Artigo equina 19 set out-2008

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O futuro da Eqüinocultura depende do bem-estar animal Roberto Arruda de Souza Lima Engenheiro agrônomo, Doutor em Economia Aplicada, Prof. da ESALQ/USP, Pesquisador do CEPEA [email protected] Hélio Lauro Soares Vasco Neto Graduando de Medicina Veterinária da Universidade Federal Rural de Pernambuco Daniel Dias da Silva Graduando de Zootecnia da Universidade Federal Rural de Pernambuco Este artigo discute o impacto econômico das alterações relacionadas ao bem-estar dos eqüi- nos, como nas atividades esportivas. Trata-se de tema ainda em estudo, sem respostas conclusi- vas, mas importantes para um debate mais am- plo, envolvendo tanto aqueles preocupados exclu- sivamente com o retorno financeiro das ativida- des eqüestres quanto para aqueles mais preocu- pados com o animal e sua saúde. A discussão ini- cia-se nas práticas esportivas. Encerrados os Jogos Olímpicos de 2008, um dos pontos que chamaram a atenção foi à quanti- dade de animais que apresentaram resultado po- sitivo no exame antidoping. Exemplos mais próxi- mos e lamentados por nós, brasileiros, foram os casos envolvendo os cavalos de Bernardo Alves e de Rodrigo Pessoa. Mais preocupante é a pos- sibilidade de diversos casos não terem sido de- tectados, ou por terem passado despercebidos ou simplesmente porque a ordem natural dos acon- tecimentos é primeiro surgir novas formas de do- ping para, então, desenvolver novos exames anti- doping. Mas por que ocorre o doping? São várias as respostas possíveis para esta questão. Em primeiro lugar, a exigência dos atle- tas (assim como ocorre com os humanos) tem sido elevada a cada ano, com maior esforço e atletas cada dia mais jovens. Assim como nossos futebolistas – apenas para ilustrar com os de mai- or projeção internacional: Ronaldo, Ronaldinho e Kaká – prematuramente apresentam lesões que os afastam de competições e provocam carrei- ras mais curtas que a dos craques do passado, os animais de ponta também não permitem proje- ções alegres para saúde no longo prazo. O uso de analgésicos e outros medicamentos são ne- cessários face a este esforço extraordinário exi- gido dos atletas. Mais grave é o uso de medicamentos fora das condições prescritas originalmente. Por exemplo, a nonivamida (a mesma substância detectada no cavalo Rufus, de Rodrigo Pessoa, na Olimpíada), que deveria ser utilizada para aliviar dores, mui- tas vezes é aplicada devido às suas característi- cas hipersensibilizantes. Há quem utilize substân- cias sensibilizadoras nas canelas dos animais de salto, para que o cavalo sinta mais dor ao tocar no obstáculo. Esta dor maior faria com que, em pró- xima oportunidade, o cavalo buscasse um salto mais alto para fugir do mal estar. Aliás, a prática de provocar dor no animal para que ele salte mais alto é objeto de diversos relatos sobre o uso de caneleiras com tachinhas, elevação da altura da vara quando o cavalo vai saltar, entre outros. O debate sobre bem-estar do animal atleta não se limita às provas de salto. Ao contrário, a discus- são é mais forte em outras áreas. Destaca-se, entre elas, a vaquejada. A vaquejada é uma festa genuinamente brasi- leira, com uma tradição de mais de 100 anos. Nos últimos dez anos vêm se modernizando e profis- sionalizando tornando-se reconhecida como es- porte através da Lei Pelé e regulamentada pela Lei Federal nº 4.495/98 e pela Lei do Estado do Rio de Janeiro nº 3021 de 23 de julho de 1998. Apesar de concentrar-se nas regiões Norte, Nor- deste e Centro Oeste, atualmente são realizadas mais de 1.000 vaquejadas por ano em todo Bra- sil. A importância da vaquejada vai além do as- pecto cultural (que por si só justifica sua prote- ção, de acordo com a Lei nº 4.495/98). Esse es- porte desempenha relevante papel para econo- mia local e, muitas vezes, regional. A movimenta- ção financeira atinge cerca de dois milhões de reais em uma só vaquejada por município, geran- do diversos empregos e ocupações diretas e indi- retas. Apesar de toda essa importância, ainda é questionável o nível de bem-estar do animal em grande parte dessas competições. Mas em todas as atividades esportivas, inclusive na vaquejada, a regra deve ser a preocupação com o bem-estar animal, deixando os casos de desrespeito para as exceções, ou melhor, eliminando esses casos. Esporte só pode evoluir quando associado ao bem-estar e saúde. Em entrevista ao site Mundo do Cavalo, Aluisio Marins sintetizou bem a idéia ao afirmar que “doping, stress, treinamentos er- rados, ferramentas sendo utilizadas de forma er- rada etc., serão cada vez mais abolidos do mer- cado”. Aluisio Marins ilustra a questão com o exemplo do enduro na categoria de 160 km. Se no regulamento da prova não houvesse forte pre- ocupação com bem-estar, não haveria mais pro- va no mundo, pois muitos animais morreriam. A

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O futuro da Eqüinoculturadepende do bem-estar animal

Roberto Arruda deSouza Lima

Engenheiro agrônomo,Doutor em

Economia Aplicada,Prof. da ESALQ/USP,

Pesquisador do [email protected]

Hélio Lauro SoaresVasco Neto

Graduando deMedicina Veterinária

da UniversidadeFederal Rural de

Pernambuco

Daniel Dias da Silva Graduando de

Zootecnia daUniversidade FederalRural de Pernambuco

Este artigo discute o impacto econômico dasalterações relacionadas ao bem-estar dos eqüi-nos, como nas atividades esportivas. Trata-se detema ainda em estudo, sem respostas conclusi-vas, mas importantes para um debate mais am-plo, envolvendo tanto aqueles preocupados exclu-sivamente com o retorno financeiro das ativida-des eqüestres quanto para aqueles mais preocu-pados com o animal e sua saúde. A discussão ini-cia-se nas práticas esportivas.

Encerrados os Jogos Olímpicos de 2008, umdos pontos que chamaram a atenção foi à quanti-dade de animais que apresentaram resultado po-sitivo no exame antidoping. Exemplos mais próxi-mos e lamentados por nós, brasileiros, foram oscasos envolvendo os cavalos de Bernardo Alvese de Rodrigo Pessoa. Mais preocupante é a pos-sibilidade de diversos casos não terem sido de-tectados, ou por terem passado despercebidos ousimplesmente porque a ordem natural dos acon-tecimentos é primeiro surgir novas formas de do-ping para, então, desenvolver novos exames anti-doping. Mas por que ocorre o doping?

São várias as respostas possíveis para estaquestão. Em primeiro lugar, a exigência dos atle-tas (assim como ocorre com os humanos) temsido elevada a cada ano, com maior esforço eatletas cada dia mais jovens. Assim como nossosfutebolistas – apenas para ilustrar com os de mai-or projeção internacional: Ronaldo, Ronaldinho eKaká – prematuramente apresentam lesões queos afastam de competições e provocam carrei-ras mais curtas que a dos craques do passado, osanimais de ponta também não permitem proje-ções alegres para saúde no longo prazo. O usode analgésicos e outros medicamentos são ne-cessários face a este esforço extraordinário exi-gido dos atletas.

Mais grave é o uso de medicamentos fora dascondições prescritas originalmente. Por exemplo,a nonivamida (a mesma substância detectada nocavalo Rufus, de Rodrigo Pessoa, na Olimpíada),que deveria ser utilizada para aliviar dores, mui-tas vezes é aplicada devido às suas característi-cas hipersensibilizantes. Há quem utilize substân-cias sensibilizadoras nas canelas dos animais desalto, para que o cavalo sinta mais dor ao tocar no

obstáculo. Esta dor maior faria com que, em pró-xima oportunidade, o cavalo buscasse um saltomais alto para fugir do mal estar. Aliás, a práticade provocar dor no animal para que ele salte maisalto é objeto de diversos relatos sobre o uso decaneleiras com tachinhas, elevação da altura davara quando o cavalo vai saltar, entre outros. Odebate sobre bem-estar do animal atleta não selimita às provas de salto. Ao contrário, a discus-são é mais forte em outras áreas. Destaca-se,entre elas, a vaquejada.

A vaquejada é uma festa genuinamente brasi-leira, com uma tradição de mais de 100 anos. Nosúltimos dez anos vêm se modernizando e profis-sionalizando tornando-se reconhecida como es-porte através da Lei Pelé e regulamentada pelaLei Federal nº 4.495/98 e pela Lei do Estado doRio de Janeiro nº 3021 de 23 de julho de 1998.Apesar de concentrar-se nas regiões Norte, Nor-deste e Centro Oeste, atualmente são realizadasmais de 1.000 vaquejadas por ano em todo Bra-sil. A importância da vaquejada vai além do as-pecto cultural (que por si só justifica sua prote-ção, de acordo com a Lei nº 4.495/98). Esse es-porte desempenha relevante papel para econo-mia local e, muitas vezes, regional. A movimenta-ção financeira atinge cerca de dois milhões dereais em uma só vaquejada por município, geran-do diversos empregos e ocupações diretas e indi-retas. Apesar de toda essa importância, ainda équestionável o nível de bem-estar do animal emgrande parte dessas competições. Mas em todasas atividades esportivas, inclusive na vaquejada,a regra deve ser a preocupação com o bem-estaranimal, deixando os casos de desrespeito para asexceções, ou melhor, eliminando esses casos.

Esporte só pode evoluir quando associado aobem-estar e saúde. Em entrevista ao site Mundodo Cavalo, Aluisio Marins sintetizou bem a idéiaao afirmar que “doping, stress, treinamentos er-rados, ferramentas sendo utilizadas de forma er-rada etc., serão cada vez mais abolidos do mer-cado”. Aluisio Marins ilustra a questão com oexemplo do enduro na categoria de 160 km. Seno regulamento da prova não houvesse forte pre-ocupação com bem-estar, não haveria mais pro-va no mundo, pois muitos animais morreriam. A

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regulamentação dos esportes – assunto que de-veria ser prioridade das associações de criadores– é essencial inclusive para orientar os pratican-tes na correta utilização das ferramentas e técni-cas para manutenção do bem-estar animal. Con-cordamos com Aluisio Marins ao afirmar que “re-gulamentar significa preservar o bem estar dosanimais, entre outras coisas”.

Retornando ao tema Olimpíada, destacam-seas recentes declarações da Princesa Haya, pre-sidente da FEI (Fèdération Equestre Internatio-nale), temendo pela continuidade dos esporteseqüestres como olímpicos, inclusive levantando apossibilidade de já nos próximos jogos, em Lon-dres, não ocorrer provas com cavalos. A razãopela potencial exclusão dos esportes eqüestres é,além da baixa popularidade, as dificuldades asso-ciadas ao bem-estar e riscos para animais e ca-valeiros.

Neste momento cabe uma primeira reflexãosobre a relação entre bem-estar animal e interes-ses econômicos. A visão muito divulgada de queo grande inimigo do bem-estar dos animais atle-tas são os interesses da indústria de medicamen-tos merece ser vista de outra forma. Uma em-presa séria, de qualquer ramo incluindo o veteri-nário, trabalha com os olhos no longo prazo, preo-cupada com sua sobrevida, consolidação e cres-cimento no mercado. Para tanto, a busca oportu-nista de curto prazo, pela venda a qualquer custo(inclusive em termos de bem-estar), correspondeao popularmente denominado tiro no pé. Somenteem um ambiente saudável, valorizando o bem-es-tar, é que haverá mercado no futuro, com maiornúmero de animais e maior exposição na mídiaem eventos em que predomine a ética.

É importante destacar, como bem lembradopela Profa Andréa Oliveira em palestra realizadaem agosto último, “o bem-estar animal tem fortepresença nos códigos morais e nos pilares éticosde vários países”. Isto tem fortes implicações eco-nômicas. Nas operações e atividades que envol-vem parceiros externos, o bem-estar animal é,felizmente, um aspecto restritivo. Por exemplo,no caso de exportação de carne eqüina (mercadoem que o Brasil ocupa posição de destaque), osfrigoríficos instalados no Brasil devem respeitartanto a legislação nacional – Decreto nº 24.645,de 10 de julho de 1934, e Instrução Normativa nº3, de 17 de janeiro de 2000 (Regulamento Técni-co de Métodos de Insensibilização para o AbateHumanitário de Animais de Açougue) – quantoas normas da União Européia – Diretiva 93/119/CE do Conselho da União Européia de 22 de de-

zembro de 1993 (relativa à proteção dos animaisno abate e/ou occisão) e Diretiva 91/628/CEE de19 de novembro de 1991 (relativa à proteção dosanimais durante o transporte).

Cabe destacar que o respeito ao bem-estar ani-mal, importante, como visto, também sob a óticaeconômica, inclui a observância das “Cinco Li-berdades” divulgadas pelo Conselho de Bem-Es-tar de Animais de Produção (FAWC), expostosna Figura 1. No caso dos eqüinos, atenção adici-onal deve ser dispensada aos maus tratos alimen-tares e às agressões ao pêlo.

O Brasil deve seguir a tendência mundial depriorizar o bem estar e a saúde dos animais. Aque-les proprietários, treinadores, praticantes e demaisprofissionais da eqüinocultura que estiverem aten-tos ao bem-estar animal serão os vencedores nomercado e nas competições esportivas (sem des-classificações por doping ou condutas inadequa-das).

Os agentes do agronegócio do cavalo, ao pro-moverem a melhoria das condições de vida dosanimais, estarão lhes garantindo o bem-estar. Po-rém, conforme palavras de Mariângela F.A. Sou-za, “exige-se um grande e imediato esforço con-junto – das autoridades governamentais, dos le-gisladores, dos educadores, dos fiscais e aplica-dores da lei, da própria sociedade – primeiro, paraque se crie uma consciência de respeito em rela-ção a essas criaturas e, segundo, para que se ga-rantam as condições apropriadas para sua manu-tenção e o controle rigoroso da sua utilização. Comcerteza não serão apenas os animais que vão ga-nhar com essas medidas, mas, também, toda asociedade”.

Figura 1: As cinco liberdades referentes à condição de bem-estar animal

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