Artigo esportivisação x capoeira

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CAPOEIRA: A LUTA DE RESISTÊNCIA CONTRA A ESPORTIVIZAÇÃO DAS PRÁTICAS CORPORAIS Elson Moura Dias Junior 1 Wagner Jorge Cardoso 2 Resumo Este artigo tem como objetivo estudar a capoeira enquanto fenômeno cultural que oferece uma resistência ao fenômeno de esportivização dos conteúdos da cultura corporal. Desta forma este trabalho tem como objeto de estudo a capoeira , o esporte e o fenômeno da esportivização. Esta temática se justifica por apontar os aspectos negativos da esportivização das praticas corporais e por demonstrar de que forma pode ser feita uma resistência a tal fenômeno. Para alcançar os objetivos traçados, foi percorrido o caminho (método = metodum = caminho) da análise sócio- histórica do esporte e da capoeira e a observação da capoeira para identificar as ferramentas de resistência existentes neste conteúdo da cultura corporal. Sendo assim conclui-se que... Palavras chave: esporte, capoeira, esportivização e resistência. Introdução A Educação Física enquanto disciplina pedagógica, na escola, tem a função de tematizar os conteúdos da “cultura corporal” (SOARES et al, 1992, p 39) ou “cultura corporal de movimento” (KUNZ, 2004). Estes conteúdos são divididos em: esportes, ginástica, capoeira, jogos e brincadeiras, danças e lutas. 1 Licenciado em Educação Física pela Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS),especialista em Educação Física e Esporte (UNEB), Professor da UEFS 2 Acadêmico em Licenciatura em Educação Física, do 7°semestre da Universidade Católica do Salvador, aluno formado do Grupo Raça

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CAPOEIRA: A LUTA DE RESISTÊNCIA CONTRA A ESPORTIVIZAÇÃO DAS PRÁTICAS CORPORAIS

Elson Moura Dias Junior1

Wagner Jorge Cardoso 2

Resumo

Este artigo tem como objetivo estudar a capoeira enquanto fenômeno cultural que oferece uma resistência ao fenômeno de esportivização dos conteúdos da cultura corporal. Desta forma este trabalho tem como objeto de estudo a capoeira , o esporte e o fenômeno da esportivização. Esta temática se justifica por apontar os aspectos negativos da esportivização das praticas corporais e por demonstrar de que forma pode ser feita uma resistência a tal fenômeno. Para alcançar os objetivos traçados, foi percorrido o caminho (método = metodum = caminho) da análise sócio-histórica do esporte e da capoeira e a observação da capoeira para identificar as ferramentas de resistência existentes neste conteúdo da cultura corporal. Sendo assim conclui-se que...Palavras chave: esporte, capoeira, esportivização e resistência.

Introdução

A Educação Física enquanto disciplina pedagógica, na escola, tem a função de

tematizar os conteúdos da “cultura corporal” (SOARES et al, 1992, p 39) ou “cultura

corporal de movimento” (KUNZ, 2004). Estes conteúdos são divididos em: esportes,

ginástica, capoeira, jogos e brincadeiras, danças e lutas.

O esporte moderno, deste jeito que conhecemos hoje, surge no século XVIII, na

Inglaterra industrial, acompanhando o surgimento e fortalecimento da sociedade

capitalista e torna-se a prática hegemônica dos tempos contemporâneos.

Esta hegemonia não se limita à “monocultura” do esporte em sua aparição na

escola, no lazer, na mídia etc. Além disso, um fenômeno chamado esportivização,

acompanha o esporte desde o seu surgimento até os dias atuais. Tal fenômeno impõe às

demais praticas corporais (skate, lutas, surf etc) as características do esporte

(competição, racionalismo, tecnicismo, normatização, alienação etc) fazendo com que

estas tornem-se parecidas e, as vezes, ate se confundam com o fenômeno esporte.

A capoeira, elemento cultural que “engravida” na África e “nasce” no Brasil,

criado socialmente e acumulado historicamente, hoje constitui-se como a manifestação

cultural e prática corporal das mais importantes da Bahia e Brasil. Uma luta que não se

1 Licenciado em Educação Física pela Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS),especialista em Educação Física e Esporte (UNEB), Professor da UEFS2 Acadêmico em Licenciatura em Educação Física, do 7°semestre da Universidade Católica do Salvador, aluno formado do Grupo Raça

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limita ao jogo de pernas, mais avança como luta contra a escravidão, contra os senhores

de engenho, contra os capitães do mato, contra a proibição, contra as ingerências do

Confef/Cref e, agora, contra a esportivização.

Como supra citado, o fenômeno da esportivização também tenta “seduzir” a

capoeira, imprimindo nesta, características do esporte. Esta relação não ocorre sem que

haja tenção, resistência e contra proposta.

Portanto, é objetivo deste artigo identificar como o esporte e a capoeira surge

historicamente, como e porque a esportivização age na conversão das demais praticas

corporais aos seus significados, os fatos negativos deste fenômeno para as práticas

corporais diversas e como a capoeira se constitui como grande “luta” de resistência a

este fenômeno.

Esporte: percurso histórico

Segundo Bracht (2005), existem duas possibilidades de se analisar a história do

esporte. Uma que atesta que as práticas corporais antigas já se caracterizavam enquanto

esporte e outra que atesta que esporte, como conhecemos hoje, é uma instituição que

tem sua origem na Inglaterra industrial do século XVIII.

A primeira possibilidade defende que houve um “desenvolvimento linear” (ibid)

das práticas corporais antigas até o advento do esporte moderno. A segunda, que se

contrapõe à primeira, advoga a idéia de ter existido uma ruptura entre as práticas antigas

e o esporte moderno, tal qual nós conhecemos.

Aqueles que se apóiam na continuidade, no “desenvolvimento linear” das

práticas antigas, como os jogos de Olímpia por exemplo, utilizam como justificativa as

características em comum entre estas expressões da cultura corporal de movimento.

A tese implícita é a de que haveria uma continuidade entre aquelas práticas antigas e as que hoje denominamos de esporte. E mais, para esta continuidade postula-se uma identidade ou traços essenciais dessa, que perdurariam no tempo, ou seja, naquelas práticas corporais já estariam presentes as características essenciais que definem a identidade do esporte. (ibid, p. 96)

Tanto a semelhança, no que diz respeito à movimentação como na utilização de

objetos específicos, quanto a ludicidade presente tanto nos jogos antigos quanto nas

práticas atuais (embora em menor escala) fundamentam os adeptos desta concepção.

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A outra tese, a de que houve uma ruptura entre as práticas antigas e as atuais,

advoga a mudança de sentido das práticas corporais. As praticas antigas tinham um

sentido muito ligado à questão da religiosidade e ao militarismo por exemplo. Ligação

esta que com o advento do esporte moderno de desfaz, restando apenas algumas

semelhanças entre ambas (praticas antigas e modernas) porém o objetivo, o sentido, a

idéia etc. centrais são diferenciados. “Isto não quer significar ausência absoluta de

continuidade e, sim, que aspectos centrais dessa prática são novos.” (ibid, p. 96). Ao

passo que as práticas antigas tinham uma ligação orgânica com a sociedade, as novas se

constituem enquanto aparelhos ideológicos a serviço da sociedade.

Para fins desta produção, estaremos nos apoiando na historia do esporte

moderno.

A data de surgimento deste fenômeno moderno ou contemporâneo3 é o século

XVIII para alguns autores e século XIX para outros. Estaremos portanto considerando

este intervalo de tempo histórico sem correr o risco de equívocos, haja visto que,

embora cronologicamente pareça um espaço demasiado, historicamente este intervalo

não parece trazer nenhum prejuízo à esta análise.

Consenso entre os autores é que esta prática teve início na Inglaterra Industrial à

luz do “desenvolvimento” que a Revolução Industrial apresentou na sociedade moderna

e contemporânea.

Alguns são os fatores que contribuíram para o surgimento desta “nova” prática

corporal:

O desenvolvimento industrial fez ascender a classe média, com poder político e influencia social. Essa classe média reivindicou privilégios educacionais e conseguiu a criação de um numero considerável de escolas públicas. Este fato foi decisivo para a multiplicação dos jogos esportivos. (BETTI, 1991 apud DARIDO, p 177, 2005).

A escola neste contexto, adquire fundamental importância neste processo. Com

o desenvolvimento urbano ocasionado pela Revolução Industrial, os espaços urbanos

“livres” começam a perder espaço em meio às construções arquitetônicas, desta forma

perde-se o espaço de práticas ao ar livre, sendo estas, muitas vezes encaminhadas a

espaços fechados, ou seja, à escola.

3 A utilização de moderno e contemporâneo se dá pelo fato de os séculos XVIII e XIX se constituírem como sendo um tempo de transição destas duas épocas históricas.

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Duas práticas influenciaram esta gênese: as práticas de divertimento da classe

dominante e os jogos populares. Práticas diferentes, as mesmas demonstram que a

divisão da sociedade em classes antagônicas se infiltrou também no esporte ou nas

práticas corporais que antecederam e influenciaram o seu surgimento.

Este período é marcado pelo desenvolvimento e estabilização da sociedade do

lucro e da produção (máxima). Desta forma práticas corporais mais voltadas para o

entretenimento, o prazer, o lazer (este como um contra ponto justamente da produção,

do trabalho), o lúdico, não condizia mais com uma sociedade voltada ao trabalho e a

produção. Portanto, os jogos começaram a ser, de certa forma, marginalizados.

Precisava-se de práticas corporais que disciplinassem os corpos, estes tinham que ser

corpos produtivos. Tanto as estruturas físicas quanto o comportamento deveriam estar

voltados para as exigências da época, ou seja, o fortalecimento do modo de produção

capitalista.

Embora tenha conservado algumas características dos jogos antigos; exemplo

mais marcante é a ludicidade, capacidade facilmente observável no cotidiano de

algumas praticas esportivas; o esporte moderno traz em seu bojo diversas características

que mais lhe aproximam do processo de produção fabril e mais o afastam dos jogos

enquanto prática autônoma e livre de coações. São elas: racionalização (em um claro

processo de contra ponto com as práticas voltadas ao cunho místico e religioso por

exemplo), cientifização do treinamento, imutabilidade de técnicas, rendimento máximo

(numa clara semelhança com a produção máxima), competitividade, divisão de tarefas,

particularização (divisão em partes) das técnicas, fins justificando os meios (atos

violentos, dopping, trapaças etc. numa clara comparação com multi e transnacionais,

liberalismo e neoliberalismo etc) e alguns outros. Vale ressaltar que tais características

são mais fáceis de serem observadas no chamado esporte de auto-rendimento ou

espetáculo.

Mais uma vez voltando à análise histórica, percebemos que o esporte tornou-se

portanto a prática hegemônica da cultura corporal, “a cultura corporal de movimento

esportivizou-se” (BRACHT, p. 15. 2005).

Um passo importante da difusão e desenvolvimento do esporte pelo mundo foi a

criação de clubes de práticas esportivas. Local onde as pessoas se reunião para a pratica,

mesmo após os anos da escola ou universidades.

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O desenvolvimento e expansão do esporte aconteceu tendo como pano de fundo o processo de modernização dos séculos XIX e XX, processo que compreende industrialização, urbanização, tecnologização, dos meios de transporte e comunicação, aumento de tempo livre, surgimento dos sistemas nacionais de ensino etc. Estes aspectos, por sua vez, estão inseridos no processo mais amplo de secularização e racionalização que caracterizam a sociedade moderna. (BRACHT, p. 99, 2005).

Quanto aos pontos de “tecnologização dos meios de transporte e comunicação”,

estes se constituíram como fatores importantes na difusão do esporte pelo mundo haja

visto que o mesmo acompanhou os processos de internacionalização da cultura dos

povos, coisa só alcançada com o desenvolvimento dos meios de transporte e

comunicação. Já “aumento do tempo livre e surgimento dos sistemas nacionais de

ensino” serviram como ferramentas no intuito de massificar a prática nos mais diversos

países.

Em relação à importância dos sistemas de ensino na massificação do esporte,

vale ressaltar que com o desenvolvimento da sociedade Capitalista; ao passo que as

relações sociais “passam a prevalecer sobre as naturais” (SAVIANI, p. 8, 2005), onde se

faz necessário que ao homem de uma forma geral sejam incutidas capacidades para que

o mesmo possa integrar o “sistema de engrenagens” da sociedade centrada no mercado;

a educação (neste momento tendo a escola como local primordial) exerce fundamental

importância na transmissão dos conhecimentos produzidos socialmente. O esporte

enquanto produção social e que apresenta características semelhantes (porque não dizer

iguais ?) à sociedade em questão, se constitui também como um conhecimento que teve

sua transmissão aumentada neste processo de priorização da educação no ambiente

escolar.

Pelo que foi acima explicitado, percebemos que o esporte teve sua gênese e seu

desenvolvimento condicionados pela criação e fortalecimento do modelo econômico da

época, o capitalismo. Não por coincidência o esporte tem características muito próximas

à superestrutura que lhe serve de pano de fundo. Segundo Fritsch (1988), citado por

Kunz (2004, p. 82), o esporte consegue expressar melhor os valores da sociedade cujo

modelo copia.

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História e evolução da capoeira

Por volta do século XVI no Brasil mais especificamente na Bahia, período

marcado pelas Grandes Navegações, e explorações dos recursos naturais, inicia-se um

período de comercialização da mão de obra escrava mais especificamente negros

africanos capturados, iniciando um ciclo de sofrimento do povo africano.

Um grande número de africanos foi arrastado das suas moradias, após presenciar

a morte da família e a destruição da sua dignidade. Como prisioneiros seguiam para

uma longa viagem sob terríveis condições, nos porões dos navios remando para um

“novo continente”. Muitos nem chegavam ao destino; seus corpos, após serem

violentados, eram jogados no mar como objetos sem valor na intenção de se livrar do

peso morto. As principais causas das mortes eram desnutrição, infecções, viroses e ate

mesmo Banzo (doença ligada ao desgosto pela vida).

Alguns escravocratas gostavam de tratá-los como se fossem animais para o

abate, os engordavam para conseguirem maiores quantias financeiras alimentando o

contrabando escravo para garantir a luxuria e boa vida das minorias.

Chegando ao destino, descobriam que o sofrimento apenas começava, seus corpos eram

expostos as mais diversas formas de agressões, desrespeitos, explorações. Apesar das

dores não ficavam livre do trabalho forçado e alienador, mantendo o luxo, a

comodidade da burguesia Européia no Brasil e em Portugal.

Ignorando as condições básicas de dignidade, os escravos eram muitas vezes

prisioneiros de guerra, índios e negros em sua grande maioria. Os índios tiveram uma

passagem rápida sobre as condições de escravos pois, na maioria das vezes, preferiam a

própria morte a servirem de escravos para povos estrangeiros nas suas próprias terras.

Paralelamente havia a defesa dos índios pelos Jesuítas, apoiados pela Igreja

católica que na verdade queria catequizar os mesmos disseminando a palavra de Deus

em todo o mundo. Portanto esses fatores contribuíram para não aceitação da igreja

católica a escravidão indígena no Brasil.

Havia também um grande comercio de compra e venda de escravos assim como

de captura de negros fugidos. Verdadeiras fortunas eram oferecidas para recaptura de

escravos, vivos ou mortos. Muitos senhores de engenho viviam somente do lucro

produzido pela mão de obra escrava.

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Das diversas regiões da África eram trazidos os negros, com a intenção de

dificultar a comunicação e a pratica das manifestações culturais oriundas da sua terra

natal. Muitos vieram do Congo, Angola, Moçambique e traziam características

especificas nos seus corpos e nas suas produções culturais. Negros, Mulatos sendo

homens ou mulheres, crianças ou idosos, todos serviam como escravos na colheita, no

trabalho pesado, na casa grande, ocupando diversos serviços, os quais se caracterizavam

por longas jornadas de trabalho. Viviam uma política de opressão a fim de intimidá-los

contra possíveis revoltas.

Serviços imundos: quem iria fazer? Limpar sanitários, carregar água, abastecer

navios, e ate servirem como objetos sexuais de senhores e seus capatazes. A escravidão

foi quem mais engordou os cofres públicos e deu boa vida a Burguesia portuguesa. Seus

corpos apesar de tanto sofrimento e trabalho manual não deixavam de buscar suas

manifestações culturais suas crenças e mitos.

Mas foram os negros, com a cabeça ainda na áfrica e pés no Brasil, que não

deixaram desaparecer sua cultura: seitas, danças e culinária. Cabia aos mais velhos

esinar para os mais novos os saberes, a verdadeira historia, suas angustias e seus sonhos.

No peito dos negros “batia” um sentimento de revolta e ódio; mesmo assim

criaram o samba, a capoeira, a musica e tudo isso resultou em umas das maneiras de

afirmação e um das maneiras de expansão da língua portuguesa no mundo com a

historia do povo e suas contradições amadurecendo o sentimento de nacionalidade.

Muitos desses negros escravos carregavam ainda resíduos da sua ancestralidade.

Todo o tempo, principalmente à noite, após o dia de trabalhos forçados, era o momento

oportuno da materialização dos ritos africanos no Brasil, marcados severamente pela

nova condição de vida. Por mais que fossem castigados, discriminados, nunca deixavam

de cumprir suas obrigações, representar a cultura africana no Brasil, a religiosidade,

culinária, as danças, lutas, cerimônias etc. não desapareceram na vida do escravo.

Alguns disfarces eram criados a fim de esconder a verdade para os opressores e

exploradores. Seus saberes eram passados de geração e geração através, principalmente,

da oralidade e da linguagem do corpo.

Mas foi no Brasil, após tanto sofrer, que tal fato os conduziu para um sentimento

de busca pela liberdade e, de repente, o grito surge, a voz de um povo oprimido que

sonha com a liberdade no Brasil.

Surge de maneira rudimentar uma manifestação contra o sistema opressor

escravocrata, o que mais tarde se tornaria a capoeira. Tem inicio no final do século XVI,

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o que mais tarde foi fortificado pelo sonho da liberdade e a falta de recursos para travar

a batalha utópica. Sendo assim, estas características os fizeram desenvolver um sistema

de ataque e defesa por meio dos movimentos corporais que tornou-se de fundamental

importância para a conquista da liberdade. Conforme Fontoura e Guimarães (2002):

“ (...) muitas são as divergências existentes entre os pesquisadores sobre a verdadeira origem da capoeira, porém, sem dúvida, é um elemento importante da cultura brasileira, e que tem considerável relevância, tanto por seu valor cultural e histórico quanto por seu valor educacional. A capoeira surge, desta forma, como um importante instrumento para o professor de Educação Física, já que possui fácil relação com a cultura brasileira, mas que infelizmente ainda é uma atividade pouco desenvolvida na escola, principalmente pelo fato dos educadores, muitas vezes, não terem contato com a modalidade durante sua formação acadêmica.”

A capoeira surgiu a partir da influência de outras manifestações africanas no

Brasil tal como o Batuque, N’golo, Bassula e o candomblé, representações que se

materializavam, nas Senzalas, nos Quilombos, nas praças, no cais do porto nas praias e

principalmente nas “Capoeiras”: mato que já foi cortado ou roçado; assim ganhou o

nome essa nobre arte secular.

Muitas vezes disfarçada em dança para enganar seu opressores, por trás daquela

malicia de jogo existia um arma mortal e desafiadora dos limites do corpo.

No século XVII a presença africana no Brasil já ultrapassava milhões de negros,

que compunham a sociedade Afro-brasileira: seja escravo, fugido ou alforriado.

No ambiente rural do Brasil colônia, a capoeira se manteve nos engenhos,

canaviais, cafezais e nas senzalas, o que começou a chamar atenção dos senhores donos

das fazendas.

  A Capoeira, no meio das matas, era praticada como luta mortal, já nas fazendas

era praticada como luta inofensiva, pois era vigiada pelos senhores de engenho e pelos

capitães-do-mato. Foi a partir daí que se transformou em dança, pois precisava

sobreviver para ser utilizada como luta de resistência. Com as fugas em massa das

fazendas, a Capoeira se afirmava como arma de defesa no meio das grandes matas, onde

se situavam os Quilombos.

A ginga do corpo que hora parecia dança hora parecia luta, foi ganhando grandes

proporções entre as comunidades afro-brasileiras a ponto de se tornar um ideal

motivador pela busca da liberdade. Tinha a intenção de dispersar as atenções dos

capitães do mato: homens mestiços, negros alforriados que ganhavam recompensa para

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capturar os “quilombolas”: negros fugitivos que geralmente buscavam refúgio nos

Quilombos: lugares onde se amontoavam os negros livres da economia escravagista.

O próprio jogo de capoeira no momento oportuno deixava de ser uma festa de

confraternização e celebração da vida para se tornar um campo de batalha, lutas que

pareciam não ter fim. Dessa maneira que os negros se preparavam para os combates que

custavam a liberdade.

O negro, fonte de lucro e exploração da força de trabalho “alimentava” toda essa

engrenagem chamada escravidão. Foi o povo negro quem construiu, produziu e

sustentou o Brasil durante séculos. Essa mesma massa trabalhadora sustenta a nação ate

hoje.

Durante o século XVIII houve uma grande perseguição à capoeira e outras

manifestações africanas no Brasil devido as arruaças, furtos e homicídios, políticos ou

não, cometidos por capoeiristas. Havia uma grave crise política entre os Republicanos e

Monarcas, sendo assim, muitas dessas agressões eram encomendadas. Com isso as

autoridades brasileiras não enxergavam outra opção a não ser incluir a capoeira no

código penal Brasileiro, artigo 402 parágrafo único dos vadios e capoeiras.

Após a abolição da escravidão, pouca coisa mudou na condição de vida do

negro. Agora não sendo mais escravo precisaria de recursos para começar nova vida.

Porem isso não aconteceu, os opressores vendo a fragilidade da inserção do negro

alforriado na sociedade, apoiou-se nessa posição para continuar a explorar a mão de

obra negra. Por salários medíocres ou muitas vezes apenas por moradia e alimentação o

negro continuava sua vida sendo massacrado moralmente, não havendo condições para

alcançarem novas perspectiva de vida a tão sonhada independência e autonomia.

Mas foram nas frentes de batalha em que o Brasil participou que os negros e a

capoeira começaram a ganhar destaque e reconhecimento da sua nacionalidade, Na

invasão dos holandeses, por exemplo, foi de fundamental importância a cidade de

Cachoeira4 na expulsão dos mesmos das terras brasileiras. Também, na guerra do

Paraguai houve a participação negra, que ficou marcada por grandes vitórias e atitudes

de bravura.

Com a escravidão extinta, a lei áurea e o decreto assinado pela Princesa Isabel

em 1868, um grande numero de negros “libertos” migrou para os centros urbanos na

busca por melhores condições de vida e emprego. Ao chegar nas cidades não tendo

4 Cidade do Recôncavo Baiano conhecida pela alta concentração de negros.

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recursos para manter um custo de vida alto foram-se amontoando aos redores dos bairro,

formando as “favelas”. É nessa época que se houve falar dos capoeiristas urbanos.

A luta da capoeira, que também é considerado um jogo, mas não somente um

jogo, mas uma dança, ginástica, traziam em seus movimentos lembranças da mãe África

e a voz do povo oprimido nas suas composições musicais.

A capoeira, segundo Soares et al. (1992):

“(...) expressa a voz do oprimido na sua relação com o opressor, encerra em seus movimentos a luta de emancipação do negro no Brasil escravocrata. Seus gestos hoje esportivizados, no passado, significaram saudades da terra e da liberdade perdida e o desejo de reconquista desta liberdade usando como arma o próprio corpo. Por isso não se deve separar a capoeira de sua história, mas sim resgatá-la como algo que, além de jogo, luta ou esporte é uma manifestação cultural.”

Vieira (1998) propõe a capoeira como uma modalidade de luta realizada ao som

de cânticos e instrumentos musicais (berimbau, pandeiro e atabaque), existindo registros

de sua prática desde o século XVII, época das invasões holandesas no nordeste. Hoje

esta mistura de dança, jogo e luta é ensinada e praticada de forma mais sistematizada em

clubes esportivos, escolas e em universidades, tornando-se a “arte marcial brasileira”.

A capoeira para Luis Rocha (Mestre Medicina) é o elo de ligação entre nós e

nossos antepassados, que se comprometeram em preservar esta manifestação para que

pudesse chegar aos dias atuais, sem perder seus fundamentos e sua historicidade.

A roda de capoeira é considerado pelos capoeiristas momento de gloria e celebração da

vida que revela a essência do povo Brasileiro, miscigenado e, apesar de tanto

sofrimento, adora festejar e reverenciar suas crenças.

A capoeira, o candomblé e o samba são manifestações culturais que ao longo

dos anos sofrem influências políticas econômicas e sociais no seu contexto. A começar

pela sua vestimenta: a capoeira no seu período primitivo não dispunha de recursos para

obter roupas dignas, sendo assim as suas roupas eram resto de tecidos, feitas de sacos de

farinha, das caridades da patroa (sinhazinha). Assim vestiam-se os negros no período

colonial brasileiro, ate meados do século XIX.

Durante os dois primeiros séculos após seu surgimento poucas foram as

mudanças significativas, sua pratica era rudimentar, dotada de grande simbologia e

sentimentalismo.

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A capoeira era praticada nos tempos livres, fora dos horários de trabalho como

um jogo de brincadeiras e luta no momento em que não se estava há vista dos Senhores

de Engenhos e seus comparsas.

Nas festas de largo, no carnaval, rodas no pelourinho, todo o tempo resistindo às

opressões impostas pelo sistema. Na maioria das vezes ensinada de graça aos mais

fragilizados economicamente. Esse sistema de defesa e ataque, que busca o limite do

seu corpo, superando todas as expectativas de prazer e satisfação, agregados aos valores

herdados das colônias africanas no Brasil, livres das necessidades “tecnológicas

imediatistas”; pelo contrário, ela fomenta sua própria existência. A capoeira é muito

mais do que um gesto técnico; sua linguagem esta descrita no corpo como forma de

expressão única e emotiva.

Sem duvida a capoeira como uma modalidade desportiva olímpica distanciaria

ainda mais as diversas matrizes de capoeira, as visita aos grupo não serão mais

possíveis, as rodas de rua não existiriam mais. Com certeza essa visão ainda esta muito

longe dos capoeiristas. As visitas em academias e quilombos de capoeira são comuns e

produtivas. É um meio sociabilizador, de disseminação da linguagem afro-brasileira e

garantia da diversidade de estilos, métodos de ensino. Estaríamos negando nosso

próprio saber.

Os espaços devem ser preenchidos, a capoeira nunca foi tão bem reconhecida

como esse momento agora. Expansão global e intercambio cultural. A garantia e a

valorização dos saberes dos mestres podem os garantir uma melhor condição de vida. O

mesmo não aconteceu com os grandiosos educadores da capoeira Bimba (Manoel dos

Reis Machado) e Pastinha (Vicente Ferreira Pastinha).

Durante este período a pratica da Capoeira Angola e da Capoeira Regional, foi,

de acordo com Silva (2001, p. 138): “(...) realizada predominantemente nas academias,

perdendo sua característica de manifestação de rua (...)”. Este “deslocamento” sofrido

pela Capoeira não influencia a sua pratica nas aulas de Educação Física escolar,

permanecendo distantes (desvinculadas).

De acordo com Silva (2001) apos o golpe militar de 1964 a Capoeira Regional

sofre algumas transformações, aproximando-se do fenômeno esportivo, nas suas

palavras: “A capoeira regional mais se aproximou da pratica esportiva, como luta após

Bimba leva -la aos rings, sempre vitorioso nas suas atuações Bimba serviu e serve de

fonte de inspiração a muitos descendentes da sua criação.”

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Bimba buscava um caminho de dialogo com o governo político, já enxergando

todo o potencial da arte afro-brasileira no Brasil e no Mundo

Segundo mestre Itapoan Bimba dizia: “eu fiz capoeira regional para o mundo.”.

Parecia, segundo o mestre, naquela época, meio utópico. Mas suas palavras se

materializaram rapidamente.

Por ser a roda de capoeira a própria festa do capoeirista, as competições não

foram bem aceitas no meio da sociedade capoeira. Muito imatura e contraditória, as

competições, traziam conseqüências equivocadas como, por exemplo, a exclusão e a

desvalorização da figura do mestre para o aparecimento do técnico treinador.

Com a valorização do esporte como válvula de escape da repressão política,

temos o enquadramento desta prática como um esporte de luta genuinamente brasileiro,

passando a fazer parte da Confederação Brasileira de Pugilismo, ganhando enfim o

status de esporte de competição. Com que objetivo retira-a da favela, das praias, das

praças e coloca-a nas academias de capoeira, rings de vale tudo, mostrado somente um

plano para a capoeira?

PERÍODO CAPOEIRA Esporte no Brasil

Higienista/ginástico - Inicio do século. XX;- Década de 30- inicio de 40.

Ginástica NacionalRelações com os militaresLiberação da pratica da capoeiraCriação da capoeira RegionalMelhoria da saúde do povoAparecimento das primeiras academias de angola e regionalRodas nas festas de largos.

Técnico/esportivo- Década de 60 e 70.

Mudança de espaço das ruas para as academiasÊnfase nos conhecimentos do mestreEsporte NacionalCompetições Regras performance.Vincula-se a Federação Brasileira de Pugilismo

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Novas perspectivas/CulturaCorporal- Década de 80 e 90.

Valorização dos mestres da Antiga (angola)Esporte de rendimento vinculado as academias de ginástica e com competições esportivasCriação da confederação Brasileira de Capoeira.

A capoeira como Esporte Nacional é verdadeiramente dança, filosofia, arte, musica,

jogo, luta, ginástica, educação, paz, alegria, poesia, agilidade, historia, amor,

conhecimento, profissionalismo, dedicação, humildade, brincadeira, companheirismo,

solidariedade. Sob quais interesses a deram esse titulo a capoeira?

Toda a liberdade de expressão e seus fundamentos, a malicia, seu caráter criativo

etc. A capoeira é o conjunto de exercícios bem ajustado à realidade brasileira.

Na capoeira há espaço para todos, brancos negros, mestiços homens mulheres crianças,

idosos. Possuímos a capacidade de desfrutar das coisas boas que a capoeira nos

proporciona no dia a dia.

A capoeira foi tombada como patrimônio cultural brasileiro. O ministro da cultura

Gilberto Gil em 2004 apresentou uma proposta de paz com a capoeira em Genebra na

Suíça na Reunia da ONU.

Na musica popular brasileira houve grande influencia dos batuques dos

capoeiristas e percussionistas de musica afro. O berimbau é hoje instrumento percussivo

e símbolo do turismo e comercio da imagem da Bahia. Em todo o mundo, nas diversas

regiões a capoeira migrou, sejam nas academias, nas escolas, nas universidades, praças,

festas de largo, nas favelas, nas parias etc. Em todo lugar vemos capoeira, seja na Bahia,

seja no mundo.

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Esportivização: da gênese aos tempos atuais

Para manter toda hegemonia do esporte, um fenômeno é adotado, a fim de

manter e ampliar o poder desta instituição e impor aos demais conteúdos da cultura

corporal, suas características: Tal fenômeno é a esportivização.

Esportivizar, segundo fins desta produção, é “encharcar” os demais conteúdos da

cultura corporal (lutas, jogos, ginástica, dança), ou pelo menos alguns deles, das

características próprias do esporte moderno (racionalismo, competição, individualismo,

tecnicismo, normatização, comparação objetiva, sobrepujança, especialização etc).

Muitas das vezes, o próprio conteúdo perde sua identidade tornando-se, para a

sociedade, esporte.

Na análise histórica do esporte moderno, já estão identificadas as primeiras

investidas do fenômeno da esportivização sobre os movimentos corporais diversos. A

criação em si do esporte se dá a partir de um fenômeno de esportivização. Ainda neste

texto foi dito que o esporte é institucionalizado na escola a partir dos jogos populares da

classe trabalhadora e do divertimento da classe alta. Ou seja, o esporte tem sua gênese

(esporte moderno) condicionada á esportivização de outros elementos da cultura

corporal que foram apropriados, sistematizados, tendo a escola como grande lócus de

propagação das técnicas e valores desta “nova” instituição.

Portanto, duas questões merecem destaque: a primeira é que o fenômeno da

esportivização não é uma característica dos tempos atuais, ela é oriunda do século

XVIII, data de gênese do esporte moderno; segundo que este fenômeno acompanha e

serve aos interesses e necessidades da estrutura macroeconômica capitalista.

Com o passar dos tempos, este fenômeno foi, aos poucos, esportivizando

diversas praticas corporais pelo mundo todo. Isto nos fica claro quando observamos a

organização atual do skate, do surf, das lutas (principalmente as ditas olímpicas), as

danças, alpinismo e a própria capoeira, objeto de estudo deste artigo.

Os motivos de tais avanços nos parecem bastante claros na fala de Betti (1998,

p. 120). Este autor mostra que toda movimento corporal sistematizado que apresente

uma possibilidade de prática diferenciada das do esporte, oferece riscos à hegemonia do

mesmo. Sendo assim, tais praticas são englobadas pelo esporte e tem suas características

ditadas pelo mesmo.

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Faz-se necessário ressaltar que esta relação não é feita eminentemente sem

tenção (sem resistência) e que não são todas as características dos conteúdos que são

modificados. A história inclusive nos mostra que as características principais do

elemento corporal são mantidas: o andar de skate, o “dropar” nas ondas, o soco e o

chute nas lutas etc. A investida principal do esporte, são nos valores que acompanham

estas praticas corporais. Na sistematização/normatização (com um órgão mundial como

responsável), no tecnicismo, no racionalismo, no sobrepujar e no principal deles: o

elemento competição. Não basta mais dominar a prancha em cima da onda, é necessário

que este domínio seja melhor que o outro. Subir uma montanha perde o sentido se a

cada dia não se tente diminuir o tempo de subida. Os movimentos da luta só são

julgados eficientes quando expostos frente um adversário em competições. Ou seja, a

competição passou a permear toda e qualquer pratica corporal, como se aquela fosse

condição necessária para legitimidade desta.

Outras questões se fazem necessárias: qual o problema em existirem práticas

corporais que não atuem de acordo os ditames do esporte moderno? Em que isso

implicaria na vida do esporte? Por quê que o esporte vence neste “cabo-de-guerra”?

Para tentar responder tais perguntas, recorreremos a um diálogo com Guareshi

(2000) quando este autor analisa a estruturação da sociedade no capitalismo. Ao

estruturar esta enquanto formada por uma “infra –estrutura” (ibid, p. 82), formada pelas

forças e relações de produção e uma “super-estrutura” (ibid, p. 82), formada pelos

aparelhos repressivos e ideológicos; vemos que o esporte se aproxima desta

classificação enquanto sendo uma aparelho ideológico a serviço do capital. Mas isto,

por si só, não legitimaria sua hegemonia frente às demais praticas corporais, até porque

as mesmas também podem se estruturar enquanto aparelhos ideológicos. Porém

devemos primeiro analisar qual a função dos aparelhos ideológicos para depois tentar

identificar porque que o esporte recebe mais destaque.

Segundo o mesmo autor, os aparelhos ideológicos (TV, escola, leis, igreja

família etc) tem a função de propagar os valores da sociedade que os dá forma. Ou seja

propagar os valores da sociedade capitalista. Mas, ao contrario dos aparelhos

repressivos (polícia, exército, tribunais etc) que utilizam a força, a coerção, a dissuasão

etc. os aparelhos ideológicos são tácitos, subliminares, atuam de forma a propagar os

valores numa forma não impositiva e mais ideológica. Isso ocorre pelo fato de que

quanto mais impositiva é uma ação mais fértil é o campo para a contra proposta. Ou

como diz Gadotti (2005, p. 77) é na manipulação que a liberdade se gera, a dominação

Page 16: Artigo esportivisação x capoeira

ínsita a liberdade, ou “(...) na domesticação está também o seu contrário: a semente da

libertação.” (ibid, p. 56). Portanto, pelo que foi supracitado, os aparelhos ideológicos

são grandes aliados do modo de produção capitalista por propagarem seus valores de

forma tácita, não impositiva.

Se relembrarmos uma citação já usada neste texto; de que esporte consegue

expressar melhor os valores da sociedade cujo modelo copia; começamos a entender por

que este consegue hegemonia sobre as demais praticas corporais e, muitas vezes, sobre

os demais aparelhos ideológicos.

Não é de hoje que o esporte moderno (que pode ser considerado como uma cria

da sociedade capitalista) e seus representantes passam a influenciar a sociedade, passam

a dar respostas à estrutura econômica etc. Temos o exemplo do técnico Bernardinho5

que profere palestras para empresários dos mais diversos ramos. Ou seja, um tipo de

retorno da cria ao criador.

Por todas estas características do esporte (bastante alinhadas com o capitalismo),

pela sua locação enquanto aparelho ideológico a favor do capital e pela força e

importância que este ganha na sociedade atual, que esta instituição alcança hegemonia

na cultura corporal e esportiviza as demais praticas corporais, verdadeiras “ameaças” a

sua hegemonia.

Uma ultima questão se posta para “finalizar” este capítulo: qual ou quais os

malefícios trazidos pela esportivização dos conteúdos da cultura corporal?

No intuito de responder tais questões, trazemos o diálogo com Menezes (1980)

citado por Bracht (2005, p. 65), quando este autor cita três momentos no processo de

dominação da cultura popular feita pelo poder dominante: o primeiro momento é o da

“rejeição” (a cultura popular é repreendida), segundo momento é o da “domesticação”

(separação dos componentes perigosos) e, por fim, o terceiro momento é o da

“recuperação” (cultura popular transformada em mercadoria).

Se tomarmos como exemplo a capoeira, objeto de estudo deste trabalho,

perceberemos que a esportivização tenta submetê-la aos mesmo ditames citados por

Menezes. No primeiro momento, esta (a acapoeira) ou as praticas que mais tarde lhe

dariam suporte, são proibidas, ora pelos colonizadores, ora pelos senhores de engenho

(rejeição); nos tempos atuais os componente luta (de resistência) são separados dos

jogos de pernas (domesticação) e a capoeira passa a figurar como mais uma mercadoria

a ser vendida nos “supermercados” da cultura corporal (recuperação).

5 Técnico da seleção Brasileira de Vôlei masculina.

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Quanto mais a capoeira passa de elemento cultural autônomo e passa a figurar

como mais um conteúdo esportivo, mais esta se torna mercadoria. Falar em mercadoria

é falar em bens produzidos, falar nestes bens na sociedade capitalista é entender que

estes tornam-se propriedade privada, portanto, sendo limitada a alguns que podem

pagar. Exemplo claro desta apropriação é a ingerência do Confef/Cref´s que quer fazer

deste conteúdo corporal, propriedade privada da minoria que teve acesso ao ensino

superior através dos cursos de graduação em Educação Física.

A criatividade do surf, expressos em suas manobras cada vez mais arrojadas, são

substituídas pela manobras padronizadas que mais impressionem os juízes na

competição. E mais, ate o momento onde os surfistas gozam da liberdade para criar, ou

seja, momentos entre competições, foram apropriados pelo esporte nas chamadas seções

especiais: um competição dentro da competição que envolve a disputa da manobra mais

arrojada. Nos fica claro que este fenômeno atende aos interesses já citados neste texto

por Betti (1998), que é a apropriação das possibilidades que podem servir de ameaça à

hegemonia do esporte ou de suas determinações. Algo muito parecido ocorre com o

skate.

Nas lutas, tem-se a perda do elemento filosofia, tão presente na cultura oriental.

A idéia de totalidade, de esvaziamento, de paz etc. perdem espaço para treinamentos

especializados em pró da vitória no final da competição. Com a transformação de

algumas lutas em esportes olímpicos (judô, tae kwondo, Karate por exemplo) não é

difícil achar aqueles que passam sua vida toda de praticantes treinando especificamente

para competir. Cada vez mais o elemento treinamento esportivo ganha o espaço da

filosofia oriental. Os próprios percussores de algumas lutas viram na

esportivização/competição uma forma de propagar sua cultura pelo mundo, tendo assim

parcela de responsabilidade na perda do elemento filosófico das mesmas.

Para finalizar, embora os exemplos não se esgotem aqui, temos as chamadas

corridas de aventura. Inicialmente planejadas para apreciar a natureza, desvendar novos

lugares, desafiar a si mesmo etc. a caminhada na natureza passou a figurar como esporte

alternativo, se tornando corrida de aventura. Pelo fato de ter o vencer o outro como

único objetivo, o elemento preservação da natureza fica para segundo plano

constituindo-se assim tais corridas como mais um elemento de depredação do meio

ambiente. Como já comenta Darido (2005), não basta expor o individuo à natureza para

esperar que este se preocupe com sua preservação.

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Vale ressaltar, mais uma vez, que todas estas relações de esportivização, que

geram os malefícios supracitados, não acontecem sem que haja o já chamado contra

ponto, a contra posição, a resistência. Exemplos não nos faltam: Aikidô, alpinismo e a

própria capoeira, objeto de estudo deste artigo.

Referências

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