ARTIGO - Construção do Realismo – Ambientes Sonoros e Verossimilhança no filme Rêves de...

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Artigo escrito em 2011 no Bacharelado em Cinema e Audiovisual UFPE. Por Gabriel Muniz

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ARTIGO

Construção do Realismo – Ambientes Sonoros e Verossimilhança no filme Rêves de Poussiere, de Laurent Salgues

Resumo

O presente texto tem como objetivo refletir sobre alguns artifícios de construção dos ambientes sonoros do filme Rêves de Poussière, de Laurent Salgues [França, Canadá, Burkina Faso, 2006]. A partir da análise do trabalho de composição de sua trilha sonora, pretendemos abordar através do cinema, aspectos da escrita de uma realidade verossímil e algumas de suas relações como representação do real.

1.

Um deserto, vasto horizonte de vazio. Ambiente onde o tempo parece se prolongar até tornar-se deserto também. Onde o espaço não é barreira para o som ou para o silêncio. Onde o silêncio pode se tornar condição de um ser. Onde seres que trazem o silêncio, ora morrem com ele, ora com ele vivem. E para não viver em lugar algum, o vazio do deserto, o não-lugar.

O deserto em questão é o não-lugar do personagem principal de Rêves de Poussière, co-produção França, Canadá e Burkina Faso de 2006, do cineasta francês Laurent Salgues. Mocktar é um camponês nigeriano que emigra para trabalhar numa mina de ouro em Burkina Faso, vinte anos após seu esgotamento.

Ainda assim, muitos nativos e estrangeiros procuram naquele deserto árido e poeirento a chance de realizar seus sonhos ou de se livrar do pesadelo de suas realidades. Enquanto todos os trabalhadores das minas sonham em enriquecer financeiramente e sair dali, o silencioso Mocktar afirma não ter como objetivo adquirir fortuna, o que nos coloca diante do mistério inicial do filme. Passa a ajudar Doumba, uma jovem mulher, viúva de um mineiro morto em acidente de trabalho, mãe da pequena Mariama.

Assim como é o protagonista é o mundo em que vive, ao menos o mundo diegético. Talvez o personagem seja um só, o homem e o espaço. No entanto, este espaço não é de pertencimento ou escolha, mas de fuga ou martírio. Achei que seria interessante escrever sobre um filme cuja diegese compartilha a condição de personagem e gera o conflito juntamente com o protagonista.

Neste caso a realidade apresentada é uma analogia do conflito emocional trazido pelo personagem. Mocktar é uma figura errante, um estrangeiro, sem família, mistério para outros personagens. O que procura, do que quer se esconder ou esquecer, porque está ali, são incógnitas inicialmente. Existe um deserto, um vazio de informação sobre o protagonista e outros personagens, que aos poucos vão sendo reveladas pelo filme.

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Além desta relação temática mais geral, entre homem e natureza, motivei-me a falar mais especificamente sobre os recursos sonoros deste filme. Temos um trabalho de construção estética realista, representação verossímil de um ambiente sonoro que, justamente por se referir diretamente a um perfil psicológico, compartilha com o espectador a impressão de real necessária para criação de empatia com o personagem.

A minuciosa trilha sonora embora pareça apenas cumprir demanda funcional para uma escuta desatenta, é um dos recursos narrativos mais importantes do filme. Principalmente diante do silêncio dos personagens – um deles só fala em um momento do filme – o som de um ambiente desértico evoca uma sensação de vazio, isolamento e falta de perspectivas compartilhada entre os personagens.

Uma equipe de 12 pessoas – captadores, artistas foley, editores, mixadores, consultores e assistentes – fora os músicos, criou uma ambiência sonora que segue majoritariamente um estilo realista, mas que por vezes tende a recursos bastante utilizados no design de som contemporâneo, como suspensão, alteração da velocidade do som, hiper-realismo; criando ambientações sensoriais que dialogam com as percepções dos personagens e com o fluxo narrativo.

Há pelo menos quatro tipos de ambientações bastante distintas entre si: Os desertos – local de trabalho em algumas cenas, descanso em outras; a pedreira, onde quebram e filtram as rochas em busca de ouro; as vilas e espaço públicos, de convívio social; e os espaços internos, que preservam algumas características semelhantes entre si. Cada uma dessas ambientações conserva peculiaridades.

2.

Os desertos são espaços dominados pelo vento de poeira. Na maior parte do filme a ventania assume o papel de ambiente, o que seria o som fundamental no conceito do canadense Raymond M. Schafer. Inicialmente o ambiente do deserto adquire um tom minimalista, com poucos sons, dois ou três sopros distinto; e alguns sinais, como os passos do protagonista na primeira cena.

Na ambiência do deserto somam-se aos ventos da camada fundamental as vozes de vários mineiros que murmuram, criando um pano de fundo homogêneo. Em relação aos ruídos, passos, sons de picaretas e pás, uma voz ou outra que se destaca. A construção narrativa do filme varia bastante nesses ambientes sonoros, que estão sempre oscilando entre estados de calmaria ou de maior intensidade na ação dramática.

Um bom exemplo é o momento em que um dos companheiros de Mocktar fica preso nas escavações. Ouve-se primeiramente um estrondo, os ventos vão ficando mais fortes, a personagem Doumba grita, cria-se um momento de tensão, que reflete o medo desta personagem e um maior envolvimento emocional com o protagonista.

Ou quando Doumba e Mocktar estão a sós observando o vasto horizonte. Os ventos mais brandos, as poucas palavras e os poucos ruídos reforçam o que poderia

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ser uma possibilidade de relação amorosa (a essa altura sabe-se poucos sobre os motivos que levam a aproximação do homem).

É importante observar também outra função do som dos ventos, desta vez como efeito sonoro de transição entre diferentes sequências e elipse temporal. Nesse caso os ventos criam uma fluidez entre os cortes, ou, agindo como sinais sonoros, mudanças de ambientes de uma mesma cena, suavizando o ritmo criado pela montagem, mais lento, contemplativo, como são algumas das imagens e dos personagens.

A pedreira é o local onde, após o trabalho de escavação e coleta de pedras, os mineiros vão quebrá-las e filtrá-las na procura pelo metal precioso. O ambiente é extremamente ruidoso e possui algumas características importantes: sobreposição de sons, assincronia, e ritmo constante. Esses três recursos de construção, longe de criar uma confusão de sons, pelo contrário, cria uma camada sonora contínua.

É como se fosse um som único, dada a uniformidade com que estes elementos foram mixados. Os diálogos e outros ruídos são bastante audíveis e é possível perceber alguns momentos de síncrese. A cama sonora formada por essa soma cria uma sensação de tensão crescente. Quando assisti lembro-me de ter pensado no conhecido rufar de tambores. Criou-se uma repetitiva textura de sons secos, rochosos, metálicos, como algo em ebulição.

Na sequência em que Mocktar vai ao trabalho por primeira vez, a cada plano vai-se aumentando a intensidade desta ambiência. Índice de espacialidade, aproximação do personagem no ambiente, e de tensão psicológica, uma vez que é um trabalho em que não tem experiência alguma. A repetição também causa a sensação de cansaço de trabalho maçante, interminável, quase inútil, dada remota probabilidade de se encontrar algum ouro.

O terceiro tipo de ambiente que destaquei no filme são as vilas. No geral são silenciosas e variam de tons de acordo com os horários e pensamentos do protagonista. De manhã cedo, o vento calmo, grilos, piados de galinha. Um pouco mais tarde, murmúrio de vozes de mulher, ainda baixinho. Elas e as crianças ficam na vila enquanto os homens estão na mina. Também no momento em que Mocktar pensa em sua filha falecida, caminhando pela vila, surgem sons distantes de crianças brincando. Nas vilas o vento aparece bastante como elemento de transição.

Numa visita ao mercado ouvem-se cabras e sinos, muitas vozes sobrepostas, música diegética de fundo e os diálogos. Aqui me parece uma construção mais funcional, a cena ressalta a personalidade do protagonista. Ele procura uma lanterna, mas parece não se ater a nada especificamente, não se deixa enrolar por um vendedor ganancioso.

Já os ambientes internos contam com pequenas e interessantes sutilezas sonoras. Mocktar parece não se sentir muito bem em ambientes fechados. Logo no início, quando chega à vila, apresenta-se ao contratante das minas. Entre as características do ambiente, silencioso e reverberante, alguns ruídos se destacam, como o de uma insistente mosca. Retomando Schafer, ela surge como marca sonora,

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simbolizando um marasmo, lugar tedioso, entregue às moscas. O inseto aparece rapidamente na imagem.

Em outro momento o som de mosca como marca sonora também é percebido, após a morte do chefe da pedreira, que havia enriquecido com o ouro encontrado por Mocktar. De manhã cedo o corpo é encontrado por crianças abandonado no deserto, desta vez não há vento. Embora não apareça sua imagem dentro de quadro, o zumbido indica que ela sobrevoa o cadáver, passando a idéia de abandono do assassinado.

À noite, dentro de um bar, ambiente pouco mais aberto, temos uma música diegética animada como fundo, que cria uma situação contrastante com o dia de trabalho dos personagens. É quando alguns deles expõem seus sonhos e tentam se divertir com bebidas e mulheres. Mocktar inicialmente não bebe, sente-se deslocado. Mas, na medida em que começa ter pesadelos, começa a acompanhar os colegas de trabalho.

Em outra cena, após um acidente de trabalho, o personagem principal vai para um ambulatório. Mais um detalhe interessante se formos pensar no que é crível, no que parece real: na construção desta ambiência, além de um silêncio quase cerimonial, ouve-se um quicar de sapatos reverberando no ambiente, ruído fora de quadro que evoca ainda mais o ambiente hospitalar. Os diálogos são secos, diretos, os ruídos ampliam-se na acústica do ambiente.

3.

Ainda que com todo o esmero na procura pela verossimilhança, o filme de Laurent Salgues propõe como protagonista uma persona mista: o homem e seu meio. Assim, ocasionalmente os ruídos, as ambiências e os diálogos assumem o ponto de escuta de Mocktar. De forma objetiva, como no exemplo do primeiro dia no trabalho; ou subjetiva, que é quando o filme lança mão de técnicas frequentemente utilizadas na estética do som para cinema na contemporaneidade.

Na cena em que o nigeriano desce para o interior da escavação a ambiência torna-se mais fechada, reverbera bastante. Falta oxigênio e o mineiro sente-se tonto. O ponto de escuta objetivo passa gradualmente ao ponto de escuta subjetivo do personagem, o ambiente se torna mais denso, mais próximo do silêncio, e os ruídos da areia ficam mais secos e abafados, os palitos de fósforos e outros ruídos ganham tons hiper-realistas. É quando a atmosfera do filme se torna mais onírica e podemos ouvir vozes das lembranças que atormentam Mocktar.

Em outro momento Doumba entra na cabana onde o estrangeiro está hospedado com os companheiros de trabalho e despeja uma jarra d’água em uma cacimba. Os pontos de vista e escuta são os do protagonista e ouvimos um som mais vagaroso, volumoso, que abafava todos ao redor, metadiegético. É quanto Mocktar atenta para uma possibilidade de redenção, a água refrescante naquele deserto.

Dentro da pedreira, outra situação, o personagem principal se acidenta. Enquanto quebra pedras para filtragem, se distrai e bate com o amassador na própria

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perna. É uma cena forte na qual o som metálico do objeto atingindo seu corpo, junto com um corte de imagem rápido potencializa a sensação de agonia pelo acidente. Todo o ambiente e a maior parte dos ruídos da pedreira são suspensos. Ouvimos apenas alguns ruídos abafados e/ou de baixa intensidade e vemos a expressão de dor no rosto do homem.

Um último exemplo de recorrência a uma representação subjetiva: Após tentar salvar um companheiro, pela falta de oxigênio, Mocktar consegue sair da escavação ainda em estado de pouca consciência. Novamente o tom onírico assume o comando e as imagens e sons se alargam em movimento retardado. Na montagem, cortes de elipses da ação de recuperação da razão.

4.

Retomando a reflexão em relação à composição estética do som do filme, acredito que em Rêves de Poussière, a preocupação de seu projeto de construção sonora está mais ligada à criação de uma realidade possível, a realidade de seu mundo diegético. Diferentemente de uma proposta naturalista ou de uma fidelidade extrema ao real, ainda que o design de som desta produção procure este real como parâmetro ou tenha um belo trabalho de textura e sincronismo dos ruídos com a imagem, seu caminho segue para uma representação mais próxima da realidade tal como Mocktar experimenta.

O ambiente, a noção de tempo e as sensações evocadas são próprias do protagonista. O deserto é o clima quente e seco, o desconforto; Um não-lugar, para onde vão pessoas que sonham ou fogem por motivos diversos, mas que procuram esperança; Sonhos pouco tangíveis ou duradouros, como a poeira do deserto. Um lugar onde miseráveis procuram uma chance na vida, boa parte por que já a perdeu. Onde a riqueza acumulada vai para estrangeiros distantes, e não para melhorar as condições dos povos que circundam a região.

É diante da percepção de mundo do personagem que enxergamos esta representação. Embora todo o trabalho de construção realista, o realismo é de tal maneira ligado ao personagem que o ambiente se configura como uma metáfora da condição daquele homem. A narrativa caminha, como nos exemplos já citados, em função de sua trajetória, e o que poderia ser apenas um drama existencial amplia-se de forma a tornar-se uma visão subjetiva, também uma metáfora da situação do nosso mundo real.

O estrangeiro Mocktar, nigeriano em Burkina Faso, encontra o ouro, mas decide abrir mão da fortuna em prol de Doumba e sua filha Mariama. De outro modo, aquilo pelo qual arriscou a vida, acabaria indo para os países ricos, preferiu aplicar nos estudos de uma criança. Concluindo, o filme em sua representação subjetiva do mundo real aponta para a possibilidade de se falar do real objetivo, sem obrigatoriamente espelhar-se nele por inteiro, procurar a verossimilhança em relação ao mundo e a verdade na maneira de representá-lo.

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REFERÊNCIAS

Audiovisual:

Rêves de Poussière – Laurent Salgues. França, Canadá, Burkina Faso, 2006.

Textuais

BARBOSA, Álvaro. O Som em Ficção Cinematográfica – Análise de pressupostos na criação de componentes sonoras para obras Cinematográficas / Videográficas de Ficção. Universidade Católica Portuguesa, Escola das Artes - Som e Imagem 2000/01. COSTA, Fernando Morais da. Pode o cinema contemporâneo representar o ambiente sonoro em que vivemos? COSTA, Fernando Morais da. Pode-se dizer que há algo como um hiper-realismo sonoro no cinema argentino?