Artigo Crise Ética No Brasil

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PAINEL: RETRATOS DO JUDICIÁRIO - O BRASIL VIVE UMA CRISE ÉTICA? Des. Vasco Della Giustina •• Excelentíssimos senhores componentes da Mesa, já enunciados pelo Protocolo, senhoras e senhores. Vive a nossa sociedade uma crise profunda. Pode-se dizer - sem margem de erro – que se trata de uma crise ética, isso porque há grandes mudanças nos valores da convivência humana, com reflexos, evidentemente, no problema ético. Assim, a solidariedade em suas mais variadas formas e a comunhão de interesses dão lugar, hoje em dia, ao individualismo, que cada vez se impõe mais no comportamento das pessoas na sociedade. Mais e mais se difunde o pensamento de que o homem deve satisfazer seus inúmeros interesses e impulsos, na procura incessante da satisfação das necessidades individuais. Perde-se, então, em nível de valores, a dimensão comunitária do ser humano, o que dá lugar à preocupação da felicidade e da auto-realização do indivíduo. Busca-se acima de tudo o interesse do singular, numa mentalidade calculista e empresarial. Assim, nesse enfoque, tudo é justificável, desde que o indivíduo realize sua felicidade e seu prazer. Já o nosso sistema capitalista caracteriza-se pelo abismo profundo entre a opulência e o desperdício de poucos em contraste com a miséria e a fome de muitos. Constata-se em nossa realidade uma desproporção entre o crescimento e os indicadores sociais. No Brasil, força é reconhecer, convivem duas sociedades em pólos opostos, a miséria e a pobreza, contrastando com a produção de lucros e benefícios, e a injusta repartição da riqueza produzida sem benefício para todos. O individualismo imperante torna as pessoas insensíveis ao fosso escandaloso que existe entre os níveis de concentração de renda e a vida miserável de milhões de brasileiros com um dinamismo permanente da transferência de renda das classes pobres para as classes ricas. Ademais, senhores, a ética do sucesso a qualquer preço e a qualquer custo, a substituição do direito pela força, com o mais forte ditando as regras da vida em comum, também são características de nossa moderna sociedade. O princípio de levar vantagem em tudo tem prevalecido, pouco importando a depredação de nossas riquezas, em queimadas, com pesca predatória, com poluição de todas as formas, com Evento ocorrido em 13 de novembro de 2006, durante a 52ª Feira do Livro de Porto Alegre, na sala Oeste do Santander Cultural. Degravado e revisado pelo Departamento de Taquigrafia e Estenotipia do TJ/RS. •• Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.

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  • PAINEL:

    RETRATOS DO JUDICIRIO - O BRASIL VIVE UMA CRISE TICA?

    Des. Vasco Della Giustina

    Excelentssimos senhores componentes da Mesa, j enunciados pelo Protocolo, senhoras

    e senhores. Vive a nossa sociedade uma crise profunda. Pode-se dizer - sem margem de erro

    que se trata de uma crise tica, isso porque h grandes mudanas nos valores da convivncia

    humana, com reflexos, evidentemente, no problema tico. Assim, a solidariedade em suas mais

    variadas formas e a comunho de interesses do lugar, hoje em dia, ao individualismo, que cada

    vez se impe mais no comportamento das pessoas na sociedade.

    Mais e mais se difunde o pensamento de que o homem deve satisfazer seus inmeros

    interesses e impulsos, na procura incessante da satisfao das necessidades individuais. Perde-se,

    ento, em nvel de valores, a dimenso comunitria do ser humano, o que d lugar preocupao

    da felicidade e da auto-realizao do indivduo. Busca-se acima de tudo o interesse do singular,

    numa mentalidade calculista e empresarial. Assim, nesse enfoque, tudo justificvel, desde que o

    indivduo realize sua felicidade e seu prazer.

    J o nosso sistema capitalista caracteriza-se pelo abismo profundo entre a opulncia e o

    desperdcio de poucos em contraste com a misria e a fome de muitos. Constata-se em nossa

    realidade uma desproporo entre o crescimento e os indicadores sociais. No Brasil, fora

    reconhecer, convivem duas sociedades em plos opostos, a misria e a pobreza, contrastando

    com a produo de lucros e benefcios, e a injusta repartio da riqueza produzida sem benefcio

    para todos.

    O individualismo imperante torna as pessoas insensveis ao fosso escandaloso que existe

    entre os nveis de concentrao de renda e a vida miservel de milhes de brasileiros com um

    dinamismo permanente da transferncia de renda das classes pobres para as classes ricas.

    Ademais, senhores, a tica do sucesso a qualquer preo e a qualquer custo, a substituio

    do direito pela fora, com o mais forte ditando as regras da vida em comum, tambm so

    caractersticas de nossa moderna sociedade.

    O princpio de levar vantagem em tudo tem prevalecido, pouco importando a depredao

    de nossas riquezas, em queimadas, com pesca predatria, com poluio de todas as formas, com

    Evento ocorrido em 13 de novembro de 2006, durante a 52 Feira do Livro de Porto Alegre, na sala Oeste do Santander Cultural. Degravado e revisado pelo Departamento de Taquigrafia e Estenotipia do TJ/RS. Desembargador do Tribunal de Justia do Rio Grande do Sul.

  • abuso dos agrotxicos e com ameaa sobrevivncia humana. Tudo reforado pela difuso,

    atravs da mdia, de uma nova viso do homem e da vida. O homem um ser consumista, cujos

    desejos do ter e do prazer no tm limites definidos. Cria-se uma mentalidade societria viciada

    pelo conformismo com essa situao, pela indiferena dos problemas maiores da sociedade, com

    a acomodao a uma nova tica onde se perde o senso crtico e a responsabilidade moral.

    A lei no vista como efetivao de direitos e sim como inimigo de quem se deve fugir

    como se pode. H um ethos utilitarista, em que os interesses individuais se sobrepem aos

    interesses comunitrios, e h uma tendncia muito grande para o relativismo moral.

    A tica na poltica. No campo da poltica, a Operao Mos Limpas na Itlia, anos

    atrs, estendida agora s demais naes, teve um significado de retomada das exigncias ticas. As

    populaes tm sido surpreendidas pela revelao da prtica generalizada de fraudes, desvios de

    verbas pblicas, corrupes administrativas, mensales, sanguessugas, malas de dinheiro, que

    transformam a coisa pblica em coisa de poucos. Como registrou o filsofo Denis Rosenfield,

    ilustre participante deste painel, em artigo publicado na Folha de So Paulo, recentemente, em 1

    de novembro, com muita preciso. Diz Sua Excelncia: A liberdade de imprensa e dos meios de

    comunicao em geral propiciou uma nova configurao da opinio pblica, atenta ao

    comportamento de seus dirigentes. Lderes partidrios e governantes tiveram de responder por

    suas aes e de se responsabilizar pelo que faziam. Polticos que baseavam suas aes em

    mximas do tipo dando que se recebe, ou rouba, mas faz, perderam progressivamente

    credibilidade e foram sendo abandonados pelos eleitores.

    E continua o nosso filsofo: A nica resposta a essas perguntas veio sob a forma de

    errar humano para justificar a corrupo e a falta de tica na poltica. como se uma nova

    teoria estivesse nascendo das cinzas da moralidade e de que erros justificam todo tipo de ao.

    A sociedade, dizemos ns, cada vez mais toma conscincia, como ates referido, da falta

    do princpio tico, o que se traduz numa corrupo generalizada, clientelismo, autoritarismo e

    demagogia, de diferentes formas e variados nveis societrios, com oportunismos desmascarados,

    com a irresponsabilidade tornada normal no exerccio de cargos pblicos, com a violncia e a

    prepotncia.

    Os escndalos revelados provocaram uma reao generalizada na conscincia pblica, que

    passou, ento, a exigir tica na poltica. Essa demanda deu origem a movimentos investigativos,

    processos e at condenaes. A exigncia de tica na poltica contrape-se, por bvio, s

    concepes maquiavlicas e s prticas polticas dominadas pelo interesse pessoal ou de grupos.

    Como adverte Maritain, h uma mxima inaceitvel, segundo a qual a poltica deve ser indiferente

    ao bem e moral.

  • Do at aqui exposto nessa sntese infere-se sem grande esforo que a tica, sendo

    fundamental ao comportamento moral do homem em sociedade, do mesmo modo como

    necessria para conferir a validade ao Direito, torna-se imprescindvel legitimidade da poltica,

    enquanto atividade essencial gesto dos interesses pblicos e realizao do bem comum.

    Estar frente da conduo da coisa pblica importa, senhores, em desprender-se de si, de

    seus interesses pessoais, desprender-se dos interesses de uma categoria e fazer-se uma longa manus

    da prpria populao, na busca da verificao de suas necessidades e suprimento de seus ideais.

    Segundo Eduardo Bittar, gerir a coisa pblica gerir o que pertence a todos, o que s se

    pode pensar em fazer de modo respeitvel e tico. No h como aceitar-se, senhores, a poltica

    como a arte de conquistar e conservar o poder por qualquer meio, com a condio de que o meio

    possa assegurar o sucesso. No dizer do filsofo francs h pouco referido, h dois modos de

    compreender a promoo da vida poltica: primeiro, mais fcil, o modo hbil, esperto, ou

    violento, e o outro o modo moral, tico e humanista.

    Importa, pois, a criao de um cdigo de tica na poltica, em que fique claro que a

    atividade poltica deve estar a servio da comunidade e no subordinada a interesses particulares.

    Deve, ademais, ser baseada em valores morais, fundamentais e comuns. Importa, outrossim, que

    o poltico responda por suas aes atravs de um mecanismo de controle por parte dos cidados,

    com verificaes peridicas dos eleitores e da opinio pblica. No deve, com infindveis

    reeleies, a poltica ser perseguida, transformando-se numa profisso permanente, faz-se mister

    a instituio de um cdigo deontolgico.

    Ainda que tardiamente, constata-se um questionamento a todo esse sistema, com uma

    nova interpretao do sentido da vida, em vrios grupos h mudanas de aspiraes, um estilo de

    vida em que o problema e os fins da sociedade, assim como o sentir da convivncia, reposto

    como problema fundamental. A dignidade do homem enquanto ser comunitrio e livre volta a

    ser cultivada.

    Em sntese, encaminho uma concluso. Entendo, senhores, que o modo tico se embasa

    na justia, na lei, na solidariedade e, fundamentalmente, na dignidade da pessoa humana.

    H que reconhecer avanos com a sociedade brasileira progredindo, tanto na adoo de

    medidas legislativas que inibam e punam a falta de tica na poltica quanto na mobilizao social

    contra abusos daqueles aos quais confere, mediante eleio ou no, a gesto da coisa pblica e a

    direo dos negcios do Estado.

    Em todos os recantos brota uma exploso de idias de liberdade e de seus ideais irmos:

    igualdade, fraternidade e solidariedade.

  • Assim, entendo que renasce um novo senso de justia e uma maior preocupao com os

    direitos humanos.

    Percebe-se na sociedade uma maior clareza dos direitos do cidado e da unio na

    transformao da sociedade, com a conscincia das responsabilidades e com tentativas de

    superao do individualismo que marca a nossa moderna sociedade. Nesse contexto, o direito

    surge como instrumento indispensvel para frear e domar os impulsos malficos dos homens e os

    conseqentes conflitos de toda ordem da advindos, visando ao restabelecimento de uma

    igualdade.

    Podemos, ento, afirmar que ser tico ser justo, ou seja, que o fim da tica a prpria

    justia. A Constituio de 88 abriu a porta a inmeras demandas por direitos sociais, que estavam

    reprimidos ou adormecidos, e a populao j est mais consciente de seus direitos batendo a

    porta, amide, dos tribunais, com aes individuais ou coletivas, para reverter as injustias que

    ainda grassam na sociedade.

    Somente o cidado esclarecido e participativo pode ajudar na construo de uma

    democracia slida e duradoura, na qual haja o predomnio da tica enquanto prtica de

    comportamento moral, fundamento de toda a legitimidade do ordenamento jurdico.

    O Direito assim, concluindo, renascer do Direito e os homens de bem havero de

    responder jusfilosoficamente a um chamado dramtico de valores e de princpios, das forjas de

    carter que ditaro a conduta, das atitudes e dos comportamentos, das geraes construtores do

    novo milnio.

    Muito obrigado.

  • Ruy Rosado de Aguiar Jnior

    Boa-tarde aos integrantes da Mesa, aos colegas que nos ouvem.

    Havia preparado alguma coisa em torno da tica, especificamente da tica e do direito,

    mas vou comear de onde o Des. Melbio parou.

    O que pode o Judicirio fazer para participar desse trabalho de reconstruo tica do

    Pas? Na verdade, se a tica o conjunto de princpios que procuram nortear o comportamento

    humano para a realizao dos seus fins; se o direito o conjunto de normas coercitivamente

    impostas para a realizao dos fins do Estado, o que um pouco diferente, e se no ordenamento

    jurdico do Brasil existem hoje muitas inseres de natureza tica, como ns temos na

    Constituio o princpio da moralidade administrativa, no Cdigo Civil o princpio da boa-f a

    impor a todos um comportamento leal diante do outro, o que atende a uma tendncia universal

    de aproximar a tica do direito o que Habermas j havia observado , eu me pergunto: quem

    trabalha com o direito, de que modo poder colaborar para a realizao desses princpios ticos

    na administrao pblica?

    Em primeiro lugar, penso, deveremos tratar de compreend-los na sua prpria extenso,

    isto , saber at onde vai a moralidade administrativa; em segundo, saber como punir a

    imoralidade administrativa, e o mesmo em relao ao Direito Civil, nas relaes privadas. Nesse

    ponto que surge a oportunidade de participao do Judicirio, na funo principalmente

    repressiva.

    No vejo no Pas hoje uma estrutura judiciria que possa prestar o mesmo servio que os

    magistrados italianos prestaram. Em primeiro lugar, porque l o Promotor tambm um

    magistrado. Em segundo lugar, eles modificaram a lei penal e a lei processual penal para permitir

    a averiguao dos delitos e eliminar muitas das garantias que hoje aqui so consideradas como

    indestrutveis e que, na verdade, impedem uma eficaz averiguao. Modificaram certos conceitos

    penais, como, por exemplo, o da co-autoria, para permitir a punio das chefias, ainda que no se

    conseguisse demonstrar a efetiva prtica de ato criminoso, respondendo o chefe tambm pela

    ao dos seus

    subordinados. S assim que se conseguiu obter um resultado eficaz na represso dessa

    imoralidade que estava tomando conta da estrutura estatal na Itlia.

    No Brasil, ns temos uma feio constitucional extremamente rgida com relao a

    princpios de Direito Penal, de devido processo legal, etc. O nosso processo penal arcaico, de

    Ministro do Superior Tribunal de Justia aposentado

  • 1942, com mais de 50 anos, no faz substancial distino no processamento de um delito leve e

    de um grave. Ns temos um Direito Penal que data do mesmo ano e, cada vez que se quer mudar

    a perspectiva da represso penal no Pas, o que se faz aumentar a pena, quando se sabe que isso

    no resolve nada, porque nem presdio ns temos, quanto mais uma soluo pela pena. A norma

    constitucional atribui aos delinqentes de colarinho branco certos privilgios no processo e no

    julgamento, com prerrogativas de funo que exigem julgamento colegiado pelos Tribunais. Ora,

    sabidamente os tribunais no tm estrutura nem vocao para realizarem essa atividade. Essa

    dificuldade organizacional e operativa significa a impunidade para a maioria desses delitos,

    embora sejam os mais graves e os mais ofensivos aos princpios ticos da administrao pblica.

    Para mudar esse esquema, seria preciso mudar a Constituio, certamente isso no acontecer.

    Ainda que nada se mudasse na lei, pelo menos deveria ser aproveitada a experincia do Tribunal

    de Justia do Rio Grande do Sul, que criou um Cmara para julgar os processos criminais de sua

    competncia originria, mas esse exemplo no tem sido observado. No Supremo Tribunal

    Federal e no Superior Tribunal de Justia poderia ser organizado um cartrio para o

    processamento desses feitos. Como essas alteraes no acontecero em futuro prximo, no h

    perspectiva de maior eficcia.

    Quer dizer que estamos, realmente, vivendo uma situao de crise no sentido de que os

    nossos princpios ticos, de algum modo, foram quebrados, como o Prof. Denis explicou,

    algumas noes foram perdidas e a prtica administrativa est se deteriorando. Ao lado disso, no

    temos condies imediatas para recuperar o tempo perdido no trabalho de reconstituio tica no

    Pas. A contribuio que o Judicirio poderia dar fica bastante dificultada pela nossa deficincia

    organizacional. De sorte que estou um pouco pessimista quanto ao quadro que estamos vivendo.

    Ento, quando me perguntam: vivemos uma crise tica? Sim, considerando a dificuldade

    que o Estado encontra para investigar e punir as condutas anti-ticas dos seus administradores.

    Mas no, se considerarmos que a Nao tem idia bem definida dos princpios morais que devem

    ser respeitados, na vida privada e na pblica, no jardim e na praa. Acima de tudo, preciso

    confiar na capacidade de ao e de reao das pessoas. Assim como hoje ns estamos aqui

    reunidos para discutir esse tema, assim como em outros lugares outras pessoas tambm esto

    preocupadas com essas mesmas questes, assim como ns temos professores que escrevem nos

    maiores jornais do Pas alertando para o fato, ns no podemos desesperar da possibilidade de

    encontrar um meio de restaurar a eticidade nas nossas relaes pblicas e privadas.

    Mas esse meio implicar mudana de postura poltica, mudana de regras constitucionais,

    sem falar em toda a modificao da nossa estrutura legal e processual, porque somente depois

  • disso que o Judicirio poder colaborar para uma eficaz mudana de perspectiva no plano da

    tica. Era isso.