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COELHO, I. L.; GÖRSKI, E. M. A variação no uso dos pronomes tu e você em Santa Catarina. In: LOPES, C.; REBOLLO, L. (orgs.) Formas de tratamento em Português e Espanhol: variação, mudança e funções conversacionais. Rio de Janeiro (no prelo)

A VARIAÇÃO NO USO DOS PRONOMES TU E VOCÊ EM SANTA CATARINA

Izete Lehmkuhl Coelho (UFSC/CNPq) Edair Maria Görski (UFSC)

Introdução

Neste trabalho, descrevemos a variação pronominal de segunda pessoa (tu e você), a partir de dados sincrônicos e diacrônicos do português do sul do Brasil, especialmente da variedade usada em Santa Catarina, com o intuito de compreender a natureza e a extensão do encaixamento dos dois pronomes tu e você no sistema lingüístico dessa comunidade. Levamos em consideração o princípio empírico de encaixamento lingüístico proposto por Weinreich, Labov e Herzog (WLH, 1968), segundo o qual para compreendermos uma mudança lingüística devemos considerar sua inserção no sistema lingüístico que ela afeta. Partimos dos seguintes objetivos complementares: (i) descrever o processo de implantação dos dois pronomes (tu e você) e sua progressiva expansão no estado de Santa Catarina, observando que regiões foram afetadas por essa entrada; (ii) averiguar qual a natureza do encaixamento dos pronomes e os limites desse encaixamento na estrutura lingüística; (iii) observar se a entrada dos pronomes provocou (ou está provocando) variação/mudança no uso de outros pronomes (possessivos e clíticos) e em outros fenômenos lingüísticos como preenchimento do sujeito pronominal e ordem do sujeito.

Essa investigação tenciona abrir questionamentos a respeito dos principais condicionadores da variação no uso dos pronomes tu e você; das possibilidades de co-presença em um mesmo falante ou em uma comunidade, de gramáticas (ou normas) ou subsistemas em competição; e dos possíveis encaixamentos da variação e mudança pronominal das formas tu e você na estrutura interna da língua, isto é, de possíveis reações em cadeia.

Muitos trabalhos já descreveram a variação pronominal de segunda pessoa do singular no português do Brasil. Dos que servem como ponto de partida para a nossa discussão, interessam-nos em especial aqueles que trazem reflexões sobre o português do sul do Brasil. Alguns trabalhos já apontam que os pronomes tu e você entraram em Santa Catarina em lugares e momentos históricos diferentes, via contato (FURLAN, 1989): enquanto tu entra nas regiões litorâneas, você entra nas regiões do planalto. Outros, que a entrada do você em comunidades de tu estaria levando a uma especialização das formas pronominais: tu estaria sendo preferencialmente usado nas relações íntimas e menos formais, e você, nas relações inter-pessoais não tão íntimas e mais formais (RAMOS, 1989; MENON; LOREGIAN-PENKAL, 2002). Outros dizem que a entrada do você estaria levando a novas possibilidades combinatórias (você com teu, te), em direção ao que as gramáticas normativas chamam de “mistura de tratamento” (MENON; LOREGIAN-PENKAL, 2002; LOPES, 2008). E, ainda, outros consideram que o enfraquecimento do sistema de flexões verbais decorrente da entrada do você que se combina com verbo de terceira pessoa instala na língua gradativamente uma tendência ao preenchimento do sujeito (DUARTE, 1995; LOREGIAN-PENKAL, 2004) e ao enrijecimento da ordem sujeito-verbo-objeto (SVO) (COELHO, 2006; COELHO et al. 2006).

A partir das considerações de que (i) os pronomes tu e você são bastante usados na fala de Santa Catarina; (ii) tu é usado majoritariamente nas regiões litorâneas (no caso, Florianópolis) e se combina com formas verbais distintas (foste/fosse/foi); (iii) você é mais freqüente nas regiões do planalto serrano (no caso, Lages), levantamos as seguintes hipóteses correlacionadas:

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(i) A chegada do você no litoral (em uma comunidade de tuteamento) provoca um rearranjo no sistema lingüístico da comunidade da grande Florianópolis: enquanto tu é usado preferencialmente no vernáculo, nas relações familiares (de solidariedade), você é usado nas situações de monitoramento e nas relações de poder.

(ii) Os dois (sub)sistemas começam então a competir: o (sub)sistema de tuteamento e o (sub)sistema de voceamento.

(iii) Acompanhado de formas verbais de terceira pessoa (não distintivas), você instala na língua uma tendência ao uso do possessivo seu e ao uso dos clíticos se e lhe para se referirem à segunda pessoa do discurso. Tu e você, então, começam a se combinar com formas “misturadas” como teu/seu, te/lhe, por exemplo.

(iv) A implantação do você nas regiões litorâneas também leva a um aumento do preenchimento do sujeito pronominal e ao enrijecimento da ordem SVO (como se fosse uma reação em cadeia, uma mudança que leva à outra e que leva à outra).

Este capítulo se compõe de quatro seções, além da introdução, na qual expusemos os

objetivos deste trabalho bem como as questões e hipóteses mais gerais. Na seção a seguir, apresentamos um pouco da história da colonização de Santa Catarina, com ênfase no contato lingüístico com os açorianos e com paulistas. Na seqüência, trazemos alguns resultados estatísticos de diferentes trabalhos que já investigaram a variação dos pronomes tu e você na fala da região Sul do Brasil, como ponto de partida para o estudo diacrônico e as reflexões que se seguem. Na terceira seção, tencionamos expor resultados estatísticos sobre o uso desses pronomes em peças de teatro catarinenses escritas nos séculos XIX e XX e discutir possíveis mudanças correlacionadas a esse uso. E, na quarta seção, tecemos algumas considerações finais. 1 Um pouco de história sobre a colonização de Santa Catarina

Para tentar entender a natureza e extensão do uso dos pronomes tu e você em Santa Catarina, é necessário conhecer um pouco da história da colonização desse estado. Com esse intuito, apresentamos, a seguir, algumas informações a partir de registros históricos e dialetológicos.

À época do “descobrimento” do Brasil, Santa Catarina, como o restante do país, também era habitada por indígenas1. Ao longo do século XVI, várias expedições portuguesas e espanholas passaram pelo litoral catarinense – pelos portos de São Francisco, Ilha de Santa Catarina e Laguna (regiões cujo domínio era disputado por Portugal e pela Espanha) –, mas as tentativas de povoamento nessas localidades não se firmaram nesse período. No século XVII, Portugal, a partir de 1640, passou a se interessar pela conquista do Sul do Brasil com vistas ao acesso ao rio da Prata; e as povoações localizadas em São Francisco, Ilha de Santa Catarina e Laguna (SC) – juntamente com o forte Jesus, Maria, José, hoje a cidade de Rio Grande (RS) – formaram as bases para os projetos de fixação portuguesa na bacia do Prata. A Ilha de Santa Catarina tornou-se local politicamente estratégico e, objetivando a fortificação da região, Portugal determinou que Silva Paes para cá viesse, em 1739, como comandante militar e

1 O litoral era habitado por índios Carijó, com quem os europeus entraram em contato em meados de 1500; o planalto, por Kaingang; e as florestas entre o litoral e o planalto, por Xokleng – os primeiros pertencentes ao tronco Tupi-Guarani e os dois últimos ao tronco Jê. Os três grupos ainda hoje vivem no estado catarinense. (SANTOS, 2004, p. 22)

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governador, com a incumbência de implantar um sistema de defesa da Ilha2. “Começava a era do povoamento.” (SANTOS, 2004, p. 22-40)

Paralelamente, no século XVII, paulistas, que vinham para o sul em busca da captura de índios para vendê-los como escravos, e também da exploração de minas, começaram a se fixar no litoral catarinense, formando focos de povoação distribuídos pelas três regiões litorâneas acima mencionadas. Durante o século XVIII, com a consolidação da exploração das minas, o abastecimento da população (que não se dedicava à agricultura e à pecuária) era feito pelos tropeiros, que percorriam as trilhas de ligação das diversas localidades fazendo comércio e levando/trazendo notícias. O gado era trazido do Rio Grande do Sul para ser vendido na região sudeste, de início passando pelo porto de Laguna e sendo enviado em barcos para São Paulo, percorrendo, assim, um caminho litorâneo3; posteriormente, passando pela região do planalto serrano catarinense4 e por Curitiba até chegar às capitanias centrais do Brasil5 (principalmente São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro) para servir como meio de transporte. Com essa facilitação de acesso, desviando-se o percurso do litoral para a região serrana, o comércio de gado se intensificou no decorrer do século XVIII, e, em 1771, o governador da capitania de São Paulo determinou a fundação de uma vila junto à estrada de tropas, a vila de Lages6, que era um dos pontos de pouso das tropas e se tornou o centro irradiador do povoamento do planalto de Santa Catarina. Esse povoamento se deu com duas levas: a primeira constituída por paulistas e a segunda por gaúchos oriundos principalmente de Vacaria e Passo Fundo. Por um longo período, as ligações econômicas, culturais e demográficas de Lages foram mais intensas com os paulistas e gaúchos do que com as populações do litoral catarinense. (SANTOS, 2004, p. 43-45; BRANCHER; AREND, 2001, p. 15-17)

Assim, ao longo do século XVIII, enquanto no planalto catarinense a expansão interiorana se dava em torno do comércio do gado com a confluência de paulistas e gaúchos, no litoral, a expansão do povoamento7 deveu-se às disputas políticas entre Portugal e Espanha. Em meados desse século, Portugal promoveu a emigração de açorianos para a Ilha de Santa Catarina (e também para o litoral fronteiro e Rio Grande/RS), com o intuito de garantir a infra-estrutura para sustentação das tropas militares empenhadas no domínio expansionista do sul do Brasil. Entre 1748 e 1756, cerca de 5.0008 pessoas foram transferidas do Arquipélago dos Açores para Santa Catarina. (SANTOS, 2004, p. 47-51) 2 A guerra iniciada na Europa (entre Portugal e Inglaterra de um lado e Espanha e França de outro) também chegou à América do Sul. Em 1777, uma esquadra espanhola invadiu e conquistou a Ilha de Santa Catarina. Nesse mesmo ano, porém, o Tratado de Santo Ildefonso, assinado entre Portugal e Espanha, colocou um fim ao domínio espanhol na Ilha. (SANTOS, 2004, p. 60)

3 O caminho pelo litoral unia a colônia do Sacramento a Rio Grande, Laguna, Ilha de Santa Catarina, São Francisco, Paranaguá e Santos. Como era um caminho muito lento, por conta dos rios e das cheias, foi pouco utilizado. 4 Estudos mostram que até o século XVII o planalto serrano catarinense foi alvo de muitos conflitos entre as diversas bandeiras e os índios. A região foi drasticamente despovoada. Os índios eram levados a São Paulo e vendidos. 5 O trajeto compreendido entre a campanha gaúcha (Passo Fundo e Vacaria), passando pelo planalto catarinense (Lages, Campos Novos e Curitibanos) e pelos campos do Paraná (Palmas, Guarapuava, Palmira e Curitiba) até Sorocaba, ficou conhecido como o “caminho das tropas”. Por esse caminho se formou um longo curso de fazendas de criação de gado. (BRANCHER; AREND, 2001) 6 A vila de Lages permaneceu sob a jurisdição de São Paulo desde sua fundação (em 1771) até 1820, quando o rei de Portugal determinou que fosse incorporada ao território de Santa Catarina (SANTOS, 2004, p. 45). 7 O povoamento do litoral catarinense teve início, de fato, com o primeiro caminho dos tropeiros, iniciado por paulistas de São Vicente já em 1640, e que deixou, à época, um contingente pequeno de pessoas (pouco mais de 4.000) em Santa Catarina.

8 Mais de 6.000, se considerados também os madeirenses (PIAZZA, 1983 apud FURLAN, 1989, p. 33).

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A chegada dos açorianos a Santa Catarina, fixando-se nas regiões litorâneas desde São Francisco até o sul de Laguna passando pela Ilha de Santa Catarina, provocou um aumento populacional de mais de 100% e caracterizou definitivamente a região. Na Ilha, logo no início, fundaram-se freguesias como Rio Vermelho, Rio Tavares e Ratones que aos poucos foram progredindo. No entanto, os limites impostos pelo contexto político que ocasionou a emigração e pelas características da terra, pouco propícia à agricultura, fizeram com que as atividades econômicas ficassem voltadas apenas para o mercado interno9. Os açorianos imprimiram traços socioculturais particulares na região que perduram até hoje.

No século XIX, com o interesse dos governos das províncias do sul do Brasil pelo desbravamento de grandes faixas de floresta para ocupação da terra, se afirmou a colonização européia. Em 1829 chegou a Santa Catarina a primeira leva de imigrantes alemães10; mais tarde vieram os italianos11 e também, em contingentes menores, outros povos como poloneses, russos e austríacos.

Do ponto de vista lingüístico, Santa Catarina sofreu forte influência de paulistas e gaúchos, principalmente na região do planalto serrano, e de açorianos nas regiões litorâneas12. Posteriormente, se desenvolveram, no interior do estado, algumas zonas de bilingüismo e línguas em contato, notadamente do alemão e do italiano com o português.

Furlan (1989, p. 36) comenta que os açorianos que povoaram Santa Catarina possivelmente eram analfabetos e trouxeram uma cultura vinculada a práticas e valores dos séculos XV e XVI. Entende-se que, junto dos valores culturais conservadores, trouxeram também formas lingüísticas como o /s/ palatalizado e os pronomes tu (para tratamento íntimo) e vós e Vossa Mercê (para tratamento respeitoso). Vale ressaltar que dados sobre os falares açorianos só são possíveis de levantar indiretamente, já que os estudos desses falares só começaram no final do século XIX e, os do falar açoriano-catarinense, apenas em meados do século XX (p. 55). Segundo os historiadores, até por volta de 1500, as duas únicas maneiras de se dirigir ao interlocutor no português arcaico eram o tuteamento familiar (tu) e o voseamento respeitoso (vós). Só por volta do final do século XVI é que as formas de Vossa Mercê começam a aparecer nos registros e já se encontram as variantes vocemecê, vancussê, vancê. Segundo Teyssier (1997, p. 89), “vossa mercê, ao mesmo tempo que passava a você por erosão fonética (vossa mercê> voacê> você), perdia, por erosão semântica, o seu valor de tratamento respeitoso, para assumir o de tratamento familiar. O você familiar aparece desde o século XVII”. Pelo que tudo indica, parece que essa mudança de tratamento não tinha afetado os açorianos quando vieram para o Brasil.

Por outro lado, paulistas que percorreram o caminho das tropas também deixaram suas marcas lingüísticas no falar do catarinense, pela transmissão de traços como, por exemplo, o

9 A ausência de uma economia de exportação justifica, segundo Santos (2004, p. 55), o não surgimento de nenhum grande mercado de escravos em Santa Catarina. A maioria dos escravos negros que vieram para essa região já era nascida no Brasil. 10 Os alemães foram localizados em São Pedro de Alcântara e, posteriormente, ao longo do Vale de Itajaí, formando as cidades de Blumenau e Joinville, entre outras. 11 Os italianos foram localizados na região centro-leste do estado, nos vales dos rios Tijucas e Tubarão, onde desenvolveram diversas colônias. Já a maior parte da população italiana que vive no oeste do estado, incluindo Chapecó, é descendente de imigrantes que passaram antes pelo Rio Grande do Sul (SPESSATTO, 2003). 12 No que se refere à comunidade açoriano-catarinense, convém salientar que até 1950 a comunicação com outros estados era basicamente por via marítima, e que a barreira da Serra do Mar só foi superada a partir da década de 1970, com a construção de vias asfaltadas ligando o interior do estado ao litoral. Isso mostra o relativo isolamento em que essa comunidade viveu durante bastante tempo. (FURLAN, 1989, p. 40)

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/r/ retroflexo e formas morfossintáticas como o pronome você. O rastro do você de Sorocaba ao planalto de Santa Catarina foi descrito e discutido por

Menon e Loregian-Penkal (2002). As autoras reforçam que a implantação de você no sul do Brasil deve ter acontecido como resultado da penetração dos paulistas, durante o período em que viajavam para comprar gado, atingindo primeiro Curitiba, passando pelo planalto catarinense (em regiões como Lages, por exemplo) e parte do Rio Grande do Sul (Vacaria). E essa transmissão ocorreu no mesmo momento em que se deu o povoamento dessas cidades, a partir da segunda metade do século XVIII.

Enfim, a colonização açoriana nas regiões litorâneas (especialmente Florianópolis) e a colonização paulista do planalto catarinense (especialmente Lages) começaram na mesma época – em meados do século XVIII. Como aponta Furlan (1989), junto dos valores culturais conservadores, os açorianos trouxeram também as formas pronominais tu (para tratamento íntimo) e vós, Vossa Mercê (para tratamento respeitoso). Já a influência paulista pode ser verificada, por exemplo, no uso do pronome você por falantes catarinenses do planalto serrano. Assim, temos, de um lado, o uso típico de tu nas regiões litorâneas; e de outro, o uso de você, que ainda é encontrado majoritariamente na região do planalto serrano. Essas marcas podem ser observadas nos dados do banco VARSUL13 referentes a regiões como Florianópolis e Lages, que serão comentados a seguir.

2 O encaixamento dos pronomes tu e você na fala dos catarinenses

Nesta seção, discutimos alguns resultados de estudos variacionistas levados a cabo por

Ramos (1989), Loregian-Penkal (2004) e Arduin (2005). O primeiro trabalho apresenta resultados referentes a uma coleta de fala, realizada pela própria autora na década de 1980, com falantes nascidos em Florianópolis. Os outros dois trabalhos trazem resultados de fala coletada na década de 1990, que se encontra armazenada no banco de dados do projeto VARSUL. Retomamos desses dois últimos trabalhos preferencialmente resultados de informantes nascidos em Florianópolis e em Lages. Para efeitos da discussão pretendida, comentaremos por último os resultados de Ramos. Para falar da variação no uso dos pronomes tu e você apresentamos, inicialmente, um mapeamento feito por Loregian-Penkal (2004) com base no banco de dados do VARSUL a respeito do número de informantes que têm em seu vernáculo somente o sistema pronominal tu, outros que têm apenas o sistema você e ainda aqueles que se utilizam de dois sistemas pronominais (tu e você) para se referir a seu interlocutor. A autora constata que a variação entre os pronomes está inserida no sistema (ou nos sistemas) das localidades estudadas. Vejamos agora alguns resultados dessa pesquisa.

Regiões Somente tu Somente você Tu e você Florianópolis 13 01 10 Porto Alegre 14 01 09

Curitiba - 24 -

Total 27 26 19

Tabela 1: Resultados referentes ao número de informantes que usam os pronomes tu e você nas três capitais do sul do Brasil, segundo Loregian-Penkal (2004, p. 121)

Os resultados sobre os usos dos pronomes tu e você já apontam para as diferentes

13 Variação Urbana na Região Sul do Brasil.

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colonizações dessas regiões. Observa-se que, enquanto em Curitiba (de colonização paulista) os 24 informantes apresentam categoricamente a forma você, em Porto Alegre 14 informantes só usam a forma tu e 09 alternam tu/você. Esse último padrão também se apresenta em Florianópolis, com 13 informantes só usando tu e 10 alternando tu/você para representar a segunda pessoa do singular. Confrontando esse último padrão com aquele encontrado na região de Lages (tabela 2), já podemos observar uma grande diferença: enquanto em Florianópolis há apenas um entrevistado que usa somente você para se referir à segunda pessoa do discurso, em Lages há apenas um entrevistado que usa somente tu. Por outro lado, enquanto 13 informantes de Florianópolis usam apenas tu, 06 informantes de Lages fazem uso exclusivo de você, de acordo com os resultados apresentados na tabela 2.

Regiões Somente tu Somente você Tu e você Florianópolis 13 01 10

Lages 01 06 17

Total 14 07 27

Tabela 2: Resultados referentes ao número de informantes que usam os pronomes tu e você em Florianópolis e Lages (SC), segundo Loregian-Penkal (2004, p. 122)

Tomando as formas tu e você como variantes de uma mesma variável (segunda pessoa

do discurso), Loregian-Penkal constatou que em Lages, além de 06 informantes usarem exclusivamente você, o número de ocorrências de você é significativamente maior do que de tu (85% contra 15%), enquanto em Florianópolis, 13 informantes usam exclusivamente tu e o número de ocorrências desse pronome supera em muito o você (76%, contra 34%), como podemos observar na tabela 3.

Regiões Pronome tu

Apl/Total = % Pronome você Apl/Total = %

Florianópolis 585/767 = 76% 182/767 = 34% Lages 189/1.225 = 15% 1.036/1.225 = 85% Total 774/1.992 = 39% 1.218/1.992 = 61%

Tabela 3: Resultados referentes ao percentual de uso dos pronomes tu e você em Florianópolis e Lages (SC), segundo tabela adaptada de Loregian-Penkal (2004, p. 210)

Os resultados da tabela atestam que os pronomes tu e você são usados diferentemente

nas regiões litorânea e do planalto de Santa Catarina. Essa diferença pode ser correlacionada à entrada dos diferentes pronomes de segunda pessoa no contexto social dessas regiões: de um lado o sistema de tuteamento, introduzido em Florianópolis pelos açorianos14; de outro lado o sistema de voceamento, introduzido em Lages pelos paulistas, no caminho dos tropeiros. Os resultados estatísticos são evidências positivas para se dizer que tu deve ter sido o pronome adquirido pelos florianopolitanos e você deve ter sido o pronome majoritariamente usado pelos lageanos. Mas outros fatores precisam também ser considerados. Além da colonização açoriana, Florianópolis, a partir da década de 1960, passou a receber pessoas de diferentes regiões do Brasil, em decorrência da criação da primeira Universidade Pública e da chegada

14 Em Ribeirão da Ilha, bairro localizado ao sul da Ilha de Santa Catarina e uma das mais antigas freguesias/comunidades de Florianópolis, marcadamente identificada pela cultura açoriana (a primeira ser habitada ainda no século XVI pelos índios Carijós), o percentual de uso de tu em oposição a você chega a 96% (LOREGIAN-PENKAL, 2004, p. 133).

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da Eletrosul.15 Em Lages, houve também a presença forte dos gaúchos, no ir-e-vir dos tropeiros16, o que nos leva a acreditar que não só os tropeiros vicentinos, mas também os gaúchos, deixaram suas marcas lingüísticas nessa região, embora a influência paulista tenha sido predominante. A tabela 1 ilustra a presença marcante de tu na fala de Porto Alegre (14 informantes com somente tu e 09 com tu e você). Já a tabela 2 mostra que em Florianópolis 13 informantes usam somente tu e 10 tu e você; ao passo que em Lages, 06 informantes usam só você e 17 você e tu. Esse resultado pode ser interpretado como indício do fluxo e do contra-fluxo que caracterizou a colonização de Florianópolis e de Lages.

As ocorrências (1) e (2) ilustram o uso de tu e você em Florianópolis e Lages, respectivamente.

(1) Que eu não agüentava ver mais nada quebrado dentro de casa. Não dava. Aí eu peguei e disse pra ele: “Oh, essa foi a última vez que tu me deu esse pontapé.” Aí começamos a discutir, e eu disse: “pega tudo o que é teu e tu vai sair daqui agora”. Porque se tu não sair por bem tu vai sair por mal. (FLP03)

(2) Porque eu era uma guria que não saía de casa nem nada, o que é que tinha acontecido, né? Daí eu falei pra ela (mãe) assim: "Não, é porque a tia Ana falou que eu não sou sua filha." Ela ficou bem louca, ficou bem atentada, sabe? com a minha tia assim, sabe? Queria ir lá brigar com a minha tia e coisa e tal. Daí ela me contou a história. Daí ela me contou, ela disse assim: "Olha, então já que você sabe, então vou te contar. Você não é minha filha mesmo, mas eu te quero muito mais bem do que o meu próprio filho. [Você] eu te peguei pequenininha e vocês são em cinco irmãos. [E a] [e a tua mãe] o teu pai ficou doente, foi para o hospital em Curitibanos, né? E daí que ele morreu lá." (LAGES01)

Em regiões em que o tu era o pronome adquirido em casa para ser referir à segunda

pessoa do discurso, o você entrou posteriormente, começando a concorrer com o tu; em contrapartida, em regiões em que você era o pronome adquirido em casa, o tu deve ter entrado posteriormente. Nesse caso, o uso dos dois pronomes começa a ser marcado estilisticamente.

Além dessa distribuição da freqüência de uso dos pronomes, Loregian-Penkal (2004) mostra alguns condicionadores internos do uso das formas de tu e você, como ‘variação na concordância verbal’ e ‘retenção do sujeito’, que apresentamos nas tabelas 4 e 5, abaixo.

Regiões

Marcação da concordância verbal

Apl/Total = %

Não marcação da concordância verbal

Apl/Total = % Florianópolis 251/585 = 43% 334/585 = 57%

Lages 27/189 = 14% 162/189 = 86% Total 278/774 = 36% 496/774 = 64%

Tabela 4: Resultados referentes ao percentual de concordância verbal de segunda pessoa em Florianópolis e Lages (SC), segundo tabela adaptada de Loregian-Penkal (2004, p. 208)

Os resultados de Loregian-Penkal confirmam que a concordância verbal com a forma

15 É possível que já tenha ficado algum vestígio de você na Ilha por conta da fixação de paulistas nas três regiões litorâneas (séc. VXII) e da passagem dos tropeiros pelo caminho litorâneo (século XVIII). 16 O percentual de uso de tu no RS é bem alto (Porto Alegre = 93%; São Borja = 94%; Flores da Cunha = 83%; Panambi = 84%), mais do que em Florianópolis = 76%. (LOREGIAN-PENKAL, 2004, p. 210).

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tu é significativamente mais marcada em Florianópolis (43%) do que em Lages (14%). Esse fato, segundo a autora, está relacionado a uma preferência a não retenção do pronome em Florianópolis17, em contraposição a Lages.

Observemos agora resultados concernentes à região Sul (Curitiba, Florianópolis e Porto Alegre) sobre a correlação entre concordância e retenção do sujeito pronominal de segunda pessoa, de acordo com Loregian (1996).

Correlação entre retenção do pronome tu e concordância

verbal

Apl/Total Percentual

Sem pronome explícito 303/630 48% Pronome explícito

imediatamente antes do verbo 273/1.188 23%

Pronome explícito com material interveniente

66/282 21%

Total 642/2.100 31%

Tabela 5: Resultados percentuais referentes à correlação entre marca de flexão de segunda pessoa no verbo e retenção do sujeito tu na região Sul do Brasil, segundo Loregian (1996, p. 52)

Os resultados da tabela 5 mostram que há uma freqüência menor de marcas de

concordância verbal com o pronome tu quando o pronome estiver explícito, como os exemplos abaixo ilustram, confirmando os trabalhos de Duarte (1995). (3) a. (...) é uma carta que (tu) puxas do monte,tu bate∅, aí tu fica∅ com dez pontos (FLP10)

b. Tem uns barzinho pra tu fica∅ se (tu) não queres vê o show, depois tu vai∅ pra ali e (tu) ficas tomando cervejinha (FLP33)

Vimos, até aqui, o encaixamento das formas pronominais tu e você com a concordância verbal e com a retenção do sujeito. Passamos, agora, a examinar os resultados de Arduin (2005) concernentes à correlação entre essas formas e o uso dos possessivos de segunda pessoa. A autora encontrou um total de 86% de uso de teu, contra apenas 14% de seu nas regiões em que se constata variação entre os pronomes tu e você. Esses resultados se distribuem da seguinte forma nas diferentes localidades de Santa Catarina que estão sendo discutidas neste trabalho:

Localidade Aplicação/total Percentual Florianópolis 77/91 85%

Lages 59/73 81% Total 136/164 82

Tabela 6: Freqüência de uso do possessivo teu de acordo com a variável ‘localidade’, segundo Arduin (2005, p. 113)

Ao encontrar um número significativo de teu, a autora resolveu correlacionar esse uso

17 Merece destaque o fato de que, em Ribeirão da Ilha (ver nota 14), há um uso ainda mais acentuado de marca de flexão de segunda pessoa (60%) do que em Florianópolis (43%), que é região urbana central; e também predominância de sujeito nulo. Esse resultado leva Loregian-Penkal (2004, p. 151) a considerar que a marca identitária do falante dessa comunidade não é a presença do tu, mas a marca de flexão verbal de segunda pessoa; enquanto a marca de identidade do gaúcho seria principalmente o uso do pronome tu.

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COELHO, I. L.; GÖRSKI, E. M. A variação no uso dos pronomes tu e você em Santa Catarina. In: LOPES, C.; REBOLLO, L. (orgs.) Formas de tratamento em Português e Espanhol: variação, mudança e funções conversacionais. Rio de Janeiro (no prelo)

com os pronomes tu e você e os resultados podem ser observados na tabela 718.

Paralelismo formal Aplicação/total Percentual Teu com sujeito tu 143/144 99% Teu com vocativo 18/21 86% Teu com sujeito nulo 136/176 77% Teu com sujeito você 59/74 80% Total 356/415 86%

Tabela 7: Freqüência e probabilidade de uso do possessivo teu de acordo com a variável ‘paralelismo formal’, segundo Arduin (2005, p. 91)

Enquanto o pronome tu é usado preferencialmente com formas possessivas de segunda

pessoa (teu), em 99% dos casos, o pronome você apresenta apenas 20% de uso com seu, combinando-se com formas possessivas de teu/tua em 80% dos casos. Essa mistura de formas pode ser observada no exemplo (2), em que o pronome você combina-se com formas como te e teu/tua.

Arduin mostra que o uso dos possessivos está correlacionado ao uso dos pronomes pessoais, não só do ponto de vista do encaixamento desses pronomes na estrutura lingüística (com você empurrando o possessivo seu para a segunda pessoa), mas também na estrutura social, considerando-se as relações de poder e de solidariedade19 nas comunidades em que há as duas formas para se dirigir ao interlocutor (T e V) 20. Como pode se constatar a partir dos resultados da autora, você (V) é a forma de mais respeito ou distanciamento e tu (T) é a forma usada preferencialmente para indicar maior proximidade e intimidade. Observemos então os resultados a respeito do uso estilístico dos pronomes possessivos teu e seu.

Fatores Aplicação/ total Percentual

De superior para inferior 87/96 91% Entre iguais 62/68 91%

De inferior para superior 11/25 44% Total 160/189 85%

Tabela 8: Freqüência e probabilidade de uso do possessivo teu de acordo com a variável ‘relações simétricas/assimétricas entre os interlocutores’, segundo Arduin (2005, p. 95)

Os resultados de Arduin mostram que, ao se dirigir ao inferior, a forma mais utilizada

pelo superior é teu, o que pode ser interpretado como um indício de poder; na relação entre iguais, a forma mais utilizada é a solidária teu; e no caso de inferiores se dirigindo aos superiores, a forma mais utilizada é seu, indicando, provavelmente, respeito e formalidade. Acredita-se que essa diferença mostra que o possessivo seu é mais formal e expressa maior respeito em relação ao interlocutor, e, por conseqüência, maior uso na relação assimétrica de inferior para superior. O possessivo teu representa a forma solidária, usada entre iguais, e a forma de poder usada na relação de superior para inferior.

18 No trabalho de Arduin (2005) só foram controladas as ocorrências dos pronomes tu e você nas entrevistas em que houve ocorrências dos pronomes possessivos. 19 Solidariedade é o nome que se dá a uma relação geral simétrica, pois é utilizada entre colegas, pessoas com idades próximas, de mesma profissão etc. 20 Para discutir essas relações de poder e de solidariedade, Arduin retoma a discussão de Brown e Gilman (2003), segundo a qual sempre que em uma situação de diálogo houver uma pessoa que detém maior prestígio ou poder, isto é, quando existir relação assimétrica, haverá tratamento não-recíproco, o superior se dirigirá ao inferior por T e será tratado por V. Existem muitas bases de poder: maior força física, maior poder econômico, idade mais avançada, sexo diferente, papel institucionalizado da igreja, do estado, do exército ou da família (BROWN; GILMAN, 2003, p. 158).

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Na ocorrência (4), pode-se notar que quando a informante se reporta à sua fala se dirigindo à mãe (inferior para superior), utiliza a variante seu; depois, ao se reportar à fala de sua mãe dirigindo-se a ela (superior para inferior), utiliza a variante teu. (4) Porque eu era uma guria que não saía de casa nem nada, o que é que tinha acontecido, né? Daí eu

falei pra ela (mãe) assim: "Não, é porque a tia Ana falou que eu não sou sua filha." Ela ficou bem louca, ficou bem atentada, sabe? com a minha tia assim, sabe? Queria ir lá brigar com a minha tia e coisa e tal. Daí ela me contou a história. Daí ela me contou, ela disse assim: "Olha, então já que você sabe, então vou te contar. Você não é minha filha mesmo, mas eu te quero muito mais bem do que o meu próprio filho. [Você] eu te peguei pequenininha e vocês são em cinco irmãos. [E a] [e a tua mãe] o teu pai ficou doente, foi para o hospital em Curitibanos, né? E daí que ele morreu lá." (LAGES01)

Quando, porém, se reporta à fala de sua irmã (entre iguais), a informante utiliza a

variante teu, como o dado (5) ilustra: (5) Eu e as duas irmãs minhas brincávamos. Aí eu chamava a minha mãe e ela dizia: "Essa

aqui não é a tua mãe. Tua mãe é minha mãe." (LAGES01L271)

Ocorrências como essas atestam que teu e seu apresentam diferenças estilísticas (pelo menos em algumas regiões do Brasil). Os exemplos corroboram também a hipótese de Menon (1996), segundo a qual o que está em jogo na variação dos pronomes pessoais e possessivos de segunda pessoa são os aspectos de familiaridade, respeito e formalidade.

Essa distribuição estilística entre as formas de tuteamento e de voceamento já fora tratada por Ramos (1989)21. A autora analisou as formas de tratamento para segunda pessoa em Florianópolis – quanto ao uso das formas em variação e quanto à resistência da marca de flexão no verbo de segunda pessoa. A autora fez diferentes coletas (entrevistas e testes de atitude sobre as formas em variação) e chegou a resultados bastante significativos, que estão mostrados na tabela 9.

Tabela 9: Resultados referentes às formas de tratamento, encontradas na fala de informantes de Florianópolis, segundo Ramos (1989, p. 49)

As 89 formas de tu (20%), segundo a autora, são usadas preferencialmente no trato

familiar e se distribuem da seguinte maneira: (i) 18 casos de tu com flexão verbal (04%); (ii) 27 casos de tu sem flexão verbal (06%); e (iii) 44 casos de tu com sujeito nulo (10%). As 132 formas de você são, em geral, estilisticamente marcadas; e as 171 formas de grau zero

21 Ramos (1989) analisou dados de 36 informantes florianopolitanos; dois textos literários de escritores catarinenses, quais sejam, O fantástico na Ilha de Santa Catarina, de Franklin Cascaes, e Arca Açoriana, de Almiro Caldeira; além de um questionário de atitudes. A coleta de dados foi feita mediante a apresentação de 10 fotografias de pessoas em seu local de trabalho e de pessoas surpreendidas na rua. A partir daí o informante deveria fazer uma pergunta para um suposto interlocutor.

Fatores Zero Tu você O senhor

Florianópolis

171/427 = 40%

89/427 = 20%

132/427 = 31%

39/427 = 09%

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aparecem como uma maneira de o falante evitar qualquer uma das outras formas de tratamento que possam comprometê-lo tanto com a semântica do poder quanto com a de solidariedade. Seria a ausência total de qualquer forma de tratamento do informante ao se dirigir ao interlocutor, como em: Ei, ei, moço! Que horas tem? (RAMOS, 1989, p. 54).

Para estudar se o uso dos diferentes pronomes era estilisticamente marcado em Florianópolis, Ramos aplicou um questionário (teste de atitude) aos entrevistados. Seu objetivo era de verificar se o uso das diferentes formas pronominais (tu e você) estaria relacionado ao tipo de conversa ou ao tipo de interlocutor, se havia preferência de uso das diferentes formas (ou não). Os resultados levaram a autora a reunir as seguintes características gerais sobre as opiniões dos entrevistados:

• TU - é usado pelos ilhéus, preferencialmente em situações mais íntimas e mais familiares. É informal, coloquial, desrespeitoso e rude. • VOCÊ – é uma influência de fora e é mais usado com estranhos, em situações mais formais e distantes. É correto, respeitoso, bonito e educado.

A autora verifica, portanto, mediante testes de atitude, que informantes

florianopolitanos atribuem ao tu um caráter mais íntimo, familiar, rude, informal, coloquial e desrespeitoso e ao você um caráter mais distante, bonito, educado, formal, correto, respeitoso, sendo esta a forma mais utilizada com estranhos.

Ratificam essa conclusão a que Ramos chega sobre a marcação estilística das formas tu e você, os trabalhos de Menon e Loregian-Penkal (2002). Para as autoras, na região sul, em que há variação pronominal, enquanto tu é freqüentemente usado quando o interlocutor é íntimo ou familiar (mantendo seu uso original), você é utilizado como pronome de segunda pessoa quando o interlocutor é um desconhecido ou uma pessoa mais velha.

Enfim, a hipótese sobre o uso estilisticamente marcado das formas tu e você se correlaciona à (as)simetria das relações encontrada por Arduin (2005) quanto aos pronomes possessivos de segunda pessoa: (i) as formas tu e teu são, em geral, usadas nas relações de solidariedade e de intimidade; (ii) as formas senhor(a), do(a) senhor(a) são usadas em situações mais formais e menos solidárias; (iii) as formas você e seu estariam em um estágio intermediário entre a formalidade das últimas e a informalidade das primeiras. Em alguns dialetos do sul do Brasil, em que o pronome pessoal você é a forma exclusiva, como em Curitiba, entretanto, o possessivo teu também é utilizado como forma solidária, reservando-se ao seu usos preferencialmente mais formais (MENON, 1996). Vamos, a seguir, verificar a variação pronominal e seus possíveis encaixamentos em dados de peças de teatro de autores catarinenses. 3 O encaixamento dos pronomes tu e você na escrita catarinense

Para verificar se a variação dos pronomes, encontrada na fala, também atingiu a escrita

catarinense, e qual a extensão e a natureza dessa variação, levantamos dados de sete peças de teatro de autores nascidos em Santa Catarina, preferencialmente em regiões litorâneas, nos séculos XIX e XX. A amostra diacrônica investigada foi a seguinte:

Raimundo (1868) de Álvaro Augusto de Carvalho (1829-1865); Um cacho de mortes (1881), de Horácio Nunes (1855- 1919); Brinquedos de Cupido (1898) de Antero Reis Dutra (1855-1911);

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Um homem sem paisagem (1947) de Ody Fraga (1927-1987); Os Lobos (1980) de Ademir Rosa (1949-1997); Flores de Inverno (1992) de Antonio Cunha (1961-); Sim, eu sei (1992) de Fábio Brüggemann (1962-).

Após coletados os dados encontrados nas peças, foi feita a análise estatística com o

apoio do pacote VARBRUL. Os resultados confirmam o uso variável dos pronomes tu e você na região de Santa Catarina e já apontam para um uso quase categórico do você no século XX, reafirmando resultados encontrados no sudeste por Duarte (1995). Vejamos.

Formas de tratamento segundo a variável autor/ano de nascimento

TU Apl/Total %

VOCÊ Apl/Total %

Álvaro Augusto de Carvalho (1829-1865) Antero dos Reis Dutra (1835-1911)

Horácio Nunes (1855- 1919) Ody Fraga (1927-1987)

Ademir Rosa (1949-1997) Antônio Cunha (1961-)

Fábio Brüggemann (1962-)

35/42 83% 48/53 91% 17/17 100% 03/04 75% 14/136 10% 00/45 0% 00/80 0%

07/42 17% 05/53 09% 0/17 0% 01/04 25% 122/136 90% 45/45 100% 80/80 100%

Total 117/377 31% 260/377 = 69%

Tabela 10: Percentual de uso das formas de tratamento tu e você em peças de teatro de autores catarinenses

Esses resultados podem ser mais bem visualizados no gráfico abaixo.

Gráfico 1: formas de tratamento tu e você em peças de teatro de autores catarinenses

Como podemos observar, os autores nascidos no século XIX usam com bastante

freqüência a forma de tratamento tu e os nascidos no século XX usam quase com exclusividade a forma você. Agrupando agora os autores por diferentes séculos, podemos observar o sistema pronominal de segunda pessoa majoritariamente usado em cada um dos

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séculos na escrita catarinense que serviu para análise.

Formas de tratamento segundo a variável século

TU Apl/Total %

VOCÊ Apl/Total %

Século XIX 100/112 89% 12/112 11% Século XX 17/265 06% 248/265 94%

Total 117/377 31% 260/377 69%

Tabela 11: Freqüência de uso das formas de tratamento, segundo a variável ‘século’

Para que pudéssemos fazer uma comparação com os dados de fala investigados, em

face dos resultados apresentados nas tabelas 10 e 11, controlamos outras variáveis como possibilidades combinatórias dos pronomes tu e você, ‘relações simétricas e assimétricas’, ‘preenchimento do sujeito’ e ‘ordem do sujeito pronominal’, considerando sempre os diferentes séculos. Vejamos o que dizem os resultados sobre a combinação entre os pronomes e os possessivos e clíticos de segunda e terceira pessoas.

Cruzamento entre as variáveis

formas de paralelismos formal e século

TU

VOCÊ

XIX XX XIX XX Sujeito pronominal com teu e te 18/18

100% 01/02 50%

0/02 0%

08/27 30%

Sujeito pronominal com seu, se

e lhe 0/18 0%

01/02 50%

02/02 100%

19/27 70%

Tabela 12: Freqüência de uso dos clíticos e possessivos

de segunda pessoa com o sujeito tu e você

Enquanto no século XIX não constatamos o que as gramáticas chamam de mistura de tratamento, no século XX, apesar de a forma de tratamento tu ser muito pouco usada, principalmente no final do século, encontramos vestígios do sistema de tuteamento nas formas possessivas e clíticas de segunda pessoa. Ora o sujeito você vem acompanhado dos possessivos seu(s) e dos clíticos se e lhe, de terceira pessoa, que no processo de gramaticalização das formas passaram a se referir às segundas pessoas do discurso, ora vem acompanhado de teu(s) e de te.

Na peça de Ademir Rosa, por exemplo, a conversa se passa entre dois colegas (um mais velho do que o outro) e o tratamento usado em geral é o você. Aparece também o tu (em pouca escala) e a mistura de tratamento, como os exemplos abaixo ilustram: (6) Imbecil - ainda por cima é partidário desses ditados infames - sem criatividade, sua

bicha louca (pega um pedaço de madeira). Fica aí na tua. Se você der um passo na minha direção eu te mato.

(7) E de mais a mais não pedi a tua opinião prá nada. Desde que te conheci sempre tive mais

iniciativa do que tu. Sou eu quem sempre dorme e acorda primeiro. Faço fogo, café, pesco, me preocupo com um monte de coisas e você não tá nem aí.

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Já na peça de Antônio Cunha, os tratamentos preferenciais são você (do personagem mais velho, Eugênio, para o mais jovem, Klaus) e senhor de Klaus para Eugênio. No que se refere ao tratamento entre os amigos, Klaus e Valentina, o uso preferencial é pelo você. Novamente, mesmo sem ter usado o tu, há no diálogo entre esses dois personagens usos variados dos possessivos teu/seu e dos clíticos te/se: (8) Você já se arranjou outras vezes. Desculpe, Klaus, mas você não pode ficar aqui hoje.

Nostálgico! Que lembranças te vêm agora? (Valentina para Klaus) Ele ainda te ama! (Klaus para Valentina)

Além das correlações entre possessivo ou clítico e pronome pessoal, controlamos

também qual o uso estilisticamente marcado dos pronomes ao longo dos séculos. E uma mudança aqui também pôde ser observada. Nos textos escritos, o papel que exercem os interlocutores no discurso parece que se modifica juntamente com a forma pronominal, como os resultados da tabela 13 apontam.

Formas de tratamento segundo

a variável relações entre os interlocutores

TU

VOCÊ

XIX XX XIX XX Relações assimétricas

(de superior para inferior e de velho para jovem)

18/100 18%

10/17 58%

7/12 58%

75/248 30%

Relações simétricas (entre iguais)

76/100 76%

3/17 18%

0/12 0%

117/248 47%

Relações assimétricas (de inferior para superior e

de jovem para velho)

6/100 6%

4/17 24%

5/12 42%

56/248 23%

Tabela 13: Cruzamento entre as variáveis ‘relações entre os interlocutores’ e ‘século’ Com relação à simetria ou assimetria nas relações entre os interlocutores, em geral, os

tratamentos preferenciais do século XIX são tu, tratamento usado entre as pessoas de uma mesma idade e de um mesmo sexo e de uma pessoa mais jovem para uma pessoa mais velha, e senhor/senhora/senhorita, tratamento usado de uma pessoa mais jovem para uma pessoa mais velha (para um pai ou uma mãe) e tratamento usado também entre homem e mulher (mesmo que sejam de idades assemelhadas). Quanto ao pronome você, é preferencialmente usado em relações assimétricas (de superior para inferior), uso marcado estilisticamente de superior para pessoas inferiores (de patrão para empregado, por exemplo), e, em geral, em forma de xingamento. (9) a. O’ sua serigaita, você demora-se tanto tempo para abrir uma porta! [Dutra, 1835] b. O que você veio fazer, foi bisbilhotar, Sora Engrácia. [Carvalho, 1829]

Já nas peças do século XX, as relações de poder e de solidariedade se modificam. O

tratamento tu deixa aos poucos de ser usado e o tratamento você já aparece nas relações simétricas, inclusive. Parece que houve uma inversão de valores, a forma você perde o uso não respeitoso adotado no século XIX e passa a ser usada para uso respeitoso em 1949 e para uso entre familiares e com pessoas de uma mesma faixa etária (marido e mulher, por exemplo) ou de pessoas mais velhas para mais jovens mais no final do século, como os

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exemplos abaixo ilustram. (10) a. Por que você não foi ser ator de teatro quando jovem? (você) Tem todas as ferramentas. (Tu) Interpretas bem, (você) tem boa dicção… [Rosa, 1949] b. Você é o meu presente, de natal, de ano novo, de aniversário... Eu tenho vinte anos no

meu coração! Ah, eu espero que você não demore. Eu fico tão angustiada com a espera! você sempre diz isto também. Você vai gostar do meu vestido novo, eu o fiz igual ao da moça do filme. [Cunha, 1962]

Um outro encaixamento é relevante. Quando o pronome usado se correlaciona a um

sistema de flexão verbal distintiva, como acontece com o tu, esperamos encontrar um sistema predominantemente de sujeito nulo e de ordem VS. Quando, porém, encontramos enfraquecimento de flexões verbais, decorrente da entrada do você – que se combina com formas verbais não marcadas – acreditamos que vamos encontrar mais preenchimento do sujeito pronominal e uma ordem SVO preferencial.

Vejamos, então, resultados estatísticos desses cruzamentos ilustrados nas tabelas 14 a 16, considerando agora as variáveis ‘preenchimento do sujeito’ e ‘ordem do sujeito’.

Formas de tratamento segundo a variável preenchimento do sujeito

TU Apl/Total %

VOCÊ Apl/Total %

Sujeito nulo 106/196 54% 90/196 46%

Sujeito preenchido 11/181 06% 170/181 94%

Total 117/377 31% 260/377 69%

Tabela 14: Percentual de pronomes tu e você, segundo a variável ‘preenchimento do sujeito’

Como mostra a tabela 14, há uma predominância do sistema de tuteamento com sujeito nulo e uma predominância do sistema de voceamento com o pronome preenchido, o que confirma novamente trabalhos anteriores com amostras de outras regiões (DUARTE, 1995). Encontramos também um dado com o pronome tu preenchido acompanhado de verbo sem a marca morfêmica de segunda pessoa, como em (12), e, neste caso, como era esperado, com sujeito preenchido. (11) Assassino! (tu) Fingiste ter-lhe amor e (tu) a mataste. Mataste a nós também. [Nunes, 1855] (12) Dizem que tu faz teatro há tanto tempo. [Rosa, 1949]

Esses resultados podem ser mais bem visualizados, segundo as diferenças entre os séculos, na tabela abaixo:

Cruzamento entre preenchimento do sujeito e século

TU VOCÊ XIX

XX XIX XX

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Sujeito nulo 91/100 91%

15/17 88%

8/12 66%

82/248 33%

Sujeito preenchido 9/100 9%

2/17 12%

4/12 34%

166/248 67%

Tabela 15: Percentual de pronomes tu e você, segundo o cruzamento entre as variáveis ´preenchimento do sujeito´ e ´século´

Enquanto no século XIX, o sistema de tuteamento é majoritário e o sujeito pronominal

é preferencialmente nulo, no século XX o sistema de voceamento predomina e o sujeito é preenchido. Vamos observar agora uma correlação entre as formas tu e você (apenas quando o sujeito for preenchido) e a ordem variável do sujeito (SV e VS). A tabela a seguir ilustra esses resultados.

Cruzamento entre ordem do sujeito e século

TU VOCÊ

XIX

XX XIX

XX

Ordem sujeito-verbo 9/11 82%

2/2 100%

5/5 100%

164/167 98%

Ordem verbo-sujeito 2/11 18%

0/2 0%

0/5 0%

3/167 2%

Tabela 16: Percentual de pronomes tu e você, segundo o cruzamento entre as variáveis ´ordem do sujeito pronominal de segunda pessoa´ e ´século´

De fato, há poucos dados de pronomes pospostos tanto no século XIX quanto no

século XX, mas uma diferença já se apresenta: enquanto no sistema de tuteamento encontramos ainda 18% de tu na ordem VS, no sistema de voceamento, encontramos apenas 02% de você com sujeito posposto. Consideremos, então, os dados com esses pronomes em VS. (13) a. Grosseirão, grosseirão; ora, a quem o dizes tu! Com mil diabos, se tanto é a vontade, amarra-te. [Carvalho, 1829] b. Matei também o gato e o bucica! É preciso que morras tu também, pobre criança. [Nunes, 1835] (14) a. É o meu primeiro jantar à luz de velas. Só falta você. [Cunha, 1962] b. Foda-se eu, você e o mundo. [Cunha, 1961]. O que podemos observar dos dados é que tu aparece posposto nas peças do século XIX tanto em construções transitivas quanto inacusativas, enquanto você aparece posposto nas peças do século XX, e apenas em contextos em que a ordem VS ainda resiste, ou seja, em construções inacusativas. Esses resultados corroboram o trabalho de Coelho (2006) e de Coelho et al. (2006). Os resultados diacrônicos apontam para dois subsistemas distintos em competição (ou normas distintas) na variedade do português escrito por autores nascidos em Santa Catarina:

(i) o de tuteamento (mais antigo), usado preferencialmente nas relações simétricas,

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acompanhado de clíticos e possessivos na segunda pessoa, marcado com formas verbais exclusivas, com sujeito nulo e ordem do sujeito variável;

(ii) o de voceamento (mais novo), usado preferencialmente nas relações simétricas, acompanhado de clíticos e possessivos na segunda e terceira pessoas, marcado com formas verbais neutras (ou de terceira pessoa), com sujeito pronominal preenchido e ordem SVO.

Considerações finais

A partir dos resultados apresentados acima, já podemos apontar para algumas

considerações. Com relação aos resultados que retratam a fala catarinense, observamos uma diferença

bem acentuada entre a região litorânea e a do planalto: enquanto Florianópolis usa preferencialmente o pronome tu, Lages usa preferencialmente o pronome você, mas nas duas localidades já se observa um número significativo de informantes que têm os dois sistemas pronominais. É possível imaginar que o tu tenha sido o pronome adquirido pelos florianopolitanos (de etnia portuguesa) e o você esteja entrando no sistema lingüístico dessa comunidade como um caso de conhecimento socialmente adquirido (ou aprendido). A forma tu ainda continua sendo usada nas relações familiares e a forma você é reservada para as relações de poder.

Com relação aos dados de escrita, os resultados mostram que o pronome você foi se implementando gradativamente e se expande a todas as situações de uso (familiares e não familiares), até ser usado categoricamente pelos autores do final do século XX – talvez possamos dizer aqui que, na escrita, o você já alijou o tu do sistema, na tentativa de regularização do paradigma, como já previram Menon e Loregian-Penkal (2002, p. 162-3). Além disso, parece que a implementação do você na escrita provoca um rearranjo no sistema lingüístico no que se refere às novas possibilidades combinatórias de formas pronominais, ao preenchimento do sujeito (mais preenchido) e à ordem do sujeito (SVO enrijecida). Talvez esses resultados possam nos dizer que há de fato, nos dados empíricos estudados, evidências de co-presença de subsistemas em competição, no sentido de Anthony Kroch (1994; 2001).

Como já sabemos, o processo de mudança lingüística é, geralmente, o movimento de um conjunto de variáveis de um sistema a outro (ou de um subsistema a outro), conforme os postulados de WLH (1968) a respeito do encaixamento lingüístico e social da variação e da mudança. Na medida em que um processo de mudança estrutural se implementa no sistema (ou está se implementando), por exemplo, ele deve não só ser conseqüência de outro, mas também desencadear o aparecimento de um outro, inserindo-se assim em uma matriz de mudanças mais gerais.

Retomando os resultados estatísticos dos estudos sincrônicos e diacrônicos sobre a implantação do pronome você no português do Brasil, apresentados acima, e comparando-os a resultados sobre a retenção do sujeito pronominal e a ordem do sujeito, podemos constatar que tais mudanças sintáticas devem estar correlacionadas no PB, formando o que WLH chamam de cadeia de fenômenos de mudança. Em todos os casos ilustrados, a mudança na freqüência de uso se dá numa mesma direção e de maneira ordenada. É como se uma mudança criasse as condições lingüísticas necessárias para que as outras se efetivassem. Referências

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