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Assistência à Infância na Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro: a transformação da Casa dos Expostos (1888-1920) Letícia Conde Moraes Cosati 1 [email protected] Casa de Oswaldo Cruz Apresentação O presente artigo tem por objetivo traçar de maneira preliminar as transformações ocorridas na Casa dos Expostos, instituição de assistência à infância vinculada à Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro, nas primeiras décadas republicanas. Fundada no ano de 1738, a Casa dos Expostos era uma instituição de recepção de crianças cujo objetivo principal era evitar o infanticídio ou o abandono de recém-nascidos em locais que fornecessem riscos a suas vidas. Buscaremos analisar a assistência levada a cabo por esta instituição levando em consideração as possíveis influências do contexto do final do século XIX e primeiras décadas do século XX em suas ações. A Primeira República foi palco da complexificação dos aparatos assistenciais (com a fundação de outras instituições de assistência à infância) e de diferentes movimentos que ocorrem em paralelo: a afirmação da medicina como um campo de saber específico, a sedimentação da família burguesa e a responsabilização das famílias pelo cuidado com sua prole, seja por meio de punições legais ou de incentivo à amamentação. Como veremos, a Casa dos Expostos não permanece alheia a estes processos, buscando se adequar às novas demandas da sociedade no tocante ao amparo à infância. 1 Este artigo conta com o financiamento da CAPES. Agradeço pela possibilidade de desenvolver esta pesquisa no âmbito da Casa de Oswaldo Cruz bem como à minha orientadora, Gisele Sanglard, pela solicitude de sempre.

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Assistência à Infância na Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro:

a transformação da Casa dos Expostos (1888-1920)

Letícia Conde Moraes Cosati1

[email protected] Casa de Oswaldo Cruz

Apresentação

O presente artigo tem por objetivo traçar de maneira preliminar as transformações

ocorridas na Casa dos Expostos, instituição de assistência à infância vinculada à Santa Casa

da Misericórdia do Rio de Janeiro, nas primeiras décadas republicanas. Fundada no ano de

1738, a Casa dos Expostos era uma instituição de recepção de crianças cujo objetivo principal

era evitar o infanticídio ou o abandono de recém-nascidos em locais que fornecessem riscos a

suas vidas. Buscaremos analisar a assistência levada a cabo por esta instituição levando em

consideração as possíveis influências do contexto do final do século XIX e primeiras décadas

do século XX em suas ações.

A Primeira República foi palco da complexificação dos aparatos assistenciais (com a

fundação de outras instituições de assistência à infância) e de diferentes movimentos que

ocorrem em paralelo: a afirmação da medicina como um campo de saber específico, a

sedimentação da família burguesa e a responsabilização das famílias pelo cuidado com sua

prole, seja por meio de punições legais ou de incentivo à amamentação. Como veremos, a

Casa dos Expostos não permanece alheia a estes processos, buscando se adequar às novas

demandas da sociedade no tocante ao amparo à infância.

1 Este artigo conta com o financiamento da CAPES. Agradeço pela possibilidade de desenvolver esta pesquisa no âmbito da Casa de Oswaldo Cruz bem como à minha orientadora, Gisele Sanglard, pela solicitude de sempre.

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A Roda dos Expostos e a institucionalização do abandono

Mecanismo criado na Idade Média, a roda dos expostos foi um instrumento utilizado

de maneira a preservar o anonimato daqueles que abandonavam as crianças. Espécie de

portinhola giratória, a roda afixava-se em muro ou janela e fazia contato entre o exterior e

interior do estabelecimento. Dessa maneira, ao enjeitar2 uma criança, o expositor3 tocava uma

sineta, afastando-se do local sem deixar rastros de sua identidade.

Conhecer o que de fato levava mães, pais, avós e demais parentes a abandonarem as

crianças é objeto de difícil apreensão. Apesar disso, os debates historiográficos sobre as

causas do abandono apresentaram algumas hipóteses na tentativa de fornecer respostas a

questão. Maria Luiza Marcílio4 coaduna-se com Renato Pinto Venâncio no entendimento de

que o abandono de crianças era uma situação limite causada pela pobreza associada à ocasião

de morte de pais ou parentes da criança. Segundo o autor, “a morte lançava os frágeis núcleos

domésticos em uma crise na qual o recurso à instituição de caridade aparecia como única

solução possível.” (VENÂNCIO, 1999, p. 94).

Dessa forma, para os autores, a diminuição da prática estaria associada à expansão da

medicina que incutiria uma nova consciência nos indivíduos. Sem dúvida a pobreza aliada à

morte de parentes próximos à criança figurou dentre os motivos para o abandono. Entretanto,

é difícil supor que tenha havido uma frequencia maior de uma causa em detrimento de outras.

Aliada à pobreza, os estudos pertinentes ao assunto elencam a ilegitimidade das crianças e a

preservação da honra das mulheres como outras possíveis causas para o fenômeno.

Os trabalhos de Isabel dos Guimarães Sá e de Cláudia Fonseca5 trazem um novo olhar

sobre o tema. Ao tratar do caráter estruturante do abandono para as sociedades investigadas as

autoras revelam que a prática era utilizada por todos. Sendo assim, ela começa a entrar em

declínio na medida em que a concepção de família burguesa, nuclear, responsável pela

infância, entra em vigor. Compactuando com as autoras, Renato Franco fala que além de ser

aceito socialmente, o ato de enjeitar uma criança era também praticado pelos diferentes

estratos sociais até o advento da elaboração de leis que criminalizaram a prática.

2 O verbo enjeitar era utilizado como sinônimo de abandonar. Dessa forma, há dois séculos, ao se referirem aquele que é alvo do abandono utilizava-se o termo enjeitado ou exposto. 3 Aquele que abandona a criança. 4 Ver em MARCÍLIO, Maria Luiza. História Social da Criança Abandonada. São Paulo: Hucitec, 1998. 5 FONSECA, Cláudia. Ser mulher, mãe e pobre. In: M. Del Priore, História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2017, pp. 510-553; FONSECA, Cláudia. Caminhos da adoção. São Paulo: Cortez, 2002; SÁ, Isabel dos Guimarães. A circulação de crianças na Europa do Sul: o caso dos expostos do Porto do século XVIII. Fundação Calouste Gulbenkian, 1995.

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Assim, podemos asseverar que o abandono era uma prática disseminada, levada a

cabo com a aquiescência dos poderes vigentes, uma vez que era feito às vistas do Estado e da

Igreja Católica. A institucionalização do abandono foi a saída encontrada no sentido de

compatibilizar a prática com os ideais morais católicos. Surgia, assim, no mundo católico, a

Roda ou Casas dos Expostos cujos objetivos principais eram garantir o batismo das crianças

abandonadas e preservar o anonimato do expositor evitando que deixassem os recém-nascidos

em locais que os levassem à morte ou até mesmo praticassem o infanticídio.

A ausência de um espaço de recolhimento de crianças na cidade do Rio de Janeiro

fazia com que fossem abandonados em locais públicos, como nas portas de igrejas e

conventos ou em casas particulares. Em situações extremas, o abandono na rua sujeitava às

crianças a ferimentos ou até a morte provocada por animais que ali transitavam. Dessa forma,

em 14 de janeiro de 1738, a partir de uma doação em dinheiro feita pelo comerciante

português Romão de Mattos Duarte à Santa Casa de Misericórdia, foi fundada a Roda dos

Expostos do Rio de Janeiro.

Instituída em uma das enfermarias do hospital da Misericórdia, a Roda dos Expostos

lá permaneceu até 1810, quando foi construído um edifício próprio na Rua da Misericórdia.

Seu endereço mudou ao longo dos anos e sua localização foi alvo de discussão de médicos e

administradores da Santa Casa que tratavam dos riscos de uma acomodação inapropriada para

a saúde das crianças. Na provedoria de José Clemente Pereira a casa foi transferida para o

Largo da Lapa, local considerado impróprio para abrigar os expostos tendo em vista que nas

proximidades se fazia despejo de lixo. Ali permaneceu até 1860, quando foi removida para a

Rua dos Borbonos, atual Evaristo da Veiga.

Em tese defendida em 1855 na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, Francisco de

Paula Gonçalves dá grande atenção ás acomodação da Casa da Roda como uma das possíveis

causas para as altas taxas de mortalidade entre os expostos. Segundo o médico, o prédio no

qual se encontrava a Roda não possuía janelas laterais, e os miasmas e a poeira trazidos pelo

vento seriam causas de moléstias entre as crianças. O médico também alertava para os perigos

da acumulação de crianças em um mesmo ambiente, uma vez que não havia o isolamento das

doentes. Os planos da Santa Casa para acomodar as crianças expostas nos moldes concebidos

pela medicina só seriam concretizados em 1910, quando da transferência para a nova sede na

Rua Marquês de Abrantes. Trataremos um pouco mais a frente da construção desse prédio

dentro das novas resoluções da Misericórdia para a infância.

Em seu funcionamento interno, a Roda dos Expostos possuía algumas amas de leite e

amas de criação para prestarem os primeiros cuidados à criança que adentrava a instituição.

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Deste modo, uma vez recolhidas, eram registradas no Caderno de Matrícula dos Expostos que

informava a data de entrada da criança na roda, cor, sexo, eventual doença, vestimenta e

demais pertences que trazia junto de si. As cartas deixadas pela mãe ou por aquele que

abandonava também eram anexadas ao livro de maneira a identificar a criança em caso de

resgate futuro da mesma. Depois de matriculada e batizada – o batismo era o sacramento

necessário à salvação de suas almas -, a criança era encaminhada a uma ama de leite externa à

instituição para serem criadas em troca de remuneração até completarem três anos de idade.

Após esse período, a criança era entregue a uma ama-seca que ficaria responsável por sua

criação até os sete anos.

Apesar das críticas feitas por Francisco de Paula Gonçalves às más condições das

acomodações da Casa dos Expostos este defendia em sua tese que a criação dentro do

estabelecimento seria mais segura à vida dos expostos do que aquela privada, em casas

particulares. Para isso, o médico elencava as medidas que julgava necessárias para que a Casa

dos Expostos pudesse seguir com este intento. São elas: 1) a mudança do estabelecimento

para um local espaçoso nos arrabaldes da cidade, onde as crianças poderiam gozar de ar puro;

2) a adoção de amas de leite fortes e vigorosas que amamentassem, cada uma, apenas duas

crianças; 3) o emprego de regentes de amas; 4) a existência de uma pequena casa na cidade

para receber as crianças entradas no dia, devendo a tarde ser encaminhadas para o

estabelecimento geral; 5) a imposição do médico dos expostos residir no estabelecimento; 6)

o uso do aleitamento artificial na impossibilidade de obter o número suficiente de amas.

Entretanto, a Roda dos Expostos no ano de 1855 estava longe da realidade imaginada

por Francisco de Paula Gonçalves para a instituição. Vemos pelo fluxo de entradas e saídas

que a criação externa era uma necessidade para a Casa dos Expostos que não possuía um

prédio com condições higiênicas apropriadas para acolher as crianças. A tabela a seguir é

demonstrativa do movimento das crianças dentro e fora da instituição:

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TABELA 1. Mapa do movimento dos expostos da Santa Casa da Misericórdia durante o ano de 1855.

1855

Homens Mulheres TotalGeral

Brancos

Pardos

Pretos

Total

Brancas

Pardas

Pretas

Total

Existiamnofimde1854 8 8 3 19 7 8 4 19 38

Entraramduranteoanode1855 104 130 46 280 103 126 47 276 556

Voltaramparaoestabelecimentocriados

1 1 2 4 4 4 3 11 15

Voltaramparaoestabelecimentoporcriar

11 6 4 21 10 23 4 37 58

Saíram 89 89 22 200 96 103 25 224 424Faleceram 28 48 29 105 22 46 30 98 203

Ficaramnoestabelecimentonofimdoano

7 8 4 19 6 12 3 21 40

Fonte: ROCHA, José Pacheco da. Mapa do movimento dos expostos da Santa Casa da Misericórdia durante o ano de 1855. Arquivo Nacional, Série Saúde (IS35). Código de Fundo: BD; Seção de Guarda: Codes, Rio de Janeiro, 1857.

Os dados informados pelo escrivão da Casa dos Expostos demonstram que durante o

ano de 1855 entraram 556 crianças que, somadas com as 38 que existiam do ano anterior, e 73

que voltaram da criação externa, totalizava 667 crianças. Destas saíram 424, a saber: 8

reclamadas por seu pais, duas remetidas para o Recolhimento das Órfãs, uma para o Hospital,

por ter voltado tuberculosa, uma para a Companhia das menores do Arsenal de Guerra, e 412

dadas a criar fora do estabelecimento6.

Ou seja, mais de 61% das crianças entradas na Roda foram dadas a criar no ano de

1855. Segundo o escrivão, os motivos para isso estariam nos altos índices de mortalidade

entre as crianças que eram mantidas na Casa da Roda em contraposição aos menores daquelas

dadas a criar: Dos que estão criando fora do estabelecimento faleceram também em poder das amas 70. Releva, porém, observar que neste numero entram expostos dados a criar em anos anteriores; sendo por conseqüência muito diminuta a mortalidade destes, em comparação a dos que são criados dentro do estabelecimento, os quais não têm em seu favor as condições higiênicas de que gozam aqueles. Por esta razão tem a administração deste estabelecimento empregado todos os esforços para distribuir por amas externas o maior número possível de expostos; já elevando o salário dessas amas, já buscando-se não só no Município neutro, como fora dele. (ROCHA, 1857, sem paginação)

6 ROCHA, José Pacheco da. Mapa do movimento dos expostos da Santa Casa da Misericórdia durante o ano de 1855. Arquivo Nacional, Série Saúde (IS35). Código de Fundo: BD; Seção de Guarda: Codes, 1857.

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Assim, a ausência de acomodações higiênicas que possibilitassem o abrigo dos

expostos na própria instituição tornava a criação externa uma necessidade para a manutenção

da assistência levada a cabo pela Casa dos Expostos. As amas estavam inseridas dentro do

contexto institucional das Rodas sendo imprescindíveis ao seu funcionamento.

A assistência prestada pela Roda bem como as formas consideradas adequadas à

manutenção dos expostos foi alvo de discussão de diversos segmentos da população que

divergiam entre a criação dentro do estabelecimento e aquela em casas particulares. Desde a

segunda metade do século XIX, o assunto aparece não só em teses médicas como em jornais e

até mesmo na produção literária. É o caso do livro A Luneta Mágica, escrito por Joaquim

Manoel de Macedo, e cuja primeira edição é do ano de 1869.

No livro, o personagem principal, míope, recebera de um armênio uma luneta mágica

para curar a sua cegueira. Advertido pelo mágico que não fixasse o instrumento sobre o

mesmo objeto por mais de três minutos, porque lhe daria a visão do mal, o protagonista

sucumbe á tentação e desobedece suas ordens. Assim, começa a vislumbrar o mal existente

em pessoas, animais e instituições que antes eram objeto de sua admiração e fascínio. Foi o

caso da roda dos enjeitados avistada, em certa ocasião, ao passar pela Rua dos Borbonos.

Desacreditado da possibilidade de encontrar algo de mal naquele local de caridoso

acolhimento de recém-nascidos, Simplício fita a roda com a sua luneta: (...) a roda da piedade bem depressa pareceu-me antes protetora do vício e da desmoralização, do que providência salvadora de inocentes criancinhas condenadas; essa roda afigurou-se-me leito ruim de falsa caridade, porta do abandono, da perdição, talvez algumas vezes do cativeiro dos míseros enjeitados; (...) Que faz a roda? Recebe o enjeitado, e depois enjeita-o por sua vez. A verdadeira caridade não enjeita. A roda que faz? Dá os enjeitados a criar, a quem os vem pedir e os leva a dez, a vinte, a cinquenta e mais léguas de distância, e fica muito contente de si, porque paga a criação do enjeitado por dois terços menos, do que de ordinário custa o aluguel de uma ama. (MACEDO, 2011, p. 54).7

A visão que Simplício tem da roda dos enjeitados nos permite entrever alguns dos

argumentos da época sobre a criação externa. O personagem percebe que, ao figurar dentre as

normativas da Casa dos Expostos, a prática de colocar a criança em casa de terceiros seria

semelhante ao abandono das crianças – o mesmo que aquele praticado pelos que a colocaram

na roda, em primeiro lugar. Da mesma forma, o ato da instituição “distribuir por amas

externas o maior número possível de expostos”- como retratado pelo escrivão da Casa dos

Expostos, José Pacheco da Rocha - buscando não só aquelas moradoras da cidade do Rio de

Janeiro, como dos seus arrabaldes, aparece negativamente na fala do personagem. A prática 7 A edição utilizada é a do ano de 2011.

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de a Santa Casa escolher criadeiras cuja residência estivesse “protegida das impurezas da

cidade” fica reduzida à distância de suas moradias e, talvez, à dificuldade da Santa Casa

manter um controle sob a criação dispensada à criança. Assim, para Simplício, a saída

plausível era garantir a permanência da criança na instituição, desembolsando quantias

maiores para o aluguel de amas de leite internas para a amamentação e cuidado dos rebentos.

O artigo 2º do regimento do ano de 1840 da Roda (ou Casa) dos Expostos sintetiza as

ações que a instituição reservava à infância naquele período. Nele, fica visível que as crianças

que adentrassem a instituição ficariam ao seu encargo até completarem sete anos, no caso dos

meninos, e oito, no caso das meninas, uma vez que era nesse período que a casa deixava de

remunerar os responsáveis por sua criação. Sete anos marcaria a “idade da razão” e os

meninos poderiam ser admitidos no Arsenal de Guerra. Além desta opção, também poderiam,

igualmente às meninas, ser criados em casa de terceiros encarregados de sua educação,

sustento e tratamento de enfermidades de maneira gratuita. Os expostos que não encontrassem

colocação ficariam conservados na Casa dos Expostos ou, no caso das meninas, também

poderiam ser entregues ao Recolhimento das Órfãs8.

Herdada da legislação portuguesa, era das Câmaras Municipais a responsabilidade

pela assistência aos expostos no Brasil, arcando com as despesas com vestuário e

alimentação. Os altos custos da obrigação bem como o grande número de enjeitados

acabavam por sobrecarregar os cofres públicos o que gerava reclamações por parte dos

camaristas9. Embora não fosse a responsável oficial pelo segmento, paulatinamente, a tarefa

foi transferida para a Santa Casa da Misericórdia. A Lei dos Municípios de 182810 ratifica a

prática de repasse dos cuidados com os expostos das Câmaras para as Santas Casas,

fornecendo subsídios para o desempenho da função.

No final do século XIX, as exigências da nova sociedade se voltam para as “velhas

instituições coloniais”, como a Roda, no sentido de criticarem seu alto índice de mortalidade

8 O Recolhimento das Órfãs foi fundado em 15 de setembro de 1740 com o objetivo de assistir as órfãs filhas de legítimo matrimônio. Entretanto, em 1851, o provedor e Conselheiro de Estado José Clemente Pereira, recebendo a herança deixada por Luiza Avondano Pereira à Santa Casa, manifesta o seu desejo de fundar uma “casa pia para amparar as meninas desvalidas que não fossem orphãs, ou que por sua idade não pudessem entrar no Recolhimento” (CARVALHO, 1908, p. 136). Assim, a partir do decreto nº 931 de 14 de março de 1852, é fundado o Recolhimento das Órfãs e Desvalidas de Santa Thereza que congrega o novo Asilo das Desvalidas e o antigo Recolhimento das Órfãs. Esta instituição, que ganha a proteção do imperador Pedro II, tem por finalidade, nas palavras de Dom Pedro - conforme nos relata Miguel de Carvalho, provedor da Santa Casa no ano de 1908- formar perfeitas mães de família. (CARVALHO, 1908, p. 138). 9 Renato Franco em seu livro A piedade dos outros. O abandono de recém-nascidos em uma vila colonial, século XVIII investiga as ações da Câmara de Vila Rica em oposição ao ônus decorrente da assistência aos expostos. 10 “Art. 76. Não podendo prover a todos os objectos de suas attribuições, preferirão aquelles, que forem mais urgentes; e nas cidades, ou villas, aonde não houverem casas de misericordia, attentarão principalmente na criação dos expostos, sua educação, e dos mais orphãos pobres, e desamparados”.

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infantil, imputando, sobretudo, às amas de leite mercenárias11 a causa do problema. A relação

entre a institucionalização da pediatria e a criação de instituições de assistência à infância,

com a intensa participação dos médicos, deu outra roupagem à benemerência em suas

diversas atividades de auxílio e proteção. Nesse contexto de institucionalização da pediatria e

da puericultura, a Santa Casa da Misericórdia sofre modificações nas suas ações assistenciais

voltadas à infância, influenciada também pelos debates que estão sendo travados em âmbito

nacional no sentido de construir um Brasil “civilizado” e moderno. A República traz consigo

a esperança de superação da herança colonial e escravista brasileira tornando-se palco de

disputa de diferentes projetos de modernização. Analisaremos esse contexto buscando

relacioná-lo com as transformações sofridas no interior da Roda dos Expostos do Rio de

Janeiro.

A Primeira República e as mudanças na assistência à infância

“Os primeiros sociólogos e escritores políticos, seguidos por empregadores paternalistas, tentaram educar, normalizar a população que trabalha nas cidades ou nas novas plantas industriais, fazer as famílias respeitarem as regras do casamento, melhorar sua moralidade através de seu comportamento diário e propor instituições de ajuda necessárias para que o número e a qualidade da classe trabalhadora aumentassem. Era também importante para eles a diminuição das taxas de mortalidade infantil e o incentivo ao ensino primário, em primeiro lugar no caso dos rapazes e logo a seguir para as meninas. Esta política foi completada por um livre acesso a assistência médica e hospitalar local, necessariamente 12 (ABREU & BOURDELAIS, 2007, p. 22) (tradução livre).

A premência em organizar a assistência no Brasil da Primeira República esteve

fortemente relacionada à preocupação com o pobre e a pobreza urbana, que levou o nome de

questão social. Vinculada ao processo de abolição da escravidão, bem como aos infortúnios

advindos da industrialização e da vida urbana, a questão social irá fornecer as bases para

intensificar a interferência do Estado nas questões referentes às crianças, mulheres e família

(SANGLARD, 2016, p. 57). A transição ao capitalismo e a constituição do homem livre

11 O aleitamento ‘mercenário’ referia-se aquele feito por mulheres mediante pagamento. O termo faz referência aos soldados mercenários que desempenhavam atividades ‘sem amor à pátria’, em troca apenas de dinheiro, e foi utilizado pelo discurso médico de maneira a fazer um contraponto com a amamentação materna e artificial. 12 “The first sociologists and political writers, followed by paternalist employers, tried to educate, normalize the population working in the cities or in the new industrial plants, make families respect the rules of the marriage, improve their morality through their daily behavior, and propose the necessary aid institutions so that the number and quality of the working class would increase. It was also important for them to decrease the rates of infant and child mortality and to encourage primary school instruction, firstly in the case of the boys and soon afterwards in the case of young girls. This policy was completed by a free access to local medical care and hospitals, in necessary” (ABREU & BOURDELAIS, 2007, p. 22).

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perceberá o trabalho como elemento essencial à moralidade individual que, complementada

pela vigilância social, incidirá diretamente sobre os indivíduos estigmatizando-os por meio de

categorias como vagabundo e vadio.

Influenciado pela ideologia higienista que viria sobrepor “classes pobres” e “classes

perigosas” no tocante à transmissão de doenças e à desordem, o ambiente intelectual da virada

do século apresentou os meios para a intervenção de médicos e engenheiros (CHALHOUB,

2004). Com isso, as ações dos agentes públicos se voltam para o saneamento urbano e social

no qual a desapropriação e demolição das habitações populares e pequenas casas de comércio,

em larga escala, acaba por causar um aumento significativo no valor dos aluguéis dos cortiços

e quartos de cômodos restantes nas proximidades do centro. Higienizar o espaço urbano e os

costumes era o caminho necessário para o Brasil alcançar o pretendido grau de civilização.

No que concerne à criança, o “problema da infância” será objeto de debates de

médicos, filantropos, higienistas e poderes públicos, sobretudo, em duas frentes. A primeira -

a cargo dos juristas -, em ações voltadas para minorar as origens e consequencias da

delinquencia. Já a segunda, na qual os médicos estariam envolvidos, traduzia-se em diferentes

projetos de atuação para o combate à mortalidade infantil que além de ser considerada

alarmante para a nação que se queria construir, era um empecilho para a formação de mão-de-

obra para a sociedade.

Dessa forma, a Roda dos Expostos deixa, gradualmente, de ter como um dos

principais objetivos a salvação da alma das crianças para tornar-se o espaço de qualificação

para o trabalho. Tornar as futuras mãos-de-obra aptas ao trabalho estava em conformidade

com o projeto modernizador que via nas crianças forças úteis para a nação. Esta é uma

mudança significativa para a instituição que, já no início do século XX, direciona seus

esforços no sentido de fornecer as bases estruturais para a educação infantil. Para a

concretização deste objetivo, um dos primeiros movimentos idealizados pela irmandade da

Santa Casa foi no sentido de diminuir a quantidade de crianças colocadas na criação externa,

garantindo alojamento para a grande maioria e o ensino de ofícios e instrução básica dentro da

própria instituição.

Em relatório apresentado no ano de 1908, o provedor Miguel Joaquim Ribeiro de

Carvalho revela os projetos da irmandade no sentido de construir uma sede para os expostos

de maneira a cumprir com os novos desígnios para a Casa dos Expostos. A nova sensibilidade

em relação à assistência aos expostos torna visível a mudança de postura em relação à criação

externa que agora aparece – também - caracterizada sob a perspectiva da educação que

promove às crianças:

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A criação e educação interna nada deixam a desejar, a externa é tolerável. Afim de reunir sob nossas vistas e zelosamente cuidar de todos esses desprotegidos é que foi sugerida, pela dedicada administração a cujo serviço se acha o inexcedível zelo do prezado Irmão Escrivão dos Expostos, e aceita pela Mesa e Junta, a idéa de ser de vastas proporções o edifício onde se tem de ficar definitivamente, na rua Marquez de Abrantes.13

Conforme o livro organizado por Ataulfo de Paiva14, a construção do novo prédio da

Casa dos Expostos seguia os padrões modernos de edificação: (...) A construção do edifício, com amplas accomodações, cuja planta foi traçada pelo Escrivão do estabelecimento Dr. Americo Firmiano de Moraes, em collaboração com a respeitável superiora Irmã Guillhempery, é solida de ferro, alvenaria de pedra e cimento, architectura severa, sóbria de adornos, installação de luz alectrica bem acabada, canalisação de esgotos e serviço sanitário perfeitos. (PAIVA, 1922, pp. 459)

O processo de transformações na Roda dos Expostos no tocante ao amparo à criança

encontra seu ápice no ano de 1910, quando da transferência para a nova sede na Rua Marquês

de Abrantes. A mudança para a sede definitiva esteve relacionada ao novo contexto no qual os

“serviços de assistência à criança deixam de ser concebidos como manifestação da caridade e

são convertidos em espaços de aplicação prática do utilitarismo e da higiene” (SANGLARD

& FERREIRA, 2018, p. 163). Nesse sentido, o novo prédio foi um passo importante para a

concretização dos objetivos da irmandade no sentido da criação interna dos expostos e de sua

educação. Assim, no regulamento da Casa dos Expostos de 1909 era instituído o ensino,

ministrado no estabelecimento, e que compreendia quatro cursos: o infantil, primário,

secundário e o curso geral.

Percebemos que a instrução voltada às meninas era diferente daquela para os meninos,

reflexos das expectativas sociais para cada segmento. Assim, o ensino das meninas abarcava

não só as matérias de doutrina cristã, leitura, caligrafia, aritmética, história sagrada, história

do Brasil, gramática portuguesa, noções gerais de geografia, desenho e escrituração mercantil,

como os trabalhos próprios de “uma boa mãe de família”: aprendiam a lavar, engomar,

cozinhar, além de outros trabalhos domésticos. Também poderiam ser instruídas nos trabalhos

de agulha, bordados, flores, tapeçaria de lã, piano e canto, conforme a idade, aptidão e

inclinação de cada uma. O regime de trabalho das meninas era rigidamente controlado.

Levantavam às 5 horas da manhã e deitavam às 20 horas da noite15, dedicando quatro horas

13 Relatório Apresentando à Mesa da Santa Casa da Misericórdia para o ano de 1908, p 24. 14 O livro foi encomendado pelo prefeito Bento Ribeiro a Ataulfo de Paiva. A maior parte dos dados estatísticos presente na obra é do ano de 1912-1913. 15 “Art. 44. As Expostas levantar-se-ão às 5 horas da manhã e deitar-se-hão às 8 da noite, de 1 de Outubro até 31 de Março, e às 6 horas da manhã e 8 da noite, de 1 de Abril até 30 de Setembro”. CARVALHO, Miguel Joaquim

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ao estudo e várias outras aos trabalhos manuais. O tempo para as refeições e recreios girava

em torno de quatro horas diárias.

Em comparação com as meninas, a instrução voltada aos meninos parecia tímida. Até

os doze anos seriam instruídos em leitura, caligrafia, doutrina cristã, aritmética, gramática

portuguesa, noções de geografia e História do Brasil. Depois disso, deveriam ser admitidos

em qualquer estabelecimento industrial ou de educação, sendo preferíveis os da Santa Casa,

ou confiados a pessoas que os queiram receber, obrigando-se a dar-lhes, sem retribuição,

educação, instrução, vestuários e curativos. Com a criação das oficinas de sapataria e de

alfaiataria, na Casa dos Expostos, em 8 de março de 1911, aos 13 anos os meninos passariam

a aprender os ofícios dentro do estabelecimento.

O período que ficavam sob o amparo da instituição também diferia entre os sexos. As

meninas permaneceriam sob a proteção da Casa dos Expostos até completarem 20 anos de

idade, período no qual caberia à irmã superiora colocá-las em “casas de família” ou qualquer

outro estabelecimento “de confiança”. O objetivo era assegurar a honra e a virtude das

meninas até contraírem matrimônio ou saírem para os cuidados de uma família. Os meninos,

por outro lado, se desligariam da instituição bem antes, aos 13 anos, quando seriam

encaminhados para outros locais de instrução, trabalho ou de cuidado (casas particulares). Na

prática, com a inauguração das oficinas em 1911, os laços com a instituição se mantiveram até

o fim do aprendizado. O que fica claro, entretanto, é que a instrução masculina voltava-se ao

trabalho, de maneira a criar corpos produtivos e incutir uma moralidade que os afastasse da

vadiagem.

Diante das novas atribuições da casa, o quadro institucional da Roda dos Expostos

também passa a contar com novos atores além dos já existentes. O livro Assistência Pública e

Privada no Rio de Janeiro informa os funcionários presente na instituição no ano de 1912 e

1913: dois médicos, sendo um exclusivamente para cuidar dos menores de 2 anos, um

dentista, um capelão, professores de ginástica e música, 12 amas de leite, 20 expostos

trabalhando como auxiliares, recebendo remuneração mensal e a Superiora, escolhida dentre

as irmãs de São Vicente de Paulo para a administração da Casa dos Expostos. Trabalhadores

desenvolvendo atividades diversificadas na Roda: sinal da nova assistência à infância levada a

cabo pela instituição.

Ribeiro de (Org.). Estatutos da Casa dos Expostos da Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro. Typ. do Jornal do Commercio, de Rodrigues & C., Rio de Janeiro, 1909.

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Cabe ressaltar que o médico responsável pelas crianças menores de dois anos –

admitido em 1911 -, o doutor Santos Moreira16, havia sido assistente de Fernandes Figueira17

na clínica médica da Policlínica das Crianças da Santa Casa da Misericórdia, em 1909. Esse

dado nos permite pensar nas possíveis influências que os projetos formulados pelo médico

para a saúde infantil tiveram na Roda dos Expostos através de seu pupilo.

Em um momento em que os limites de atuação dos poderes públicos e privados na

assistência à infância ainda não estavam bem delimitados, o médico defendia que à filantropia

caberia a abertura de creches, consultórios de lactantes e associações para a primeira infância.

Todo o restante das atividades ficaria sob a responsabilidade do poder público. Uma das

principais bandeiras de luta de Fernandes Figueira foi contra a mortalidade infantil, causa que

definiu seu projeto de assistência que via o aleitamento materno como elemento essencial

para o combate ao problema. O público-alvo do médico voltava-se às operárias e crianças de

até 1 ano de idade. (SANGLARD, 2016, p. 61).

A segunda metade do século XIX abarca movimentos paralelos que acabam por

fornecer as bases para a perda progressiva do protagonismo das amas em detrimento de outras

formas de cuidar das crianças. Um destes é luta travada por médicos e demais agentes

públicos pelo fortalecimento do vínculo entre mãe e filho. A maternidade será exaltada como

a mais relevante função feminina e, a amamentação, como essencial ao combate à

mortalidade infantil. Segundo Karoline Carula, a luta travada por médicos pelo aleitamento

materno relacionava-se a uma mudança que se pretendia para a própria ordem familiar,

fundamentada em uma sociedade burguesa liberal (CARULA, 2011, p. 212).

Entretanto, Cláudia Fonseca propõe uma reflexão a partir de uma abordagem

historiográfica que toma o modelo da família nuclear “como o corolário inevitável da

modernidade e da industrialização” (FONSECA, 2017, p. 545). Ao contrário da nuclearização

inevitável da família que acompanha a urbanização, a autora defende a possibilidade de

haverem outras configurações possíveis naquele contexto. Desse modo, as uniões consensuais,

16 O doutor A. A. Santos Moreira foi o responsável por apresentar os dados estatísticos relativos à seção “Casa dos Expostos” do livro Assistência Pública e Privada no Rio de Janeiro. O limite dos dados é o ano de 1913. 17 Fernandes Figueira fez parte da primeira geração de pediatras que se formou em torno de Arthur Moncorvo de Figueiredo (1846-1901) e de seu curso livre de Pediatria na Policlínica Geral do Rio de Janeiro. Juntamente com Arthur Moncorvo Filho e Luiz Barbosa, teve importante papel na formulação de projetos para a assistência à infância que se concretizariam em diferentes instituições voltadas a esse segmento: o Instituto de Proteção e Assistência à Infância (IPAI), idealizado e fundado por Moncorvo Filho em 14 de julho de 1899; a Policlínica de Botafogo, instalada em 10 de junho de 1900, com Luiz Torres Barbosa à frente de suas tarefas; e a Policlínica das Crianças da Santa Casa da Misericórdia, inaugurada em 1909, com Fernandes Figueira enquanto diretor, cargo no qual permaneceu por 14 anos e onde pôde colocar algumas de suas ideias em prática.

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os casamentos “precoces”, as altas taxas de bastardia e as crianças em circulação18 (que

tornava as crianças responsabilidade de todo o grupo de parentesco) foram algumas das

tendências relacionadas à organização familiar dos grupos populares. Como demonstra

Cláudia, a difusão da família conjugal moderna é fruto de uma construção histórica que

envolveu tensões e adaptações entre duas culturas.

Assim sendo, diante das configurações familiares possíveis para os grupos populares,

a tentativa de instituições como a Santa Casa foi manter o vínculo entre mães e filhos. Dessa

forma, Gisele Sanglard resgata uma categoria que surge na década de 1870 nos livros de

registro de crianças da Casa dos Expostos: a de criança desamparada. As crianças nomeadas

enquanto “desamparadas” eram aquelas enviadas à Casa dos Expostos por suas mães se

encontrarem internadas no Hospital Geral da Santa Casa. Importante notar que era no

Hospital Geral que, desde 1808, ocorriam as aulas práticas da Faculdade de Medicina do Rio

de Janeiro. Tal constatação permite pensar nas prováveis influências da institucionalização

das especialidades médicas na Faculdade de Medicina nas ações assistenciais levadas a cabo

pela Santa Casa. No entanto, o primeiro livro de registro analisado pela autora é anterior a

data de criação da cátedra de pediatria na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, fato

ocorrido em 1883.

A presença das mulheres no Hospital revela a ausência de uma “estrutura familiar ou

laços de solidariedade horizontal” que permitissem que fossem amparadas em sua

enfermidade – bem como os seus filhos (SANGLARD, 2016, p. 345). Por outro lado, a

remessa das crianças para a Casa dos Expostos indica a incapacidade ou a falta de condições

do Hospital Geral para cuidar das crianças filhas das mulheres enfermas. Nesta última

provável causa para o depósito das crianças na Roda parece ecoar o processo de

medicalização do hospital19 - decorrente da transformação do hospital de caridade em local de

ensino - que excluiu dos seus corredores aqueles que não estivessem entre os pacientes com

doenças curáveis. Dessa forma, de maneira a garantir que, depois de curada, mãe e filho

18 A circulação de crianças, ligada diretamente à existência da família extensa, fazia parte de uma estratégia coletiva para garantir a sobrevivência das crianças. Dessa forma, embora o cuidado das crianças coubesse à mulher, este não era necessariamente desempenhado pela mãe biológica. Ao considerar a maternidade em grupos populares a autora chama a atenção para aquela exercida pelas avós, criadeiras e mães de criação. A precariedade da vida conjugal cujos laços podiam ser desfeitos pela migração de um dos integrantes, divórcio e, sobretudo, pela morte explica a estratégia de tornar a criança responsabilidade de todo o grupo de parentesco. (FONSECA, 2017, p. 534). 19 Sobre o processo de medicalização do hospital ver mais em: SANGLARD, Gisele & FERREIRA, Luiz Otávio. Caridade e Filantropia: elites, estado e assistência à saúde no Brasil. In: TEIXEIRA, Luiz Antonio. PIMENTA, Tânia Salgado. HOCHMAN, Gilberto (Orgs.). História da Saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Hucitec, 2018. pp.145-181.

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permanecessem unidos a Santa Casa passa a remeter seus filhos para a Casa dos Expostos.

Com isso, novas categorias de criança – além das “expostas” – passa a surgir no interior do

estabelecimento, sinal do novo entendimento em relação à criança e à família.

Considerações Finais

A Casa dos Expostos foi uma instituição de acolhimento de crianças que durante a

Primeira República sofreu intensas modificações em suas ações assistenciais. Como visto,

esta passou a adotar o modelo escola, assumindo a função de escolariar as crianças. Em um

contexto de construção de uma nova visão de infância, de estruturação da concepção de

família burguesa e constituição das cátedras de pediatria e puericultura a prática do abandono

de crianças passa a perder terreno dentre as classes mais abastadas da cidade do Rio de

Janeiro. Criava-se a ideia de família nuclear, na qual a mulher teria um importante papel na

salvaguarda de sua prole através do cumprimento dos preceitos médicos e higiênicos. Estes

prescreviam a amamentação materna como dever feminino e primordial à saúde infantil.

Dessa forma, se a causa do abandono infantil para os séculos XVIII e XIX não era,

necessariamente, a pobreza, para o início do século XX, é a pobreza que gera o abandono. A

abolição da escravidão, a imigração maciça, as transformações no meio urbano, as medidas

higienistas que marcam o final do século XIX e as primeiras décado do XX tiveram

consequências profundas na vida da população da cidade do Rio de Janeiro. Não a toa a

presença de mulheres nas enfermarias do Hospital Geral - por não possuírem laços familiares

– e de seus filhos. Esta nova realidade social aliada ao discurso maternalista acaba por

repercutir na Casa dos Expostos que passa a abrigar as crianças cujas mães estivessem

hospitalizadas de maneira a garantir que mãe e filho permanecessem unidos após a

permanência no hospital.

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