Artigo de Filipe Nogueira no diário português Público

1
A carne de cavalo e o fim do marketing A fraude com carne de cavalo acabou com o marketing tal como o conhecemos. As empresas do sector alimentar enfrentam, agora ainda mais claramente, um problema de confiança que só elas vão poder resolver. De que serve ter marcas fortes se elas se movem num sistema falível, que nem as próprias empresas parecem conseguir controlar? Todos discutiram a fraude e todos fizeram o seu trabalho – Governo, Parlamento, ASAE, empresas e marcas, jornalistas, associações de consumidores, médicos e veterinários, consumidores. E tudo parece agora tranquilo. Mas estará? O marketing “tal como o conhecemos” depende de uma relação indiscutível de confiança entre empresas e consumidores. Alimenta-se dessa credibilidade e não sobrevive sem ela. Só que essa relação é cada vez mais discutível e é aqui mesmo, nesta debilidade, que as administrações das empresas do sector alimentar devem centrar os seus esforços de comunicação, se querem construir uma reputação positiva e restaurar relações de confiança. Só o conseguirão gerando compromissos com todos aqueles que de uma maneira ou outra influenciam de facto os seus negócios — colaboradores, fornecedores, retalhistas, reguladores, legisladores, ONG e consumidores, todos eles cada vez mais informados, influentes e activos no que toca a gerar, a exigir e a reproduzir informação. A indústria alimentar é demasiadamente importante para não levar a sério o tema da sua própria credibilidade. Todos lhe exigem essa credibilidade, a começar nos ministérios e a acabar nos consumidores. É demasiadamente importante pelo seu peso nas economias, desde logo na portuguesa, e porque não existe alternativa à indústria alimentar como forma de produzir sustento para a população mundial. Face à evolução dos dados demográficos, ninguém tem capacidade para produzir alimentos em quantidade suficiente a não ser as empresas industriais, que foram criadas exactamente para isso. Em 1950, viviam nas cidades 750 milhões de pessoas. Hoje, apenas 60 anos depois, os habitantes de cidades são mais de 3,6 mil milhões em todo o mundo, ou seja, metade da população global. No topo dos países com maior taxa de crescimento da população urbana até 2050 estão a Índia e a China, aqueles que maior número de bocas têm e terão para alimentar. Todas as fantásticas experiências de pequena produção de proximidade são isso mesmo — fantásticas e pequenas. Por outro lado, um prédio forrado a hortas no meio da cidade não é solução alimentar — é má arquitectura. Um conflito de confiança latente a envolver a indústria alimentar é mau para todos, a começar nela própria e a acabar nos consumidores. E esta é, por isso, uma excelente oportunidade para as empresas pensarem o que têm de fazer para construir relações sustentáveis de confiança com todos os grupos de pessoas que fazem parte da esfera dos seus negócios. As empresas vivem da confiança, sobretudo as do sector alimentar. Os lucros são uma consequência dessa confiança. Sempre foi assim. O que é novo é que essa confiança está em causa como nunca esteve. Conservá-la dá muito trabalho mas faz toda a diferença. Exige construir relações sólidas e sérias não apenas com quem nos admira mas mesmo — e sobretudo — com quem nos julga, vigia, regula ou acusa. Confiança, sustentabilidade, reputação e compromisso parecem palavras do léxico sofisticado dos ciclos estáveis nas economias desenvolvidas. Porém, é precisamente num momento económico adverso que as empresas com melhor reputação têm mais oportunidade de criar valor, negociar melhor com fornecedores, atrair talento e gerar maior lealdade por parte dos seus clientes e consumidores. E é isso que fará delas, a prazo, empresas mais rentáveis. Estamos perante um novo roteiro macroeconómico e social que deve ser entendido pelas empresas, estabelecendo os seus espaços de actuação e protagonismo e criando relações de proximidade com todos aqueles — e são muitos — dos quais depende realmente a sua reputação e, como tal, o sucesso dos seus negócios. O marketing não pode continuar a alhear-se dessa necessidade de transparência e de credibilidade, valores que só conseguirá atingir através de uma cultura corporativa que ponha os diversos grupos de interesses no centro das suas preocupações, criando acções, momentos e conteúdos de comunicação e construindo relações de confiança com todos eles. Parece mau de mais conviver simultaneamente com uma crise financeira e com uma crise de confiança, mas combater esta crise de confiança será, para a indústria alimentar, a melhor forma de sobreviver à outra. Director da Imago – Llorente & Cuenca Estamos perante um novo roteiro macroeconó- mico e social que deve ser entendido pelas empresas Debate Insegurança alimentar Filipe Nogueira

Transcript of Artigo de Filipe Nogueira no diário português Público

Page 1: Artigo de Filipe Nogueira no diário português Público

Tiragem: 40323

País: Portugal

Period.: Diária

Âmbito: Informação Geral

Pág: 47

Cores: Cor

Área: 13,25 x 30,32 cm²

Corte: 1 de 1ID: 46921332 01-04-2013

A carne de cavalo e o fim do marketing

A fraude com carne de cavalo

acabou com o marketing

tal como o conhecemos. As

empresas do sector alimentar

enfrentam, agora ainda mais

claramente, um problema

de confi ança que só elas vão

poder resolver. De que serve

ter marcas fortes se elas se

movem num sistema falível,

que nem as próprias empresas parecem

conseguir controlar?

Todos discutiram a fraude e todos fi zeram

o seu trabalho – Governo, Parlamento,

ASAE, empresas e marcas, jornalistas,

associações de consumidores, médicos e

veterinários, consumidores. E tudo parece

agora tranquilo. Mas estará?

O marketing “tal como o conhecemos”

depende de uma relação indiscutível de

confi ança entre empresas e consumidores.

Alimenta-se dessa credibilidade e não

sobrevive sem ela. Só que essa relação é

cada vez mais discutível e é aqui mesmo,

nesta debilidade, que as administrações

das empresas do sector alimentar devem

centrar os seus esforços de comunicação,

se querem construir uma reputação

positiva e restaurar relações de confi ança.

Só o conseguirão gerando compromissos

com todos aqueles que de uma maneira

ou outra infl uenciam de facto os seus

negócios — colaboradores, fornecedores,

retalhistas, reguladores, legisladores, ONG

e consumidores, todos eles cada vez mais

informados, infl uentes e activos no que toca

a gerar, a exigir e a reproduzir informação.

A indústria alimentar é demasiadamente

importante para não levar a sério o tema

da sua própria credibilidade. Todos lhe

exigem essa credibilidade, a começar nos

ministérios e a acabar nos consumidores.

É demasiadamente importante pelo

seu peso nas economias, desde logo na

portuguesa, e porque não existe alternativa

à indústria alimentar como forma de

produzir sustento para a população

mundial. Face à evolução dos dados

demográfi cos, ninguém tem capacidade

para produzir alimentos em quantidade

sufi ciente a não ser as empresas industriais,

que foram criadas exactamente para isso.

Em 1950, viviam nas cidades 750 milhões

de pessoas. Hoje, apenas 60 anos depois,

os habitantes de cidades são mais de 3,6

mil milhões em todo o mundo, ou seja,

metade da população global. No topo dos

países com maior taxa de crescimento da

população urbana até 2050 estão a Índia e a

China, aqueles que maior número de bocas

têm e terão para alimentar.

Todas as fantásticas experiências de

pequena produção de proximidade são

isso mesmo — fantásticas e pequenas. Por

outro lado, um prédio forrado a hortas no

meio da cidade não é solução alimentar — é

má arquitectura. Um confl ito de confi ança

latente a envolver a indústria alimentar é

mau para todos, a começar nela própria e

a acabar nos consumidores. E esta é, por

isso, uma excelente oportunidade para as

empresas pensarem o que têm de fazer para

construir relações sustentáveis de confi ança

com todos os grupos de pessoas que fazem

parte da esfera dos seus negócios.

As empresas vivem da confi ança,

sobretudo as do sector alimentar. Os lucros

são uma consequência dessa confi ança.

Sempre foi assim. O que é novo é que essa

confi ança está em causa como nunca esteve.

Conservá-la dá muito trabalho mas faz toda

a diferença. Exige construir relações sólidas

e sérias não apenas com quem nos admira

mas mesmo — e sobretudo — com quem nos

julga, vigia, regula ou acusa.

Confi ança, sustentabilidade, reputação

e compromisso parecem palavras do

léxico sofi sticado

dos ciclos estáveis

nas economias

desenvolvidas.

Porém, é

precisamente

num momento

económico adverso

que as empresas

com melhor

reputação têm mais

oportunidade de

criar valor, negociar

melhor com

fornecedores, atrair

talento e gerar maior

lealdade por parte

dos seus clientes

e consumidores. E é isso que fará delas, a

prazo, empresas mais rentáveis.

Estamos perante um novo roteiro

macroeconómico e social que deve ser

entendido pelas empresas, estabelecendo

os seus espaços de actuação e protagonismo

e criando relações de proximidade com

todos aqueles — e são muitos — dos quais

depende realmente a sua reputação e,

como tal, o sucesso dos seus negócios. O

marketing não pode continuar a alhear-se

dessa necessidade de transparência e de

credibilidade, valores que só conseguirá

atingir através de uma cultura corporativa

que ponha os diversos grupos de interesses

no centro das suas preocupações, criando

acções, momentos e conteúdos de

comunicação e construindo relações de

confi ança com todos eles.

Parece mau de mais conviver

simultaneamente com uma crise fi nanceira

e com uma crise de confi ança, mas

combater esta crise de confi ança será, para

a indústria alimentar, a melhor forma de

sobreviver à outra.

Director da Imago – Llorente & Cuenca

Estamos perante um novo roteiro macroeconó-mico e social que deve ser entendido pelas empresas

Debate Insegurança alimentarFilipe Nogueira