Artigo Bruno Pedroso Lima Silva
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A DITADURA MILITAR NO BRASIL (1964-1985) E SUA
POLÍTICA EDUCACIONAL: CONTEXTO, REFORMAS E LEGADO
Bruno Pedroso Lima Silva
Mestrando em Educação
Faculdade de Educação/UFG
RESUMO
Esse artigo propõe-se a discutir a educação brasileira durante a ditadura militar
(1964-1985), debatendo a política educacional dos governos militares a partir do
contexto histórico da época, e buscando refletir sobre os elementos que ainda fazem
parte da educação atual que têm suas bases na política educacional dos militares. Com
isso, proponho a reflexão sobre o conceito de reforma, buscando mostrar que para
conseguirmos uma real mudança no contexto educacional brasileiro, precisamos deixar
esse conceito de lado e lutar por transformações reais, estruturais, didáticas e políticas.
INTRODUÇÃO
Autonomia: do grego, auto significa si mesmo, próprio. Nomia, que vem do
termo grego nomos, significa a lei, a norma, a regra. Autonomia seria então,
etimologicamente, a regra de si mesmo, a própria lei, a capacidade de agir por si só,
seguindo a sua própria regra, seu próprio pensamento. Acho importante iniciar esse
artigo com a discussão desse termo, que tantas vezes aparecerá nesse texto e que tanto
aparece nas discussões sobre a universidade no Brasil, desde o surgimento da primeira
universidade oficial em 1920, passando por uma grande discussão durante o período da
ditadura militar. Até hoje tentamos compreender e apreender o seu sentido essencial, o
sentido da autonomia em si mesma, a compreensão do que é e do que pode ser
autonomia. Mas essa infinita busca não deve nos desanimar e sim nos incentivar a cada
vez mais nos mantermos na busca da apreensão desse sentido, para que possamos
chegar ao ponto de considerarmos a nós mesmos e a nossa universidade como
autônomos. O que pretendo mostrar nesse texto é que a distância a percorrer em busca
desse sentido ainda é grande. Houveram, desde 1920, muitas discussões, intelectuais,
legais ou políticas, do sentido desse termo na concepção da universidade brasileira. Mas
acredito ainda estarmos longe da apreensão de seu sentido essencial.
A criação das primeiras universidades no Brasil resulta de um contexto
colonial, onde toda e qualquer iniciativa idealizadora de uma universidade realmente
brasileira era reprimida, pois o colonizador tinha medo das possibilidades de
independência política, econômica e cultural de sua colônia. Mesmo a partir da
instituição da República, onde na constituição de 1891 o “ensino superior é mantido
como atribuição central” (FÁVERO, 1999, p. 21), a concepção de ensino superior no
Brasil sempre prevê o controle do regime político instituído, aparecendo o conceito de
autonomia universitária apenas no discurso.
A primeira universidade federal oficial surge em 1920, a Universidade do Rio
de Janeiro (URJ). Apesar de ter sido importante para a evolução dos debates sobre
ensino superior no Brasil, a URJ já demonstra em seu nascimento as dificuldades que a
universidade brasileira terá em sua história: é resultado de uma simples justaposição de
três faculdades já existentes, que, mesmo oficializadas como universidade, não se
integram, não dialogam entre si, demonstrando segmentação; a autonomia conferida à
URJ é didática e administrativa, não sendo nem citadas ou discutidas as autonomias
política e financeira. Ainda assim, na perspectiva de ser uma discussão nova e do
contexto político brasileiro na época se encontrar descentralizado, a criação da URJ foi
importante no surgimento dos debates e discussões sobre concepção e modelo de
universidade no Brasil. (FÁVERO, 1999, p. 23).
A partir de 1930, com a Nova República, o poder político se centraliza e a
mentalidade do desenvolvimento a qualquer custo começa a crescer. As universidades
então passam a sofrer um controle político ainda maior, além de sofrerem uma quase
imposição de um modelo que oferecesse ao país chances de se “modernizar”, voltado
para a capacitação profissional e para o trabalho. A pesquisa, a filosofia e a formação
cultural desinteressada foram “atribuídas” para as faculdades de Educação e de Letras,
mas mesmo assim não ocorrem na prática. (FÁVERO, 1999, p. 24)
A pequena abertura que a Revolução de 1930 parecia oferecer passa a ser
reprimida pelos governos, principalmente a partir de 1935 e autoritariamente a partir do
Estado Novo, em 1937. A tendência centralizadora e controladora cresce ainda mais, e
as discussões sobre uma real autonomia universitária e sobre uma formação superior
que transcendesse a formação profissional e instituísse uma formação humana foram
deixadas de lado. Apesar de todo esse contexto político controlador, surgem duas
interessantes iniciativas: A Universidade de São Paulo (USP), em 1934, que trazia em
seu programa, mesmo que timidamente, a iniciação ao mundo da cultura e das artes; e a
Universidade do Distrito Federal (UDF), em 1935, fruto das lutas do grande educador
brasileiro Anísio Teixeira, que propunha a formação cultural desinteressada e uma
atividade científica livre. (ALMEIDA, 1989, apud FÁVERO, 1999, p. 25). Apesar de
ter sido extinta pela ditadura do Estado Novo quatro anos após sua criação, Fávero
(1999) acredita que a UDF foi muito importante para a história da universidade no
Brasil, pela experiência criadora e inovadora que foi.
A universidade, então, no Estado Novo, se caracteriza como uma ferramenta
política, sendo controlada, dirigida e mantida pelo governo, devendo então servir à sua
manutenção e à mentalidade nacionalista crescente no período.
Após o fim do Estado Novo e a redemocratização do país, a constituição de
1946 demonstra um discurso liberal e que valoriza a autonomia universitária. Há o
surgimento de várias universidades, além da discussão cada vez mais presente sobre o
ensino superior, sua modernização, sua concepção e sua legislação. Surge a
Universidade de Brasília (UnB), que mostrava transformações estruturais e
modernização em suas ideias e concepções.
Entra em cena também o movimento estudantil, representado pela União
Nacional dos Estudantes (UNE), que age e se manifesta contra a má vontade dos
governos com o ensino superior, além de levar as discussões sobre autonomia, elitismo,
educação pública e concepção de universidade para o âmbito dos estudantes. Mas,
mesmo com essas iniciativas, Fávero (1999) nos alerta de que o predomínio ainda é da
mentalidade prática, imediata, profissional e desenvolvimentista, além da questão da
autonomia, sobre a qual diz a autora:
(...) a autonomia administrativa, financeira, didática e disciplinar, outorgada à
Universidade, não chegou a ser implementada. Tal inferência leva a
reconhecer que, ontem como hoje, a autonomia outorgada às universidades
não passa muitas vezes de uma ilusão, embora se apresente, por vezes, como
um avanço. (FÁVERO, 1999, p. 28).
Já no início dos anos 60, com o contexto político da “democracia populista” de
João Goulart, onde as discussões sobre educação popular, formação cultural e educação
pública são efervescentes, surgem iniciativas interessantes em relação à universidade no
Brasil. A UNE, em seus seminários, amplia a esfera de suas discussões e passa a ter
participação importante no contexto político e na defesa da educação pública. De acordo
com Fávero (1999), algumas universidades elaboram planos de reestruturação, mas
essas iniciativas são reprimidas e destruídas pelo golpe militar de 1964.
Creio ser importante essa introdução sobre o surgimento do ensino superior no
Brasil, mesmo que pequena, simples e reduzida, para que possamos pensar na política
educacional do governo militar não somente a partir de si mesma, mas numa perspectiva
histórica e originária. O que pretendo compreender então nesse artigo é: o que
representa na história do ensino superior brasileiro a política educacional do governo
militar? Como se deu, como se instituiu, a que interesses estava aliada e qual o legado
que ainda se vê dessa política, 27 anos após o fim do regime?
Pretendo com isso oferecer ao leitor a possibilidade de pensar que o contexto
atual da universidade brasileira é resultado de suas origens e ainda é influenciado de
forma impactante pela política educacional dos governos militares, principalmente com
bases na reforma universitária de 1968. Tendo isso posto, convido o leitor a pensar:
seriam as reformas mesmo o melhor caminho? Uma compreensão de educação superior
que tem suas bases e foi balizada por uma reforma executada por um governo ditatorial
não precisa ser repensada e transformada estruturalmente, didaticamente, politicamente?
Reformas dão conta disso? Não seria o momento de lutar por transformações reais? Não
busco nesse texto responder a essas perguntas, mas sim oferecer ao leitor elementos que
o façam pensar de forma mais radical na história e desenvolvimento do ensino superior
brasileiro.
O CONTEXTO POLÍTICO BRASILEIRO DOS ANOS 60
O contexto político e social do início dos anos 60, principalmente no governo
de João Goulart (1961-1964), era o que estava sendo chamado de “democracia
populista”, “república liberal” ou “nova república”. Os movimentos sociais ganhavam
espaço no meio social brasileiro. Centros de educação popular, iniciativas políticas
populares e comunitárias, movimentos estudantis, movimentos a favor da reforma
agrária, entre outros, surgiam e ocupavam um espaço, tanto teórico quanto prático, antes
inexistente ou ocupado predominantemente pelas elites intelectuais. Por outro lado,
esses movimentos contribuíram também para que houvesse a percepção militar no
Brasil e também internacionalmente, principalmente nos Estados Unidos, de que o
Brasil corria o risco de ser o terreno fértil para mais uma revolução comunista, como
havia acontecido havia pouco tempo em Cuba, em 1959. Diz Germano:
Com efeito, em todo o período 1937-1964, as Forças Armadas clamaram por
um Estado forte e ditatorial. Em nome do anticomunismo, combateram o
“subversivismo esporádico das massas populares” (Gramsci) e, após a
Segunda Guerra Mundial, aliaram-se à “mais poderosa nação americana”,
convertida em defensora da civilização ocidental e cristã. (GERMANO,
2005, p. 47)
O início dos anos 60 se mostravam então como uma época de crise econômica
e política na percepção das elites brasileiras, pois o Estado não conseguia estabilizar os
processos políticos que garantiam a dominação burguesa, e não conseguia manter o
nível de investimentos econômicos, caindo assim as taxas de lucro e aumentando a
inflação. (GERMANO, 2005). Essa “crise” contribuiu para o surgimento dos
movimentos da cultura popular, da reforma agrária, dos camponeses e da educação, o
que assustava as elites e também setores da Igreja Católica. Germano lembra-nos
também que a revolução em Cuba aconteceu também nesse contexto, o que desferiu um
golpe forte contra o prestígio estadounidense, além de servir como um tipo de incentivo
para revoluções populares em outros países. De certa forma, Cuba mostrou que a
transformação era possível. Nesse contexto, o golpe se arquitetava.
Germano (2005) busca as origens do golpe militar também na crescente
significatividade que vai conseguindo o exército na história brasileira a partir da Guerra
do Paraguai. O autor diz que, a partir dali, o exército participa de forma significativa: na
abolição da escravatura, em 1888; na instauração da República em 1889; na chamada
“Revolução de 1930”, o fim da república oligárquica; na implantação do Estado Novo e
também no fim do mesmo com a deposição de Getúlio Vargas, respectivamente em
1937 e 1945; tudo isso culminando no golpe militar de 1964. A passagem do exército de
uma posição coadjuvante na esfera social brasileira para uma posição pomposa a partir
do Estado burguês e a credibilidade que a instituição consegue principalmente entre as
elites são o alicerce estrutural que sustenta o golpe militar
O golpe militar, ocorrido entre os dias 31 de março e 01 de abril de 1964 depõe
o presidente João Goulart, pondo fim então à chamada “democracia populista”, que
havia se iniciado em 1946. Ao contrário do que muitas vezes se pensa, o golpe não foi
idealizado e apoiado apenas pelos militares. As classes médias e altas brasileiras, de
forma quase geral conservadoras e reacionárias, em sua maioria, além dos
representantes da burguesia industrial e financeira também fizeram parte da construção
e da execução do golpe contra a democracia, fazendo, então, parte também do bloco que
assume o poder político, do qual foi retirado qualquer tipo de controle social.
É sim, então, concordando com Germano (2005, p. 17), possível qualificar o
golpe de 1964 não somente como um golpe militar, mas sim um golpe das “elites”
brasileiras, referindo-se à burguesia recém-formada no país.
Germano caracteriza o Estado brasileiro a partir de 1964 como claramente
autoritário e ditatorial, mas que não deixou de buscar a criação de representações e
demagogias democráticas. Entre alguns militares, aliás, até hoje, o golpe é chamado de
“Revolução Democrática de 1964”. Os governos tentavam justificar suas ações
repressivas e controladoras a partir do argumento de que o povo, como diz Couto e
Silva, intelectual do regime, “não é sujeito da história da nação, mas objeto da ação
estatal”. (Quartim de Moraes, 1987, apud Germano, 2005, p. 56). Ou seja, os militares
estavam fazendo um bem, controlando o povo e indo com a nação rumo ao
desenvolvimento. Um claro caso onde os fins justificavam os meios. Germano,
concordando com isso, caracteriza o Estado, a partir de 1964:
(...) o estado caracteriza-se pelo elevado grau de autoritarismo e violência.
Além disso, pela manutenção de uma aparência democrático-representativa,
uma vez que o Congresso não foi fechado definitivamente (embora tenha
sido mutilado) e o Judiciário continuou a funcionar, ainda que como apêndice
do Executivo. O autoritarismo traduz-se, igualmente, pela tentativa de
controlar e sufocar amplos setores da sociedade civil, intervindo em
sindicatos, reprimindo e fechando instituições representativas de
trabalhadores e estudantes (...). (GERMANO, 2005, p. 55).
Com o poder político ocupado indeterminadamente por um grupo militar, que
não abria espaço algum para o debate ou a participação da sociedade nos processos
políticos, Germano (2005) pensa ser correto e importante afirmar que, sendo o governo
ditatorial implantador de um regime político autoritário, quem age durante a ditadura
não é somente o governo ou um regime, e sim o Estado brasileiro. Como a duração do
governo não é predeterminada, não são homens ou governos que agem, e sim uma
ideologia, que independe dos indivíduos ou dos cargos. Isso fica claro quando Germano
nos mostra que, mesmo entre os militares existiam “facções divergentes, porém não
contraditórias”, como a “linha dura, os sorbonistas, a direita nacionalista, etc”
(GERMANO, 2005, p. 21), mas que, mesmo discutindo entre si, seguiam uma mesma
ideia central hegemônica, que dava ao Estado a sua forma, a saber:
O Estado Militar é assim encarado em sua historicidade, enquanto expressão
de uma fase do desenvolvimento do capitalismo no Brasil, que ocorre sob a
égide dos monopólios e que expressa, sobretudo, os interesses dos
conglomerados internacionais, de grandes grupos econômicos nacionais e das
empresas estatais, formando um bloco cuja direção é recrutada nas Forças
Armadas e que conta com o decidido apoio dos setores tecnocráticos.
(GERMANO, 2005, p.21)
Ferreira & Bittar também concordam com Germano:
No lugar dos políticos, os tecnocratas; no proscênio da política nacional, as
eleições controladas e fraudadas; no âmbito do mundo do trabalho, a
prevalência do arrocho salarial; na lógica do crescimento econômico, a
ausência de distribuição da renda nacional; na demanda oposicionista pela
volta do Estado de direito democrático, a atuação sistemática dos órgãos de
repressão mantidos pelas Forças Armadas: eis como a ditadura militar
executou o seu modelo econômico de aceleração modernizadora e autoritária
do capitalismo no Brasil. (FERREIRA & BITTAR, 2008, p.3)
É importante analisar essa questão para que consigamos ter a ideia do por que
de ações, ideais e pensamentos da ditadura militar, principalmente no que tange à
educação, persistirem até hoje no cotidiano educacional, nas instituições formais. Isso
deve ser entendido, além, claro, do percurso histórico, como fruto dessas políticas de
Estado que os governos militares conseguiram firmar ideologicamente nos seus 21 anos
de governo, procurando manter seu ideal de sociedade e sua hegemonia, não se
importando com prazos de mandato, pelo menos até o fim de década de 70.
Compreender isso é essencial, afinal, políticas de Estado, firmadas num contexto tão
forte de transição socioeconômica, não são fáceis de transformar, sendo necessária
muita vontade política aliada com a pressão popular, o que não vemos com muita
frequência no nosso país, ainda, queiramos ou não, controlado politicamente por elites.
A POLÍTICA EDUCACIONAL DOS GOVERNOS MILITARES
Com o Estado agindo segundo essa ideologia central, era esperado que a
política educacional não fosse diferente. Ela é então entendida como uma estratégia
política, que apoia os interesses desse conjunto de ideias central, sendo então os poucos
investimentos na área da educação revertidos para: a tendência da privatização; para
privilégios das classes altas frente aos setores populares; para a priorização da repressão
em detrimento do diálogo e da discussão; para o estímulo à concentração de renda e
para a compreensão do homem como produtor de capital, segundo a teoria do capital
humano.
A teoria do capital humano, formulada a partir do pensamento de economistas
educacionais estadounidenses, principalmente nos estudos de Theodore Schultz, é uma
concepção que, basicamente, tenta explicar os ganhos de produtividade que acontecem
quando se inclui o fator humano no processo. Defendiam então que o trabalho humano,
qualificado pela educação, devia ser o mais importante meio para o aumento da
produtividade econômica e das taxas de lucro do capitalismo ascendente da época. Os
estudos dessa teoria, então, buscam legitimar a concepção de que os investimentos em
educação deveriam ser prioritariamente revertidos para o que fosse importante para a
ascensão do capitalismo e para a qualificação de produtores de capital.
Com todo o contexto da necessidade, dos militares, da consolidação do
capitalismo e da ordem burguesa no Brasil, a política educacional é, como disse
anteriormente, considerada uma estratégia ideológica primordial para que o objetivo
seja atingido. A partir de um discurso de valorização da educação, aliado
paradoxalmente à escassez de verbas públicas para a mesma, o Estado baseia suas
políticas educacionais na questão das privatizações. Era preciso oferecer mais acesso,
mas não se tinha dinheiro. Ora, a abertura para o capital privado na educação era
extremamente conveniente e essa ideia foi então vendida como a clara solução para
vários dos problemas da educação brasileira, como o acesso, a questão dos excedentes
do vestibular, entre outros.
Além dessa mentalidade privatista, e mantendo-se no mesmo sentido, a
educação, devendo concordar com a ideologia vigente do Estado – anticomunismo,
segurança nacional, desvalorização cultural – se mostra completamente alienante e
censurada, oferecendo então um acesso demagógico, enganoso, pois era um acesso
única e exclusivamente físico-estrutural, não existindo acesso à cultura, à racionalidade,
à filosofia, entre outros conhecimentos, que não só fazem parte da educação, e sim são
seu sentido, a sua razão de ser.
É então uma educação amputada, manipulada, mas que ao mesmo tempo em
que esse acesso é oferecido, convence as pessoas de que as coisas estão melhorando ou
estão num bom caminho. O típico estado de bem-estar social prometido pelo discurso
capitalista. Por isso, é uma política educacional que se baseia em reformas, pois as
pressões e demandas vêm no sentido de mudar especificidades ou conseguir alguns
objetivos “pequenos” e simples, e nisso os governos militares concedem em alguns
pontos, desde que a ideologia não esteja em risco. Isso serve para pensarmos, como
defendo nesse texto, que, tendo ainda em nossa realidade educacional tantos legados da
educação do período militar, as reformas não são o melhor caminho. Até hoje, quase 30
anos após o fim do regime ditatorial, ainda vemos as lutas da educação focadas
basicamente em reformas, em incluir textos ou especificidades na legislação, ou
conseguir um aumento de salário aqui e um direito trabalhista ali. Não seria o momento
de começarmos a pensar em uma revolução da educação brasileira? Em mudar
caminhos, em buscar utopias, em uma real transformação, tanto teórica, prática e
didática, quanto estrutural?
A política educacional dos governos militares é então assim entendida por
Cunha:
o conjunto de medidas tomadas (ou apenas formuladas) pela sociedade
política que dizem respeito ao aparelho de ensino (propriamente escolar ou
não) visando à reprodução da força de trabalho e dos intelectuais (em sentido
amplo), à regulação dos requisitos educacionais e à inculcação da ideologia
dominante. (...) certa forma de intervenção do Estado com vistas a assegurar
a dominação política existente, a manutenção do processo de acumulação de
capital e, por vezes, afastar focos de tensão e conflito.” (Cunha, 1983, apud
Germano, 2005, p. 32)
A política educacional dos governos militares, basicamente, entendia a
educação como uma preparação para a vida, um ajuste das pessoas ao trabalho, para a
nação e rumo ao desenvolvimento econômico e produtivo. As instituições educativas,
de maneira geral, tornam-se então profissionalizantes, uma simples preparação para o
mundo do trabalho, uma qualificação para que cada indivíduo pudesse atuar em uma
profissão ao completar sua escolarização. Além disso, como suporte acrítico e alienante,
os militares acreditavam, de acordo com a teoria do capital humano, que deveria ser
divulgada, nas escolas, a ideologia dominante, o tipo de sociedade instituída e o mundo
da vida, como coisas prontas, impostas, enfim, impossíveis de serem transformadas.
Germano diz, sobre a política educacional dos militares:
Ela visa, essencialmente, à reprodução da força de trabalho (mediante a
escolarização e qualificação); à formação dos intelectuais (em diferentes
níveis); à disseminação da “concepção de mundo’ dominante (com vistas a
contribuir para a legitimação do sistema político e da sociedade estabelecida);
à substituição de tarefas afetas a outras atividades sociais, cujas funções
foram prejudicadas pelo desenvolvimento capitalista (...) (GERMANO, 2005,
p. 101).
O que se conclui, de acordo com Germano (2005, p. 28) é que o governo
buscava, com a política educacional, realmente criar uma hegemonia, conquistar uma
identificação entre opressores e oprimidos, populares e governantes, construir esse
consenso a partir da imposição de ideias e pensamentos, fazendo concessões até o ponto
onde a ideologia não fosse desrespeitada, e, quando estivesse em risco essa ideologia, o
silêncio viesse através de violência, repressão ou expulsão do país. Dizem Ferreira &
Bittar:
Em síntese, eis o que foi a educação brasileira durante a ditadura militar: uma
política social instrumentalizada pela ideologia tecnicista, com o objetivo de
impulsionar o projeto de “Brasil Grande Potência”, lema que correspondia,
no âmbito político-ideológico, ao autoritário “Brasil, ame-o ou deixo-o”.
(FERREIRA & BITTAR, 2008, p. 5)
Nesse contexto, aparece o que aqui chamo de “golpe de mestre” dos militares
no campo da educação: a reforma universitária de 1968.
A REFORMA UNIVERSITÁRIA DE 1968: O “GOLPE DE MESTRE” DA
POLÍTICA EDUCACIONAL MILITAR
A Lei da Reforma Universitária, número 5.540, de 1968, surge então nesse
contexto de início de governo militar como uma grande ação de solidificação
ideológica. A reforma, apresar de ter sido demandada também por classes populares e
estudantis, teve, claramente, caráter mantenedor do ideal e do pensamento político
militar. Ferreira & Bittar (2008) diz que o objetivo era “estabelecer uma ligação
orgânica entre o aumento da eficiência produtiva do trabalho e a modernização
autoritária das relações capitalistas de produção”, sendo a reforma mais “um
instrumento a serviço da racionalidade tecnocrática, com o objetivo de se viabilizar o
slogan “Brasil Grande Potência”.” (FERREIRA & BITTAR, 2008, p. 4).
A reforma universitária foi viabilizada principalmente através de acordos do
Estado brasileiro com a “United States Agency for International Development”
(USAID), uma agência estadounidense que se dizia defensora do desenvolvimento
mundial, o que resultou nos conhecidos “acordos MEC/USAID”. Foram então
convocados assessores e consultores estadounidenses para analisar o contexto da
educação brasileira e pensar e sugerir mudanças que eles considerassem adequadas. Os
relatórios, então, concordavam inteiramente com a ideologia tecnicista, repressiva e
autoritária dos governos militares, sugerindo a organização da universidade em moldes
empresariais, a privatização, a disciplina na vida acadêmica e a proibição de protestos e
manifestações.
Houve também uma comissão brasileira, formada no governo Costa e Silva,
em 1967, designada para analisar e sugerir soluções para a crise estudantil – os
estudantes estavam em um movimento forte pela reforma universitária, principalmente
pela questão dos excedentes do vestibular, ou seja, candidatos aprovados, mas não que
tinham acesso por falta de vagas – e para o sistema de ensino universitário. Essa
comissão, presidida pelo general Meira Mattos, elaborou o relatório que ficou
conhecido como Relatório Meira Mattos, que sugeria claramente que o caminho era a
manutenção da hegemonia a partir de desmobilização e de repressão à oposição do
regime. Para isso, o relatório sugeria que o governo fizesse algumas concessões
concretas às demandas estudantis, mas que tivesse como cerne a manutenção da
ideologia vigente e a defesa do ensino que tivesse como referência a formação
profissional para o mercado.
Essas concessões eram friamente calculadas de forma que não prejudicassem a
ideologia do regime, ao mesmo tempo em que atendesse, mesmo que especificamente e
de forma segmentada, algumas demandas do movimento estudantil, com o intuito de
desmobilizar o movimento, fazendo-os aceitar a reforma como um por conta das
pequenas conquistas. Isso, aliado a outras ações de desmobilização estudantil, é
considerado por Germano (2005) como práticas de cooptação de lideranças estudantis,
que resultavam num processo que Gramsci chamou de “transformismo”, onde
estudantes, principalmente lideranças, eram convidados a participar de programas do
governo que, através de um discurso de “canalizar as energias dos jovens e possibilitar
um contato direto com os problemas do país” (GERMANO, 2005, p. 136), e que
pareciam atrativos para as jovens lideranças, na verdade não estimulavam a crítica
social e tinham o objetivo de combater a subversão e de estimular a prática do
assistencialismo (GERMANO, 2005, p. 136). O grande exemplo desses programas foi o
Projeto Rondon, controlado pelo regime militar.
É importante lembrar então que a reforma universitária de 1968 não foi
executada apenas pelos conselhos e sugestões dos assessores estadounidenses. Cunha
fala sobre isso:
(...) a concepção de universidade calcada nos modelos norte-americanos não
foi imposta pela USAID, com a conivência da burocracia da ditadura, mas,
antes de tudo, foi buscada desde fins da década de 40, por administradores
educacionais, professores e estudantes, principalmente aqueles como um
imperativo da modernização e, até mesmo, da democratização do ensino
superior em nosso país. (...) Diria mais, que a modernização do ensino
superior foi posta em prática por ramificações do aparelho de Estado – entre
as quais instituições militares – e reivindicada por setores da sociedade civil,
como a UNE.” (CUNHA, apud Germano, 2005, p.117-8).
De fato, as pressões populares existiam. A partir de 1930, a demanda por
educação no Brasil cresceu muito, em todos os níveis. Isso, consequentemente,
desaguava na demanda ao ensino superior. No período de 1945 a 1965, as matrículas no
ensino superior subiram de 21 mil para 182 mil. (MARTINS, 2009), sem efetivos
investimentos na questão estrutural, física e pessoal. Ao mesmo tempo em que crescia o
acesso ao ensino médio, a política econômica, principalmente a partir de 1964, no
“milagre brasileiro”, levava as classes médias a colocarem o ensino superior em seus
objetivos, como forma de ascender socialmente (MARTINS, 2009). Essa demanda por
acesso levou, então, até mesmo às classes estudantis e populares a clamarem por uma
reforma do ensino superior. Exigia-se principalmente a extinção da cátedra vitalícia de
professores, a incorporação dos “excedentes” à universidade e a adoção dos concursos
públicos.
A partir dessas exigências, o regime militar executou então o que chamo de
“golpe de mestre”. Aliou essas exigências estudantis à sua ideologia e criou uma
reforma que, ao mesmo tempo em que concedia aos estudantes em alguns pontos,
mantinha no cerne do projeto o seu ideal de manutenção do status quo e o seu ideal de
ensino superior. O regime concordou que a questão do acesso era um problema, mas ao
mesmo tempo entrava com o discurso de que não havia verba pública suficiente para a
educação, pois a industrialização e a economia eram prioridade. Por isso, abriram o
campo da educação superior para a iniciativa privada. Concordaram também que a
questão dos “excedentes” era um problema grave: resolveram parcialmente a questão
dividindo o currículo dos cursos em um ciclo básico e um ciclo profissionalizante,
abrindo espaço para esses alunos. Concordaram também que o sistema de cátedra era
arcaico e precisava ser modernizado: ora, nada mais conveniente que extinguir esse
sistema e passar a organizar a universidade em departamentos, segmentando as áreas do
conhecimento e aplicando à universidade moldes empresariais. Eis aqui, basicamente, o
“golpe de mestre” que foi a reforma de 1968.
As matrículas no ensino superior público também cresceram, é verdade. De
acordo com Martins (2009), entre 1967 e 1980, passaram-se de 88 mil para 500 mil
matrículas nas universidades federais. Mas a participação da rede privada é ainda mais
impressionante. Ainda de acordo com Martins, entre 1965 e 1980, as matrículas em
universidades privadas saltaram de 142 mil para 885 mil. As universidades privadas, em
1980, portanto, eram responsáveis por 64% das matrículas do ensino superior brasileiro.
Percebe-se, claramente, uma atribuição de uma função do Estado entregue para a
iniciativa privada, já que a área da educação não era considerada pelos militares como
prioridade, mas apenas como mais uma estratégia política de manutenção ideológica e
hegemônica. Enfim, conseguiu-se então atender as demandas de acesso, mas sempre a
partir de privatizações, trazendo o ensino superior cada vez mais para a ideologia e os
interesses do regime ditatorial.
De forma prática, então, a reforma se constituiu, segundo Germano:
Com efeito, a reforma assimilou certas demandas e reivindicações oriundas
do movimento estudantil e do professorado. Ao mesmo tempo, incorporou,
embora de forma desfigurada, experiências tidas como renovadoras, como a
desenvolvida na UnB. Ela introduziu a estrutura departamental e extinguiu a
cátedra; adotou o sistema de crédito por disciplina e periodicidade semestral;
dividiu o curso de graduação em duas partes, um ciclo básico e um ciclo
profissional; modificou o regime dos professores com a introdução da
dedicação exclusiva; estabeleceu que as instituições de ensino superior
deveriam se organizar preferencialmente sob a forma de universidade (...).
(GERMANO, 2005, p. 145).
A indissociabilidade entre ensino e pesquisa na universidade também foi
contemplada na reforma, mas ficou somente no discurso. Na prática, a reforma
implantou efetivamente a pós-graduação no Brasil, tornando-se esta o espaço único de
pesquisa na universidade brasileira, já que os cursos de graduação se preocupavam, de
forma geral, em formar profissionais. A pesquisa, então, é deixada exclusivamente para
a pós-graduação, que é efetivamente fortalecida e incentivada, claro que com limites e
com um interesse claro: desenvolver recursos humanos qualificados para a pesquisa
tecnológica (GERMANO, 2005), na busca da formação dos novos líderes tecnocráticos.
Ferreira & Bittar analisam a reforma a partir desse ponto de vista, da
necessidade da formação dos novos tecnocratas:
Era necessário apetrechar o Estado nacional da capacidade de planejar a
educação de acordo com os interesses socioeconômicos do mercado
capitalista. Para tanto, impunha-se a universalização da escola primária e
média e, particularmente, a ênfase na questão curricular referente ao ensino
de matemática e ciências naturais. Quanto ao ensino superior, previa-se a
ampliação das vagas no âmbito dos cursos de graduação voltados para as
profissões tecnológicas. Além disso, privilegia-se a estruturação dos
programas de pós-graduação com a dupla função de produzir conhecimentos
exigidos pela demanda do crescimento acelerado da produção econômica e,
ao mesmo tempo, de formar novos quadros capacitados para a geração de
ciência e tecnologia. (FERREIRA & BITTAR, 2008, p. 14)
É também importante lembrar que a reforma instaurou a extensão como
instrumento para melhoria das condições de vida da comunidade, através da
participação de estudantes e professores no planejamento e execução de projetos
comunitários, além, também, de garantir a representação estudantil nos órgãos
colegiados da universidade. Nesse sentido, basta lembrar de outra ação do governo
militar, que também fez parte dessa estratégia autoritária da política educacional: a
instauração do Ato Institucional número 5, o AI-5. A reforma universitária foi
promulgada em 28 de novembro de 1968, e o AI-5 em 13 de dezembro do mesmo ano,
ou seja, apenas 15 dias depois, aumentando a repressão e a censura e sufocando ainda
mais a autonomia universitária. Com efeito, se em 1964, os militares deram um golpe
no Estado, em 1968, o golpe foi especificamente na educação brasileira.
CONSIDERAÇÕES FINAIS - O LEGADO DA DITADURA: SERIAM
REFORMAS MESMO O MELHOR CAMINHO?
A partir da exposição feita, acho que não é difícil, principalmente para quem
estuda ou trabalha na área da educação, perceber a semelhança entre a realidade da
reforma universitária de 1968 e a realidade da universidade no Brasil hoje. Ferreira &
Bittar vêem essa semelhança principalmente a partir de dois pontos relacionados ao
ensino básico:
Para além da ideologia tecnicista que caracterizou a educação, há de se
considerar ainda que a herança deixada pela ditadura militar repercute até
hoje no sistema educacional brasileiro. Vários elementos que estrangulam,
por exemplo, a qualidade de ensino da escola pública são remanescentes das
reformas educacionais executadas pelos governos dos generais-presidentes.
Destacamos, a título de ilustração, dois aspectos significativos da condição de
ser professor do ensino básico, na atual realidade brasileira, que deitam
liames profundos na política educacional legada pelo regime militar: o
processo aligeirado de formação científico-pedagógico e a política de arrocho
salarial a que são submetidos. A combinação desses dois elementos
constitutivos da vida cotidiana dos professores brasileiros representa, até
hoje, um nó górdio que estrangula a qualidade de ensino da escola pública
brasileira. E esse nó tem uma origem: a política educacional herdada da
ditadura militar. (FERREIRA & BITTAR, 2008, p.19)
Para além da questão do ensino básico, que tem suas origens também no
sistema universitário e na concepção corrente de universidade, vários pontos da reforma
são facilmente visualizados na nossa realidade atual. Martins (2009) nos lembra, sobre a
questão da mentalidade privatizante, que após o fim da ditadura, os governos do final da
década de 80 e da década de 90 priorizam também a mentalidade privatista na sua
política universitária. Entre 1995 e 2002, por exemplo, apesar do tímido crescimento
das matrículas do ensino público, o setor privado, de 60%, passou a responder por 70%
das matrículas no ensino superior brasileiro, com o número de universidades públicas
ficando estagnado. (MARTINS, 2009, p. 11). A mudança de governo, em 2003, buscou
a reestruturação do ensino público, seu reavivamento financeiro e a contratação de
muitos docentes e funcionários administrativos. Mas seus projetos também não foram,
pelo menos por enquanto, bem-sucedidos. O Programa de Reestruturação e Expansão
das Universidades Federais (REUNI) não foi bem aceito em vários setores acadêmicos,
pois o montante de verbas destinadas às universidades não correspondiam às mudanças
estruturais e pessoais que seriam necessárias. Além disso, o governo instituiu programas
como o Universidade para Todos (PROUNI) e o Fundo de Investimento Estudantil
(FIES), que tem como objetivo final, claramente, incentivar o acesso ao ensino privado,
em busca de números quantitativos e na busca desesperada do cumprimento de metas do
Plano Nacional de Educação, oferecendo, inclusive, verbas públicas para incentivo às
universidades privadas que contemplem os programas.
De fato, dados de 2006 apontam que 74% dos estudantes universitários
brasileiros estão em instituições privadas. O setor privado, em 2006, correspondia a
89% do total de instituições de ensino superior no Brasil (MARTINS, 2009). Isso
demonstra que a mentalidade privatista ainda está em alta quando o assunto é ensino
superior no Brasil. Para além disso, o sistema de seleção para as universidades públicas
favorecem aqueles que podem pagar por uma preparação adequada e pelo acesso aos
conteúdos que são cobrados nas provas, fazendo assim com que haja uma clara inversão
de valores no ensino superior brasileiro: as classes médias e altas estão no ensino
público, enquanto as classes trabalhadoras e provenientes do ensino básico público,
acabam tendo espaço apenas nas instituições privadas, que os oferecem, em sua grande
maioria, uma formação de qualidade duvidosa, voltada para a profissionalização e a
formação para o mercado do capital.
Martins, após expor esses dados, conclui:
A democratização do acesso ao ensino superior passa necessariamente pela
recuperação da centralidade das universidades públicas, onde as instituições
federais devem ser revigoradas, dotadas de efetiva autonomia administrativo-
financeira e decididamente apoiadas pelo poder central, de modo a resgatar
sua capacidade de funcionamento e expansão. Torna-se também de
fundamental importância reverter a lógica de funcionamento do ensino
privado – movido pelo anseio frenético de acumulação de ganhos materiais –,
de forma que assuma uma efetiva dimensão de bem público. (MARTINS,
2009, p. 16)
Além dessa realidade mais social, podemos ver também, de forma clara, a
influência da reforma de 1968 nas questões internas da universidade. O plano de
carreira do professor, por exemplo, continua praticamente o mesmo. Carreira dividida
em níveis e com exigências produtivistas para a passagem de um nível para outro, o
que, de acordo com uma mentalidade empresarial e capitalista, estimula a concorrência
entre pares, a “briga” por vagas, por salários e por cargos internos. A questão do sistema
de créditos e de disciplinas, em periodicidade semestral, ainda continua vigente.
Disciplinas segmentadas, que não dialogam entre si, não interagem, além de professores
que não tem o conhecimento necessário sobre os saberes prévios dos alunos, apenas
entrando e saindo de salas e mais salas sem criar vínculos, sem ter tempo de se
preocupar com o seu próprio conhecimento e com sua formação continuada. Cursos de
graduação com ciclos, também ainda vemos em nossas universidades. Não com os
nomes “básico” e “profissionalizante”, mas com os mesmos objetivos. Não é difícil
encontrarmos nas matrizes dos cursos de graduação expressões como “tronco comum de
disciplinas”, “disciplinas especializadas” ou “disciplinas obrigatórias”. Também não
precisamos procurar muito para achar cursos onde se estuda algumas disciplinas
comuns no início e depois parte-se para a especialização em alguma área do
conhecimento, alguma profissão ou área de serviços.
Nessa perspectiva, diz Saviani:
Com a introdução da programação semestral agravada pelo regime da
matrícula por disciplina, o professor toma conhecimento dos alunos que
comporão sua turma no início do semestre, digamos, em março. Somente por
volta do final desse mês ou no início de abril é que ele estará conhecendo
melhor seus alunos. Mas até que ele ganhe condições de prover orientações
específicas para as dificuldades diferenciadas de seus alunos,
individualmente considerados, já se estará avançado no mês de maio, findo o
qual já é preciso pensar na avaliação final do aproveitamento dos alunos na
disciplina por ele ministrada. Assim, o semestre se encerra, não tendo havido
tempo para se efetivar os encaminhamentos tendentes a corrigir as
deficiências constatadas. A avaliação é feita com a atribuição das notas ou
conceitos e a turma se desfaz, dispersando-se os alunos que partem para as
férias de julho destinadas totalmente ao lazer, sem nenhuma atividade
acadêmica prevista para esse período. Em agosto, novas turmas se formam e
repete-se o mesmo ritual com as mesmas deficiências que atestam a
precariedade, sob o aspecto qualitativo, da formação provida pela
universidade aos alunos a ela confiados. (SAVIANI, 2008, p. 17)
Para além de tudo isso, é necessário falar sobre o sistema departamental que foi
instituído pela reforma de 1968, e que está não só mantido nos nossos dias, mas em
crescente desenvolvimento e consolidação. Professores se dividem e segmentam cada
vez mais, e isso é incentivado através de verbas específicas para novos departamentos e
laboratórios. O saber, que em si mesmo, filosoficamente, é incapaz de ser dividido e
segmentado, é esquartejado justamente na instituição onde deveria ser difundido. Sobre
isso, diz Fávero:
Apesar de ter sido bastante enfatizado que o “sistema departamental constitui
a base da organização universitária”, não seria exagero observar que,
entendido o departamento como unidade de ensino e pesquisa, a implantação
dessa estrutura, até certo ponto, teve apenas caráter nominal. Por sua vez,
embora a cátedra tenha sido legalmente extinta, em muitos casos foi apenas
reduzida sua autonomia. A departamentalização encontra resistências desde o
início da implantação da Reforma Universitária. Passadas mais de três
décadas, observa-se ser o departamento, freqüentemente, um espaço de
alocação burocrático-administrativa de professores, tornando-se, em alguns
casos, elemento limitador e até inibidor de um trabalho de produção de
conhecimento coletivo. (FÁVERO, 1999, p.34).
A pós-graduação, por sua vez, continua sendo, geralmente, o único espaço de
pesquisa dentro da universidade. Esse é outro legado da política educacional ditatorial.
Concordando com Saviani (2008), a pós-graduação brasileira seguiu um modelo
estrutural estadounidense, que se divide, no âmbito stricto sensu, em dois níveis
hierarquizados (mestrado e doutorado), além de estimular cada candidato a escolher
uma área de concentração, uma linha de pesquisa e um “objeto” a ser pesquisado.
Segmenta-se, no mesmo sentido da graduação, o conhecimento, tendo cada
universidade uma infinidade de diferentes programas, o que é muitas vezes colocado
como um valor nos discursos e nas propagandas. O que serve de esperança,
concordando ainda com Saviani (2008), é que, apesar de seguir o modelo estrutural
estadounidense, a pós-graduação brasileira, especialmente nas ciências humanas, se
implantou, teoricamente, por conta da formação de seus intelectuais e criadores, a partir
da experiência europeia, que enfatiza especialmente a teoria. (SAVIANI, 2008). Apesar
então de ter uma estrutura também departamentalizada e segmentada, a pós-graduação
brasileira, enfaticamente as ciências humanas, se caracterizam por dar uma ênfase
grande ao aspecto teórico, o que culmina em seu caráter mais crítico, contestador,
inquiridor e filosófico.
Fica aqui o meu convite à reflexão: diante do exposto e diante de todo
conhecimento disponível em relação à história e ao desenvolvimento do ensino superior
no Brasil, serão mesmo as reformas o melhor caminho? Não é chegada a hora da luta,
pensada principalmente nesse caráter crítico e contestador das ciências humanas, por
uma transformação total, estrutural, didática e política da universidade brasileira? Não é
chegada a hora de reconstruir o pensamento sobre a universidade, entendendo-a como
instituição dinâmica, como locus das lutas sociais, como difusora e criadora de cultura,
como instituição de luta contra atitudes dominantes, repressivas e autoritárias? Não seria
o momento, nas condições políticas e econômicas, das lutas pela educação se desviarem
do caminho das reformas, caminho esse já excessivamente trilhado e com resultados
práticos ainda praticamente invisíveis? Seria o momento da luta pela real transformação
na educação brasileira? Eu, em meu pensamento, acredito e torço para que seja.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CUNHA, A. L. A universidade reformanda: o golpe de 1964 e a modernização do
ensino superior. Rio de Janeiro: Francisco, 1988.
___________. Qual universidade? São Paulo: Cortez, 1989.
FÁVERO, M. de L. de A. A Universidade do Brasil: das origens à Reforma
Universitária de 1968. Revista Brasileira de Educação, SP, n.10, p.16-32, 1999.
FERREIRA J.; BITTAR, M. Educação e ideologia tecnocrática na Ditadura
Militar. Caderno CEDES. Campinas, vol. 28, n.76, set./dez., p. 333-355, 2008
GERMANO, J. W. Estado militar e educação no Brasil. São Paulo: Cortez, 2005.
MARTINS, C. B. A Reforma Universitária de 1968 e a Abertura para o Ensino.
Superior Privado no Brasil. Educação & Sociedade. Campinas, vol. 30, n. 106, p. 15-
35, 2009.
SAVIANI, D. O legado educacional do regime militar. Cadernos CEDES, v. 28, p.
291-312, 2008.