foi escrita com uma pena, e o

nobre Lord teve o dissabor de manchar de tinta o lado externo de seudedomínimodireito”,observouHolmesenquantodobravaacarta.

“Ele diz quatro horas. São três agora. Estará aqui dentro de umahora.”

“Nesse caso tenho apenas tempo su iciente para, com sua ajuda,informar-me sobre o assunto. Examine aqueles jornais e disponha osextratos segundo as datas, enquanto dou uma olhada para ver quem é onossocliente.”Pegouumvolumedecapavermelhadeuma ileiradelivrosdereferênciaao ladodoconsoloda lareira. “Cáestáele”,disse,sentando-seeabrindoovolumesobreosjoelhos.‘LordRobertWalsinghamdeVereSt. Simon, segundo ilho do duque de Balmoral — Hum! Armas: azul-celeste, trêsestrepesnaparte superiordoescudo sobreuma faixa sable.Nascido em1846.’ Temquarenta eumanosde idade, umpoucomadurodemaisparasecasar.FoisubsecretárioparaasColôniasnaAdministraçãoanterior. O duque, seu pai, foi em certa época secretário das RelaçõesExteriores.SãoherdeirosdosanguePlantagenetaporlinhadiretaeTudorpeloramofemininodafamília.Muitobem,nãohánadademuitoinstrutivonisto.Creioquedevorecorreravocê,Watson,paraalgodemaissólido.”

“Tenhomuitopoucadi iculdadeemencontraroquequero”,disseeu,“porque os fatos são muitos recentes e o assunto pareceu-me notável.Preferi nãomencioná-los para você, no entanto, porque sabia que estavanomeiodeumainvestigaçãoenãogostadetersuaatençãodesviadaporoutrosassuntos.”

“Oh, está se referindo ao probleminha do furgão de móveis deGrovesnorSquare.Aquilo jáestácompletamenteelucidado—embora,naverdade, fosse óbvio desde o início. Por favor, dê-me o resultado de suaseleçãodejornais.”

“Aqui está a primeira notícia que consigo encontrar. Está na colunapessoaldoMorningPost,edata,comovê,dealgumassemanasatrás.

Umcasamentofoicombinado[dizemaqui]eterálugar,seosrumoresse con irmarem, dentro em breve entre Lord Robert St. Simon,segundo ilho do duquedeBalmoral, eMissHattyDoran, ilha únicadeAloysiusDoran,Esq.,deSãoFrancisco,Cal.,EUA.

Ésó.”“Conciso e objetivo”, observou Holmes, esticando suas longas e inas

pernasparaofogo.

“Havia um parágrafo ampliando este numa coluna social da mesmasemana.Ah,aquiestá:

Logohaveráumbradoporproteçãonomercadodecasamentos,poiso atual princípio de livre-comércio parece prejudicar gravementenossoprodutonacional.Umaauma,aadministraçãodascasasnobresda Grã-Bretanha está passando às mãos de nossas belas primas dooutro lado do Atlântico. Na última semana, foi feito um importanteacréscimo na lista dos prêmios arrebatados por essas encantadorasintrusas.LordSt.Simon,quedurantemaisdevinteanosdeumostrasde ser à prova das setas do pequeno deus, anunciou agorade initivamente seu próximo casamento com Miss Hatty Doran, afascinante ilha de um milionário da Califórnia. Miss Doran, cujagraciosa igura e rosto admirável atraíram grande atenção nasfestividadesdeWestburyHouse,é ilhaúnicaecorreainformaçãodeque seu dote excederá consideravelmente os seis algarismos, comexpectativas para o futuro. Como é um segredo de polichinelo que oduque de Balmoral foi obrigado a vender suas pinturas nos últimosanos, e como Lord St. Simon não tem nenhum patrimônio, exceto apequena propriedade de Birchmoor, é óbvio que a herdeiracaliforniana não será a única a ganhar com uma aliança que lhepermitirá fazer a passagem fácil e comum de senhora republicanaparaumtítulobritânico.”

“Maisalgumacoisa?”perguntouHolmes,bocejando.“Ah, muita! Há uma outra nota noMorning Post dizendo que o

casamento seria absolutamente discreto, que teria lugar na igreja de St.George, em Hanover Square, que só meia dúzia de amigos íntimos seriaconvidada, e que o grupo retornaria à casa mobiliada que Mr. AloysiusDoran alugou em Lancaster Gate. Dois dias depois — isto é, na últimaquarta-feira—saiuumabrevenotíciadequeocasamentofoirealizadoequea luademelseriapassadanapropriedadedeLordBackwater,pertode Peters ield. Estas são todas as notícias publicadas antes dodesaparecimentodanoiva.”

“Antesdoquê?”perguntouHolmes,sobressaltado.“Dosumiçodajovem.”“Masquandofoiqueeladesapareceu?”“Nodesjejumdocasamento.”

“Realmente! Isso é mais interessante do que prometia; na verdade,bastantedramático.”

“Defatopareceu-meumpouquinhoforadocomum.”“Elascostumamdesaparecerantesdacerimônia,e,umavezououtra,

durante a lua de mel; mas não consigo me lembrar de nada tão rápidoassim.Porfavor,dê-meosdetalhes.”

“Aviso-odesdejáquesãomuitoincompletos.”“Talvezpossamospreenchê-los.”“Defato,elessãoexpostosnumúnicoartigodeumjornalmatutinode

hoje, que lerei para você. O título é ‘Ocorrência singular num casamentoelegante’:

A família de Lord Robert St. Simon foi lançada na mais profundaconsternaçãopelos estranhos e penosos episódiosque tiveram lugarem conexão com seu casamento. A cerimônia, como brevementeanunciadonos jornais de ontem, ocorreunamanhã anterior;mas sóagora foipossívelcon irmarosestranhosrumoresque têmcirculadotão persistentemente. Apesar das tentativas dos amigos de abafar oassunto,elejáatraiutantaatençãopúblicaquedenadaadianta ingirignoraroqueéumtópicocomumdeconversa.Acerimônia,que foi realizadana igrejadeSt.George, emHanover

Square,foimuitodiscreta,semapresençadeninguémsenãoopaidanoiva, Mr. Aloysius Doran, a duquesa de Balmoral, Lord Backwater,LordEustaceeLadyClaraSt. Simon (o irmãomaisnovoe a irmãdonoivo), eLadyAliciaWhittington.Emseguida todoogrupodirigiu-separa a casa de Mr. Aloysius Doran, em Lancaster Gate, onde odesjejum fora preparado. Parece que uma pequena perturbação foicausada por uma mulher, cujo nome não foi possível apurar, quetentou penetrar na casa atrás do grupo de convidados, alegando teralgumdireitosobreLordSt.Simon.Sóapósumalongaepenosacenaela foi expulsa pelo mordomo e o lacaio. A noiva, que felizmenteentrara na casa antes dessa desagradável interrupção, já se sentarapara tomar o desjejum com os demais quando se queixou de umasúbitaindisposiçãoeseretirouparaseuquarto.Comosuaprolongadaausênciaocasionoualgunscomentários,seupaifoitercomela;soubeentão pela criada que ela só passara por seu quarto um instante,pegara um casacão e um chapéu e descera às pressas para ovestíbulo.Umdoslacaiosdeclaroutervistoumasenhoradeixaracasa

assimtrajada,masrecusara-seaacreditarquefossesuapatroa,certode que ela estava com os convidados. Ao veri icar que a ilhadesaparecera, Mr. Aloysius Doran, juntamente com o noivo, entrouimediatamente em contato com a polícia, e estão em cursoinvestigações muito enérgicas que provavelmente resultarão numrápido esclarecimento de todo este caso singular. Ontem, até altashorasdanoite, contudo,nadahavia transpiradoquantoaoparadeirodajovemdesaparecida.Hárumoresdecrimenaquestão,ediz-sequeapolíciaprovidenciou aprisãodamulherque causou aperturbaçãooriginal,nacrençadeque,porciúmeoualgumoutromotivo,elapossaestarenvolvidanoestranhodesaparecimentodanoiva.”

“Elafoiexpulsapelomordomoeolacaio.”[SidneyPaget,StrandMagazine,1892]

“Nãohámaisnada?”“Sóumapequenanotaemoutrojornalmatinal,masésugestiva.”“Quedizela?”“QueMissFloraMillar,adamaqueprovocouodistúrbio,foirealmente

presa.ParecequeéumaantigadanceusedoAllegroeconheceonoivoháalgunsanos.Nãoháoutrospormenores;agoravocêestádepossedetodo

ocaso—namedidaemqueelefoiexpostonaimprensa.”“E parece ser um caso extremamente interessante, eu não o teria

perdido por nada nestemundo.Mas estão tocando a campainha, e passaumpoucodasquatro, peloque vejono relógio.Não tenhodúvidadequeseránossonobrecliente.Nemsonheemseretirar,Watson,porquepre irode longe ter uma testemunha, ainda que seja só para eu poder conferirminhaprópriamemória.”

“LordRobertSt.Simon”,anunciounossomensageiro,abrindoaporta.Entrou um cavalheiro de semblante agradável, re inado, altivo e pálido,comumapontadepetulânciatalveznaexpressãodaboca,eoolhar irmeeabertodeumhomemcujoagradávelquinhãosempreforadarordenseserobedecido.Emborasuasmaneirasfossemvivazes,suaaparênciadavauma indevida impressão de idade, porque era ligeiramente encurvado etinhaos joelhosumpoucovergadosquandoandava. Seu cabelo, também,quandotirouochapéudeabasmuitoreviradas,eragrisalhonastêmporase ralo no alto da cabeça. Quanto a seu traje, era apurado nas raias dajanotice, com colarinho alto, sobrecasaca preta, colete branco, luvasamarelas,sapatosdevernizepolainasclaras.Eleavançoulentamentepelasala,virandoacabeçaàdireitaeàesquerda,balançandonamãodireitaocordãodequependiamseusóculosdourados.

“Boa tarde, Lord St. Simon”, disse Holmes, levantando-se e fazendoumareverência.“Porfavor,sente-senacadeiradevime.Esteémeuamigoe colegaDr.Watson.Aproxime-seumpoucomaisdo fogo, ediscutiremosnossoassunto.”

“Um assunto extremamente penoso para mim, como o senhor podefacilmente imaginar, Mr. Holmes. Estou consternado. Compreendo que jálidou comvários casos delicados dessa espécie, senhor, embora presumaquedificilmenteteriamvindodamesmaclassesocial.”

“Não,estoudescendo.”“Comodisse?”“Meuúltimoclientenumcasodessetipoeraumrei.”“Ah,émesmo?Nãofaziaideia.Equerei?”“OreidaEscandinávia.”“Quecoisa!Amulherdeletinhadesaparecido?”“O senhor pode compreender”, disse Holmes suavemente, “que

estendoaosassuntosdemeuoutroclienteomesmosigiloquelheprometomanternoseu.”

“É claro! Está certo!Muito certo! Aceiteminhas desculpas. Quanto ameu caso, estou pronto a fornecer-lhe qualquer informação que o possaajudaraformarumaopinião.”

“Muitoobrigado.Jámeinteireidetudooqueestánosjornais,demaisnada.Suponhoquepossoconsiderarasinformaçõescorretas…esteartigo,porexemplo,sobreodesaparecimentodanoiva.”

LordSt.Simonpassouosolhosporele.“Sim,écorreto,atéaondevai.”“Masprecisademuitasuplementaçãoparaquesepossaformaruma

opinião. Acredito que posso chegar ameus fatos demaneiramais diretafazendo-lheperguntas.”

“Tenhaabondade.”“QuandoconheceuMissHattyDoran?”“EmSãoFrancisco,umanoatrás.”“EstavaviajandopelosEstadosUnidos?”“Estava.”“Ficounoivonessaocasião?”“Não.”“Mastornaram-seamigos?”“Acompanhiadelamedivertia,eeunãofaziasegredodisso.”“Opaidelaémuitorico?”“DizemqueéohomemmaisricodacostadoPacífico.”“Ecomoeleganhouseudinheiro?”“Namineração.Nãotinhanadaháalgunsanos.Entãodescobriuouro,

investiu-o e desde então vem de vento em popa.” “Agora, qual é suaimpressãopessoalquantoaocaráterdajovem…dasuamulher?”

Onobrepôs-seasacudirosóculosumpoucomaisdepressaebaixouosolhosparao fogo. “Veja,Mr.Holmes,minhamulher já tinhavinteanosquando o pai icou rico. Passou todos esses anos correndo solta numcampodemineração,eperambulandopormatasoumontanhas,demodoque sua educação veio mais da natureza que do mestre-escola. Ela temmuitodeummenino,um temperamento forte, insubordinadoe livre, semqualquertipodetradiçãoparacoibi-lo.Éimpetuosa…euiadizervulcânica.Toma suas decisões rapidamente, e as leva a cabo semmedo. Por outrolado, eu não lhe teria dado o nome que tenho a honra de possuir” (deuuma tossidela altiva) “se não pensasse que ela é no fundo uma mulhernobre. Acredito que é capaz de sacri ícios heroicos, e que tudo que é

desonrosolheseriarepugnante.”“Temumafotografiadela?”“Trouxe uma comigo.” Abriu ummedalhão emostrou-nos o rosto de

umalindamulher.Nãoeraumafotogra ia,masumaminiaturademar im,eoartistatiraraomelhorpartidodalustrosacabeleiranegra,dosgrandesolhos escuros e da boca delicada. Holmes contemplou-a longa egravemente.Depoisfechouomedalhãoedevolveu-oaLordSt.Simon.

“AjovemveioaLondres,então,eosdoissereencontraram?”“Sim, seu pai a trouxe para esta última temporada em Londres.

Encontrei-aváriasvezes,ficamosnoivosenoscasamos.”“Elatrouxe,peloqueentendi,umdoteconsiderável?”“Umbomdote.Nãomaisdoqueécostumeemminhafamília.”“E este, é claro, ica com o senhor, já que o casamento é um fait

accompli,não?”“Realmentenãoprocureiapuraresseassunto.”“Énatural.EstevecomMissDorannavésperadocasamento?”“Estive.”“Estavaanimada?”“Mais que nunca. Não parava de falar sobre o que faria em nossas

futurasvidas.”“Realmente!Issoémuitointeressante.Enamanhãdocasamento?”“Estava tão radiante quanto possível… pelo menos até depois da

cerimônia.”“Osenhorobservoualgumamudançanelaentão?”“Bem, para lhe dizer a verdade, vi então os primeiros sinais que

jamais vira de que seu temperamento era um pouquinho brusco. Mas oincidente foi banal demais para ser relatado e não pode ter nenhumarelaçãocomocaso.”

“Ocavalheiroqueestavanobancoentregou-lheobuquê.”[SidneyPaget,StrandMagazine,1892]

“Porfavor,mesmoassimconte-nosoqueaconteceu.”“Oh, é infantil. Ela deixou cair o buquê quando nos dirigíamos à

sacristia. Ele caiu sobre o banco da frente. Houve uma demora de uminstante,masocavalheiroqueestavanobancoentregou-lheobuquê,quenãopareceuafetadopelaqueda.Masquando lhe faleidoassunto,elamerespondeu com rispidez; e na carruagem, de volta para casa, pareceuabsurdamenteagitadaporessarazãoinsignificante.”

“Realmente. O senhor diz que havia um cavalheiro no banco. Haviapessoasdopovopresentes,então?”

“Ahsim.Éimpossívelexcluí-lasquandoaigrejaestáaberta.”“Essecavalheironãoseriaumdosamigosdesuamulher?”“Não,não;chamo-odecavalheiroporcortesia,maseraumapessoade

aspectomuitocomum.Malnoteisuaaparência.Maspensorealmentequeestamosnosafastandomuitodoqueinteressa.”

“Portanto,LadySt.Simonretornoudocasamentonumadisposiçãodeânimomenosalegredoquerumaraparaele.Quefezelaaoentrarnacasadopai?”

“Euaviconversandocomacriada.”

“Equemeraessacriada?”“Chama-seAlice.Éamericana;veiodaCalifórniacomela.”“Umacriadaparticular?”“Sim, e tenho a impressão de que sua ama lhe permitia tomar

liberdades demais. É bemverdadequenosEstadosUnidos eles encaramessascoisasdeumamaneiradiferente.”

“PorquantotempoelaconversoucomessaAlice?”“Ah,algunsminutos.Eutinhamaisemquepensar.”“Nãoouviucoisaalgumadoquediziam?”“Lady St. Simon disse algo sobre ‘grilar uma concessão’. Estava

habituadaausargíriasdessetipo.Nãofaçoideiadoquequeriadizercomisso.”

“Agíriaamericanaémuitoexpressivaàsvezes.Equefezsuamulherquandoacaboudefalarcomsuacriada?”

“Entrounasaladedesjejum.”“Debraçocomosenhor?”“Não,sozinha.Eramuitoindependenteempequenascoisasdessetipo.

Depois, quando estávamos sentados havia uns dez minutos, levantou-seafobada,murmuroualgumaspalavrasdedesculpase saiuda sala.Nuncavoltou.”

“Masessacriada,Alice,peloqueentendi,declaraquefoiaseuquarto,cobriu seu vestido de noiva com um longo sobretudo, pôs um chapéu esaiu.”

“Exatamente.E foivistadepoiscaminhandonadireçãodoHydeParknacompanhiadeFloraMillar,umamulherqueestádetidaagoraequejáhaviaprovocadoumtranstornonacasadeMr.Dorannaquelamanhã.”

“Ah,sim.Gostariadealgunsdetalhessobreessajovemesuasrelaçõescomela.”

LordSt.Simonsacudiuosombroselevantouassobrancelhas.“Fomosamigosdurantealgunsanos…possodizerquefomosamigosmuitoíntimos.Ela costumava se apresentar no Allegro. Não a tratei de maneira poucogenerosaeelanãotinhanenhumacausajustadequeixacontramim,maso senhor sabe como são asmulheres,Mr. Holmes. Flora era uma pessoaencantadora,masexcessivamenteimpetuosaedevotamente ligadaamim.Escreveu-me cartas horríveis quando ouviu falar do casamento, e, paradizeraverdade,oquemelevouapreferircasamentotãodiscretofoimeu

medodeumescândalona igreja.ElaapareceuàportadeMr.Doran logodepois que voltamos e tentou forçar sua entrada, pronunciandoexpressõesmuitoofensivasemrelaçãoaminhaesposaeatéameaçando-a,mas eu previra a possibilidade de um incidente desse gênero e derainstruçõesaoscriados,quearepeliramsemdemora.Quandoviuquenãoadiantavafazerbalbúrdia,elasossegou.”

“Suamulherouviutudoisso?”“Não,graçasaDeusnão.”“Emaistardeviram-naandandocomessamesmamulher?”“Sim. É isso queMr. Lestrade, da Scotland Yard, considera tão sério.

Pensa-se que Flora atraiu minha mulher para fora e preparou algumaarmadilhaterrívelparaela.”

“Bem,éumasuposiçãopossível.”“Pensaissotambém?”“Não disse que seja provável. Mas e o senhor? Considera isso

provável?”“Paramim,Floranãofariamalaumamosca.”“Mesmo assim, o ciúme pode causar estranhas transformações num

caráter. Diga-me, por favor, qual é sua própria teoria quanto ao queaconteceu?”

“Bem,naverdadevimaquiembuscadeumateoria,nãoparaproporalguma. Narrei-lhe todos os fatos. Já queme pergunta, no entanto, possolhedizerquemepassoupelacabeçacomopossívelqueoalvoroçofeitoemtorno desse casamento, sua percepção de que ascendera socialmente demaneira tão imensa, causou algum pequeno distúrbio nervoso emminhamulher.”

“Emsuma,queelaenlouqueceuderepente?”“Bem, realmente, quando considero que deu as costas… não digo a

mim,masatantascoisasaquemuitosaspiraramsemsucesso…parece-medifícilexplicarissodealgumaoutramaneira.”

“Bem, sem dúvida essa também é uma hipótese concebível”, disseHolmes,sorrindo.“Eagora,LordSt.Simon,creioquetenhoquasetodososmeusdados.Possolheperguntarseolugaremqueestavasentadoàmesadocafédamanhãlhepermitiaolharpelajanela?”

“Podíamosverooutroladodarua,eoparque.”“Naturalmente.Entãonãomeparecequeprecisodetê-lomais tempo.

Entrareiemcontatocomosenhor.”“Esperoquetenhaaboasortederesolveresteproblema.”“Jáoresolvi.”“Hã?Quedisse?”“Dissequejáoresolvi.”“Nessecaso,ondeestáaminhamulher?”“Esseéumdetalhequelhefornecereijá,já.”Lord St. Simon sacudiu a cabeça. “Temo que sejam necessárias

cabeçasmaissensatasqueasuaouaminha”,observou,eapóscurvar-sedeumamaneirasolene,antiquada,saiu.

“Lord St. Simon faz uma grande honra à minha cabeça pondo-a nomesmonívelqueadele”,disseSherlockHolmes,rindo.“Achoquetomareium uísque com soda e fumarei um charuto depois de todo esseinterrogatório.Euhaviachegadoàminhaconclusãosobreocasoantesquenossoclienteentrassenestasala.”

“MeucaroHolmes!”“Tenhoanotaçõesdevárioscasossemelhantes,emboranenhum,como

observei antes, que tenha sido tão rápido. Todas as minhas perguntasserviram para transformar minha conjectura em certeza. Provascircunstanciais são por vezes muito convincentes, como quando seencontraumatrutanoleite,paracitaroexemplodeThoreau.”

“Maseuouvitudoquevocêouviu.”“Sem ter, contudo, o conhecimento de casos anteriores queme é tão

útil.HouveumcasoanálogoemAberdeenalgunsanosatrás,ealgomuitoparecido em Munique um ano após a Guerra Franco-Prussiana. É umdessescasos…mas,oravejam,cáestáLestrade!Boatarde,Lestrade!Vocêencontraráumcopoextrasobreoaparadorehácharutosnacaixa.”

O detetive o icial envergava japona e cachecol, que lhe davam umaaparência indubitavelmente náutica, e trazia na mão uma bolsa de lonapreta.Sentou-secomumbrevecumprimentoeacendeuocharutoquelheforaoferecido.

“E então, que aconteceu?” perguntou Holmes com uma piscadela.“Pareceinsatisfeito.”

“E sinto-me insatisfeito. É esse caso infernal do casamento de St.Simon.Onegóciomeparecesempénemcabeça.”

“Émesmo?Vocêmesurpreende.”

“Quem já ouviu falar de história mais complicada? Todas as pistasparecem escorregar entre meus dedos. Passei o dia todo trabalhandonele.”

“E issoparece tê-lodeixadomuitomolhado”,disseHolmes, tocandoobraçodajapona.

“Éverdade,andeidragandooSerpentine.”“SantoDeus,paraquê?”“ÀprocuradocorpodeLadySt.Simon.”SherlockHolmesrecostou-seemsuacadeiraedeuumagargalhada.“DragoutambémabaciadafontedeTrafalgarSquare?”perguntou.“Porquê?Quequerdizer?”“Porque tem tanta chance de encontrar esta senhora num lugar

quantonooutro.”Lestrade fuziloumeu companheiro comos olhos. “Suponhoque você

saibatudosobreisso”,rosnou.“Bem,acabodeouvirosfatos,masjátireiminhaconclusão.”“Émesmo? Então pensa que o Serpentine não desempenha nenhum

papelnoassunto?”“Pensoqueissoémuitoimprovável.”“Nesse caso, pode me fazer a gentileza de explicar por que cargas

d’água encontramos isto lá dentro?” Enquanto falava, abriu sua bolsa ejogounoassoalhoumvestidodenoivadeseda,umpardesapatosbrancosdecetim,umagrinaldaeumvéu, tudodesbotadoeencharcado. “Aíestá”,disse, pondo uma aliança nova em folha em cima domonte. “Aí está umprobleminhaparavocêresolver,MestreHolmes.”

“Oh,quecoisa”,dissemeuamigo,soprandoanéisazuisde fumaçanoar.“DragouissotudodoSerpentine?”

“Não. Foram encontrados boiando perto damargem por um zeladordoparque.Foramidenti icadascomoasroupasdela,epareceu-mequeseasroupasestavamláocorponãodeviaestarmuitolonge.”

“Pelomesmo brilhante raciocínio, o corpo de todas as pessoas seriaencontrado na vizinhança de seu guarda-roupa. Mas diga-me, aondeesperavachegaratravésdisso?”

“AalgumaprovaqueenvolvesseFloraMillarnodesaparecimento.”“Temoqueissosemostredifícil.”“Verdade?” exclamou Lestrade com alguma acrimônia. “E eu temo,

Holmes,quevocênãosejamuitoprático,comtodasessassuasdeduçõeseinferências. Cometeu duas tolices em dois minutos. Este vestido envolveMissFloraMillar,sim.”

“Como?”“Há um bolso no vestido. No bolso há uma carteira para cartões de

visita. Na carteira há umbilhete. Aqui está o próprio bilhete.” Bateu comelenamesadiantedesi.“Ouçaisto:

Estareicomvocêquandotudoestiverpronto.Venhajá.

F.H.M.

Poisbem,minhateoriafoisemprequeLadySt.SimonfoivítimadeumengodoarmadoporFloraMillar,equeesta,certamentecomcúmplices,foiresponsável pelo seu desaparecimento. Aqui, assinado com suas iniciais,estáoprópriobilhetequesemdúvidafoisilenciosamentepassadoparaasmãosdelaàporta,equeaatraiueapôsàmercêdeles.”

“‘Aíestá’,disse.”[SidneyPaget,StrandMagazine,1892]

“Muito bem, Lestrade”, disse Holmes, rindo. “Você de fato é muitoperspicaz.Deixe-mevê-lo.”Pegouopapelcomarindiferente,maslogoalgolhechamouaatençãoeo fezsoltarumgritinhodecontentamento. “Istoé

realmenteimportante”,disse.“Ah,achamesmo?”“Extremamenteimportante.Euocongratulocalorosamente.”Lestrade levantou-se em seu triunfo e curvou a cabeça para olhar.

“Ora!”exclamou,“estáolhandooladoerrado!”“Aocontrário,esteéoladocerto.”“O lado certo? Está louco! Aqui está o bilhete escrito a lápis, deste

lado.”“Eaquiestáoquepareceserofragmentodeumacontadehotelque

meinteressaprofundamente.”“Não há nada aí. Eu olhei antes”, disse Lestrade, “‘4/10, quartos 8x.,

desjejum2x. e6p., coquetel 1x., almoço2x. e 6p., copode xerez, 8p.’Nãovejonadaaí.”

“É muito compreensível. Apesar disso, é de extrema importância.Quantoaobilhete,é importantetambém,oupelomenosas iniciaissão,demodoqueoparabenizodenovo.”

“Jáperdi tempodemais”,disseLestrade, levantando-se. “Acreditoemtrabalhoárduo,nãoem icarsentadoaopédo fogo tecendobelas teorias.Tenhaumbomdia,Mr.Holmes,everemosquemtiraestaquestãoalimpoprimeiro.”Apanhouaspeçasde roupa, jogou-asnabolsae rumouparaaporta.

“Sóumapistaparavocê,Lestrade”,disseHolmes,comvozarrastada,antesqueseurivaldesaparecesse;“voulhecontaraverdadeirasoluçãodoproblema. Lady St. Simon é um mito. Essa pessoa não existe, e nuncaexistiu.”

Lestrade lançou um olhar tristonho para meu companheiro. Depoisvirou-se para mim, deu três tapinhas na testa, sacudiu a cabeçasolenementeefoiemboraatodapressa.

Mal ele fechara a porta atrás de si, Holmes levantou-se e vestiu seusobretudo.“Essesujeitotemalgumarazãonoquedizsobretrabalhoaoarlivre”, comentou, “por isso,Watson, creio que devo deixá-lo algum tempocomseusjornais.”

PassavadascincohorasquandoSherlockHolmesmedeixou,masnãotive tempodeme sentir só, porquemenos de umahora depois chegou oempregadodeumaconfeitariacomumacaixachataemuitogrande.Abriu-acomaajudadeumrapazolaquetrouxeraconsigo,e,numinstante,parameu grande espanto, uma pequena e deliciosa ceia fria começou a ser

posta sobre a humildemesa demogno de nosso apartamento. Havia umpar de galinhas-d’angola frias, um faisão, uma torta depâté de foie gras ,comumgrupodegarrafasvelhasecobertasdeteiasdearanha.Depoisdearrumar namesa todos esses requintados acepipes,meus dois visitantesdesapareceram, como os gênios das Noites Árabes, sem nenhumaexplicaçãoanãoseradequeestavatudopagoe foraencomendadoparaaquele endereço. Pouco antes das nove horas, Sherlock Holmes chegouafobado.Suaexpressãoeragrave,mashavianosseusolhosumbrilhoquemefezpensarquenãoforaobrigadoareversuasconclusões.

“Entãoarrumaramaceia”,disse,esfregandoasmãos.“Peloqueparece,vocêesperaconvidados.Puseramamesaparacinco

pessoas.”“Sim, imagino que poderemos receber algumas visitas. Surpreende-

mequeLordSt.Simonaindanãotenhachegado.Ah!Tenhoaimpressãodequesãoospassosdelequeouçonaescada.”

Foidefatonossovisitantedatardequeentroualvoroçado,sacudindoseusóculosmaisvigorosamentedoquenunca,ecomumaexpressãobemperturbadaemseustraçosaristocráticos.

“Entãomeumensageirooencontrou?”perguntouHolmes.“Sim, e confesso que o conteúdo me deixou pasmo. Tem de fato

fundamentosparaoquediz?”“Osmelhorespossíveis.”LordSt.Simoncaiuderreadonumacadeiraepassouamãonafronte.

“Quediráoduque”,murmurou,“quandoouvirfalarquealguémdafamíliafoisubmetidoasemelhantehumilhação?”

“É o mais puro acaso. Não posso concordar em que tenha havidoqualquerhumilhação.”

“Ah,osenhorencaraessascoisasdeumoutropontodevista.”“Não consigo perceber que haja alguém a ser censurado. Tenho

di iculdadeem imaginardequeoutramaneiraa jovempoderia teragido,emboraométodoabruptoqueusoudevasemdúvidaser lamentado.Nãotendomãe,elanãotinhaninguémparaaconselhá-laemtalcrise.”

“Foi um vexame, senhor, um vexame público”, disse Lord St. Simon,batendoodedonamesa.

“O senhor deve desculpar essa pobremoça, posta numa posição tãosemprecedentes.”

“Não desculparei nada. Estou realmente muito enraivecido; fuivergonhosamenteusado.”

“Parece que ouvi a campainha”, disse Holmes. “Sim, ouço passos nopatamar. Se não posso convencê-lo a encarar a questão com tolerância,LordSt. Simon, trouxeaquiumadvogadoque talvez tenhamais sucesso.”Abriu a porta e fez entrarem uma senhora e um cavalheiro. “Lord St.Simon”,disse,“permita-meapresentar-lheMr.eMrs.FrancisHayMoulton.Pensoquejáconheceasenhora.”

À vista dos recém-chegados nosso cliente deu um pulo da cadeira epostou-se muito ereto, os olhos baixos e a mão en iada no peito dasobrecasaca, a imagem da dignidade ofendida. A senhora se adiantararapidamenteelheestenderaamão,maseleserecusoualevantarosolhos.Sequeriasustentarsuaresolução, fezbem,porquetalvez lhe tivessesidodifícilresistiràfisionomiasuplicantedela.

“Está zangado, Robert”, disse ela. “Bem, imagino que tenha muitasrazõesparaestar!”

“Porfavornãomepeçadesculpas”,disseLordSt.Simonasperamente.“Oh,sim,seiqueotrateimuitomalequedeviaterlhefaladoantesde

partir,maseuestavaatônita;domomentoemqueviFrankaquidenovo,simplesmente não soubemais o que estava fazendo ou dizendo. Não seicomonãodesmaieiecaínochãoalimesmodiantedoaltar.”

“Talvez,Mrs.Moulton, pre ira que eu emeu amigo nos retiremos dasalaenquantoexplicaoqueaconteceu.”

“Sepossodarminhaopinião”,observouocavalheirodesconhecido,“játivemos um pouco de sigilo demais em todo este caso. De minha parte,gostaria que toda a Europa e os Estados Unidos icassem sabendo daverdadedos fatos.”Eraumhomembaixo,magromasvigoroso,queimadodesol,comumsemblantevivoemaneiraságeis.

“Então vou contar a nossa história agora mesmo”, disse a senhora.“Frank e eu nos conhecemos em 1881, no campo deMcQuire, perto dasMontanhasRochosas, ondemeupai trabalhava numa concessão. Ficamosnoivos,Frankeeu;masentãoumbelodiameupaidescobriuumveioricoe ganhou uma dinheirama, enquanto o pobre Frank aqui tinha umaconcessãoqueacabounãodandocoisaalguma.Quantomais ricomeupaificava,maispobreficavaFrank;assim,finalmentemeupaiquisnosobrigara romper o noivado e levou-me para Frisco. Mas Frank não perdeu aesperança; seguiu-me até lá e foime ver semquemeu pai soubesse. Ele

teria icado louco se soubesse, assim nós dois resolvemos tudo sozinhos.Frankdisseque iria fazersua fortunaenuncavoltariaantesdeestar tãorico quanto meu pai. Prometi então que esperaria por ele por todo osempre, e jurei que jamais me casaria com nenhum outro enquanto elevivesse. ‘Nesse caso, porquenãonos casamos imediatamente?’ disse ele,‘assim icarei seguro de você; e só me apresentarei como seu maridodepois que voltar.’ Bem, discutimos esse assunto, e ele tinha combinadotudo tão bem, com um clérigo já à espera, que nos casamos ali mesmo;depoisFrankpartiuembuscadesuafortunaeeuvolteiparameupai.

“A notícia seguinte que tive de Frank foi que estava em Montana,depois que estava garimpando no Arizona, e depois ainda que estava noNovoMéxico.Maistardechegouumalongareportagemdejornalsobreumcampodemineirosquesofreraumataquedeíndiosapaches,eonomedemeuFrankestavaentreosmortos.Desmaieiepasseiváriosmesesmuitodoente. Meu pai pensou que eu estava sendo consumida por algumadoençaelevou-meàmetadedosmédicosdeFrisco.Comodurantemaisdeumanonãotivemaisnenhumanotícia,nuncaduvideiqueFrankestivesserealmentemorto.EntãoLordSt.SimonfoiaFrisco,nósfomosaLondres,eumcasamentofoiarranjado.Meupaiestavamuitosatisfeito,maseusentiao tempo todoquenenhumhomemnesta terra jamais tomariao lugar emmeucoraçãoquehaviasidodadoameupobreFrank.

“Apesardisso,setivessemecasadocomLordSt.Simoneucertamentecumpriria meus deveres para com ele. Não temos domínio sobre nossoamor,maspodemostersobrenossasações.Fuiatéoaltarcomaintençãode ser para ele uma esposa tão boa quanto me fosse possível. Mas ossenhores podem imaginar o que senti quando, no instante em quechegamosàsgradesdoaltar,olheiparatráseviFrankdepéolhandoparamim no primeiro banco. De início pensei que era um fantasma; masquandoolheidenovoelecontinuavalá,comumaespéciedeperguntanosolhos,comosequerendosaberseeuestavafelizoutristeporvê-lo.Nãoseicomonãocaí.Seiquetudocomeçouagiraràminhavolta,easpalavrasdoclérigoeramexatamentecomoumzumbidodeabelhasnosmeusouvidos.Não sabia o que fazer. Deveria parar a cerimônia e fazer uma cena naigreja? Olhei para ele de novo, e ele parecia saber o que eu estavapensando, porque levou o dedo aos lábios parame dizer que icasse emsilêncio.Depoisviquerabiscavanumpedaçodepapel,esabiaqueestavaescrevendoumbilheteparamim.Quandopasseipor seubancopara sairda igreja joguei-lhemeubuquê;aomedevolveras lores,eleen iou-meo

bilhete na mão. Era só uma linha, pedindo que fosse ao seu encontroquando ele me izesse um sinal, chamando-me. É claro que não duvideinem por um segundo que meu maior dever agora era para com ele, edecidifazerexatamentetudoquemandasse.

“Quandovoltei,conteiàminhacriada,queoconheceranaCalifórniaesempre foraamigadele.Dei-lheordemdenãodizernadaaninguém,pôralgumascoisasnumamaletaparamimedeixarmeusobretudopronto.Seique devia ter falado com Lord St. Simon,mas seria extremamente di ícil,diantedesuamãeedetodasaquelaspessoasimportantes.Nãofaziamaisque dezminutos que estávamos àmesa quando vi Frank pela janela, dooutro lado da rua. Ele me fez um sinal e pôsse a andar na direção doparque. Esgueirei-me da sala, vesti o sobretudo, pus o chapéu e o segui.Apareceu umamulher, falando alguma coisa sobre Lord St. Simon… pelopouco que ouvi, parece que ele também tinha um segredinho antes docasamento… mas consegui me desvencilhar dela e logo alcancei Frank.Entramosjuntosnumcarrodealugueleseguimosparaaposentosqueelealugara em Gordon Square, e esse foimeu verdadeiro casamento depoisde todos aqueles anos de espera. Frank fora prisioneiro dos apaches,fugira, foraaFrisco,descobriraqueeuodavapormortoeviajaraparaaInglaterra, seguira-me até aqui, e inalmente encontrara-me na manhãmesmademeusegundocasamento.”

“Apareceuumamulher,falandosobreLordSt.Simon…”[SidneyPaget,StrandMagazine,1892]

“Vi num jornal”, explicou o americano. “Dizia o nome e a igreja,masnãodavaoendereçodanoiva.”

“Tivemos então uma conversa sobre o que deveríamos fazer. Frankqueria que tudo fosse esclarecido, mas eu estava tão envergonhada detudo aquilo que minha vontade era desaparecer e nunca mais vernenhumadaquelaspessoasdenovo.Mandariaapenasumacartinhaparameupai, talvez, para lhemostrar que estava viva. Era horrível paramimpensar em todos aqueles lordes e ladies sentados em volta da mesa dodesjejumà esperademinhavolta. Por issoFrankpegou todas asminhasroupaseacessóriosdecasamento,fezumatrouxacomeles,paraquenãopudessem me seguir, e jogou-os num lugar onde ninguém poderiaencontrá-los. Provavelmente teríamos ido para Paris amanhã, mas essebom cavalheiro, Mr. Holmes, foi nos visitar esta noite… embora eu nãoconsiga nem imaginar comonos descobriu… emostrou-nosmuita clara emuito delicadamente que eu estava errada e Frank certo, e quecometeríamosumatocondenávelsemantivéssemostantosigilo.Ofereceu-nos então uma chance de conversar a sós com Lord St. Simon, e assimviemos diretamente para cá. Agora, Robert, você ouviu tudo. Lamentomuitoseofizsofrereesperoquenãopensemuitomaldemim.”

Lord St. Simon não havia relaxado em nada sua postura rígida, eouviraessalonganarrativacomatestafranzidaeoslábiosapertados.

“Desculpe-me”, disse ele, “mas não é meu costume discutir meusassuntospessoaismaisíntimosdestamaneirapública.”

“Então não me perdoará? Não apertará minha mão quando eu mefor?”

“Ah,certamente,seissopodelhedaralgumprazer.”Estendeuamãoeapertoufriamenteadela.

“Euachava”,sugeriuHolmes,“quetodossejuntariamanósparaumaceiaentreamigos.”

“Parece-mequeosenhorestápedindoumpoucodemais”,respondeuo lorde. “Posso ser obrigado a suportar estes recentes desdobramentos,mas realmente não se pode esperar que os festeje. Penso que, com suapermissão, vouagoradesejarmeumuitoboanoitea todos.” Incluiu-nosatodosnumasóreverênciaedeixouasalacompassosempertigados.

“Nessecaso,esperoquepelomenosossenhoresmehonremcomsuacompanhia”,disseSherlockHolmes. “É sempreumaalegriaencontrarumamericano, Mr. Moulton, pois sou um daqueles que acreditam que a

insensatez de ummonarca e as asneiras de umministro não impedirãonossos ilhos de serem um dia cidadãos de ummesmo país de extensãomundial sob uma bandeira que será um aquartelamento do pavilhão doReinoUnidocomabandeiraamericana.”

“Este foi um caso interessante”, comentou Holmes quando nossosvisitantes nos deixaram, “porque serve para mostrar muito claramentecomopodesersimplesaexplicaçãodeumproblemaqueàprimeiravistaparece quase inexplicável. Nada poderia ser mais natural do que asequência de acontecimentos tal comonarrada por essa senhora; e nadamais estranho que o resultado quando visto, por exemplo, por Mr.LestradedaScotlandYard.”

“Entãovocêmesmonãosedeixouenganar?”“Desde o início, dois fatos foram óbvios para mim. Um, que a noiva

forademuitobomgradoparaacerimôniadecasamento;outro,queelasearrependera disso minutos após voltar para casa. Obviamente, portanto,alguma coisa acontecera durante a manhã para fazê-la mudar de ideia.Que coisa poderia ser essa? Ela não poderia ter falado com ninguémduranteotempoquepassouforadecasa,porqueestavanacompanhiadonoivo. Tinha então visto alguém? Se tinha, devia ser alguém dos EstadosUnidos,porquepassaratãopoucotemponessepaísquedi icilmenteteriapermitidoaumapessoaadquirirtamanhain luênciasobreelaqueomerofato de vê-la a induziria a mudar seus planos tão completamente. Comoveem, já chegamos, por um processo de exclusão, à ideia de que elapoderiatervistoumamericano.Quempoderiaentãoseresseamericano,eporqueeleteriatãograndein luênciasobreela?Poderiaserumamante;poderiaserummarido.Elapassaraainfância,eusabia,emcenáriosrudese sob estranhas condições. Eu chegara até aí antes mesmo de ouvir anarrativa de Lord St. Simon. Quando ele nos falou de um homem numbanco, da mudança das maneiras da noiva, de uma maneira tãotransparentedereceberumbilhetequantodeixarcairumbuquê,dasuaconversa coma criadaparticularedaalusãomuito claraqueela izeraa‘grilarumaconcessão’,quenalinguagemdosmineirossigni icaapossar-sede algo a que outra pessoa tem direitos anteriores, toda a situação icouabsolutamenteclara.Elafugiracomumhomem,eohomemeraumamanteouummaridoanterior,maisprovavelmenteummarido.”

“Mascomoconseguiuencontrá-los?”“Poderiatersidodifícil,masnossoamigoLestradetinhaemsuasmãos

informaçõesdecujovalorelemesmosequersuspeitava.Asiniciaiseram,é

claro, da maior importância, mas ainda mais importante era saber quefazia menos de uma semana que ele pagara sua conta num dos maisseletoshotéisdeLondres.”

“Comodeduziuqueeraseleto?”“Pelos preços seletos. Oito xelins por um quarto e oitopence por um

copodexerezapontavamparaumhoteldosmaiscaros.NãohámuitosemLondresquecobremtãocaro.NosegundoquevisiteiemNorthumberlandAvenue, iqueisabendoporumexamedolivroqueFrancisH.Moulton,umcavalheiroamericano, saíranavésperae, ao consultaros itenspagos,deicomosmesmos,queviranaduplicatadaconta.SuascartasdeveriamserremetidasparaGordonSquaren o226;portantoparalámedirigi,e,tendotidoasortedeencontrarocasaldepombinhosemcasa,ouseidaraosdoisalguns conselhos paternais emostrar-lhes que seriamelhor sob todos osaspectos que tornassem sua situação um pouco mais clara, tanto para opúblico em geral quanto para Lord St. Simon em particular. Convidei-osparaencontrá-loaquie,comoviu,trateidetrazê-lotambém.”

“Mas sem resultados lá muito bons”, comentei. “A conduta delecertamentenãofoimuitomagnânima.”

“Ah,Watson!”disseHolmes,sorrindo.“Talvezvocêtambémnãofossemuito magnânimo se, após o trabalho de fazer a corte e se casar, sedescobrisse privado de repente de mulher e de fortuna. Penso quedevemos julgar Lord St. Simon com muita misericórdia e agradecer àsestrelaspornãocorrermosnenhumriscodenosencontrarmosumdianamesma situação. Chegue sua cadeiramais para perto, e passe-me omeuviolino, pois o único problema que ainda temos de resolver é como nosentreterduranteestasfriasnoitesdeoutono.”

ODIADEMADEBERILOS

“HOLMES”, DISSE EU UMA MANHÃ , quando contemplava Baker Street de nossasacada projetada. “Ali vem um louco. Parece-me deplorável que seusparenteslhepermitamsairsozinho.”

Meu amigo levantou-se preguiçosamente de sua poltrona e, com asmãos nos bolsos do roupão, olhou sobre o meu ombro. Era uma manhãradiante de fevereiro e a neve da véspera ainda se acumulava no chão,espessa, rebrilhando ao sol de inverno. No centro de Baker Street, elahavia sido arada pelo tráfego e transformara-se numa faixa marromesfarelada,mas dos dois lados e nosmontes acumulados nas bordas dospasseiosaindaestava tãobrancaquantoaocair.Acalçadacinzentahaviasido raspada e limpa, mas continuava perigosamente escorregadia, demodoquehaviamenospassageirosquedecostume.Naverdade,nãohavianinguém vindo da direção da estação do Metropolitano, a não ser opequenocavalheirocujacondutaatraíraminhaatenção.

Eraumhomemdeuns cinquentaanos, alto, corpulentoe imponente,comumrostogrande,detraçosforteseuma iguraqueimpunharespeito.Estavavestidonumestilosóbriomascaro,comumasobrecasacapreta,umchapéu lustroso, polainas castanhas impecáveis e calças cinza-pérola debom corte. Suas ações, no entanto, faziam absurdo contraste com adignidade de seus trajes e feições, porque ele corria desabalado, dandopulinhos de quando em quando, como faz um homem fatigado que estápoucoacostumadoaexigiralgumacoisadesuaspernas.Enquantocorria,elesacudiaasmãosparacimaeparabaixo,meneavaacabeçaeretorciaorostonosmaisextraordináriosesgares.

“Que diabos pode estar havendo com ele?” perguntei. “Está olhandoparaosnúmerosdascasas.”

“Creioqueestávindoparacá”,disseHolmes,esfregandoasmãos.“Paracá?”“Sim; mais precisamente, penso que está vindo me consultar

pro issionalmente. Acho que reconheço os sintomas. Ah! Não disse?”

Enquanto ele falava, o homem, pondo os bofes pela boca, correu paranossaporta,epuxounossacampainhaatéqueelaressoounacasainteira.

Alguns momentos depois estava em nossa sala, ainda esbaforido,aindagesticulando,mascomumolhartão ixoetala liçãoedesesperonosolhos que nossos sorrisos transformaram-se num instante em horror epiedade. Durante algum tempo não conseguiu articular uma só palavra,balançandoo corpoepuxandoos cabelos comoalguémque foi levadoàsraiasdainsânia.Depois,levantando-sedeumpulo,bateuacabeçacontraaparedecomtalforçaquenósdoiscorremosparaeleeoarrastamosparaocentrodasala.SherlockHolmesforçou-oasentar-senaespreguiçadeirae,sentando-se a seu lado, deu-lhe palmadinhas na mão e falou-lhe com aentonaçãobranda,tranquilizadora,quesabiatãobemempregar.

“Osenhorveioatémimparacontarsuahistória,nãofoi?”disse.“Estáfatigadocomsuapressa.Por favor,espereaté recuperar-se;então icareiextremamente feliz em examinar qualquer probleminha que possa mesubmeter.”

O homem icou ali sentado por umminuto oumais, arfando, lutandocontrasuaemoção.Depoispassouolençopelatesta,apertouoslábiosesevirouparanós.

“Certamenteestãopensandoquesoulouco,nãoé?”“Vejo que o senhor atravessou uma grande di iculdade”, respondeu

Holmes.“Deussabequesim!…Umadi iculdadetãorepentinaeterrívelqueé

su iciente para me perturbar o juízo. A desonra pública eu poderia terencarado, embora seja um homem cujo caráter até hoje permaneceuilibado.Aafliçãoprivadaétambémalgoquetodohomemenfrenta.Asduasjuntas,porém,edeumaformatãomedonha,foramobastanteparaabalarminha própria alma. Além disso, não estou sozinho. Os mais nobres daterrapoderãoserafetados,amenosqueseencontreumasaídaparaessehorrívelnegócio.”

“Por favor, acalme-se, senhor”, disse Holmes, “e faça-me um relatoclarodequeméedoquelheaconteceu.”

“Os senhores provavelmente me conhecem de nome”, respondeunosso visitante. “Sou Alexander Holder, da irma bancária Holder &Stevenson,deThreadneedleStreet.”

De fato conhecíamos bem aquele nome como pertencente ao sócioprincipaldasegundamaiorempresabancáriaprivadadaCitydeLondres.

Que poderia ter acontecido, então, para levar um dos mais famososcidadãos de Londres àquela deplorável situação? Esperamos, cheios decuriosidade,atéque,commaisumesforço,elesearmoudecoragemparacontarsuahistória.

“Sintoqueotempoévalioso”,disse,“foipor issoquemeapresseiemvir aqui quando o inspetor de polícia sugeriu que deveria obter suacooperação. Vim a Baker Street pelo metrô e corri de lá até aqui a pé,porqueoscarrosdealuguelavançamdevagarporessaneve.Foipor issoque iquei tão ofegante, porque sou um homem que se exercita muitopouco.Sinto-memelhoragora,eexporeiosfatosdemaneiratãobreveeaomesmotempotãoclaraquantopossa.

“Osenhorsabe,éclaro,queosucessodenegóciosbancáriosdependetanto de nossa capacidade de encontrar investimentos lucrativos paranossos fundos, quanto do aumento do nosso número de relações e dedepositantes.Umdosmeiosmaislucrativosquetemosdeinvestirdinheirosão empréstimos em que a garantia seja incontestável. Fizemos muitonessa direção nos últimos anos, e sãomuitas as famílias nobres para asquais adiantamos grandes somas tendo como garantia suas telas,bibliotecasoubaixelas.

“Ontemdemanhãeuestavaemmeuescritórionobancoquandoumdosfuncionáriosmelevouumcartão.Espantei-meaoveronome,poiseraninguém menos que… bem, talvez mesmo para o senhor eu deva dizerapenas que era um nome conhecido em todo o planeta… um dos nomesmais ilustres, nobres, excelsos da Inglaterra. Fiquei desvanecido pelahonra e, quando ele entrou, tentei dizer-lhe isso, mas ele mergulhouimediatamente nos negócios com o ar de um homem a lito por se livrarrapidamentedeumatarefadesagradável.

“‘Mr. Holder’, disse, ‘fui informado de que o senhor costumaemprestardinheiro.’

“‘Afirmafazissoquandoagarantiaéboa’,respondi.“‘Éabsolutamenteessencialparamim’,disseele,‘dispordecinquenta

mil libras já.Eupoderia,éclaro, tomardezvezesmaisqueumasomatãoinsigni icante emprestadademeus amigos,maspre irode longe resolveristo como um negócio e levá-lo a cabo eu mesmo. O senhor podecompreender facilmente que é imprudente para uma pessoa na minhaposiçãoficardevendoobrigações.’

“‘Possolheperguntarporquantotempodesejaessasoma?’

“‘Uma grande quantia deverá me ser paga segunda-feira, e entãocertamente lhedevolverei o queme adiantar, comqualquer juroque lhepareça correto cobrar.Mas é de todo essencial paramimque o dinheiromesejaentregueimediatamente.’

“‘Eu icariafelizemlheadiantaressasomasemmaisdelongasdemeuprópriobolso’,disseeu, ‘setivessecondiçõesdearcarcomisso.Poroutrolado,se lhe izeroempréstimoemnomeda irma,émeudeverde justiçaparacommeusócio insistirque,mesmonoseucaso, todasasprecauçõesdepraxenessesnegóciossejamtomadas.’

“‘E realmente pre iro que seja assim’, disse ele, pegando um estojoquadradodemarroquimquepousaraaoladodesuacadeira.‘SemdúvidajáouviufalardoDiademadeBerilos,não?’

“‘Um dos mais valiosos bens públicos do Império’, disse eu.“‘Precisamente.’ Abriu o estojo e ali, embutida em macio veludo cor decarne,estavaamagní icapeçade joalheriaqueelenomeara. ‘Sãotrintaenove enormes berilos’, disse ele, ‘e o preço do engaste de ouro éincalculável. Segundoa estimativamaisbaixa, valeriaduas vezesmaisdoqueasomaquepedi.Estoudispostoadeixá-locomosenhorcomominhagarantia.’

“Tomei o precioso estojo em minhas mãos e olhei com algumaperplexidadeparameuilustrecliente.

“Tomeiopreciosoestojoemminhasmãos.”[SidneyPaget,StrandMagazine,1892]

“‘Duvidadeseuvalor?’perguntouele.“‘Emabsoluto.Duvidoapenas…’“‘Duvidaqueeuestejaagindocorretamente.Quantoaisso,pode icar

tranquilo. Eu não sonharia em fazer isso se não tivesse plena certeza dequetereicondiçõesdereavê-loemquatrodias.Éumaquestãopuramenteformal.Agarantiaésuficiente?’

“‘Amplamente.’“‘Entenda, Mr. Holder, que estou lhe dando uma forte prova da

con iançaquetenhonosenhor, fundadaemtudoqueouviaseurespeito.Con io não apenas que será discreto e se absterá de todo e qualquercomentário sobre o assunto mas, acima de tudo, que preservará estediademacomtodasasprecauçõespossíveis,poisnãoprecisodizerqueumgrande escândalo público seria gerado se lhe ocorresse algum dano.Qualquerestragoqueelesofresseseriaquasetãogravequantosuaperdacompleta,poisnãoexistemnomundoberilos comparáveis a estese seriaimpossível substituí-los. Deixo-o com o senhor, no entanto, em todaconfiança,evireibuscá-loempessoasegunda-feirademanhã.’

“Vendo que meu cliente estava ansioso por partir, não disse maisnada;chameimeucaixaeordenei-lhequelheentregassecinquentanotasdemil libras. Ao icar sozinho novamente, contudo, tendo diante demim,sobre amesa, o estojo, não pude deixar de pensar com algum temor naimensa responsabilidade que recaíra sobre mim. Não podia havernenhuma dúvida de que, sendo a joia um bem nacional, um escândalohorrível seproduziriasealgum infortúnio lheocorresse. Já lamentava terconsentido em guardá-la. Mas agora era tarde demais para mudar ascoisas;assim,tranquei-aemmeucofreprivadoevolteiatrabalhar.

“Quando a noite chegou, pareceu-me que seria imprudência sair edeixaralgotãopreciosonoescritório.Cofresdebanqueirosjáhaviamsidoarrombados antes, porqueomeunãopoderia ser?Decidi, portanto, quepor alguns dias, até segunda-feira, eu levaria o estojo para cá e para lácomigo, de modo que ele nunca icasse fora do meu alcance. Com essaintenção,chameiumcarrodealuguelefuiparaminhacasaemStreatham,levando a joia comigo. Não respirei livremente até levá-la ao segundoandaretrancá-lanasecretáriademeuquartodevestir.

“Agoraumapalavrasobreosquevivememminhacasa,Mr.Holmes,pois desejo que entenda perfeitamente a situação.Meu cavalariço emeumensageiro dormem fora da casa e podem ser completamente

descartados. Tenho três criadas que estão comigo há vários anos e cujaabsoluta con iabilidadeestáacimadequalquer suspeita.Umaoutra,LucyParr,asegundacamareira,sóestáameuserviçoháalgunsmeses.Pareceum excelente caráter, porém, e sempre me deu satisfação. É uma moçamuito bonita e atraiu admiradores que ocasionalmente rondaramminhacasa.Esseéoúnicoinconvenientequevejonela,masacreditamosquesejaumaboamoçaemtodososaspectos.

“Sobreminhacriadagem,istoétudo.Minhafamíliaétãopequenaquenão precisarei de muito tempo para descrevê-la. Sou viúvo e tenho umúnico ilho, Arthur. Ele foi uma decepção para mim, Mr. Holmes… umadolorosadecepção.Nãotenhodúvidadequesoueumesmooculpado.Aspessoas dizem que o estraguei. Muito provavelmente eu o iz. Quandominha querida mulher morreu, senti que só tinha a ele para amar. Nãosuportava ver o sorriso desaparecer de seu rosto nem por um instante.Nunca deixei de satisfazer um só desejo seu. Talvez tivesse sido melhorpara nós dois se eu tivesse sidomais severo,mas tudo que iz foi com amelhordasintenções.

“Naturalmente eu desejava queme sucedesse nos negócios,mas elenãotinhaquedaparaisso.Erarebelde,caprichoso,e,parafalaraverdade,eu não poderia lhe con iar o manuseio de grandes somas de dinheiro.Quando jovem, tornou-se membro de um clube aristocrático, e ali, tendomaneiras encantadoras, logo se tornou íntimode vários rapazes de bolsaforrada e hábitos dispendiosos. Aprendeu a apostar muito dinheiro nascartaseaesbanjardinheironoturfe,atéterdeviramim,muitasemuitasvezes,paraimplorarqueeulhedesseumadiantamentosobresuamesadapara que pudesse saldar suas dívidas de honra. Ele tentoumais de umavez afastar-se das companhias perigosas comque andava,mas sempre ain luênciadeseuamigoSirGeorgeBurnwellfoisu icienteparaatraí-lodevolta.

“Na verdade, não me espanta que um homem como Sir GeorgeBurnwell adquirisse in luência sobre meu ilho, pois ele o levou váriasvezesàminhacasaeeumesmosentiqueeradi ícilresistiraofascíniodesuas maneiras. É mais velho que Arthur, um homem do mundo até aspontas das unhas, que esteve em toda parte, viu tudo, um brilhantecauseur e homemde grande beleza pessoal. Apesar disso, quando pensonelecomsangue-frio,bemlongedoencantodesuapresença,suaconversacínica e o olhar que captei em seus olhos me convencem de que nãomerece a menor con iança. É assim que eu penso, e assim também que

pensaminhapequenaMary,quetemaintuiçãorápidadeumamulher.“Agora só restaela adescrever.Éminha sobrinha,masquandomeu

irmãomorreucincoanosatráseadeixousozinhanomundoeuaadotei,etenhocuidadodeladesdeentãocomominha ilha.Elaéumraiodesolemminha casa… doce, afetuosa, bonita, uma maravilhosa administradora edona de casa, aomesmo tempo em que é tão terna emeiga quanto umamulherpodeser.Émeubraçodireito,nãoseioquefariasemela.Atéhoje,sócontrarioumeusdesejosemrelaçãoaumassunto.Duasvezesmeu ilhoa pediu em casamento, porque a ama com devoção, e duas vezes ela orecusou. Penso que se alguém tivesse sido capaz de levá-lo para o bomcaminho, teria sido ela, e que esse casamento teria transformado porcompletoavidadele;masagora, lamentavelmente, é tardedemais…parasempre!

“Agoraqueconheceaspessoasquevivemsobomeuteto,Mr.Holmes,voucontinuarminhainfelizhistória.

“Naquela noite, depois do jantar, quando tomávamos café na sala deestar, contei minha experiência a Arthur e Mary, e falei do preciosotesouroque tínhamos sobnosso teto, suprimindoapenasonomedemeucliente.LucyParr,quetrouxeraocafé,jásaíradasala,tenhocerteza;masnão posso jurar que a porta estivesse fechada. Mary e Arthur icarammuito interessados e desejaram ver o famoso diadema. Pareceu-memaisconveniente,porém,nãomexercomele.

“‘Ondeoguardou?’perguntouArthur.“‘Emminhasecretária.’“‘Bem,sóesperoqueacasanãosejaassaltadaduranteanoite’,disse

ele.“‘Elaestátrancada’,respondi.“‘Oh, qualquer chave velha servirá naquela secretária. Quando era

menino,eumesmoaabricomachavedoguarda-louçadadespensa.’“Frequentemente ele falava por falar, e não dei importância ao que

disse.Masnaquelanoiteelemeseguiuatémeuquartocomuma isionomiamuitoséria.

“Oh,qualquerchavevelhaserviránaquelasecretária.”[SidneyPaget,StrandMagazine,1892]

“‘Ouça, papai’, disse, com os olhos baixos, ‘pode me emprestarduzentaslibras?’

“‘Não,nãoposso!’respondiasperamente.‘Tenhosidoexcessivamentegenerosocomvocêemmatériadedinheiro.’

“‘Temsidomuitobondoso’,disseele; ‘masprecisodessedinheiro,oununcamaispodereiaparecernoclube.’

“‘Oquealiásseriaótimo!’exclamei.“‘Sim,masosenhornãogostariaqueeuodeixassecomoumhomem

desonrado’, ele respondeu. ‘Eu não poderia suportar a vergonha. Precisoconseguirodinheirodealgumamaneira,eseosenhornãopodemefazeresseempréstimotenhodetentaroutrosmeios.’

“Fiqueimuitoirritado,porqueesseeraoterceiropedidonaquelemês.‘De mim você não arrancará um tostão’, exclamei, diante do quê ele securvouesaiudoquartosemmaisumapalavra.

“Depoisqueele se fora,destranqueiminha secretária, certi iquei-medequemeutesouroestavaseguroetranquei-adenovo.Depoiscomeceiafazer a rondada casaparaver se tudoestavabem fechado…uma tarefaque geralmente deixo para Mary, mas que naquela noite me pareceuconvenientefazereumesmo.Quandodesciaescada,viaprópriaMarynajanelalateraldosalão;quandomeaproximei,elaafechouetrancou.

“‘Diga-me,papai’,disseela,dando-meaimpressãodeestarumpoucoperturbada,‘osenhordeulicençaaLucy,acriada,parasairestanoite?’

“‘Demaneiraalguma.’

“‘Elaacabadeentrarpelaportadosfundos.Nãotenhodúvidaalgumadequefoiapenasatéoportãolateralparaseencontrarcomalguém,masissonãomepareceseguroeéprecisolhedizerquenãoorepita.’

“‘Você deve falar com ela de manhã, ou eu mesmo falarei, se vocêpreferir.Temcertezadequeestátudobemfechado?’

“‘Absoluta,papai.’“‘Então, boa noite.’ Beijei-a e voltei para o meu quarto, onde logo

adormeci.“Estou me esforçando por lhe contar tudo que possa ter alguma

relaçãocomocaso,Mr.Holmes,maspeço-lhequemefaçaperguntassobrequalquerpontoquefiqueobscuro.”

“Aocontrário,seurelatoésingularmenteclaro.”“Estouchegandoagoraaumapartedeminhahistóriaemquegostaria

de ser particularmente claro. Não tenho o sono muito pesado e minhaansiedade tendia, semdúvida,a torná-loaindamais levequedecostume.Assim,porvoltadasduashorasdamadrugada,fuidespertadoporumsomnacasa.Antesqueeuacordasseporcompletoelecessou,masaimpressãoquemedeixou foiadequeuma janelahavia sidodelicadamente fechadaem algum lugar. Continuei deitado, todo ouvidos. De repente, para meuhorror,ouviosomnítidodealguémsemovendopéantepénoquartoaolado. Esgueirei-me da cama, tomado por frêmitos de medo, e espiei pelocantodaportademeuquartodevestir.

“‘Arthur!’ berrei. ‘Seu canalha! Seu ladrão! Como ousa tocar nessediadema?’

“Àluzacesaempontobaixo,comoeumesmoadeixara,láestavameupobremenino,emmangasdecamisa, juntoda lamparina, comodiademanas mãos. Parecia estar torcendo-o, ou curvando-o com toda a força. Aomeu grito ele o deixou cair e icoupálido como amorte. Apanhei a joia eexaminei-a.Faltavaumadaspontasdeouro,emquehaviatrêsberilos.

“‘Seu patife!’ gritei, fora demimde raiva. ‘Você o destruiu! Vocêmedesonrouparasempre!Ondeestãoaspedrasqueroubou?’

“‘Roubou?’gritouele.“‘Sim,ladrão!’rosnei,sacudindo-opelosombros.“‘Nãofaltanenhuma.Nãopodeestarfaltandonenhuma’,disseele.“‘Faltam três pedras. E você sabe onde estão. Terei de chamá-lo de

mentiroso, além de ladrão? Acaso não o vi tentando arrancar outropedaço?’

“‘Osenhor jámeinsultouobastante’,disseele. ‘Nãovoutolerarmaisisso.Nãodireinemmaisumapalavrasobreesteassunto, jáqueresolveumeinsultar.Deixareisuacasademanhãetratareideganhareumesmoaminhavida.’

“Aomeugritoeleodeixoucair.”[SidneyPaget,StrandMagazine,1892]

“‘Você a deixará nasmãos da polícia!’ gritei, quase enlouquecido dedesgostoeraiva.‘Queroumainvestigaçãocompletadesteassunto.’

“‘Demim,nãoobteránenhumainformação’,disseele,comumapaixãode que eu não o teria julgado capaz. ‘Se prefere chamar a polícia, que apolíciadescubraoquepuder.’

“Nessaalturaacasa inteiraestavadepé,porqueeuelevaraaminhavoznaminharaiva.Mary foiaprimeiraacorreraomeuquarto;aoverodiademaeosemblantedeArthur,compreendeuahistóriatodae,comumgrito,caiusemsentidosnochão.Mandeiacriadachamarapolíciaepusainvestigaçãonasmãosdelaimediatamente.Quandooinspetoreumpolicialentraramnacasa,Arthur,quesemantiverataciturno,debraçoscruzados,perguntou-me se era minha intenção acusá-lo de roubo. Respondi queaquele deixara de ser um assunto privado, tornara-se uma questão

pública, porque o diadema era um bem nacional. Eu desejava que a leifossecumpridaemtodososaspectos.

“‘Pelomenos’,disseele, ‘evitequemeprendamimediatamente.Seriavantajoso para o senhor, tanto quanto paramim, se eu pudesse deixar acasaporcincominutos.’

“‘Paravocêfugiroutalvezesconderoqueroubou?’respondi.Eentão,dando-me conta da horrível situação em que fora colocado, implorei-lheque lembrasse que não somente aminha honra,mas a de alguémmuitomaisimportantequeeu,estavaemjogo;equeeleestavaprestesasuscitarumescândaloqueconvulsionariaanação.Poderiaevitá-losemedissesseoquefizeradastrêspedrasquefaltavam.

“‘Encareasituaçãode frente’,disseeu; ‘você foipegoem lagranteenenhuma con issão poderia tornar sua culpamenos hedionda.Mas bastaque façaa reparaçãoqueestáemseupoder fazer,enosdigaondeestãoosberilos,etudoseráesquecidoeperdoado.’

“‘Guardeoseuperdãoparaosqueopedirem’,respondeu,desviandoorostodemimcomumsorrisodeescárnio.Viqueestavain lexíveldemaisparaquealgumapalavraminhapudesse in luenciá-lo.Sóhaviaumacoisaa fazer. Chamei o inspetor emandei que ele fosse detido. Uma busca foifeita imediatamentenãosóemsuapessoamasemseuquarto,eemcadacantodacasaemquelheteriasidopossívelesconderaspedras;masnãose conseguiu encontrar nenhum vestígio delas, nem o pobre rapaz sedispôsaabrirabocaadespeitodetodasasnossaspalavrasdepersuasãoou de ameaça. Esta manhã ele foi removido para uma cela, e eu, apóscumprir todas as formalidades policiais, vim direto para cá, implorar-lheque use sua competência no desvendamento do assunto. Os policiaisconfessaram-me abertamente quepor enquantonão têm ideia do que sepassou.O senhorpode fazerqualquerdespesaque considerenecessária.Jáofereciumarecompensademillibras.MeuDeus,quefazer!Numanoiteperdiminhahonra,minhasgemasemeufilho.Oh,quefazer?!”

Segurou a cabeça com as duasmãos e balançou para frente e paratrás,engrolandoalgumacoisacomoumacriançacujadorégrandedemaisparaserpostaempalavras.

SherlockHolmespermaneceuquietoalgunsminutos,assobrancelhasfranzidaseosolhosfixosnofogo.

“Osenhorrecebemuitasvisitas?”perguntou.“Nenhuma, a não ser meu sócio, com sua família, e algum amigo

ocasional de Arthur. Sir George Burnwell esteve várias vezes em minhacasanosúltimostempos.Ninguémmais,creio.”

“Saimuito?”“Arthur sai.Marye eu icamosemcasa.Nenhumdenósgostamuito

devidasocial.”“Issoéincomumnumajovenzinha.”“Ela tem um temperamento sossegado. Além disso, não é tão

jovenzinha.Temvinteequatroanos.”“Essaquestão,peloqueosenhordiz,parecetersidoumchoquepara

elatambém.”“Terrível!Elaestáatémaisafetadaqueeu.”“Nenhumdosdoistevequalquerdúvidaquantoàculpadeseufilho?”“Comopoderíamoster,quandoeuovicommeusprópriosolhoscomo

diademanasmãos?”“Estanãomepareceserpropriamenteumaprovaconclusiva.Oresto

dodiademaapresentavaalgumestrago?”“Sim,estavatorcido.”“Nesse caso, não lhe passa pela cabeça que seu ilho poderia estar

tentandoendireitá-lo?”“QueDeusoabençoe!Estáfazendooquepodeporeleepormim.Mas

éumatarefamuitodi ícil.A inal,queestavaelefazendolá?Sesuaintençãoerainocente,porquenãodisseisso?”

“Precisamente.Eseeraculpado,porquenãoinventouumadesculpa?O silêncio dele parece-me ambíguo. Há vários pontos singulares no caso.Quedisseapolíciasobreoruídoqueodespertou?”

“Pensamque poderia ter sido feito por Arthur, ao fechar a porta deseuquarto.”

“Uma história provável! Como se um homem prestes a cometer umcrime fossebatersuaportaparaacordaracasa inteira.Equedizemelesdodesaparecimentodaquelaspedras?”

“Ainda estão investigando as tábuas do assoalho e vasculhando osmóveisnaesperançadeencontrá-las.”

“Pensaramemdarumaolhadanoladodeforadacasa?”“Sim, deram mostra de extraordinária energia. Todo o jardim já foi

minuciosamenteexaminado.”“Diga-me,meucaroMr.Holder”,disseHolmes, “não lhepareceóbvio

agora que esse assunto é muito mais profundo do que tanto o senhorquanto a polícia se inclinaram a pensar? Ele lhe pareceu ser um casosimples;paramim,pareceextremamentecomplexo.Considereoqueestáenvolvido pela sua teoria. O senhor supõe que seu ilho saiu da cama,dirigiu-se, correndo grande risco, ao seu quarto de vestir, abriu suaescrivaninha,tirouseudiadema,quebrouàforçaumpedaçodele,foiparaalgum outro lugar, escondeu três das trinta e nove pedras com talhabilidadequeninguémasconsegueencontraredepois retornoucomasoutras trinta e seis para o quarto em que mais correria o risco de serdescoberto.Agoraeulhepergunto:umateoriacomoestaédefensável?”

“Mas que outra existe?” gritou o banqueiro com um gesto dedesespero.“Seosmotivosdeleeraminocentes,porquenãoosexplica?”

“Cabe a nós descobrir isso”, respondeu Holmes; “agora, portanto, seconcorda,Mr.Holder, iremosjuntosaStreathamededicaremosumahoraaumexameumpoucomaisatentodosdetalhes.”

Meu amigo insistiu em que eu os acompanhasse nessa expedição, oque estava bastante desejoso de fazer, porque a história que ouvíramosdespertaraemmimgrandecuriosidadeecompaixão.Confessoqueaculpado ilhodobanqueiroparecia-metãoóbviaquantoparaaqueleinfelizpai,mas eu tinha tal fé no julgamento de Holmes que senti que, se ele semostrava insatisfeito com a explicação proposta, era possível alimentaralguma esperança. Ele praticamente não disse uma palavra no caminhopara o subúrbio ao sul da cidade; icou sentado como queixo en iadonopeito, o chapéu puxado sobre os olhos, imerso nos mais profundospensamentos. Nosso cliente parecia ter ganhado alma nova ao pequenolampejo de esperança que lhe fora apresentado e chegou mesmo aconversar comigo demaneira desconexa sobre seus negócios. Uma curtaviagem de trem e uma caminhada ainda mais curta levaram-nos aFairbank,amodestaresidênciadograndefinancista.

Fairbank, uma casa quadrada de pedras brancas, de bom tamanho,icavaumpouco recuada em relação à rua.Uma entradapara carros emforma de ferradura e um gramado forrado de neve estendiam-se diantedosdoisgrandesportõesdeferroquefechavamaduplaentrada.Doladodireito havia um portãozinho que dava para um caminho estreito que seestendia, entre duas sebes bem-podadas, da rua até a porta da cozinha;era por ali que entravam os entregadores. À esquerda corria uma ruelaque conduzia às estrebarias;nãoera emabsolutopartedo terrenoe simumaviapública,emborapoucousada.Holmesdeixou-nosparadosjuntoà

porta e rodeou lentamente toda a casa, andou pela frente, percorreu aentrada dos entregadores e passou pelo quintal atrás e pela ruela daestrebaria.DemoroutantoqueMr.Holdereeuentramosnasaladejantare icamos esperandopela sua volta junto ao fogo. Estávamos ali sentadosemsilêncioquandoaportaseabriueumajovementrou.Tinhamaisqueaaltura mediana e era magra; seus cabelos e olhos escuros talvezparecessem mais escuros em contraste com a alvura absoluta da pele.Tenho a impressão de que nunca vi palidez tão mortal num rosto demulher. Os lábios também eram exangues; os olhos, porém, estavaminchados de tanto chorar. Ao entrar silenciosamente na sala, ela mepareceu estar tomada por um pesar maior que o do banqueiro naquelamanhã, o que era mais impressionante porque era evidentemente umamulher de caráter forte, com imensa capacidade de autocontrole.Ignorando minha presença, dirigiu-se diretamente ao tio e passou-lhe amãonacabeçanumacaríciadoceefeminina.

“DeuordemparaqueArthurfosselibertado,nãodeu,papai?”“Não,não,minhafilha,esseassuntotemdeserinvestigadoatéofim.”“Mas tenho tanta certezadeque ele é inocente.O senhor sabe como

sãoosinstintosdeumamulher.Seiqueelenãofeznadadeerrado,equeosenhorsearrependeráporteragidotãoseveramente.”

“Masseeleéinocente,porquesecala?”“Quempodesaber?Podeserqueestejamuitozangadocomosenhor,

portersuspeitadodele.”“Como eu poderia não suspeitar dele quando realmente o vi com o

diademanamão?”“Oh,maselesóopegaraparaolhá-lo.Porfavor,porfavor,acrediteno

queestoulhedizendo,eleéinocente.Dêesseassuntoporencerradoenãodiga mais nada. É tão terrível pensar que nosso querido Arthur está nacadeia!”

“Não darei o caso por encerrado até que as pedras sejamencontradas… nunca,Mary! Sua afeição por Arthur a deixa cega para ashorríveisconsequênciasqueissoteráparamim.Longedepôrumapedrasobre o assunto, trouxe um cavalheiro de Londres para investigá-lomaisprofundamente.”

“Estecavalheiro?”perguntouela,virando-separamim.“Não, um amigo dele. Quis que o deixássemos sozinho. Está na ruela

daestrebariaagora.”

“A ruela da estrebaria?” Ela levantou as sobrancelhas escuras. “Quepodeesperarencontrarali?Ah!Parecequeaívemele.Con io,senhor,queconseguirá provar o que tenho certeza ser a verdade, que meu primoArthuréinocentedessecrime.”

“Estou de pleno acordo, e con io, como a senhorita, que poderemosprovar isso”,respondeuHolmes,voltandoaocapachoparasacudiranevedossapatos. “Acreditoque tenhoahonrade falar comMissMaryHolder.Poderialhefazerumaouduasperguntinhas?”

“Tenha a bondade, senhor, se isso puder ajudar a elucidar esseterrívelcaso.”

“Asenhoritanãoouviunadanaúltimanoite?”“Nada,atémeutiocomeçarafalaralto.Ouvisuavozedesci.”“A senhorita fechou as janelas e as portas ontem à noite. Trancou

todasasjanelas?”“Tranquei.”“Estavamtodastrancadashojedemanhã?”“Estavam.”“Umadesuascriadastemumnamorado?Parece-mequeasenhorita

observou para seu tio ontem à noite que ela havia saído para vê-lo, nãofoi?”

“Sim,efoielaquenosserviunasaladeestarequepodeterouvidoocomentáriosobreodiadema.”

“Entendo.Inferequeelapodetersaídoparacontarissoaonamorado,equeosdoispodemterplanejadooroubo.”

“De que adiantam todas essas teorias vagas”, exclamou o banqueirocom impaciência, “quando eu lhe disse que viArthur comodiademanasmãos?”

“Espereumpouco,Mr.Holder.Voltaremosa isso.Sobreamoça,MissHolder,suponhoqueaviuvoltarpelaportadacozinha,estoucerto?”

“Sim;quandofuiverseaportaestavatrancadaparaanoite,deicomelaentrandofurtivamente.Viohomemtambém,nasemiobscuridade.”

“Conhece-o?”“Ah,sim;éoverdureiroquetraznossashortaliças.Chama-seFrancis

Prosper.”“Ele estava postado”, disse Holmes, “à esquerda da porta… isto é,

avançaramaisnocaminhodoqueonecessárioparachegaràporta?”

“Sim,issomesmo.”“Temumapernadepau?”Algo semelhante a medo brotou nos expressivos olhos pretos da

jovem. “Mas o senhor parece um mágico”, disse. “Como sabe isso?” Elasorriu,masorostofinoeansiosodeHolmesnãolhesorriudevolta.

“Agora gostaria muito de ir ao segundo andar”, disse ele.“Provavelmente vou querer examinar o exterior da casa novamente.Talvez seja melhor dar uma olhada nas janelas aqui do térreo antes desubir.”

“Algosemelhanteamedobrotounosolhosdajovem.”[SidneyPaget,StrandMagazine,1892]

Passourapidamentedeumaparaaoutra,parandosomentenajanelalargadosalãoquedavaparaarueladaestrebaria.Esta,eleabriuefezumcuidadosoexamedoparapeitocomsuapoderosalentedeaumento.“Agoravamossubir”,dissefinalmente.

Oquartodevestirdobanqueiroeraumcômodopequenoemobiliadocom simplicidade, com um tapete cinza, uma grande secretária e umespelho alto. Holmes foi primeiro à secretária e examinou bem afechadura.

“Quechavefoiusadaparaabri-la?”perguntouele.“Aquemeufilhoindicouelemesmo…adoguarda-louçadadespensa.”“Osenhorestácomelaaqui?”“Aíestá,sobreapenteadeira.”“É uma fechadura silenciosa”, disse. “Não espanta que não o tenha

acordado. Este estojo, presumo, contém o diadema. Devemos dar umaolhadanele.”Abriuoestojoe,tirandoajoia,depositou-asobreamesa.Eraumespécimemagní icodaartedajoalheria,eastrintaeseispedraseramas mais belas que já vi. Num lado do diadema havia uma aresta torta equebrada,deondeumapontacomtrêspedrasforaarrancada.

“Cáestá,Mr.Holder”,disseHolmes,“apontaquecorrespondeàquelaquefoitãolamentavelmenteperdida.Faça-meofavordearrancá-lafora.”

Obanqueirorecuou,horrorizado.“Eunemsonhariaemtentar”,disse.“Entãoeuo farei.”Holmesaplicoude repente todaa sua força sobre

ela,semresultado.“Sintoquecedeuumpouco”,disse;“mas,emboratenhadedosexcepcionalmentefortes,eulevariaumtempoenormeparaquebraressa ponta. Um homem comum não conseguiria. Mas que pensa queaconteceriaseeuaquebrasse,Mr.Holder?Haveriaumbarulhocomoodeum tiro de pistola. O senhor me diz que tudo isso aconteceu a poucosmetrosdesuacamaenãoouviunada?”

“Nãoseioquepensar.Estátudomuitoconfusoparamim.”“Mas talvez possa icar mais claro à medida que avançarmos. Que

pensa,MissHolder?”“Confessoquepartilhoaperplexidadedemeutio.”“Seufilhonãousavasapatosnemchinelosquandooviu?”“Nãousavanadaalémdacalçaedacamisa.”“Muito obrigado. Fomos favorecidos por uma sorte extraordinária

durante esta inquirição, e se não conseguirmos elucidar a questão terásido inteiramente por nossa culpa. Com sua permissão, Mr. Holder,continuareiagoraminhainvestigaçãodoladodefora.”

Foi sozinho, a pedido próprio, pois explicou que qualquer pegadadesnecessária poderia tornar sua tarefa mais di ícil. Trabalhou duranteumahoraoumais,retornandofinalmentecomospéscarregadosdeneveeosemblantetãoinescrutávelcomosempre.

“Creio que agora vi tudo que havia para ver, Mr. Holder”, declarou.“Possoservi-lomelhorretornandoameusprópriosaposentos.”

“Maseaspedras,Mr.Holmes.Ondeestão?”“Nãoseidizer.”O banqueiro torceu as mãos. “Nunca mais as verei de novo! E meu

filho?Osenhormedeuesperanças.”“Minhaopiniãonãosealterouemnada.”“Então,peloamordeDeus,quecoisaestranhafoiessaqueaconteceu

emminhacasaontemànoite?”“Se o senhor puderme visitar emmeus aposentos em Baker Street

amanhãdemanhã,entrenoveedezhoras, icareifelizemfazeropossívelpara torná-lamais clara. Pelo que entendi, o senhorme dá carta brancaparaagiremseunome,contantoqueeuconsigaaspedrasdevolta,enãoimpõenenhumlimiteàsomaquepossousar.”

“Dariaaminhafortunaparatê-lasdevolta.”“Muitobem.Examinareiaquestãoatélá.Boatarde;épossívelqueeu

tenhadevoltaraquiantesdanoite.”Era óbvio para mim que meu companheiro já chegara a uma

conclusãosobreocaso,emboraeunão tivesseamaispálida ideiadequeconclusão poderia ser essa. Durante nossa viagem de volta para casa,tentei sondá-lo várias vezes acercadisso,mas ele sempredesconversava,atéque inalmenteperdiaesperançaedesisti.Aindanãoeramtrêshorasquandonosvimosnovamenteemnossasala.Elecorreuparaoseuquarto;minutos depois desceu, vestido como um vagabundo comum. Com seucolarinho virado para cima, paletó lustroso e puído, cachecol vermelho ebotassurradas,eraumexemplarperfeitodaclasse.

“Acho que isto vai funcionar”, disse ele, olhando-se no espelho queicavasobrealareira.“Gostariamuitoquefossecomigo,Watson,mastemoquenãosejapossível.Podeserqueeuestejanapistacertanesteassunto,pode ser que esteja seguindo uma quimera, logo tirarei a limpo. Esperopoderestardevoltadentrodealgumashoras.”Cortouumafatiadacarneque estava sobre o aparador, pegou dois pedaços de pão e fez umsanduíche; em seguida, en iando esta rude refeição no bolso, partiu parasuaexpedição.

Euacabaradeterminarmeucháquandoelevoltou,evidentementedeótimohumor, balançandouma velha botina fechada comelástico namão.Jogou-anumcantoeserviuumaxícaradecháparasi.

“Estoudepassagem”,disseele.“Vousairdenovoagoramesmo.”“Aondevai?”

“Oh,paraooutroladodoWestEnd.Podeserquedemoreumpoucoavoltar.Nãoesperepormimcasofiquetarde.”

“Comoestásesaindo?”“Ah, mais ou menos. Não tenho do que me queixar. Estive em

Streatham depois que nos separamos, mas não entrei na casa. É umprobleminha delicioso e eu não o teria perdido por nada.Mas não possoicar aqui conversando iado; tenho de tirar estas roupas indecorosas erecobrarminharespeitabilíssimapersonalidade.”

Eupodiaverporsuasmaneirasqueeletinhamaisrazõesparaestarsatisfeitodoquesuaspalavrasindicavam.Seusolhosbrilhavamehaviaatéumtoquedecoremsuasfacesamareladas.Subiurapidamenteaosegundoandareminutosdepoisouviaportadovestíbulobater,oquemeinformouqueeleselançaramaisumavezàsuaagradávelcaça.

Esperei até meia-noite, mas como não houve sinal dele, retirei-mepara o meu quarto. Não era incomum que ele se ausentasse por dias enoites a io quando estava farejando alguma coisa, e a demora não mecausounenhumasurpresa.Nãoseiaquehoraschegou,masquandodesciparaodesjejum,demanhã,láestavaelecomumaxícaradecafénumadasmãoseumjornalnaoutra,tãobem-dispostoquantopossível.

“Perdoe-me por ter começado sem você, Watson”, disse ele, “maslembre-sequenossoclientedeveráestaraquibastantecedoestamanhã.”

“Ora, jápassadasnove”, respondi. “Não icariasurpresose fosseele.Tenhoaimpressãodequeouviacampainha.”

Era realmente nosso amigo, o inancista. Fiquei chocado com atransformaçãoqueseoperaranele.Seurosto,naturalmentelargoecheio,estavaagoramais inoecaído,aopassoqueseucabelopareciaumpoucomaisbranco.Entrounasalanumestadodecansaçoe letargiaaindamaispenoso que sua violência da manhã anterior e caiu pesadamente napoltronaqueempurreiemsuadireção.

“Não sei o que iz para ser tão severamente posto à prova”, disse.“Apenas dois dias atrás eu era um homem feliz e próspero, sem umapreocupação no mundo. Agora só me resta uma velhice solitária edesonrada. Uma dor vem atrás da outra. Minha sobrinha Mary meabandonou.”

“Abandonou-o?”“Sim.Hojedemanhãsuacamaestavaintacta,seuquartovazio,ehavia

umbilheteparamimsobreamesadosalão.Eulhedisseraontemànoite,

movido pela dor e não pela raiva, que, se ela tivesse se casado commeuilho, tudo poderia estar bem com ele. Talvez tenha sido leviandade deminha parte dizer-lhe isso. É a essa observação que ela se refere nestebilhete:

MEUQUERIDOTIO,Sintoqueprovoqueiseuinfortúnio,equesetivesseagidodemaneiradiferente essa terrível desgraça poderia nunca ter acontecido. Comestepensamento emmente, jamaispoderei voltar a ser feliz sob seuteto,esintoquedevodeixá-loparasempre.Nãosepreocupecommeufuturo,porqueminhasubsistênciaestáassegurada;e,sobretudo,nãoprocurepormim,porqueseriaumaprocura inútil eprejudicialparamim.Amando-osempre,navidaounamorte,

Sua,MARY

Quepoderiaelaestarquerendodizercomestebilhete,Mr.Holmes?Osenhorachaqueeleéindíciodesuicídio?”

“Não,nadadisso.Esta talvezsejaamelhorsoluçãopossível.Acredito,Mr.Holder,queseusinfortúniosestãochegandoaofim.”

“Ah!Achamesmo?Ouviualgumacoisa,Mr.Holmes,ouapuroualgumacoisa?Ondeestãoaspedras?”

“O senhor consideraria mil libras por uma pedra um preçoexcessivo?”

“Eupagariadez.”“Não há necessidade disso. Trêsmil resolverão a questão. E há uma

pequenarecompensa, senãomeengano.Estácomseu talãodecheques?Aquitemumacaneta.Melhorfazerumchequedequatromillibras.”

Com uma expressão embasbacada o banqueiro preencheu o chequesolicitado.Holmesfoiatésuaescrivaninha,pegouumpequenotriângulodeourocomtrêspedrasincrustadas,ejogou-osobreamesa.

Nossoclienteagarrou-ocomumgritodealegria.“Osenhorconseguiu!”disse,ofegante.“Estousalvo!Estousalvo!”Areaçãodealegriafoitãoapaixonadaquantooforaadepesar,eele

aconchegouaopeitoaspedrasrecobradas.“O senhor temmais uma dívida, Mr. Holder”, disse Sherlock Holmes

combastanteseveridade.“Pronto!”Pegouacaneta.“Digaasomaepagarei.”“Não,adívidanãoéparacomigo.Osenhordeveumpedidodeperdão

muito humilde a esse nobre rapaz, seu ilho, que se conduziu como euicariaorgulhosodevermeupróprio ilhoseconduzir,seumdiaviesseaterum.”

“EntãonãofoiArthurquempegouaspedras?”“Eulhedisseontem,erepitohoje,quenão.”“Tem certeza? Então vamos correndo lhe contar que sabemos a

verdade.”“Ele já sabe. Depois de ter esclarecido tudo, tive uma conversa com

ele, e, constatandoquenãome contaria ahistória, eu a contei para ele, ediante disso teve de confessar que eu estava certo, e acrescentar algunspoucosdetalhesquenãoestavaminteiramenteclarosparamim.Anotíciaqueosenhortemadarsobreoacontecimentodestamanhã,porém,talvezlheabraoslábios.”

“Pelo amor de Deus, conte-me, então, que mistério extraordinário éesse.”

“Vou contar, e vou lhemostrar os passos pelos quais cheguei a ele.Mas deixe-me dizer-lhe, em primeiro lugar, o que será mais di ícil paramimdizereparaosenhorouvir.HouveumentendimentoentreSirGeorgeBurnwellesuasobrinhaMary.Elesfugiramjuntos.”

“MinhaMary?Impossível!”“Infelizmente émais que possível; é certo. Nem o senhor nem o seu

ilho conheciam o verdadeiro caráter desse homem quando o admitiramem seu círculo familiar. É umdos homensmais perigosos da Inglaterra…umjogadorarruinado,umpatifeabsolutamentedesesperado;umhomemsem coração nem consciência. Sua sobrinha nada sabia sobre homensdessaespécie;quandoelelhesopravasuaspromessas,comofezcentenasdevezes, icavalisonjeadaporseraúnicaalhetocarocoração.Sóodiabosabeoqueelelhedizia,mas inalmenteelasetornouuminstrumentodeleeadquiriuohábitodevê-loquasetodasasnoites.”

“Nãopossoenãovouacreditarnisso!”gritouobanqueiro,lívido.“Voulhecontar,então,oqueaconteceunasuacasananoitepassada.

Quandoachouqueo senhor foraparao seuquarto, sua sobrinhadesceusorrateiramenteefoiconversarcomonamoradopelajanelaquedáparaaruela da estrebaria. Ele icou tanto tempo ali que suas pegadas icaram

marcadas na terra, sob a neve. Ela lhe falou do diadema. A avidezdepravadaporourodorapazin lamou-secomanotíciaeelelheimpôssuavontade.Nãotenhodúvidadequeelaoamava,mashámulheresemquemoamordeumamanteextinguetodososoutros;achoquesuasobrinhaeraassim.Elamalouvira as instruçõesdelequandoviuo senhordescendoaescada;fechouentãorapidamenteajanelaefalou-lhesobreumaescapadadeumadas criadas comseunamoradoperneta, oque eraperfeitamenteverdadeiro.

“Seu ilho,Arthur, foidormirapósaconversaquetevecomosenhor,masdormiumalporcausadesua inquietaçãocomasdívidasque temnoclube. No meio da noite, ouviu passos leves pela porta do quarto dele;levantou-see,aoolharparafora,teveasurpresadeveraprimaandandomuitofurtivamentepelocorredoratédesaparecernoseuquartodevestir.Petri icadopeloespanto,orapazvestiualgumacoisae icouesperandoalinoescuroparaverqualseriaodesfechodaqueleestranhoincidente.Logodepoiselasaiudoquartoe,àluzdalâmpadadocorredor,seu ilhoviuquetinhaopreciosodiademanasmãos.Eladesceuaescadaeele,palpitandodehorror,correuefoiseesconderatrásdacortinapertodasuaporta,deonde podia ver o que se passava no salão, embaixo. Viu-a abrir sub-repticiamentea janela,entregarodiademaparaumapessoanoescuroe,depois de fechá-la, correr de volta para o quarto dela, passando muitopertodolugaremqueeleseescondia.

“Enquanto ela estava em cena, ele nada pôde fazer sem exporhorrivelmente a mulher que amava. Assim que ela saiu, porém,compreendeuqueterríveldesgraçaaquilorepresentariaparaosenhoreaimportânciade corrigi-lo.Desceucorrendocomoestava,descalço, abriuajanela, pulou na neve e correu pela ruela, onde conseguiu divisar umaiguraescuraàluzdalua.SirGeorgeBurnwelltentouescapar,masArthuragarrou-o e os dois se engal inharam, cada um puxando uma ponta dodiadema.Nabriga,seu ilhoacertouummurroemSirGeorgeecortou-lheo supercílio. De repente houve um estalo, e seu ilho, vendo que tinha odiademanasmãos,correuparacasa,fechouajanela,subiuaoseuquartoehavia acabado de notar que o diadema fora torcido na luta, e tentavaendireitá-lo,quandoosenhorapareceu.”

“Serápossível!”disseobanqueiro,arquejante.“Em seguida o senhor o enraiveceu, insultando-o nummomento em

que se sentiamerecedor do seumais caloroso agradecimento.Não podiaexplicar o verdadeiro estado de coisas sem trair uma pessoa que

certamentemereciabempoucaconsideraçãodesuaparte.Maseleadotouaatitudemaiscavalheirescaepreservouosegredodela.”

“Foipor issoqueelagritouedesmaiouaoverodiadema”, exclamouMr.Holder.“Oh,meuDeus!Comofuitoloecego.Eelemepedindoqueeuodeixasse ir lá foraporcincominutos!Omeupobre rapazqueriaver seopedaçoquefaltavaestavanolocaldaluta.Comofuiinjustocomele!”

“Quando cheguei à casa”, continuou Holmes, “contornei-aimediatamente,observandocommuitocuidadosehaviaalgumvestígionanevequepudessemeajudar.Sabiaquenãonevaradesdeanoiteanterior,etambémqueafortegeadaquecaírapreservariaasimpressões.Percorrio caminho dos entregadores, mas estava todo pisoteado e indistinguível.Logo além dele, porém, do lado de lá da porta da cozinha, estivera umamulherconversandocomumhomem,cujaspegadasredondasdeumladomostraram-mequetinhaumapernadepau.Eupoderiaatédizerquealgoosperturbara,porqueamulhercorreudevoltaparaaportarapidamente,como mostravam as marcas profundas das pontas dos pés e as marcaslevesdoscalcanhares,enquantoPernetaesperaraumpoucoedepoisforaembora. Pensei na hora que essas marcas podiam ser da criada e donamorado, de que o senhor já me falara, e a investigação o con irmou.Andeipelojardimsemvernadaalémdepegadasaleatórias,queatribuíàpolícia; ao chegarà rueladaestrebaria,porém,deparei comuma longaecomplexahistóriaescritananeve.

“Haviauma linhadupladepegadasdeumhomemdebotinas,eumasegunda linha dupla que constatei, encantado, pertencer a um homemdescalço. Convenci-me de imediato, pelo que o senhorme havia contado,queestasúltimaspegadaseramdeseu ilho.Oprimeirohaviaandadonosdoissentidos,masooutrocorrerarapidamente,e,comoemalgunslugaressuas pegadas estavam impressas sobre a depressão da botina, era óbvioque passara depois do outro. Segui esses vestígios e vi que levavam àjanela do salão, onde Botinas havia feito a neve derreter enquantoesperava. Depois andei até a outra extremidade, que icava uns cemmetrosoumaisadiante,naruela.ViondeBotinasderameia-volta,ondeaneve estava esmigalhada como se tivesse havido uma briga, e, por im, olugarondealgumasgotasde sanguehaviamcaído,mostrando-mequeeunão me enganava. Depois Botinas correra ruela abaixo, e mais umapequena mancha de sangue mostrou-me que ele é que fora ferido. Aochegaràviaprincipal,naoutraextremidade,viqueacalçadaforalimpaequeaquelapistaterminara.

“Ao entrar na casa, porém, examinei, como o senhor se lembra, oparapeito e a esquadria da janela do salão comminha lente, e pude verimediatamente o que se passara. Pude distinguir uma marca que era ocontornodeumpémolhadoentrando.Nessaalturaeuestavacomeçandoaser capaz de formar uma opinião quanto ao que ocorrera. Um homemicaraesperandodoladodeforadajanela,alguémlhelevaraaspedras;oatoforapresenciadoporseu ilho,eleperseguiraoladrão, lutaracomele,osdoishaviampuxadoodiadema,esuasforçasunidashaviamcausadoàpeçadanosdequenenhumdosdoisteriasidocapazsozinho.Eleretornaracomoprêmio,masdeixaraumfragmentoempoderdoadversário.Atéaítudoestavaclaro.Agrandedúvidapassavaaser:quemeraessehomem,equemlevaraodiademaparaele?

“Segundo uma velha máxima minha, depois que se excluiu oimpossível,oquesobra,pormaisimprovávelqueseja,deveseraverdade.Ora, como eu sabia que não fora o senhor que levara o diadema até ajanela,sórestavamsuasobrinhaeascriadas.Massetivessesidoumadascriadas, por que seu ilho toleraria ser acusado em seu lugar?Não haviarazãopossível.Comoeleamavaaprima,noentanto,haviaumaexcelenteexplicaçãopara o fato de ter guardadoo segredodela— tantomais queeraumsegredovergonhoso.Quandolembreiqueosenhoraviraàjanela,ecomoeladesmaiaraaoverodiadema,minhaconjecturasetransformouemcerteza.

“Masquempoderiaserseucúmplice?Umnamorado,evidentemente,pois quem mais poderia sobrepujar o amor e a gratidão que ela deviasentir pelo senhor? Eu sabia que o senhor e ela saíam pouco, que seucírculodeamigoseramuito restrito.Entreeles,porém,estavaSirGeorgeBurnwell. Eu ouvira falar dele antes como um homem de má reputaçãoentre asmulheres. Devia ter sido ele que usara aquelas botinas e icaracom as pedras desaparecidas. Mesmo tendo sido desmascarado porArthur, talvezaindase julgasseseguro,porqueorapaznãopoderiadizerumapalavracontraelesemcomprometeraprópriafamília.

“Bem,seuprópriobom-sensovaiditarminhaspróximasmedidas.Fuià casa de Sir George sob o disfarce de um vagabundo, consegui travarconhecimentocomocriadodele, iqueisabendoqueseupatrãosofreraumcorte no rosto na véspera, e, inalmente,mediante o gasto de seis xelins,certi iquei-me de tudo comprando um par de botinas que ele mandarajogar fora. Voltei a Streatham com elas e veri iquei que correspondiamexatamenteàspegadas.”

“Vi um vagabundo malvestido na ruela ontem à noite”, disse Mr.Holder.

“Exatamente. Era eu. Tendo veri icado que encontrara meu homem,vim para casa e troquei de roupa. Foi um papel delicado o que tive deencenar então, porque via que era preciso evitar um processo, queocasionariaumescândalo,esabiaqueumpatifetãoastutoperceberiaqueestávamos demãos atadas na questão. Fui à sua casa e falei com ele. Aprincípio,éclaro,negoutudo.Masquandolhedeitodososdetalhesdoqueacontecera,tentoubancarovalentãoepegouumaarma.

“Meti-lheumapistolanacabeça.”[SidneyPaget,StrandMagazine,1892]

Maseusabia comquemestava lidandoe, antesquepudessemegolpear,meti-lheumapistolanacabeça.Depoisdissoelesetornouumpoucomaiscordato.Disse-lhequepagariapelaspedrasqueeletinhaemseupoder—mil libras por pedra. Isso provocou sua primeira manifestação dearrependimento. ‘Com os diabos! Vendi as três por seiscentos!’ Logo,prometendo-lhe que nenhuma ação seria movida contra ele, conseguiobter o endereço do receptador que as comprara. Corri ao homem e,depois de muito pechinchar, comprei as pedras por mil libras cada. Fuientãotercomseu ilho,contei-lhequeestavatudocertoeacabeicaindonacama por volta das duas damadrugada, depois do que posso realmente

chamardeumdurodiadetrabalho.”“Um dia que salvou a Inglaterra de um grande escândalo público”,

disse o banqueiro, levantando-se. “Senhor, não tenho palavras para lheagradecer, mas encontrarei alguma outra maneira de provar minhagratidão. Seu talento ultrapassou de fato tudo que me haviam dito dele.Agoradevoircorrendoaoencontrodemeuqueridorapaz,paralhepedirdesculpas pela injustiça que lhe iz. Quanto ao que o senhor me diz deminha pobre Mary, estou com o coração partido. Nem sua competênciapoderiamedizerondeelaestáagora.”

“Creio que podemos dizer com segurança”, respondeu Holmes, “queela está onde quer que Sir George Burnwell esteja. É igualmente certo,também, que, quaisquer que sejam os pecados de Mary, os dois logoreceberãoumcastigomaisquesuficiente.”

ASFAIASACOBREADAS

“PARA O HOMEM QUE APRECIA A ARTE pela arte”, observou Sherlock Holmesjogandode ladoa folhadeanúnciosdoDailyTelegraph , “sãomuitasvezessuas manifestações menos importantes e mais modestas que podemproporcionar o mais intenso prazer. É agradável para mim observar,Watson, que você está tão imbuído desta verdade que, nesses pequenosregistrosdenossoscasosqueteveabondadederedigir—embelezando-os aqui e ali, sou obrigado a dizer—, deu destaque não tanto àsmuitascausescélèbreseaosjulgamentossensacionaisemque igurei,masàquelesincidentes que podem ter sido triviais em si mesmos, mas deram lugaràquelas faculdades de dedução e de síntese lógica que transformei emmeudomínioespecial.”

“Apesar disso”, respondi, sorrindo, “não posso me considerarinteiramente inocente da acusação de sensacionalismo que foi lançadacontrameusregistros.”

“Vocêerrou,talvez”,eleobservou,pegandoumabrasaincandescentecom as tenazes e acendendo com ela o comprido cachimbo de cerejeiraque costumava substituir o de barro quando estava mais propenso adiscutirqueameditar…,“vocêerroutalvezaotentardarcorevidaacadauma de suas frases, em vez de se ater à tarefa de registrar aqueleraciocínio severo de causa para efeito que é realmente a únicacaracterísticanotáveldacoisa.”

“Pegandoumabrasaincandescentecomastenazes.”[SidneyPaget,StrandMagazine,1892]

“Tenho a impressão de que lhe iz plena justiça nessa matéria”,observeicomcertafrieza,porquemedesagradavaaegolatriaquemaisdeuma vez notara ser um forte componente do singular caráter de meuamigo.

“Não,nãoé egoísmooupresunção”,disse ele, respondendo, comodecostume, mais aos meus pensamentos que às minhas palavras. “Sereivindicoplenajustiçaparaminhaarte,éporqueelaéalgodeimpessoal…algo além de mim mesmo. O crime é comum. A lógica é rara. Por issomesmo, é sobre a lógica, não sobreo crime, que vocêdeveria se alongar.Vocêamesquinhouoquedeveriatersidoumasériedeconferênciasnumpunhadodehistórias.”

Era umamanhã fria no início da primavera e estávamos àmesa dodesjejum,cadaumdeum ladodeumfogoaconchegantenavelhasaladeBaker Street. Um nevoeiro espesso corria entre as ileiras de casaspardacentaseasjanelasfronteirasassomavamcomoborrõesescuros,semforma,atravésdaspesadasespiraisamarelas.Nossaluzagásestavaacesaebrilhavasobreatoalhabranca,aporcelanaeostalheres,porqueamesaaindanãoforatirada.SherlockHolmespassaratodaamanhãemsilêncio,folheandosempararas colunasdeanúnciosdeumasucessãode jornais,até que por im, tendo aparentemente desistido de sua busca, emergira

num estado de ânimo não muito jovial para me censurar por minhasinsuficiênciasliterárias.

“Aomesmotempo”,observoueledepoisdeumapausa,duranteaqualicara quieto, tirando baforadas de seu comprido cachimbo econtemplando o fogo, “di icilmente se poderia tachá-lo de sensacionalista,porque entre os casos pelos quais teve a bondade de se interessar, umaboa proporção não trata absolutamente de crimes, no sentido legal. Opequeno problema em que me esforcei por ajudar o rei da Boêmia, asingular experiência de Miss Mary Sutherland, a questão associada aohomemda boca torta e o incidente do nobre solteirão, todas estas foramquestõesqueescapamaoâmbitodalei.Mas,aoevitarosensacional,receioquevocêpossatertocadoasraiasdotrivial.”

“O impode ter sido trivial”, respondi, “massustentoqueosmétodosforaminovadoresedeinteresse.”

“Ora, meu caro amigo, que importância dá o público, que mal sabeidenti icarumtecelãopelodenteouumtipógrafopelopolegar,àsnuancesmais inasdaanáliseedadedução!Masnarealidade,sevocêétrivial,nãoposso culpá-lo por isso, porque o tempo dos grandes casos passou. Ohomem, ou pelo menos o criminoso, perdeu toda a sua iniciativa eoriginalidade.Quantoàminhaprópriaatividade, istoaquipareceestarsedegenerando numa agência para a recuperação de lápis perdidos e deaconselhamentoparamocinhasegressasde internatos.Creio,porém,queinalmentechegueiaofundodopoço.Suponhoqueestebilhetequerecebiestamanhãassinalemeupontozero.Leia!”Jogou-meumacartaamassada.Foraescritananoiteanterior,emMontaguePlace,edizia:

CAROMR.HOLMES,Estouextremamentedesejosadeconsultá-loquantoàconveniênciadeaceitarounãoumempregode governantaqueme foi oferecido. Ireivê-loamanhãàsdezemeia,seissonãooincomodar…

Atenciosamente,VIOLETHUNTER

“Conheceessajovem?”perguntei.“Emabsoluto.”“Sãodezemeiaagora.”“São,enãotenhodúvidadequeéelaqueestátocandoacampainha.”

“Issopodeacabarserevelandomais interessantedoquevocêpensa.Lembra-se do caso do Carbúnculo Azul? No início pareceu-me simplesextravagância, mas transformou-se numa investigação séria. Podeaconteceromesmonestecaso.”

“Bem,esperemosquesim!Masnossasdúvidaslogoserãodissipadas,pois,oumuitomeengano,oucáestáapessoaemquestão.”

Enquanto ele falava, a porta se abriu e uma jovem entrou na sala.Estava vestida com simplicidade, mas corretamente, tinha um rosto vivo,esperto,todosardento,emaneirasdespachadasdeumamulherquetiveradegarantiroprópriosustento.

“Osenhormeperdoaráo incômodo, tenhocerteza”,disseelaquandomeu companheiro se levantou para cumprimentá-la, “mas tive umaexperiênciamuito estranha, e como não tenho parentes nem relações denenhum tipo com quem me aconselhar, pensei que talvez o senhorpudesseterabondadedemedizeroquedevofazer.”

“Por favor, sente-se, Miss Hunter. Ficarei feliz em lhe ser útil comoquerqueseja.”

Pude ver que Holmes estava favoravelmente impressionado com asmaneiraseomododefalardesuanovacliente.Examinou-aàsuamaneirainquisitivaeemseguidapreparou-se,comaspálpebrasbaixaseaspontasdosdedosunidas,paraouvirsuahistória.

“Fuigovernantadurantecincoanos”,contouela,“nafamíliadocoronelSpence Munro. Dois meses atrás, porém, o coronel foi transferido paraHalifax, na Nova Escócia, e levou os ilhos consigo para a América; vi-meentãodesempregada.Publiqueiumanúncioerespondianúncios,massemsucesso. Por im o pouco dinheiro que havia economizado começou aacabareeujáestavaficandodesesperada.

“Há uma agência para governantas muito conhecida no West End,chama-seWestaway’s, e eu costumava ir lámais oumenos uma vez porsemana para ver se aparecera alguma coisa que pudesse me servir.Westaway era o nome do fundador do negócio, mas quem realmente oadministraéMissStoper.Ela icaemseupequenoescritórioeassenhorasque estão à procura de emprego esperam na antessala; são entãochamadasumaauma,MissStoperconsultaseus livrosevêseháalgumacoisaquelhespoderiaconvir.

“Pois bem, quando estive lá na semana passada, fui introduzida nopequeno escritório como de costume,mas vi queMiss Stoper não estava

sozinha. Ao lado dela estava sentado um homem prodigiosamente gordo,comumrostomuitosorridenteeumenormeepesadoqueixoquelhecaía,camadaapóscamada,pelopescoçoabaixo.Comumpardeóculosnonariz,o homem olhava muito seriamente para as senhoras que entravam.Quando entrei ele deu um pulo na cadeira e se virou rapidamente paraMissStoper.

“‘Estaservirá!’disse. ‘Eunãopoderiaquerernadamelhor.Excelente!Excelente!’Pareciamuitoentusiasmadoeesfregavaasmãosdesatisfação.Era um homem que parecia tão contente de si que era um prazer olharparaele.

“‘Estáprocurandoumemprego,senhorita?’“‘Sim,senhor.’“‘Comogovernanta?’“‘Sim,senhor.’“‘Equantodesejaganhar?’“‘Ganhava quatro libras por mês em meu último emprego com o

coronelSpenceMunro.’“‘Ora,mascomo?Exploração…exploração!’exclamoujogandoasmãos

gordas para cima, arrebatado. ‘Comopoderia alguémoferecer uma somatãodesprezívelparaumasenhoritacomtaisatrativoseprendas?’

“‘Minhas prendas, senhor, talvez sejam menores do que imagina’,disseeu.‘Umpoucodefrancês,umpoucodealemão,músicaedesenho…’

“‘Ora,ora!’ exclamou. ‘Nadadisso interessa.Oque importaé, temounãotemasenhoritaoporteeasmaneirasdeumadama?Emsíntese,ésóisto.Senão tem,nãoestáaptaparaeducarumacriançaquepodevirumdiaadesempenharumpapelconsiderávelnahistóriadopaís.Massetem,como pode um cavalheiro pedir-lhe que se digne a aceitar alguma coisaabaixode trêsalgarismos?Seusaláriocomigo,minha jovem,seriadecemlibrasporano,paracomeçar.’

“Osenhorpodeimaginar,Mr.Holmes,queparamim,pobrecomosou,uma oferta como essa pareceu quase boa demais para ser verdade. Ocavalheiro, no entanto, vendo talvez o olhar de incredulidade em meurosto,abriuumacarteiraetirouumanota.

“‘É também um hábito meu’, disse ele, sorrindo da maneira maisbenévola,atéseusolhospareceremduasrisquinhasbrilhantesemmeioàspregas brancas de seu rosto, ‘pagar às minhas jovens metade de seusalário antecipadamente, para que possam fazer face a quaisquer

pequenasdespesascomaviagemoucomseuguarda-roupa.’“Pareceu-mequenunca tinha conhecidoumhomem tão fascinante e

tãoatencioso.Comoeu jáestavadevendoacomerciantes,oadiantamentome era muito conveniente; ao mesmo tempo, havia em toda aquelatransaçãoalgodeesquisitoquemefezdesejarsaberumpoucomaisantesdemecomprometerporcompleto.

“‘Possolheperguntarondemora,senhor?’disseeu.“‘Hampshire.Umaaprazível propriedade rural.AsFaiasAcobreadas,

oito quilômetros depois de Winchester. É uma linda região, minha carasenhorita,eamaisencantadoraeantigacasadecampo.’

“‘Eminhasobrigações,senhor?Gostariadesaberquaisseriam.’“‘Uma criança… um adorável traquinas de apenas seis anos. Ah, se

pudessevê-lomatandobaratas comumchinelo!Pá!Pá!Pá!Trêsbaratasmortas num piscar de olhos.’ Recostou-se na cadeira e caiu de novo nagargalhada.

“Eu estava um pouco assustada com a natureza do divertimento dacriança,masorisodopaimefezpensarquetalvezestivessebrincando.

“‘Minhas únicas obrigações, portanto’, perguntei, ‘seriam cuidar deumasócriança?’

“‘Não, não, não as únicas, não as únicas, minha cara jovem’, eleexclamou. ‘Seu dever seria, como estou certo de que seu bom-senso lhesugeriria, obedecer a quaisquer pequenas ordens que minha mulherpossa lhedar,semprecontantoquesejamordensaqueumadamapossaobedecercomdecoro.Nãovêdificuldadenisso,nãoé?’

“‘Euteriaprazeremserútil.’“‘Naturalmente. Em matéria de roupas, por exemplo! Somos uma

gentecheiadecaprichos—cheiadecaprichos,masdebomcoração.Selhepedíssemosparausarumvestidoquelhedéssemos,asenhoritanãofariaobjeçãoanossopequenocapricho,faria?’

“‘Não’,disseeu,espantadíssimacomsuaspalavras.“‘Ouparasesentaraquiouali;issoseriaofensivoparaasenhorita?’“‘Claroquenão.’“‘Ouparacortarseucabelobemcurtoantesdeirterconosco?’“Eu mal podia acreditar nos meus ouvidos. Como o senhor pode

observar,Mr.Holmes,meucabeloéumtantoluxurianteedeumcastanhobastante peculiar. Já o consideraram artístico. Eu não podia nem sonhar

comaideiadesacrificá-lodessamaneiraextemporânea.“‘Temo que isso seja absolutamente impossível’, respondi. Ele me

itavaansiosamentecomseusolhinhosepudeverumasombraperpassarseusemblantequandofalei.

“‘Temo que isso seja absolutamente essencial’, retrucou ele. ‘É umpequenocaprichodeminhamulher,ecaprichosdeumadama,asenhoritabem sabe, os caprichos de uma dama devem ser consultados. Então nãocortariaocabelo?’

“‘Não,senhor,realmentenãopoderia’,respondicomfirmeza.“‘Ah, muito bem; isso é decisivo. É uma pena, porque sob outros

aspectos a senhorita realmente nos conviriamuito bem.Nesse caso,MissStoper,prefiroinspecionarmaisalgumasdesuasjovens.’

“Nessemomento,agerente,quepassara todoaquele tempoocupadacomseuspapéis,semumapalavraparanenhumdenós, itou-mecomumaexpressãodetamanhairritaçãoquenãopudedeixardesuspeitarqueelahaviaperdidoumabelacomissãocomminharecusa.

“‘Desejaqueseunomesejamantidoemnossoslivros?’perguntou.“‘Sim,porfavor,MissStoper.’“‘Bem,masnaverdadepareceinútil,jáqueasenhoritarecusaasmais

esplêndidasofertasdessamaneira’,disseelarudemente. ‘Nãoesperequenos esforcemos para encontrar uma outra oportunidade como esta paralhe oferecer. Tenhaumbomdia,MissHunter.’ Bateunumgongo sobre amesaeocriadolevou-meatéaporta.

“Bem,Mr.Holmes,quandochegueiemcasaeencontreipoucacomidanoarmárioeduasoutrêscontassobreamesa,comeceiaperguntaramimmesma se não havia cometido uma grande tolice. A inal de contas, seaquelas pessoas tinham estranhas manias, e esperavam obediência nosassuntosmaisextraordinários,pelomenosestavamdispostasapagarporsua excentricidade.Muito poucas governantas na Inglaterra ganham cemlibrasporano.Alémdisso,queutilidadetemmeucabeloparamim?Muitaspessoas icammelhordecabelocurto,e talvezeufosseumadelas.Nodiaseguinte eu já me inclinava a pensar que cometera um erro; dois diasdepois, tinhacertezadisso.Haviaquaseconseguidosuperarmeuorgulho,para admitir voltar à agência e indagar se o emprego ainda estavadisponível,quandorecebiumacartadoprópriocavalheiro.Tenho-aaquievoulê-laparaosenhor.

AsFaiasAcobreadas,pertodeWinchesterCARAMISSHUNTER,Miss Stoper teve a gentileza de me dar seu endereço e escrevo-lhedaquiparalheperguntarsereconsiderousuadecisão.Minhamulherestá muito desejosa de que venha, porque a descrição que iz dasenhorita agradou-lhe muito. Estamos dispostos a pagar-lhe trintalibras por trimestre, ou cento e vinte libras por ano, de modo arecompensá-la por qualquer pequeno inconveniente que nossoscaprichospossamlheocasionar.No inaldascontas,nãosomosmuitosexigentes. Minha mulher gosta muito de um tom particular de azul-elétrico, e gostaria que a senhorita usasse um vestido dessa cor demanhã.Asenhoritanãoprecisa,contudo,fazeradespesadecomprá-lo, porque temos umpertencente àminha querida ilha Alice (agoranaFiladél ia)que,pensoeu, lheserviriamuitobem.Depois,quantoase sentar aqui ou ali, ou a se entreter damaneira indicada, isso nãoprecisa lhe ocasionar nenhum estorvo. Quanto a seu cabelo, é semdúvida uma pena, em especial porque não pude deixar de notar abeleza dele durante nossa breve entrevista, mas temo que devapermanecer irme nesse ponto, e só espero que um salário maiorpossa recompensá-la por essa perda. Suas obrigações, no que dizrespeitoàcriança, sãomuito leves.Agora,por favor,procurevir. Ireibuscá-lacomodog-cartemWinchester.Comunique-meporquetremvirá.

Atenciosamente,JEPHRORUCASTLE

“Estaéacartaqueacabodereceber,Mr.Holmes,eestoudecididaaaceitar a proposta. Achei porém que, antes de dar o último passo, seriabomsubmetertodooassuntoàsuaconsideração.”

“Bem, Miss Hunter, se já se decidiu, não há mais o que conversar”,disseHolmes,sorrindo.

“Masosenhornãomeaconselhariaarecusar?”“Confessoquenãoéoempregoparaoqualgostariadeverumairmã

secandidatar.”“Qualseráosentidodetudoisso,Mr.Holmes?”“Ah, não tenho dados. Não sei. Talvez a senhorita já tenha formado

umaopinião?”

“Bem,sómeparecehaverumasoluçãopossível.Mr.Rucastledeu-meaimpressãodeserumhomemmuitobondosoeafável.Nãoseriapossívelquesuamulhersejaumalunática,queeledesejemanterissoemsegredoparaevitarquealevemparaumasilo,equeatendaaoscaprichosdeladetodasasmaneirasparaevitarumacesso?”

“Esta é uma solução possível… de fato, tal como as coisas seapresentam, é a mais provável. Mas, seja como for, essa não parece serumacasaadequadaparaumajovem.”

“Masodinheiro,Mr.Holmes,odinheiro!”“Bem,sim,claroqueopagamentoébom…bomdemais.Éissoqueme

deixainquieto.Porquehaveriamelesdelhepagarcentoevintelibrasporanoquandopoderiam ter amelhor das governantas por quarenta?Devehaverumaforterazãoportrásdisso.”

“Pensei que ao lhe contar as circunstâncias o senhor compreenderiamelhor as coisas se,mais tarde, eu quisesse a sua ajuda. Eume sentiriamuitomaisfortalecidasesentissequetenhooseurespaldo.”

“Oh, pode partir com a certeza disso. Eu lhe asseguro que seuprobleminha promete ser o mais interessante com que me deparo háalguns meses. Há algo de nitidamente original em algumas de suascaracterísticas.Seasenhoritaseviremdúvidaouemperigo…”

“Perigo!Queperigoosenhorprevê?”Holmes sacudiu gravemente a cabeça. “Se eu pudesse de ini-lo,

deixariadeserumperigo”,disse.“Masaqualquerhoradodiaoudanoiteumtelegramamefaráacorreremsuaajuda.”

“Isto basta.” Miss Hunter levantou-se nummovimento decidido, semmaisum traçodeansiedadeno rosto. “PartireiparaHampshire tranquilaagora.EscrevereideimediatoaMr.Rucastle,sacri icareimeupobrecabeloesta noite e tomarei o trem para Winchester amanhã.” Com algumaspalavras de gratidão para Holmes, deu-nos boa-noite a ambos e saiurapidamente.

“Holmessacudiugravementeacabeça.”[SidneyPaget,StrandMagazine,1892]

“Pelomenos”,disseeu,quandoouvimosseuspassos ligeirose irmesdescendoaescada,“elapareceserumajovemcapazdetomarcontadesimesma.”

“E vai precisar disso”, disse Holmes gravemente. “Ou muito meengano,ounãosepassarãomuitosdiasantesqueouçamosfalardela.”

A previsão de meu amigo cumpriu-se. Passaram-se duas semanas,duranteasquaismeuspensamentosvoltaram-semuitasvezesnadireçãodela, conjecturandoemqueestranhodesvioda experiênciahumanaessamulhersolitáriaseextraviara.Osalárioincomum,ascondiçõescuriosas,asobrigações leves, tudo apontava para algo anormal, embora estivesseinteiramente acima de meus poderes determinar se aquilo eraexcentricidade ou conspiração, ou se o homem era um ilantropo ou umcanalha. Quanto a Holmes, eu observava que ele icara sentado por umaboa meia hora, as sobrancelhas franzidas e um ar distraído; quando eumencionava o assunto, porém, ele o repelia, sacudindo a mão. “Dados!Dados! Dados!” exclamava com impaciência. “Não posso fazer tijolos sembarro.” Mesmo assim, acabava sempre murmurando que nenhuma irmãdelejamaisteriaaceitadoumempregocomoaquele.

O telegrama que inalmente recebemos chegou tarde da noite,exatamentequandoeupensavaemirparaacamaeHolmessepreparavapara uma daquelas noites dedicadas a investigações químicas a quefrequentemente se entregava, quando eu o deixava inclinado sobre umaretorta eum tubodeensaio ànoite eo encontravanamesmaposiçãoao

descerdemanhãparaodesjejum.Eleabriuoenvelopeamareloe,depoisdeterpassadoosolhospelamensagem,jogou-aparamim.

“Dê uma olhada nos trens no Bradshaw”, e voltou a seus estudosquímicos.

Tratava-sedeumapelobreveeurgente.

Porfavor,estejanoBlackSwanHotelemWinchesteramanhãaomeio-dia.Venha!Estoudesesperada.

HUNTER

“Irácomigo?”perguntouHolmes,levantandoosolhos.“Gostariamuito.”“Entãovejaoshorários.”“Há um trem às nove e meia”, disse eu, passando os olhos emmeu

Bradshaw.“DevechegaraWinchesteràsonzeemeia.”“Essenosservirámuitobem.Nessecaso, talvezsejamelhoreuadiar

minhaanálisedasacetonas, jáquepossoprecisarestarnaminhamelhorformademanhã.”

Às onze horas do dia seguinte estávamos próximos da velha capitalinglesa. Holmes estivera absorto nos jornais da manhã durante todo otrajeto,masdepois quedeixamospara trás a fronteiradeHampshire eleos jogou no chão e começou a admirar a paisagem. Era um dia ideal deprimavera, um leve céu azul, pontilhado de nuvenzinhas brancas comolocos de algodão que se moviam de oeste para leste. O sol brilhavaintensamente,mashavianoarumfriorevigorantequelevantavaoânimodeumhomem.Portodaaregiãorural,atéosmorrosonduladosemtornode Aldershot, os telhadinhos vermelho e cinza das granjas despontavamemmeioaoverde-clarodafolhagemnova.

“Não são claras e bonitas?!” exclamei com todo o entusiasmo de umhomemrecém-saídodosnevoeirosdeBakerStreet.

MasHolmessacudiuacabeçagravemente.“Sabe,Watson, umadasmaldições de ter um cérebro comoomeu é

que estou condenado a ver todas as coisas referindo-as àminha própriaespecialidade. Você contempla essas casinhas espalhadas e icaimpressionado com sua beleza. Eu olho para elas e o único pensamentoquemeocorreéumsensodeseuisolamentoedaimpunidadecomqueo

crimepoderiasercometidoaí.”“MeuDeus!”exclamei.“Quemassociariacrimecomessaslindascasas

defazendaantigas?”“Elas sempre me enchem de certo horror. É minha crença, Watson,

fundadanaminhaexperiência,queosmaishumildesesórdidosbecosdeLondresnãoapresentamumhistóricodepecadosmaispavorosoqueodamaissorridenteebelaregiãorural.”

“Vocêmehorroriza!”“Masas razões sãoóbvias.Na cidade, apressãodaopiniãopúblicaé

capazdefazeroquealeinãoconsegue.Nãoháruelatãovilqueogritodeuma criança torturada, ou o ruído surdo da queda do bêbado, não gerecomiseraçãoeindignaçãoentreosvizinhos,etodaamaquinariadajustiçaestá sempre tão próxima que uma palavra de queixa pode pô-la emmovimento, e só umdegrau separa o crime do banco dos réus.Mas olheessas casas isoladas, cada uma em seus próprios campos, cheias em suamaiorpartedegentepobreeignorantequepoucoconhecedasleis.Pensenos atos de crueldade diabólica, na perversidade oculta que podeprosseguiranoapósanoem lugarescomoesses, semqueninguémsaiba.Se essa jovemquepedenosso socorro tivesse idomorar emWinchester,eununcateriamepreocupadocomela.Sãoosoitoquilômetrosdecampoque fazem o perigo. Ainda assim, é claro que ela não está pessoalmenteameaçada.”

“Não.SepodeirnosencontraremWinchester,podesair.”“Éclaro.Temliberdade.”“Nesse caso, qual pode ser o problema? Consegue sugerir uma

explicação?”“Imaginei sete explicações diferentes. Todas dariam conta dos fatos

até onde os conhecemos; qual é a correta, porém, só poderá serdeterminadopelanovainformaçãoquesemdúvidaestaráànossaespera.Bem,aliestáatorredacatedral,logosaberemostudoqueMissHuntertemacontar.”

O Black Swan era uma hospedaria de bom nome na High Street, apouca distância da estação, e lá encontramos a moça à nossa espera.Alugaraumasalaenossoalmoçonosesperavasobreamesa.

“Estou tão felizque tenhamvindo”,dissecomsinceridade. “Foimuitagentileza de ambos; mas realmente não sei o que fazer. O conselho dossenhoresseráabsolutamenteinestimávelparamim.”

“Porfavor,conte-nosoquelheaconteceu.”“Vou contar, e devo ser rápida, porque prometi aMr. Rucastle estar

devolta antesdas três.Elemedeu licençaparavir à cidadeestamanhã,emboranemimagineparaquefim.”

“Relate-nostudonadevidaordem.”Holmesesticouaspernasmagrasecompridasnadireçãodofogoepreparou-separaouvir.

“Emprimeiro lugar,devodizerque,emgeral,não fuimaltratadaporMr. eMrs.Rucastle.Émeudeverde justiçapara comelesdizer isto.Masnãoconsigoentendê-losenãoestoutranquilaarespeitodeles.”

“Nãoconsegueentenderoquê?”“As razões de suas condutas. Mas vou lhes contar tudo exatamente

comoaconteceu.Quandovim,Mr.Rucastleveiomebuscaraquielevou-meem seudog-cart para As Faias Acobreadas. A casa, como ele disse, icasituadanumabonita região,mas elamesmanão é bonita, consistindo emum grande bloco quadrado; é caiada, mas toda manchada e raiada pelaumidadeeomautempo.Háterrenosemvoltadela,bosquesdetrêslados,mas no quarto há um campo em declive que vai até a estrada deSouthampton, cujas curvas passam a cerca de cem metros da porta dafrente. Esse terreno da frente pertence à casa, mas os bosques que acercamsãopartedasreservasdeLordSoutherton.Umarvoredode faiasacobreadasbememfrenteàportadovestíbulodeunomeaolugar.

“Fui conduzida por meu patrão, que estava amável como sempre, enaquela noite eleme apresentou à suamulher e à criança. A conjecturaquenospareceuprovávelemseuapartamentodeBakerStreetnadatemdeverdade,Mr.Holmes.Mrs.Rucastlenãoélouca.Oqueencontreifoiumamulher silenciosa, pálida, muito mais jovem que o marido; não lhe dariamais de trinta anos, ao passoque ele di icilmentepoderia termenosquequarenta e cinco. Da conversa deles, entendi que estão casados há cercadeseteanos,queeleeraviúvoesótevecomaprimeiramulhera ilhaquefoiparaFiladél ia.Mr.Rucastledisse-meprivadamentequeomotivoquealevou a partir foi a aversão irracional que sentia pelamadrasta. Como ailha não podia ter menos de vinte anos, imagino perfeitamente quedevessesesentirpoucoconfortávelemrelaçãoàjovemmulherdeseupai.

“Mrs. Rucastle pareceu-me sem graça tanto mental quantoisicamente. Não me impressionou nem bem nem mal. É um zero àesquerda.Pode-severfacilmentequeédevotadadecorpoealmatantoaomarido quanto ao ilhinho. Seus olhos cinza-claros passavam

continuamentedeumparaooutro,observandocadapequenanecessidadeesatisfazendo-asepossível.Eletambémébondosocomelaàsuamaneirabruscaeexuberante,eparecememgeralserumcasalfeliz.Apesardisso,ela tem alguma dor secreta, essa mulher. Muitas vezes pareceprofundamentemergulhadaempensamentos,comamaistristeexpressãonorosto.Maisdeumavezeuasurpreendiemlágrimas.Chegueiapensarque era a índole do ilho que a a ligia, pois nunca vi uma criaturinha tãoestragada commimos e tão geniosa. Ele é pequeno para sua idade, comumacabeçadesproporcionalmentegrande.Parecepassar todaasuavidanumaalternânciadeataquesfuriososdemaugênioe intervalossombriosde melancolia. Provocar dor em qualquer criatura mais fraca que eleparece ser sua única ideia de diversão, mostrando notável talento emplanejar a captura de camundongos, passarinhos e insetos. Mas eupreferiria não falar sobre omenino,Mr.Holmes, e na verdade ele poucotemavercomaminhahistória.”

“Aprecio todos os detalhes”, lembroumeu amigo, “quer lhe pareçamounãorelevantes.”

“Tentareinãoomitirnadade importante.Aúnica coisadesagradávelnacasa,quemechamouaatenção,éaaparênciaeocomportamentodoscriados.Sãodois,umhomemesuamulher.Toller,comoelesechama,éumhomem grosseiro, abrutalhado, com cabelos e suíças grisalhos e umperpétuo cheiro de bebida.Desde que estou comeles, icou inteiramentebêbado duas vezes, sem queMr. Rucastle parecesse notar. Sua esposa éuma mulher muito alta e forte, com uma cara rabugenta, tão silenciosaquanto Mrs. Rucastle e muito menos amistosa. Formam um casalextremamentedesagradável,mas felizmentepasso amaiorpartedomeutempo no quarto da criança e nomeu, que icam próximos um do outronumcantodacasa.

“DepoisquechegueiaFaiasAcobreadas, leveidurantedoisdiasumavidamuitosossegada;noterceiro,Mrs.Rucastledesceuquasenahoradodesjejumesussurroualgumacoisanoouvidodomarido.

“‘Ah sim’, disse ele, virando-se para mim; “nós lhe estamos muitoagradecidos, Miss Hunter, por atender a nossos caprichos a ponto decortarseucabelo.Asseguro-lhequeissonãoprejudicouemabsolutamentenada sua aparência. Vejamos agora como o vestido azul-elétrico lheassenta.A senhoritaoencontraráestendido sobrea camado seuquarto;sepuderfazeragentilezadevesti-lonósdoislheficaríamosextremamentegratos.’

“Encontreiàminhaesperaumvestidodeumtompeculiardeazul.Erafeitodeumtecidoexcelente,umaespéciedebeige,masapresentavasinaisinequívocosde já tersidousadoantes.Se tivessesido feitoparamimsobmedida, não me teria servido melhor. Mr. e Mrs. Rucastle mostraram-seambos encantados ao vê-lo, comdemonstrações cuja veemência pareceu-me bastante exagerada. Estavam àminha espera na sala de estar, que émuito grande, estendendo-se por toda a frente da casa, com três amplasjanelasquedescematéoassoalho.Umacadeiraforapostapertodajanelacentral, de costas para ela. Pediram-me que me sentasse nela, e emseguida Mr. Rucastle, andando para cá e para lá no outro lado da sala,começouamecontarumasériedashistóriasmaisengraçadasquejáouvi.Não pode imaginar como ele era cômico, e eu ri até icar exausta. Mrs.Rucastle,noentanto,queevidentementenãotemnenhumsensodehumor,sequer esboçou um sorriso; icou lá sentada com asmãos no colo e umaexpressão triste e ansiosa no rosto. Depois de cerca de uma hora, Mr.Rucastleobservoude repentequeestavanahorade retomaros serviçosdo dia; disse que eu podia trocar o vestido e voltar para o quarto dopequenoEdward.

“Dois dias depois a mesma cena se repetiu em circunstânciasexatamente iguais.Denovo troqueide vestido, denovo sentei-me junto àjanela, e denovo ri às gargalhadasdas histórias engraçadasde quemeupatrão tinha um imensorepertoire e sabia contar como ninguém. Depoiseleme deu um romance de capa amarela e, empurrandominha cadeiraumpoucoparao ladoparaqueminhaprópriasombranãocaíssesobreapágina,pediu-meque lesseemvozaltaparaele. Lidurante cercadedezminutos,começandonomeiodeumcapítulo;depois,subitamente,nomeiodeumafrase,elemeordenouqueparasseefossetrocarovestido.

“Pode imaginar facilmente, Mr. Holmes, como fui icando curiosaquantoaosentidodaquelaencenaçãoextraordinária.Eles tinhamsempremuito cuidado, eu observei, emdesviarmeu rosto da janela, de talmodoquepasseiaarderdedesejodeveroquesepassavaàsminhascostas.Deiníciopareceuimpossível,maslogodescobriumamaneira.Meuespelhodemão se quebrara, e issome deu a feliz ideia de esconder um fragmentodele emmeu lenço.Naocasião seguinte, nomeiodeminhas gargalhadas,levei o lenço aos olhos e com um pouco de jeito consegui ver tudo quehaviaatrásdemim.Confessoque iqueidesapontada.Nãohavianada.Pelomenos essa foi minha primeira impressão. Ao olhar pela segunda vez,porém,percebiquehaviaumhomempostadoemSouthamptonRoad,um

homenzinho barbadometido num terno cinza, que parecia estar olhandona minha direção. A estrada é uma via importante, e costuma haverpessoas ali. Esse homem, no entanto, estava apoiado na cerca quecontornavanosso terreno, olhando ixamente para cima. Baixei o lenço e,ao lançar os olhos sobre Mrs. Rucastle, vi que me observava muitoatentamente.Elanãodissenada,masestou convencidadequeadivinhouque eu tinha um espelho na mão e vira o que havia atrás de mim.Levantou-seimediatamente.

“‘Jephro’,disse,‘háumsujeitoatrevidonaestrada,olhandoparaMissHunter.’

“‘Nãoseriaumamigoseu,MissHunter?’perguntouele.“‘Não,nãoconheçoninguémporaqui.’“‘Vejam só que impertinência! Por favor, vire-se e faça-lhe um sinal

parairembora.’“‘Nãoseriamelhorignorá-lo?’“‘Não,não,nósoteríamosflanandoporaquiatodahora.Porgentileza,

vire-seefaça-lheumacenocomamão,assim.’“‘Fizoqueelemandavae,nomesmoinstante,Mrs.Rucastlebaixoua

veneziana. Isso foi há uma semana, e desde então nãome sentei mais àjanela,nãouseiovestidoazulnemviohomemnaestrada.”

“Porfavor,continue”,disseHolmes.“Suanarrativaprometesermuitointeressante.”

“Receio que ela lhe pareça muito desconexa, e talvez haja poucaligaçãoentreosdiferentesincidentesdequefalo.Logonoprimeirodiaquepassei nas Faias Acobreadas, Mr. Rucastle me levou a um pequenobarracão,próximodaportadacozinha.Aonosaproximarmos,ouvioruídode uma corrente e um som que parecia ser o de um animal grande semovendo.

“‘Espieaqui!’disseMr.Rucastlemostrando-meumafendaentreduastábuas.‘Elenãoéumabeleza?’

“Olhei epercebidoisolhosesbraseadoseuma iguravagaencolhidanaescuridão.

“‘Não se assuste’, dissemeu patrão, rindo domeu sobressalto. ‘É sóCarlo,meumastim.Digo que émeu,mas na verdade o velhoToller,meucavalariço,éaúnicapessoacapazdelidarcomele.Nósoalimentamosumavez por dia, e só um pouco, de modo que está sempre faminto. Toller osolta todanoite, e coitadodaquele emque incar seus caninos.Pelo amor

deDeus,nunca,sobnenhumpretexto,ponhaopéforadaportaànoite,ousuavidaestaráliquidada.’

“Oavisonãofoi inútil,porqueduasnoitesdepoisolheiporacasopelajanela demeu quarto por volta das duas horas damadrugada. Era umabonitanoitedelua,eogramadoemfrenteàcasaestavaprateadoequasetão claro como de dia. Eu estava de pé, enlevada pela plácida beleza dacena, quandopercebi que alguma coisa semexia sob a sombradas faias.Quandoaquiloemergiunaluz,vioqueera.Umcãogigantesco,dotamanhode um bezerro, de um amarelo-acastanhado, de queixada pendente,focinho preto e enormes ossos salientes. Andou devagar pelo gramado edesapareceu na sombra do outro lado. Aquelamedonha sentinela gelou-meosanguenasveiascomopensoquenenhumladrãoteriafeito.

“Agora,tenhoumaexperiênciamuitoestranhaparalhescontar.Comosabem, eu havia cortado o meu cabelo em Londres; depois, guardara-onumgrandecachonofundodemeubaú.Umanoite,depoisqueacriançaestava na cama, comecei a me divertir examinando a mobília de meuquarto e arrumandomeus poucos pertences.Havia no quarto uma velhacômoda com duas gavetas vazias e abertas e uma terceira trancada. Euenchera as duas primeiras comminha roupa branca e, como ainda tinhamuita coisa para guardar, iquei naturalmente aborrecida por não poderusaraterceiragaveta.Ocorreu-meentãoqueelapoderiatersidofechadapormerodescuido;assim,pegueiminhapencadechavese tenteiabri-la.Logo a primeira chave serviu perfeitamente e abri a gaveta. Havia umaúnica coisa nela, mas tenho certeza de que os senhores jamaisadivinhariamoqueera.Erameucachodecabelo.

“Peguei-o e examinei-o. Era da mesma cor peculiar e da mesmaespessuraqueomeu.Masentãoaimpossibilidadedaquiloseimpôsamim.Como podia meu cabelo ter sido trancado naquela gaveta? Com mãostrêmulas,des izmeubaú,tireitudoqueestavaneleepuxeidofundomeuprópriocabelo.Pusasduastrançasladoalado,easseguro-lhesqueeramidênticas.Nãoeraextraordinário?Fiqueiperplexae inteiramente incapazde imaginar o que tudo aquilo podia signi icar. Pus o estranho cabelo devoltanagavetaenãodisseumapalavrasobreoassuntoaosRucastle,poismepareceuque cometeraumerro ao abrir umagavetaque eleshaviamtrancado.

“Sou naturalmente observadora, como talvez tenha notado, Mr.Holmes, e logo tinha uma planta bastante boa da casa toda em minhacabeça.Haviaumaala,contudo,queparecianãoserhabitadaemabsoluto.

UmaportafronteiraàquelaquelevavaaosaposentosdosTollerdavaparaesses cômodos, mas estava invariavelmente fechada. Um dia, porém,quando eu descia a escada, dei comMr. Rucastle saindo por essa porta;tinhasuaschavesnamãoe,norosto,umaexpressãoqueotornavamuitodiferente do gorducho bonachão a que eu estava acostumada. Suasbochechas estavam vermelhas, a testa vincada e as veias das têmporassaltadasderaiva.Trancouaportaepassoupormimàspressassemumapalavraouolhar.

“Isso despertou minha curiosidade. Assim, quando saí para umpasseiono terrenodacasacomacriança,caminheiatéo ladodeondesepodiamverasjanelasdessapartedacasa.Elaseramquatro,numa ileira;três estavam simplesmente sujas mas a quarta estava bloqueada.Evidentementeestavamtodasforadeuso.Enquantoeupasseavaparacáepara lá, olhando vez por outra para elas, Mr. Rucastle saiu à minhaprocura,parecendotãoalegreejovialcomosempre.

“‘Ah!’disseele,‘nãomejulguerudesepasseipelasenhoritasemumapalavra,minhacarajovem.Estavapreocupadocomassuntosdenegócios.’

“Assegurei-lhequenãoestavaofendida.‘Porsinal’,disseeu,‘osenhorparece ter toda uma sequência de cômodos vagos ali, e um deles estávedadocomtábuas.’

“Ele icou surpreso e, pareceu-me, um pouco assustado com minhaobservação.

“‘Afotogra iaéumdosmeushobbies’,respondeu. ‘Fizminhacâmaraescura ali em cima. Mas valha-me Deus! Quemocinhamais observadoraesta! Quem teria acreditado? Quem jamais teria acreditado?’ Falava emtombrincalhão,masnãohaviabrincadeiraemseusolhosquandome itou.Linelesdesconfiançaeirritação,nãobrincadeira.

“Bem,Mr.Holmes,apartirdomomentoemquecompreendiquehaviaalgumacoisaligadaàquelasériedecômodosqueeunãodeviasaber,ardidedesejodeirlá.Nãoerameracuriosidade,emboraeutenhaminhacotadela. Eramais um sentimento de dever— um sentimento de que, se eufosse àquele lugar, algum bem poderia advir disso. Falam de instintofeminino; talvez fosse o instinto feminino que me inspirasse essesentimento. Seja como for, eu estava tomada por ele e espreitandoavidamentequalquerpossibilidadedetransporaportaproibida.

“Foisóontemqueachancechegou.Posso lhedizerque,alémdeMr.Rucastle, tanto Toller quanto suamulher acham alguma coisa para fazer

naqueles cômodos abandonados, e uma vez eu o vi passar pela portacarregando um grande saco de pano preto. Ultimamente ele vinhabebendomuito;ontemànoiteestavabastanteembriagadoe,quandovimao segundo andar, vi a chavenaporta.Não tivenenhumadúvidadequeele a deixara ali. Como Mr. e Mrs. Rucastle encontravam-se ambos notérreoeacriançaestavacomeles,eu tinhaumaoportunidadeadmirável.Girei a chave suavemente na fechadura, abri a porta e entreisorrateiramente.

“Haviaumpequeno corredordiantedemim, sempapel nasparedesnem tapete, que virava em ângulo reto na outra extremidade. Viam-seentão três portas umadepois da outra, a primeira e a terceira das quaisestavam abertas. Ambas davam para dois quartos vazios, empoeirados esombrios,comduasjanelasemumeumanooutro,tãoempoeiradasquealuzda tardemalaspenetrava.Aportadomeioestava fechada, edo ladodeforadelaestavapregadaumadasbarraslargasdeumacamademetal.Uma das pontas da barra estava presa com um cadeado a um anel naparede e a outra amarrada com uma corda resistente. A portapropriamente dita estava trancada também, e a chave não estava lá. Aporta protegida com essa barricada correspondia à janela vedada peloladodefora,maseupodiaverpela fresta iluminadasobelaqueoquartonãoestavanaescuridão.Evidentementehaviaumaclaraboiaquedeixavaa luz entrar de cima. Quando eu estava naquele corredor, contemplandoaquela porta sinistra e perguntando a mim mesma que segredo elapoderiaguardar,ouviderepenteumsomdepassosdentrodoquartoeviuma sombra passar para trás e para frente contra a pequena e pálidafresta de luz que brilhava debaixo da porta. Um terror louco, irracional,tomou conta de mim ao ver aquilo, Mr. Holmes. Meus nervos já muitotensos falharam-me de repente e eu me virei e corri… corri como sehouvesse uma mão horrível atrás de mim, agarrando a barra de meuvestido. Corri pelo corredor, passei pela porta e caí direto nos braços deMr.Rucastle,queesperavaláfora.

“‘Então era a senhorita’, disse ele sorrindo. ‘Pensei que devia ser,quandoviaportaaberta.’

“‘Oh,estoutãoassustada!’disseeu,arfando.“‘Minhacarajovem!Minhacarajovem!’—osenhornãoimaginacomo

suasmaneiraseramdocesetranquilizadoras. ‘Eoquefoiqueaassustou,minhacarajovem?’

“‘Oh,estoutãoassustada!’disseeu,arfando.”[SidneyPaget,StrandMagazine,1892]

“Masavozdelepareciaumpoucomelí luademais.Eleexagerou.Sentiquedeviamedefendercomtodasasforças.

“‘Cometi a tolice de entrar na ala vazia’, respondi. “Mas é tudo tãodesertoelúgubreaessaluzpálidaque iqueiassustadaecorriparafora.Oh,étãoaflitivamentequietolá!’

“‘Ésóisso?’perguntouele,olhando-meintensamente.“‘Ora,porquepergunta?’perguntei.“‘Porqueachaquetrancoestaporta?’“‘Realmentenãosei,senhor.’“‘Paramanter do lado de fora quem nada tem para fazer lá dentro.

Entende?’Continuavasorrindodamaneiramaisamável.“‘Certamente,seeusoubesse…’“‘Pois bem, agora sabe. E se algum dia puser seu pé do outro lado

destasoleira…’Nessaaltura,poruminstante,osorrisoseendureceunumesgarderaivaeeleme itoucomosemblantedeumdemônio…‘Euajogoparaomastim.’

“Fiquei tãoaterradaquenãoseioque iz.Suponhoquesaícorrendopara o meu quarto. Não me lembro de nada até que me vi deitada em

minha cama, tremendo toda. Então pensei no senhor, Mr. Holmes. Nãopoderiacontinuarvivendolásemalgumaorientação.Estavacommedodacasa, do homem, da mulher, dos criados, até da criança. Todos mepareciamhorríveis.Seosenhorpudessevir,tudo icariabem.Éclaroqueeu podia ter fugido da casa, mas minha curiosidade era quase tão fortequantomeustemores.Nãodemoreiatomarumadecisão. Iria lhemandarumtelegrama.Pusminhacapaemeuchapéu, fuiatéaagência,que icaauns oitocentos metros de casa e voltei, sentido-me muito mais tranquila.Quando me aproximei da porta, fui assaltada por uma horrível dúvida:estaria o cão solto?Mas lembrei-me de que Toller bebera até perder ossentidos aquela noite, e sabia que ele era o único na casa com algumain luênciasobreaselvagemcriatura,ouquesearriscariaasoltá-la.Entreifurtivamente e passei metade da noite acordada em minha alegria porsaber que o veria. Não tive di iculdade em obter permissão para vir aWinchester estamanhã,mas preciso estar de volta antes das três;Mr. eMrs. Rucastle estarão fora esta noite, fazendo uma visita, de modo quetenhodetomarcontadacriança. Já lhecontei todasasminhasaventuras,Mr.Holmes, e icariamuito feliz sepudessemedizeroque signi ica tudoissoe,sobretudo,oquedevofazer.”

Holmes e eu ouvíramos encantados essa história extraordinária.Nessemomentomeu amigo levantou-se e começou a andar pela sala, asmãosnosbolsoseumaexpressãodamaisprofundagravidadenorosto.

“Tolleraindaestábêbado?”perguntou.“Está. Ouvi a mulher dele dizer a Mrs. Rucastle que não consegue

acordá-lo.”“Issoébom.EosRucastlevãosairestanoite?”“Vão.”“Háumporãolácomumafechaduraforte?”“Há,aadega.”“Parece-meque se comportouem todoeste assunto comoumamoça

corajosaesensata,MissHunter.Achaquepoderiafazermaisumaproeza?Não lhe pediria isso se não a julgasse uma mulher verdadeiramenteexcepcional.”

“Tentarei.Doquesetrata?”“Estaremosnas FaiasAcobreadas às sete horas,meu amigo e eu.Os

RucastleterãosaídonessaalturaeTolleraindaestará,esperemos,incapaz.Restará apenas Mrs. Toller, que poderia dar o alarme. Se a senhorita

pudesse mandá-la fazer alguma coisa na adega e depois trancá-la lá,facilitariaimensamenteascoisas.”

“Fareiisso.”“Excelente!Emseguidaexaminaremos todoessecaso.Éclaroquesó

há uma explicação possível. A senhorita foi levada para lá parapersoni icaralguém,eaverdadeirapessoaestápresanaquelequarto.Issoéóbvio.Quantoaqueméoprisioneiro,nãotenhoamenordúvidadequeéa ilha,MissAliceRucastle,semelembrobem,que,segundoconsta,estarianaAmérica. A senhorita foi escolhida certamente por se parecer com elana altura, no talhe e na cor do cabelo. O dela foi cortado, muitopossivelmente durante algumadoença que a afetou, e por isso, é claro, oseu deveria ser sacri icado também. Por um curioso acaso a senhoritatopou com as tranças dela. O homem na estrada era sem dúvida algumamigodela…possivelmenteonoivodela…esemdúvida,comoasenhoritausavaovestidodamoça,eeratãoparecidacomela,eleseconvenceuporsuas risadas, e mais tarde por seu gesto, que Miss Rucastle estavaperfeitamentefelizenãomaisdesejavasuasatenções.Ocãoésoltoànoiteparaevitarqueeletentesecomunicarcomela.Atéaítudoémuitoclaro.Oproblemamaissérionocasoéaíndoledacriança.”

“Quediabosissotemavercomoresto?”exclamei.“Meu caro Watson, você, como médico que é, está sempre

compreendendoastendênciasdeumacriançaatravésdoestudodospais.Não vê que o contrário é igualmente válido? Muitas vezes consegui pelaprimeira vez compreender realmente alguma coisa do caráter dos paisestudando seus ilhos. A índole dessa criança é anormalmente cruel, deumacrueldadegratuita,equerderiveissodeseusorridentepaiou,comoeu suspeitaria, de suamãe, trata-se de ummau presságio no que toca àsituaçãodapobremoçaqueestáempoderdeles.”

“Tenho certeza de que tem razão, Mr. Holmes”, exclamou nossacliente.“Começoamelembrardemilcoisasquemedãoacertezadequeosenhoracertouemcheio.Oh,nãopodemosperderum instante, temosdesocorrerjáaquelapobrecriatura.”

“Precisamos serprudentes, porque estamos lidando comumhomemmuitoardiloso.Nãopodemosfazernadaantesdassetehoras.Nessahoraestaremos com a senhorita, e não demoraremos muito a desvendar omistério.”

Cumprimos nossa palavra e exatamente às sete horas chegamos às

Faias Acobreadas, tendo deixado nossa charrete num pub à beira daestrada. O grupo de árvores, com suas folhas escuras brilhando comometalpolidoàluzdosolpoente,teriasidosu icienteparaassinalaracasa,mesmoqueMissHunternãoestivessenaporta,sorrindo.

“Conseguiu?”perguntouHolmes.Umbarulhoaltodepancadasvinhadealgumlugarnoporão.“ÉMrs.

Tollernaadega”,disseela. “Omaridoestároncando,deitadonotapetinhoda cozinha. Aqui estão as chaves dele, que são duplicatas das de Mr.Rucastle.”

“Realmenteasenhorita fezumbomtrabalho!”exclamouHolmescomentusiasmo. “Agora, mostre-nos o caminho, logo tiraremos a limpo todoestelúgubrenegócio.”

Subimosaescada,destrancamosaporta,seguimosporumcorredorevimo-nos em frente à barricada que Miss Hunter descrevera. Holmescortou a corda e removeu a barra atravessada. Depois tentou váriaschavesnafechadura,massemsucesso.Nenhumsomvinhadedentro,eosemblantedeHolmesanuviou-sediantedessesilêncio.

“Espero que não tenhamos vindo tarde demais”, disse. “Penso, MissHunter, que seria melhor entrarmos sem a senhorita. Agora, Watson,experimenteforçá-lacomosombros,evejamosseconseguimosentrar.”

Aporta,velhaefrágil,cedeuimediatamenteànossaforçacombinada.Entramosjuntosnoquarto.Estavavazio.Nãohavianenhummóvel,excetouma pequena enxerga, uma mesinha e uma cesta de roupa branca. Aclaraboiaestavaabertaeoprisioneirosefora.

“Houve alguma ardileza aqui”, disse Holmes; “o patife adivinhou asintençõesdeMissHunterelevouavítimaembora.”

“Mascomo?”“Pela claraboia. Logo veremos como conseguiu.” Pendurou-se nas

bordas da claraboia e subiu no telhado. “Ah, sim”, gritou. “Aqui está aextremidadedeumacompridaescada,apoiadanobeiral.Foiassimquealevou.”

“Patife!Ondeestásuafilha?”[SidneyPaget,StrandMagazine,1892]

“Mas é impossível”, disse Miss Hunter, “essa escada não estava aíquandoosRucastleforamembora.”

“Ele voltou e fez isso. Não lhe disse que é um homem esperto eperigoso?Não icariamuito surpreso se fossemdele os passosque estououvindonaescada.Creio,Watson,queseriamelhorvocêengatilharasuapistola.”

Mal ele dissera isto, um homem apareceu à porta do quarto, umhomemmuitogordoetroncudo,empunhandoumpesadocacete.Aovê-lo,Miss Hunter deu um grito e encolheu-se contra a parede, mas SherlockHolmesdeuumsaltoàfrenteeenfrentou-o.

“Patife!Ondeestásuafilha?”O homem gordo olhou em volta e depois para cima, na direção da

claraboiaaberta.“Soueuquedevolhefazeressapergunta”,gritou,“ladrões!Espiõese

ladrões! Peguei-os, não foi? Vocês estão em meu poder, vou cuidar devocês!”Virou-seedesceuaescadacomestardalhaço,tãodepressaquantopôde.

“Foipegarocão!”exclamouMissHunter.“Tenhomeurevólver”,disseeu.“Émelhor fechar aportada frente”, exclamouHolmes, e apressamo-

nostodosemdesceraescada.Malhavíamoschegadonovestíbuloquando

ouvimosolatidodeumcãodecaçaeemseguidaumgritodeagoniaeumruídohorrívelea litivodedentesrasgando.Umhomemidosocomacaravermelhaemembrostrêmulosapareceucambaleandonumaportalateral.

“MeuDeus!” gritou. “Alguémsoltouo cão.Elenão comehádoisdias.Rápido,rápido,ouserátardedemais!”

Holmeseeusaímoscorrendoedobramosocantodacasa,comTollerseguindo-nosomaisdepressaquepodia.Láestavaabesta-feraesfaimada,o focinho preto enterrado no pescoço de Rucastle, que se retorcia eberravanochão.Avançandorapidamente,estoureiosmiolosdocãoeelecaiu,comseusdentesbrancosa iadosaindacerradosnasgrandespregasdopescoçodavítima.Commuitotrabalho,separamososdoisecarregamosohomem,vivomashorrivelmentelacerado,paradentrodecasa.Depoisdedeitá-lo no sofá da sala e de despachar o agora sóbrio Toller para dar anotícia aMrs. Toller, iz o que podia para aliviar-lhe as dores. Estávamostodos reunidosà voltadelequandoaporta se abriueumamulher alta emacilentaentrounasala.

“Mrs.Toller!”exclamouMissHunter.“Sim,Miss Hunter. Mr. Rucastle soltou-me ao chegar, antes de subir

paraencontrarossenhores.Ah,senhorita,éumapenaquenãometenhacontado o que estava planejando, porque eu lhe teria dito que seusesforçoseraminúteis.”

“Ah!” disse Holmes, olhando-a intensamente. “Está claro que Mrs.Tollersabemaissobreoassuntoquequalqueroutrapessoa.”

“Éverdade,senhor,eestouprontaparalhescontartudoquesei.”“Então, por favor, sente-se e fale, porque há vários pontos que

confessoaindanãoestarentendendo.”“Logo lhe explicarei tudo”, disse ela; “teria feito isso antes, se tivesse

conseguido escaparda adega. Sehouver inquéritopolicial sobre isto, nãose esqueçam de que fui eu que iquei do seu lado, e era amiga de MissAlicetambém.

“Ela nunca foi feliz nesta casa, a menina, desde o dia em que o paicasou de novo. Deixaram ela de lado, não ouviam ela para nada.Mas foidepoisqueMissAliceconheceuMr.Fowlernacasadeumaamigaqueascoisas icaramrealmenteruinsparaela.Peloqueouvifalar,elatinhaseusdireitosporherança,maseratãocalmaepacientequenuncaabriuabocaparareclamar,deixavatudonasmãosdeMr.Rucastle.Elesabiaquenãoiaterproblemascomela;masquandosurgiuumaoportunidadedeaparecer

ummarido, que ia exigir tudoque a lei pudessedar pra ele, o pai achouque estava na hora de pôr umparadeiro naquilo. Quis que ela assinasseumpapel;assim,casadaounão,eleiapoderusarodinheirodela.Quandoela se recusou, ele icou atormentando-a até ela pegar febre cerebral, epassouseissemanasàbeiradamorte.Depoisela inalmente icouboa,sebem que mais parecendo um esqueleto e com seu lindo cabelo cortado.Mas isso não mudou nada para o moço, ele permaneceu iel como umhomemdeverdade.”

“Ah”,disseHolmes,“pensoqueistoqueteveabondadedenoscontaresclarece bastante a questão, e que posso deduzir o resto. Mr. Rucastlerecorreuentão,presumo,aessesistemadeencarceramento?”

“Sim,senhor.”“E trouxe Miss Hunter de Londres para se livrar da desagradável

persistênciadeMr.Fowler.”“Foiissomesmo,senhor.”“MasMr.Fowler,sendoumhomemperseverante,comocompeteaum

bommarinheiro, cercouacasa,e,encontrandoasenhora, conseguiu, comcertosargumentos,metálicosounão,convencê-ladequeosinteressesdeleeosseuseramosmesmos.”

“Mr.Fowlereraumhomemmuitoamável,muitogeneroso”,disseMrs.Toller,semsedeixarperturbar.

“Edessamaneira ele conseguiu assegurarquenão faltassebebida aseu bom homem, e que uma escada estivesse sempre pronta para eleassimqueseupatrãosaía.”

“Foiissomesmo,senhor.”“Não há dúvida de que lhe devemos um pedido de desculpas, Mrs.

Toller”,disseHolmes,“porqueasenhoracertamenteelucidoutudoquenosintrigava.TenhoaimpressãodequeaívêmomédicoruraleMrs.Rucastle;assim,Watson,pensoqueomelhorafazeré levarMissHunterdevoltaaWinchester, porque me parece que nosso locus standi agora é bastantequestionável.

Eassimfoidecifradoomistériodacasasinistracomfaiasacobreadasàporta.Mr.Rucastle sobreviveu,mas foi sempreumhomemalquebrado,que só se mantinha vivo graças aos cuidados de sua devotada mulher.Vivematé hoje com seus velhos criados, que provavelmente sabem tantosobreavidapregressadeRucastlequeestetemdi iculdadeemseseparardeles. Mr. Fowler e Miss Rucastle casaram-se em Southampton no dia

seguinteàsuafuga,comumalicençaespecial,eagoraeleocupaumcargogovernamental nas ilhas Maurício. Quanto a Miss Hunter, meu amigoHolmes, para minha grande decepção, não manifestou mais nenhuminteresseporelaapartirdoinstanteemquedeixoudeserocentrodeumde seus problemas; atualmente ela é diretora de uma escola privada emWalsall,ondecreioquealcançouconsiderávelsucesso.

Fonte

Todos os contos foram traduzidos a partir das versões de initivaspublicadasmensalmente entre julho de 1891 e junho de 1892 naStrandMagazine, periódico britânico que levou os casos e a igura de SherlockHolmesaoconhecimentodograndepúblico.

Sobreoautor

Sir Arthur Conan Doyle (1859-1930) foi médico e escritor. Sua obracontempla gêneros tão diversos quanto icção cientí ica, romanceshistóricos,poesiaenão icção,masseumaiorrenomesedevesemdúvidaàshistóriasdodetetiveSherlockHolmes,queincluemcontoseromances.