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    116 Oliveira, Mariangela Rios de. Preconceito lingstico, variao e o papel da Universidadehbrida ormao tnico-cultural; est nas proundas distines socioecon-micas que nos caracterizam; est na diversidade geogrca nacional, com suascores locais e dialetos; est na presena de estrangeirismos, como marcas da

    globalizao, enm, est por toda parte.Para tratar dessa questo, abordamos o tema a partir de um rpido olhar so-

    bre a histria da implantao do portugus no Brasil. Aps, destacamos o adven-to da cincia Lingstica, mais especicamente da Sociolingstica Variacionista,com a incorporao dos atores sociais na descrio e anlise dos usos lingsticos.A seguir, expomos e discutimos os mais tradicionais preconceitos em torno dalngua portuguesa vigentes no Brasil, e, por m, apresentamos o tratamento da

    diversidade lingstica nos documentos que orientam o ensino-aprendizagem doportugus em nossos dias, chegando discusso do papel da universidade nessembito, a partir do novo perl da prova de redao do vestibular.

    Implantao e deesa do vernculo

    A histria do preconceito lingstico no Brasil remonta e coincide com aimplantao da lngua portuguesa em solo nacional, de orma cabal e deniti-

    va, a partir de 1758, com a Lei do Diretrio dos ndios. A partir dessa medida,Portugal expulsa os jesutas do pas, praticamente silencia a lngua geral, outupi da Costa, a lngua veicular de ndios, brancos e negros at ento, e impeeetivamente o portugus. Nesse processo, h registros de lutas e chacinas, queno azem parte das pginas da histria ocial do pas2.

    Essa trajetria de imposio lingstica assume requintes igualmente cru-is no sculo XX, mais especicamente entre 1941 e 1945, durante o Estado

    Novo de Getlio Vargas. Registram-se nesses anos, segundo Oliveira (2000)3

    ,o echamento de grcas, a ocupao de escolas comunitrias, alm de perse-guies e torturas. O governo Vargas, em nome do purismo e da homogenei-

    2 Sobre o tema, ver OLIVEIRA, Gilvan. Brasileiro ala portugus: monolingismo e precon-ceito lingstico. IN: SILVA, Fbio e MOURA, Heronides (org). O direito ala: a questodo preconceito lingstico. Florianpolis: Insular, 2000 (p. 83-92) e CUNHA, Celso.A ques-to da norma culta brasileira. Rio de Janeiro: empo Brasileiro, 1985.

    3 OLIVEIRA, Gilvan. Brasileiro ala portugus: monolingismo e preconceito lingstico.IN: SILVA, Fbio e MOURA, Heronides (org). O direito ala: a questo do preconceitolingstico. Florianpolis: Insular, 2000 (p. 83-92)

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    zao lingstica, empreende errenha perseguio aos usos das comunidadesde imigrao estrangeira, notadamente na regio Sul do pas. Assim, a popu-lao de origem europia, sobretudo alemes, italianos e seus descendentes,

    estava proibida, por ora de lei, de se expressar, em qualquer lugar, hora econdio, por outra lngua que no osse a portuguesa.

    Mais prximo aos nossos dias, na trajetria dos embates sobre o pre-conceito lingstico em nosso pas, citamos ainda o equivocado projeto de lei1676/1999 do deputado Aldo Rebelo, que, em nome daproteo, promoo,deesa e uso da lngua portuguesa, propunha um verdadeiro combate ao cha-mado estrangeirismo (Faraco, 2001)4. A proposta parlamentar, entre a inge-

    nuidade e a ignorncia, considerava as palavras provenientes do ingls comoseres aliengenas, invasores do territrio nacional, capazes de pr em perigonossa segurana e soberania. poca, a mdia brasileira, no calor das discus-ses, entrevistou gramticos, llogos, jornalistas e juristas. A universidadee os lingistas no oram ouvidos ou no se zeram ouvir, na demonstraodo quanto ainda estamos enclausurados no meio acadmico, de como noconseguimos nos articular e trazer algum esclarecimento ou contribuio sdiscusses travadas na sociedade brasileira acerca dessa questo.

    Linguagem e sociedade um novo olhar

    Embora a relao entre linguagem e sociedade seja reconhecida com cer-ta evidncia em nossos dias, nem sempre o contexto social, os atores externosenvolvidos na produo lingstica, oram considerados ou eleitos como obje-to de investigao. Mesmo Sausurre, considerado o pai da cincia Lingstica,

    acabou por privilegiar uma abordagem ormalista, elegendo o sistema, comoum tipo de aparato virtual e abstrato, para tratar dos enmenos lingsticos,aastados de seus respectivos contextos de produo e de recepo.

    Somente com a advento da Sociolingstica Variacionista, nos EstadosUnidos, nos anos 60 do sculo XX, que os atores sociais, sob orma devariveis intervenientes no uso lingstico, passaram a ser considerados eeti-vamente na investigao desses usos. Assim, a diversidade lingstica ganhou

    4 FARACO, Carlos Roberto (org). Estrangeirismos guerras em torno da lngua. So Paulo:Parbola, 2001.

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    118 Oliveira, Mariangela Rios de. Preconceito lingstico, variao e o papel da Universidaderelevncia como objeto de pesquisa, relacionada identidade social do emis-sor, do receptor, s marcas do contexto social e ao julgamento do prprio usoe do uso dos interlocutores.

    O rtulo variao lingstica ganhou destaque a partir desse momento,com as anlises sobre as diversas lnguas incorporando variveis como idade,sexo, ocupao, origem tnica e atitude. Nessa nova orientao, as tradicionaisquestes do certo e do errado passaram a ser vistas em termos de adequa-o situao comunicativa, e os comportamentos lingsticos oram assu-midos como traos identitrios, como marcas individuais e, principalmente,sociais de estar na comunidade lingstica.

    A concepo da norma culta com apenas uma variante privilegiada, eleitapara a representao da expresso modelar social, tambm uma contribuioda Sociolingstica Variacionista. Vem desse contexto a concepo segundo aqual o chamado bom uso da lngua se traduz pela representao das prticasdas classes socialmente avorecidas e dominantes, tratando-se, assim, muitomais de uma questo de poder e de prestgio scio-poltico do que de qualquermrito particular ou intrnseco desse uso especco.

    A partir de William Labov e seus discpulos, xa-se a inseparabilidade

    entre lngua e variao. A diversidade lingstica deixa de ser vista como pro-blema ou mcula social, assumindo o patamar de trao constitutivo de todae qualquer sociedade, na saudvel expresso da riqueza de matizes e circuns-tncias que cercam o enmeno lingstico. No Brasil, em tempo mais tardio,iniciam-se os estudos de base sociolingstica. O PEUL5, sediado na UFRJ, um dos precursores desses estudos e, at hoje, mantm produo acadmicasubstancial e relevante, constituindo-se numa importante reerncia da Socio-

    lingstica no pas.O advento da abordagem e da primazia das variveis sociais na anlisedos enmenos lingsticos est na base, de certa orma, de toda uma sriede correntes de estudos lingsticos no ormalistas que surgem a partir da,por privilegiarem a investigao da lngua em seus contextos eetivos de uso.Assim, em nossos dias, no s a Sociolingstica, mas tambm as vrias ver-tentes da Anlise do Discurso, da Anlise da Conversao, do Funcionalismo

    5 Programa de Estudos sobre o Uso da Lngua (PEUL).

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    e da Lingstica extual, bem como da Pragmtica, entre outras, consideram,em suas anlises, as condies sociais de produo e de recepo da expressolingstica.

    Ao trazerem cena da pesquisa cientca da linguagem uma srie deatores intervenientes, essa correntes propiciam atualmente no Brasil outrostipos de debate, nosso oco aqui de refexo. Um deles situa-se em torno dopreconceito lingstico, chamando a ateno para aspectos que, veladamenteou no, atuam na construo do imaginrio social sobre o uso e a apropriaoda linguagem. O outro reside na discusso acerca do ensino-aprendizagem dalngua materna, que tem na prova de redao dos vestibulares nacionais uma

    de suas mais representativas expresses.

    Mitifcao e desmitifcao

    luz das contribuies da Lingstica, Bagno lanou, tambm em 1999,ano do reerido projeto de lei de Rebelo, a obra Preconceito lingstico o que ,como se az6, causando um certo rebulio nacional, tanto no meio acadmico,como na mdia e em alguns setores do magistrio. Com seu discurso contun-

    dente e assumindo uma postura prxima radicalizao, o autor reuniu nareerida obra, que j passa da dcima quinta edio nos dias de hoje, o quesintetizou como os oito preconceitos da sociedade brasileira a respeito dosusos lingsticos. Colocando-se absolutamente contra convenes e normas,Bagno deende a tese de que h um embate histrico entre a utilizao eetivado idioma e a postura da tradio gramatical, com ortes e danosas repercus-ses para o ensino-aprendizagem da lngua materna no Brasil.

    Na verdade, o autor sumarizou, ao listar os oito dogmas, uma srie depressupostos reveladores dos embates travados, h algum tempo no Brasil,entre lingistas e vernaculistas. Nessas discusses, em geral no h lugar paraa moderao, o saudvel mas dicil consenso, sem o qual toda polmica nopassa de perda de tempo e de demonstrao de insensibilidade. anto assimque os leitores da reerida obra tendem a se distribuir em dois grupos os aavor e os contra o autor, raticando a dicotomia com que tem sido tratada arelao entre lingstica e tradio gramatical.

    6 BAGNO, Marcos. Preconceito lingstico o que , como se az. 15 ed. So Paulo: Loyola, 2002

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    120 Oliveira, Mariangela Rios de. Preconceito lingstico, variao e o papel da UniversidadeVejamos, pois, os oito mitos e, por outro lado, aamos novas consi-

    deraes acerca de cada um deles, no intuito de modalizar ou relativizar asdeclaraes do autor.

    O primeiro preconceito denunciado por Bagno diz respeito surpreendenteunidade que possui a lngua portuguesa alada no Brasil. Para raticar tal denn-cia, o autor vale-se da diversidade lingstica do portugus alado no pas, aindano considerada eetivamente nas salas de aula, nos registros dos dicionrios enas prescries da gramtica tradicional. Esse mito pode ser abordado em doisaspectos. Ora, como sabemos, o advento da lngua alada como objeto de ensino,se comparado tradio secular dos estudos da escrita, bastante recente. Em

    termos mesmo de pesquisa, somente a partir da dcada de 70 do sculo XX, como projeto NURC7, que levantou registros de ala em cinco capitais brasileiras(Rio de Janeiro, So Paulo, Porto Alegre, Recie e Salvador), que passamos aconhecer de modo mais eetivo o que o portugus alado no pas, mesmo assim,de orma restrita e limitada. Portanto, consideramos, hoje, que ainda estamosconhecendo essa modalidade, assim, no temos at agora uma gramtica da alae, conseqentemente, uma pedagogia da oralidade. Ademais, se pensarmos quevivemos em um pas muito novo, ace ao Velho Mundo, de dimenses continen-

    tais e povoado por quase 200 milhes de habitantes, possvel sim considerarsurpreendente a unidade lingstica nacional, uma vez que o portugus aladoem praticamente todo o territrio, mesmo em comunidades indgenas, isoladosnegros ou remanescentes quilombolas, bem como em regies de imigrao euro-pia. Considerados tais argumentos, o mito de certa orma se desmitica, passan-do a ser considerado mais uma constatao do que uma denncia.

    No segundo preconceito reerido, o autor aponta a crena de que o

    brasileiro no sabe portugus e que s em Portugal se ala bem o portugus. Noprimeiro eixo do mito, encontramos uma declarao muito prxima do sen-so comum, j quase uma rase eita, que novamente traz tona a distinodas modalidades alada e escrita. Hoje, a pesquisa lingstica e muitas daspropostas pedaggicas em implementao, seja em cursos de capacitao do

    7 Sigla do Projeto de Estudo Conjunto e Coordenado da Norma Lingstica Oral Culta de

    Cinco das Principais Capitais Brasileiras. Como ruto desse projeto, citam-se os oito volu-mes da coletnea Gramtica do Portugus Falado, publicados entre 1990 e 2002, alm deuma srie de teses, dissertaes, monograas e outras publicaes.

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    magistrio, seja em experincias bem sucedidas em salas de aula pelo pasaora, combatem o pressuposto de que o alante no sabe sua prpria lngua.Quanto ao segundo eixo da questo, trata-se da conseqncia de um ato

    histrico e indelvel omos, durante alguns sculos, colnia de Portugal,apndice de outra nao da qual herdamos, pela implantao de uma pol-tica lingstica extremamente eciente do Marqus de Pombal8, a lngua dametrpole. Assim, ca um certo resqucio da condio anterior, que, acredita-mos, hoje j se supera e, mesmo em muitos casos, se inverte, se levarmos emconsiderao a infuncia dos meios de comunicao nacionais, que incremen-tam a presena da norma brasileira em solo lusitano.

    O terceiro mito sintetiza-se na armao de que o portugus muito dicil.Esse preconceito estaria bem prximo ao segundo, talvez mesmo congurariasua causa (no se sabe a lngua porque muito dicil). Ora, novamente aqui preciso levar em considerao as duas modalidades lingsticas a alada e aescrita. Nesse sentido, de ato, escrever , em toda e qualquer lngua, muitodicil, j que envolve o aprendizado sistemtico de um cdigo, de uma con-veno complexa (com critrios especcos para ortograa, pontuao, para-graao, entre outras tecnologias), que deve ser manipulada com habilidade,

    pressupondo grande exposio leitura, ambientao do usurio com esseoutro modo de codicao da lngua. Assim, dizer apenas que o portugus muito dicil azer uma declarao ingnua e reducionista, sem levar em con-ta os modos especcos de produo do oral e do escrito, seja em portugus,seja em qualquer lngua. Se pensarmos que toda a tradio gramatical e peda-ggica estiveram historicamente debruadas na modalidade escrita, possveljusticar a circulao, ainda nos dias de hoje, desse tipo de pressuposto. Por

    outro lado, se entendemos que o objeto de descrio e prescrio da gramticatradicional unda-se nas produes escritas e que o ensino-aprendizagem, apartir de suas mais recentes orientaes poltico-pedaggicas, cada vez maisincorpora textos alados em sua prtica, a tendncia, j nos dias de hoje, dese superar ou, ao menos, minimizar a contundncia dessa declarao.

    8 Projeto que se inicia com a Lei do Diretrio, de 1758, que torna obrigatrio o uso do por-tugus em todo o Brasil e expulsa os jesutas do pas. Com essa medida, a lngua geral, entoregular no trato cotidiano, passa a ser combatida, xando eetivamente a norma idiomticado portugus (Cunha, 1985).

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    122 Oliveira, Mariangela Rios de. Preconceito lingstico, variao e o papel da UniversidadeEm quarto lugar, Bagno declara que as pessoas sem instruo alam tudo

    errado. rata-se de uma armao radical, novamente relacionada ao senso co-mum e ao binmio ala x escrita, e que hoje constituiu alvo de combate no

    meio acadmico e pedaggico da rea de Letras. Via de regra, a declarao articulada justamente por pessoas sem instruo, gramticos tradicionais oupreceptores dos chamados consultrios gramaticais, as colunas de jornal e re-vistas especializadas em receitar medicao para as doenas do mau uso lings-tico. No entanto, o preconceito aludido encobre uma outra situao inegvel em toda e qualquer comunidade, naturalmente diversicada em termos sociais,econmicos e lingsticos, entre outros, uma determinada orma de utilizao

    da lngua, por questes de legitimao e de poder, alada condio de mo-delo, de orma exemplar e prestigiosa de comportamento. E esse uso modelar,no por acaso, dita padres gerais de conduta, legitimando e abonando o que alar e escrever corretamente. Para os que se dedicam descrio e anlise dasquestes lingsticas, no possvel desconsiderar, por exemplo, o verdadeirosucesso dos reeridos consultrios gramaticais, hoje disseminados em muitosveculos de comunicao; no se pode echar os olhos ou ignorar, numa atitudetambm preconceituosa, que a sociedade, em muitos casos independentemente

    do nvel de instruo de seus membros, l diariamente essas colunas, revelando,ao menos, curiosidade acerca dos contedos a veiculados. Desconsiderar esseato, no avaliar sua repercusso no levar em conta a diversidade das normaslingsticas que circulam no trato social e seu distinto status.

    Com o lugar onde melhor se ala portugus no Brasil no Maranho cita Bagnoo quinto preconceito. De ato, trata-se de uma armao sem maior undamento,que pressupe variantes melhores, mais puras, legtimas ou ecientes em relao

    s demais. Ocorre que, hoje, pelo menos no meio acadmico, j no h lugar paraesse tipo de armao. Mesmo o dialeto carioca, que durante bom tempo ditoupadres de conduta lingstica para o Brasil em geral, devido condio histrico-cultural do Rio de Janeiro, como antiga capital, de bero da amlia real portugue-sa na colnia, entre outros atores, nos dias de hoje, visto como mais uma entreas muitas variedades em que se multiaceta a norma brasileira do portugus nemmelhor, nem pior que qualquer outra, apenas dierente (Leite e Callou, 2002)9.

    9 LEIE, Yonne e CALLOU, Dinah. Como alam os brasileiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,2002.

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    Em sexto lugar, o autor apresenta o preconceito segundo o qual o certo

    falar assim porque se escreve assim, trazendo baila, novamente, o tratamento di-

    cotmico da relao ala x escrita. Para undamentar a declarao, Bagno ocaliza

    a questo do ensino-aprendizagem da lngua portuguesa no Brasil, ormulando ainusitada proposta de unidade ortogrfca em prol do combate ao artifcialismo

    da modalidade escrita e ao desafo de sua aquisio. Ora, poderia ser at muito

    interessante, caso osse possvel, uma comunidade lingstica utilizar um cdigo

    escrito que uncionasse como o espelho da modalidade alada correspondente,

    porm, tal como ormulada, a proposta equivocada, ou, no mnimo, muito

    inocente (Perini, 2004)10. Como j nos reerimos em relao ao terceiro mito,

    aqui tambm o autor desconsidera as especifcidades da escrita, o eetivo e ineg-vel grau de artifcialismo de que se reveste essa modalidade, resumindo as difcul-

    dades de sua aquisio mera relao graema x onema, conorme assinala. Ao

    ormular tal proposio, o autor desconsidera a trajetria histrica que conduziu

    fxao dos atuais graemas da lngua e seu critrio de utilizao, deixando de

    lado, ainda, as distines diatpicas e diastrticas, que, conorme sua proposta,

    ensejariam a perguntas do tipo: como seria, ento, a escrita, diante de tantos ala-

    res? Elegeramos algum alar como modelo? Se assim o osse, qual seria o critrio?

    Ou teramos tantas e to diversas expresses escritas quanto suas correspondentes

    aladas? Como podemos observar, a questo bem mais complexa do que supe

    um olhar rpido e superfcial. Ademais, o conhecimento ortogrfco apenas

    um dos muitos componentes necessrios complexa atividade de escrever; saber

    ortografa no garante competncia plena no desempenho escrito.

    O stimo preconceito reerido por Bagno d conta de que preciso sabergramtica para alar e escrever bem. Partindo da concepo de gramtica como

    o conjunto de instrues normativas pautadas no padro culto escrito, o autordenuncia e critica, com esse postulado, as prticas pedaggicas tradicionais doensino-aprendizagem de lngua portuguesa. Por outro lado, se levarmos emconta o conceito de gramtica numa concepo uncional (Furtado da Cunha,Oliveira e Martelotta, 2003)11, em que o termo tomado como o conjunto

    10 PERINI, Mrio.A lngua do Brasil amanh e outros mistrios. So Paulo: Parbola, 2004.11

    FURADO DA CUNHA, Maria Anglica, OLIVEIRA, Mariangela Rios e MARELOA,Mrio Eduardo (org). Lingstica uncional: teoria e prtica. Rio de Janeiro: DP&A / Faperj,2003.

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    124 Oliveira, Mariangela Rios de. Preconceito lingstico, variao e o papel da Universidadedas estratgias acordadas e sistematizadas na comunidade lingstica comopadro para as situaes eetivas de interao, ento, de ato, todo e qualqueralante de uma lngua precisa, realmente, de uma gramtica dessa lngua para

    sua comunicao eciente. Assim posto, preciso relativizar esse stimo pre-conceito, restringindo o nome gramtica e o advrbio bem a contextosmuito especcos de reerncia.

    Por m, o autor questiona o domnio da norma culta como instrumento deascenso social. Conorme seu entendimento, tornar as classes populares maiscompetentes em termos lingsticos no , por si s, garantia de chegada amelhores e mais prestigiados postos na escala social; seriam necessrios outros

    requisitos para essa mudana. De ato, num primeiro olhar, seramos levadosa concordar com o autor, mas sua tese no resiste a uma apreciao mais cui-dadosa. Quando se domina a norma culta, alada e escrita, adquire-se umautntico aparato tecnolgico, nos termos de Auroux (1992)12, necessrio eimprescindvel ao exerccio pleno da cidadania. Assim, um indivduo de possedesse aparato aquele cidado que reinvidica, questiona, prope, lidera, refe-te, tem vez e voz, apropria-se de bens culturais, enm, adquire alto nvel de le-tramento (Soares, 2000)13. Ademais, a assuno a posies de maior prestgio

    e notoriedade social no se az, em que pese a presena de outros atores, sema devida competncia comunicativa, que passa necessariamente pela obtenoe manipulao eciente das estratgias lingsticas de prestgio.

    Ensino e diversidade lingstica

    Levando em conta os marcos histricos da implantao e da xao do

    portugus no Brasil, com a apropriao das contribuies das correntes lin-gsticas de base no-ormalista e tentando sair das posies radicais em tornoda questo do preconceito lingstico, encontra-se a Lei de Diretrizes e Basesda Educao Nacional de 1996. Em decorrncia desse documento, com vistas normatizao legal, surgem, em 1998, as novas Diretrizes Curriculares Na-cionais, que vo derivar os chamados Parmetros Curriculares Nacionais (ou

    12 AUROUX, Sylvain.A revoluo tecnolgica da gramatizao. Campinas: Ed. da Unicamp,1992

    13 SOARES, Magda. Letramento: um tema em trs gneros. Belo Horizonte: Autntica, 2000.

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    apenas PCN) para o Ensino Fundamental e Mdio14. Os PCN, conquantodocumentos ociais, tornam-se reerncia acadmica para a refexo e o debateem torno da legitimao dos usos lingsticos em nossos dias.

    Em vrios pontos dos PCN encontram-se aluses acerca do respeito e daconsiderao da diversidade lingstica. No Ensino Fundamental, essa questoest nos objetivos gerais, entre os quais se destaca o da ormao de cidadoscom atuao scio-poltica e atitude crtica, conhecedores das caractersticase da multiplicidade da sociedade brasileira, incluindo-se a as particularidadese especicidades diatpicas e diastrticas. Nos objetivos especcos de lnguaportuguesa para o Ensino Fundamental, registra-se o respeito s distintas va-

    riedades do portugus alado e escrito, a considerao e a interpretao deoutras identidades e vozes atuantes no meio social e a conscincia da utilizaoda lngua como veculo de legitimao de valores e preconceitos. Ao desta-car o trao de adequao em relao expresso verbal e a necessidade deapropriao e utilizao de distintos gneros textuais circulantes na comuni-dade, independentemente de questes de prestgio, novamente os PCN estoa servio do combate s posturas preconceituosas em torno da lngua. dessaexposio mxima s variedades de expresso que dever se ormar o cidado

    participativo, solidrio, consciente e letrado do novo milnio.No tocante ao Ensino Mdio, a proposta dos PCN no diere em re-

    lao ao nvel Fundamental, apenas se aprounda e rena. Dentro da reade Linguagens e Cdigos, a lngua portuguesa se apresenta como a instnciade ormao de leitores crticos e competentes, sensveis diversidade scio-cultural brasileira, e produtores de textos adequados e ecientes s mltiplascondies e necessidades advindas do trato social. As aulas de portugus no

    Ensino Mdio devem promover, para tanto, condies necessrias ao desen-volvimento de interao autnoma e ativa de interlocuo, leitura e produotextual; condies to diversicadas quanto diversa a sociedade em que osalunos esto inseridos.

    Numa perspectiva assim assumida, no h lugar para atitudes preconcei-tuosas e discriminatrias. A atual proposta pedaggica nacional , pois, claraem sua postura poltico-acadmica de legitimao de todas as maniestaes

    14 Parmetros curriculares nacionais: lngua portuguesa. Secretaria de Educao Fundamental. 2ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2000.

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    126 Oliveira, Mariangela Rios de. Preconceito lingstico, variao e o papel da Universidadelingsticas em uso no Brasil. Mas esse propsito maior no implica a des-considerao do ensino-aprendizagem da variante padro, especialmente namodalidade escrita, como orma de aprimoramento da competncia comuni-

    cativa verbal, de acesso a maior e mais diversicado nmero de produtos cul-turais, bem como de condio necessria ascenso social das classes menosavorecidas.

    Diversidade e universidade

    odo esse quadro delineado aqui acabou por repercutir, como seria espe-

    rado, na universidade brasileira. E a redao do exame vestibular, bem comoseus critrios de correo, acabou por incorporar o debate em torno da ques-to dos usos lingsticos, sua apropriao e legitimao. A prova de redao,que durante muito tempo privilegiou quase exclusivamente o texto dissertati-vo-argumentativo, em torno dos chamados temas nobres, vem, atualmente,orientando-se por novos rumos, em consonncia com as aspiraes consubs-tanciadas nos PCN para o Ensino Mdio e Fundamental.

    Vejamos, a ttulo de ilustrao, alguns trechos a respeito dessa nova orien-

    tao contidos no Manual do Aluno do Vestibular UFF 2007 (grios nossos):

    As propostas de redao buscam privilegiar a variedadediscursiva que est presente no cotidiano, nos meiosexpressionais encontrados no texto jornalstico (edito-rial, reportagem, ensaio, crnica, cartas do leitor, charges,

    quadrinhos, etc.), no texto literrio, no texto cientfco,no texto didtico, no texto da Internet, no texto publi-citrio - motivadores e acionadores do conhecimento demundo dos candidatos.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

    A prova de Redao estar, pois, de acordo com o que se deseja

    de um aluno ao nal do ensino mdio: que possa opinar sobre

    assunto compatvel com seu conhecimento de mundo, no re-

    gistro de lngua adequado situao contextualizada.

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    Se o ensino superior etapa subseqente ao Ensino Mdio, como des-considerar os objetivos gerais deste? Como, numa prova de avaliao para

    ingresso na universidade, ignorar os propsitos pedaggicos que orientaram,pelo menos, onze anos de ormao acadmica dos candidatos? Assim, nosdias de hoje, para que os alunos tenham xito na prova de redao do vesti-bular, no somente necessrio o conhecimento da variante padro escrita. preciso o domnio de usos populares e cotidianos; de modos especcos deexpresso, como os da mdia, da literatura, da linguagem tcnico-cientca;de estratgias prprias das modalidades alada e escrita; de gneros textuais

    diversos. Ou seja, os alunos so avaliados em termos da utilizao eciente detodo um aparato capaz de demonstrar versatilidade e competncia no uso dasvariantes do portugus, incluindo-se nesse rol usos mais prestigiados e menosprestigiados.

    Com base nesses undamentos, as propostas de redao do Vestibular daUFF nos dois ltimos anos, procuraram avaliar tal nvel de competncia. Em2005, as duas opes de redao baseavam-se em um cartum de Miguel Paiva,da srie Os namorados da minha flha. As partir das situaes apresentadas no

    texto, que giravam em torno das personagens de uma menina, seu pai e ummenino pretendente mo da lha (o Pivetinho, o Pit boy, o Rico, o Filhinhode Papai ou o CDF), os candidatos deveriam optar entre apresentar ao pai damenina um dos pretendentes, com a observncia de seus traos caractersticos,inclusive os de linguagem (Proposta 1) ou, numa outra alternativa, assumin-do a identidade do pai da menina, redigir uma carta lha, apontando seupreerido para genro, com a explicitao dos motivos da escolha (Proposta

    2). Nas duas propostas, os candidatos deveriam elaborar um resumo, para oqual havia espao especco na olha de resposta, com a sntese do que seriaproduzido. Assim, ambas as propostas traziam em seu comando a solicitaode uma produo escrita que levava em conta a questo do conhecimento e dodomnio da diversidade lingstica, da elaborao de gneros textuais diversos,da tomada de outras vozes discursivas, enm, da competncia lingstica.

    Em 2006, numa outra verso, oi mantido esse oco em prol da variabi-lidade lingstica. Agora com trs opes e no mais a solicitao de resumo,

    os candidatos puderam optar entre: redigir uma narrativa centrada numa daspersonagens populares de uma charge de Lan (Proposta 1); redigir uma carta,

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    128 Oliveira, Mariangela Rios de. Preconceito lingstico, variao e o papel da Universidadecontrolando as estratgias lingsticas em uno da seleo do destinatrio,com a avaliao das disciplinas cursadas pelo candidato no Ensino Mdio(Proposta 2); redigir um texto com base em poema de Mrio Quintana acerca

    das distintas linguagens na construo do mundo (Proposta 3). Como sepode observar, o leque de alternativas oi amplo o suciente para permitir aocandidato a produo do texto de acordo com registro, gnero e temtica deseu interesse, contemplando vrios modos especcos de produo.

    Na verdade, o atual perl da prova de redao tem tido repercussesdistintas. De modo um tanto surpreendente, a nova orientao vem causan-do, principalmente no magistrio do Ensino Mdio, certo estranhamento,

    e, por que no dizer, por vezes, at mesmo rustrao, desconorto e descon-tentamento, como se a universidade brasileira estivesse abrindo mo de umpatrimnio, de um bem maior, raro e caro, que deveria cuidar e guardar comcarinho a exigncia do texto padro, na lngua padro e no ormato padro.Mas consideramos que o choque e a surpresa tm prazo de validade. Estamosapostando na abertura de perspectivas, na legitimao do manejo eciente dadiversidade lingstica que a prova de redao dever avaliar, sem aplicaode juzo de valor acerca desses usos, apenas observando se esto adequados

    situao comunicativa solicitada no comando da questo e selecionada pelocandidato para sua produo textual.

    Em nosso entendimento, ao optar rancamente por propostas de redaoque avaliam a variabilidade de expresso, em termos de gnero textual, deregistro, de modalidade, entre outros quesitos, est a universidade brasileiraabsolutamente coadunada com os objetivos gerais para os demais nveis deensino no Brasil. Ao propor explicitamente, seja no manual do candidato,

    seja no comando da redao, a considerao dos diversos usos da lngua quecirculam na comunidade nacional, o ensino universitrio espera, por outrolado, concorrer para a ormao plena da cidadania, que tem, na questo dopreconceito lingstico, ainda muitas barreiras a superar. Esta , pois, nossacontribuio.

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    129Cardernos de Letras da UFF Dossi: Preconceito lingstico e cnone literrio, no 36, p. 115-129, 1. sem. 2008

    ABSRAC: Linguistic prejudice in the context o the

    Portuguese language in Brazil. Variety and sociolin-

    guistics. Some current traditional linguistic prejudices

    in brazilian society - myths and belies. Te role o te-aching and, more specically, the university role, when

    approaching and overcoming linguistic prejudice.

    KEY-WORDS: linguistic prejudice; variety; university.

    Recebido em 13/02/2008

    Aprovado em 05/06/2008