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    A SOCIOLOGIA DUAL

    DE ROBERTO DA MATTA:

    Descobrindo nossos

    mistrios ou sistematizando

    nossos auto-enganos?

    Jess Souza

    RBCS Vol. 16 no45 fevereiro/2001

    Apesar das observaes crticas que serodesenvolvidas no decorrer deste artigo, quero,antes de tudo, ressaltar a relevncia da obra deRoberto Da Matta para a cincia social brasileira.Obra que se destaca pelo potencial inovador e pela

    centralidade da reflexo filosfica, seja na indaga-o acerca dos pressupostos da teorizao cientfi-ca, seja no questionamento radical do que constituia singularidade de uma formao social.

    Ao tentar descobrir o que faz o brasil, Bra-sil, Da Matta prope o questionamento de temastais como o que indivduo?, o que democracia?,o que so relaes sociais?, como se comparasociedades? e, acima de tudo, como se percebeaquelas diferenas histricas e culturais que confe-rem uma especificidade toda prpria a cada socie-

    dade singular? Essas questes so essenciais postoque remetem a uma reflexo de pressupostos,permitindo a discusso daquelas indagaes pri-mordiais que, numa concepo de cincia prag-mtica e empiricista, j esto respondidas a priori.E sabemos que precisamente a expanso doespao da reflexividade que caracteriza a atitudecientfica e a discusso dessas questes primor-diais que permitem o pensamento crtico e inova-dor.

    O dilema brasileiro para Roberto DaMatta

    No caso de Da Matta, o fio condutor mesmode sua reflexo j apontava para o desejo de

    surpreender a realidade brasileira por detrs desuas auto-imagens consagradas. Assim, em Carna-vais, malandros e heris(Da Matta, 1981), seu livromais importante, essa tentativa empreendida apartir do estudo do cotidiano brasileiro, no estudodos seus rituais e modelos de ao portanto, que onde podemos reencontrar nossos malandros enossos heris.

    Desde o incio, o esforo comparativo j tem oseu outro privilegiado: os Estados Unidos. Interes-sa a Da Matta demonstrar, numa oposio que ir

    assumir inmeras variaes, por que nunca dize-mos iguais mas separados como l, mas, ao con-trrio, dizemos sempre diferentes mas juntos (DaMatta, 1981, p. 16). A comparao, nesse sentido,privilegia sempre o contraste, a contradio, e no ofamiliar, o semelhante, o co-extensivo.

    O mtodo o estrutural, enfatizando as possi-bilidades de combinao alternativas e as nfasesdistintas de elementos dominantes e subordinadosde cada sistema social analisado. Assim, as catego-

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    rias mais gerais do raciocnio do autor, as deindivduo e pessoa, articulam-se de forma peculiarem cada sociedade. O indivduo, no Brasil, noseria uma categoria universal e englobadora como

    nos Estados Unidos, nem apenas o renunciante,como na ndia. O indivduo entre ns seria o joo-ningum das massas, que no participa de nenhumpoderoso sistema de relaes pessoais.

    O indivduo, entre ns, se definiria pelaoposio com o seu contrrio: a pessoa. Esta, porsua vez, se definiria como um ser basicamenterelacional, uma noo apenas compreensvel, por-tanto, por referncia a um sistema social onde asrelaes de compadrio, de famlia, de amizade e detroca de interesses e favores constituem um ele-

    mento fundamental. No indivduo teramos, aocontrrio, uma contigidade estrutural com o mun-do das leis impessoais que submetem e subordi-nam. Desse modo, teramos no Brasil, ao contrriotanto dos Estados Unidos quanto da ndia, umsistema dual e no um sistema unitrio. A ques-to essencial para Da Matta, portanto, j est posta:trata-se, no caso brasileiro, de perceber a domi-nncia relativa de ideologias e idiomas atravs dos

    quais certas sociedades representam a si prprias(Da Matta, 1981, p. 23). Nesse sentido, nossa

    especificidade seria nossa dualidade constitutiva.Na verdade, Da Matta (1991, pp. 24-29) procu-

    ra relacionar o que ele considera como sendo duasleituras da realidade brasileira que seriam vistascomumente como antagnicas: uma instituciona-lista, a qual destacaria os macroprocessos polticose econmicos, segundo a lgica da economia polti-ca clssica e implicando, por isso mesmo, algumaforma de diagnstico pessimista do Brasil; e outra

    vertente, a qual se poderia chamar de culturalista,cuja nfase seria concedida ao elemento cotidiano

    dos usos e costumes, da nossa tradio familsticaou da casa, na linguagem de Da Matta. Suaprpria perspectiva seria, portanto, superadora esintetizadora dessas perspectivas parciais, unindo-as e relacionando-as como duas faces de umamesma moeda, transformando essas vises unilate-rais num dualismo articulado.

    Um olhar atento descobre que a cada umadessas perspectivas correspondem, respectiva-mente, uma sociologia do indivduo a vertente

    institucionalista e uma sociologia da pessoa a vertente culturalista. Ao unir e relacionar as duasperspectivas dentro de um mesmo quadro dereferncia terico, Da Matta acredita ter percebido

    a gramtica profunda do universo social brasilei-ro. Veremos mais adiante que o acesso a essagramtica exigiria a superao do prprio dualis-mo. Permaneamos, no entanto, ainda um instan-te, dentro do prprio horizonte aberto pelo dualis-mo damattiano. Em que consiste esse dualismo ecomo Da Matta o constri?

    Vimos que seus termos mais abrangentes soas noes de indivduo e pessoa. Esse o dadofundamental e primrio, na medida em que todosos outros so decorrncia desse antagonismo fun-

    damental. Assim, outras dualidades importantespara Da Matta, como aquela entre a casa e a rua,por exemplo, que deu o ttulo a um dos seus livros,so decorrentes da oposio entre indivduo epessoa na medida em que indicam espaosprivilegiados onde cada uma dessas modalidadesde relaes sociais se realizariam.

    oposio entre a casa e a rua corresponderi-am, por sua vez, papis sociais, ideologias e

    valores, aes e objetos especficos, alguns inventa-dos especialmente para aquela regio no mundo

    social (Da Matta, 1981, pp. 74-75). Nesse sentido,os nossos rituais so analisados e compreendidos apartir dessa oposio casa/rua e se distinguem entresi na forma e modo especfico de lidar com esseantagonismo. Assim, a procisso religiosa teria suapeculiaridade no fato de permitir, durante um breveinstante, a supresso da dicotomia casa/rua. Osanto, para o qual a procisso realizada, eleva-seacima da dicotomia, suspendendo suas lealdades esentimentos respectivos, criando, por alguns instan-tes, uma lealdade especfica, sintetizadora, em rela-

    o a um novo campo de ao: o do sagrado.Na parada militar, por oposio, o mundo

    das casas no irmanando na devoo ao santocomum, mas de certa forma invadido peloEstado, que recruta e hierarquiza seus membrossob a forma de participantes humildes (os solda-dos), diferenciados (as autoridades) ou meros es-pectadores (o povo indiferenciado e tornado mas-sa). A singularidade do Carnaval, por sua vez,residiria no fato de a rua tornar-se casa por alguns

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    dias. Uma casa que celebra em praa pblica omundo da cintura para baixo, o qual em diasnormais escondido dentro de casa, uma casa quetorna seguro ( sic) o ambiente desumano de com-

    petio hostil que caracterizaria a rua. Ao mesmotempo, a rua transformada em casa subverte tantoo cdigo (hierrquico) da rua quanto o da prpriacasa. Da o Carnaval ser uma perfeita inverso darealidade brasileira: uma festa sem dono numpas que tudo hierarquiza (Da Matta, 1981, p. 116).

    No entanto, apenas no ensaio Voc sabecom quem est falando? que encontramos umacondensao de todos os aspectos desenvolvidosna interpretao damattiana da realidade brasilei-ra. O ritual autoritrio do voc sabe..., ao contr-

    rio dos anteriores, um ritual cotidiano, do cotidi-ano hostil da rua, bem entendido, e no qualqualquer brasileiro, mesmo aquele que no brincaCarnaval, no assiste a paradas militares ou acom-panha procisses religiosas, se reconhece facil-mente.

    Para Da Matta, o voc sabe... pe a nu,revela luz do dia um trao que o brasileiro nogosta e prefere esconder. Afinal, o que viria tonaaqui no seria mais a nossa celebrada e carnavali-zada cordialidade, mas, ao contrrio, o verdadeiro

    e profundo esqueleto hierarquizante de nossasociedade (Da Matta, 1981, p. 142). Esse ponto absolutamente fundamental tanto para o argumen-to do autor quanto para a crtica que iremos fazermais adiante. que, ao contrrio da anlise dosoutros rituais extracotidianos, os quais permitemum tratamento que enseja uma assepsia classifica-tria (entre casa, rua e outro mundo ou Estado,povo e Igreja) que parece algo arbitrria no seuesforo de fazer corresponder prticas a espaossociais delimitados, o voc sabe... condensa e

    unifica todos esses aspectos e lana a questocentral da articulao e hierarquizao especficade todos esses elementos. Afinal, como se combi-nam indivduo e pessoa ou casa e rua? Qual oelemento dominante e qual o subordinado?

    Da Matta no responde a essa questo deforma clara. Ele muitas vezes prefere enfatizar ocomponente aberto dessa competio entre princ-pios de organizao social, o que de resto, na sua

    viso, permitiria caracteriz-la como o mago mes-

    mo do dilema brasileiro. 1 No entanto, uma an-lise atenta de sua obra permite coletar uma srie deindcios interessantes para nossos propsitos. Aspalavras esqueleto e ncleo que Da Matta usa

    constantemente para se referir ao componentehierrquico da formao brasileira so sintomti-cas. Afinal esqueleto ou ncleo referem-se aalguma coisa escondida, a qual no seria imediata-mente visvel como a pele ou a superfcie que osrecobre, mas que nem por isso deixa de ser maisimportante e mais substancial que o componenteenvolvente.

    E precisamente a mesma lgica que umaanlise sistemtica do ritual do voc sabe... nosmostra. Seno, vejamos. O ritual envolve sempre

    uma oposio entre um dado individualizante aomesmo tempo mais visvel e mais superficial, postoque o elemento universalizante e igualitrio seria onico discurso oficial e legtimo, e um componentepessoal e hierrquico mais profundo e menos

    visvel (posto que no precisaria ser falado), masque o componente mais decisivo e eficaz dodrama social em questo na medida em que resolveo conflito e restaura a paz hierrquica ameaada.

    este ltimo elemento, portanto, que DaMatta chama de esqueleto ou ncleo hierrqui-

    co, o elemento que atualizaria a gramtica socialmais profunda de uma sociedade como a brasilei-ra. a sua desagradvel apario no cotidiano querestaura a paz hierrquica perturbada por quemlevou a srio o princpio igualitrio e teve de serlembrado do seu lugar. O ritual desagradvelprecisamente porque verbaliza o que no deveriaser dito para ser eficaz, quebrando assim o pactosilencioso e cordial de uma sociedade em que cadaum efetivamente deve conhecer o seu lugar.

    [...] no drama do voc sabe com quem estfalando? somos punidos pela tentativa de fazer

    cumprir a lei ou pela nossa idia de que vivemos

    num universo realmente igualitrio. Pois a identi-

    dade que surge do conflito que vai permitir

    hierarquizar.[...] A moral da histria aqui a

    seguinte: confie sempre em pessoas e em relaes

    (como nos contos de fadas), nunca em regras

    gerais ou em leis universais. Sendo assim, teme-

    mos (e com justa razo) esbarrar a todo momento

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    com o filho do rei, seno com o prprio rei. (Da

    Matta, 1981, p. 167)

    Assim, e esse ponto absolutamente funda-

    mental tanto para a compreenso do argumento doautor quanto para a crtica que ser feita adiante, oelemento pessoal que visto como dominante emrelao ao elemento abstrato, legal, que se refere aomundo dos indivduos indiferenciados. Mas comoeles se articulam? At onde a validade parcial doelemento impessoal tem alguma eficcia? Como sed a combinao especfica entre os dois princpios?

    como se tivssemos duas bases atravs das quais

    pensssemos o nosso sistema. No caso das leis

    gerais e da represso, seguimos sempre o cdigoburocrtico ou a vertente impessoal e universali-

    zante, igualitria, do sistema. Mas no caso das

    situaes concretas, daquelas que a vida nos

    apresenta, seguimos sempre o cdigo das relaes

    e da moralidade pessoal, tomando a vertente do

    jeitinho, da malandragem e da solidariedade

    como eixo de ao. Na primeira escolha, nossa

    unidade o indivduo; na segunda, a pessoa. A

    pessoa merece solidariedade e um tratamento

    diferencial. O indivduo, ao contrrio, o sujeito

    da lei, foco abstrato para quem as regras e arepresso foram feitos. (Da Matta, 1981, p. 169)

    De acordo com essa tica, a lei geral e abstratateria uma validade de primeira instncia. Afinal, elapressupe uma igualdade de partida que bempode ser confirmada como verdadeira no ponto dechegada, ou seja, nos casos concretos do dia-a-diae do cotidiano de todos ns. No entanto, em casode conflito, o caso concreto obedeceria a outros im-perativos que no quele da lei geral. Precisamente

    aqui entraria o componente das relaes pessoais,do capital que se acumula em termos de contato einfluncia. Seria como se as relaes pessoais entrens desempenhassem o papel do Judicirio nospases individualistas e igualitrios. Como cabe aoPoder Judicirio dirimir conflitos a partir dos casosconcretos, teramos, no nosso caso especfico, umaresoluo informal, sem burocracia e rpida: atra-

    vs da carteirada, do jeitinho, da ameaa velada edo voc sabe.... No caso concreto, no aplicamos

    a lei geral ao caso especfico, mas a fora relativa denossas relaes pessoais. Em outras palavras, oumelhor, nas palavras do prprio autor: o vocsabe... permite estabelecer a pessoa onde antes s

    havia o indivduo (Da Matta, 1981, p. 170).Esse tipo de soluo extremamente proble-

    mtico sob o ponto de vista da fundamentaoterica do dualismo proposto por Da Matta. Afinal,levada s suas ltimas conseqncias, essa soluoimplica afirmar que os brasileiros se comportam deum modo inverso aos estmulos das instituies so-ciais fundamentais, como Estado e mercado. Essen conceitual no de fcil soluo j que Da Matta

    vincula habilmente a auto-imagem folclrica dobrasileiro com anlises concretas de rituais facilmen-

    te observveis na realidade cotidiana. A evidncia eeficcia desse tipo de discurso enorme. Nessesentido, peo a pacincia do leitor para que possa-mos nos concentrar nos meandros de uma anlisedos pressupostos desse tipo de discurso terico.

    Gramtica profunda ou dualismosuperficial?

    O dualismo engendrado pelas noes deindivduo e pessoa como a base do que Da Matta

    chama de dilema brasileiro 2 foi desenvolvido aolongo das dcadas de 80 e 90 seja em trabalhos dedivulgao (Da Matta, 1999a), seja em livros comoA casa e a rua, onde a dimenso espacial da dua-lidade ganha proeminncia e analisada em maiordetalhe. Eu gostaria agora de continuar a discussoem dois passos: primeiro, desenvolvendo umaapreciao crtica da perspectiva do autor e, emseguida, procurando reconstruir uma resposta al-ternativa s questes deixadas em aberto peloesquema damattiano.

    Inicialmente vou me deter nas prprias idiasde sociedade e teoria social, as quais, segundoDa Matta, so subjacentes sua anlise. No livroA casa e a ruaencontramos a seguinte definio:

    A idia de sociedade que norteia esse livro, por-

    tanto, no aquela da sociedade como um con-

    junto de indivduos, com tudo o mais sendo mero

    epifenmeno ou decorrncia secundria de seus

    interesses, aes e motivaes. Ao contrrio, so-

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    ciedade aqui uma entidade entendida de modo

    globalizado. Uma realidade que forma um siste-

    ma. Um sistema que tem suas prprias leis e

    normas. Normas que, se obviamente precisam dos

    indivduos para poderem se concretizar, ditam aesses indivduos como devem ser atualizadas e

    materializadas. (Da Matta, 1991, p. 15)

    O texto acima nos interessa de perto porquenele Da Matta assume uma posio clara contrauma cincia social subjetivista que pretende redu-zir a complexidade social referncia s intenesindividuais dos agentes. uma crtica correta ebem-feita. Segundo sua concepo de sociedade,temos de buscar no prprio sistema social as leis e

    normas que explicam o comportamento dos indi-vduos que o compem. Deve-se procurar desco-brir, portanto, a gramtica social profunda dasociedade em questo, a qual sempre, em grandeparte, insconsciente ou inarticulada na conscinciados indivduos que a compem, para que possa-mos interpretar o comportamento destes e a lgicada prpria dinmica social.

    Vimos que, segundo Da Matta, essa gramti-ca social profunda, no caso brasileiro, apresentauma peculiaridade: ela dual (ao contrrio da dos

    Estados Unidos, por exemplo, que seria unitria) ecomposta por dois princpios antagnicos, o indi-

    viduo das relaes impessoais e a pessoa dasrelaes de compadrio e de amizade. Vejamos comcuidado os pressupostos desses dois tipos derelaes sociais. Sabemos que em sociedades mo-dernas os dois poderes impessoais mais importan-tes so o Estado e o mercado capitalistas. Essas sotambm as instituies que Da Matta tem em mentequando se refere ao mundo competitivo, hostil,das regras gerais e impessoais associadas compe-

    tio capitalista e ao aparelho repressivo do Esta-do. Em oposio a este mundo teramos o mundoda casa, onde as relaes se regem pela afetividadee todos so supercidados. Esse seria o lugar ondeos brasileiros se sentiriam bem e onde poderiamdesenvolver sua decantada cordialidade.

    Existe, no entanto, um problema bsico nessequadro primeira vista bem arrumado que precisa-ria ser explicado: qual o conjunto de regras ounormas que explica e constitui a articulao entre

    esses dois mundos? Se Da Matta pretende explicaras normas e regras sociais ltimas que esclarecemnossa singularidade, ento a forma de articulaoentre esses dois princpios tem de ser explicada. A

    dualidade enquanto tal uma simples aporia. Semestar determinada nas suas regras, ela pode serusada ad hoc para o esclarecimento de um sem-nmero de questes, ressaltando-se a importnciaora de um, ora de outro princpio. Mas a questoparece-me ser: o que faz com que precisamentenesses casos tal ou qual princpio seja mais oumenos eficiente? Essa questo nunca respondidapor Da Matta. O ltimo horizonte explicativo sempre uma dualidade indeterminada que varia aosabor das situaes concretas examinadas.

    A idia de uma gramtica social profunda stem sentido se for possvel determinar a hierarquia

    valorativa que preside a institucionalizao de est-mulos seletivos para a conduta dos indivduos que acompem. Essa seletividade, por sua vez, exige aconsiderao da varivel do poder relativo degrupos e classes envolvidos na luta social porhegemonia ideolgica e material. Desse modo, paraclssicos da Sociologia que lidaram com a questoda institucionalizao diferencial de valores e con-cepes de mundo como Max Weber e Norbert

    Elias, a questo de se determinar a hierarquia devalores que logra comandar uma sociedade espec-fica exige a articulao da relao entre valores eestratificao social. Afinal, a imbricao entredomnio ideolgico e acesso diferencial a bensideais ou materiais escassos que cumpre esclarecer.

    Nesse sentido, para os dois autores citadosacima, a vinculao entre concepes de mundo(no sentido de conjuntos articulados de normas e

    valores) e estratos sociais que servem de suportesaessas concepes de mundo fundamental. Aqui

    no se trata da causalidade materialista marxista, aqual reintroduz por outros meios a noo desubjetividade individual transformada agora emsujeito coletivo,3 com conseqncias deletriaspara a anlise social. A noo de suporte socialde

    valores e normas refere-se, ao contrrio, a proces-sos inintencionais sem sujeito atravs dos quaisgrupos e classes identificam-se com valores e soao mesmo tempo perpassados e dirigidos por elesna dinmica social. 4

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    Ns no encontramos classes e grupos soci-ais na obra de Roberto Da Matta. O tema daestratificao social e a relao desta com valoresdesempenha um papel, na melhor das hipteses,

    marginal no seu esquema explicativo. Na reflexode Da Matta encontramos apenas indivduos eespaos sociais. Minha hiptese neste texto queisso impede que ele tenha acesso gramticasocial da sociedade brasileira como definida porele prprio acima. que, desvinculada de umateoria da estratificao social que explique como epor que esses valores e no outros lograraminstitucionalizar-se, toda a temtica da relao com

    valores torna-se externa e indeterminada. Valorespassam a ser concebidos como alguma coisa que

    existe independente de sua institucionalizao,agindo de forma misteriosa sobre indivduos eespaos sociais. Vejamos alguns exemplos.

    Quando, ento, digo que casa e rua so cate-

    gorias sociolgicas para os brasileiros, estou afir-

    mando que, entre ns, estas palavras no desig-

    nam simplesmente espaos geogrficos ou coisas

    fsicas mensurveis, mas acima de tudo entidades

    morais, esferas de ao social, provncias ticas

    dotadas de positividade, domnios culturais insti-

    tucionalizados e, por causa disso, capazes dedespertar emoes, reaes, leis, oraes, msi-

    cas, e imagens esteticamente emolduradas e inspi-

    radas. (Da Matta, 1991, p. 17)

    Para o autor, portanto, casa e rua no soapenas espaos antagnicos e relacionados, mastambm esferas de ao social especficas. Emcada uma dessas esferas existem valores e idiasespecficas que guiam ou influenciam o comporta-mento dos agentes em determinada direo em

    cada caso. Sabemos tambm que, para Da Matta,esses valores, no mundo do indivduo, apontampara uma concepo de mundo impessoal queenfatiza a igualdade e a competio entre iguais, aopasso que no mundo da pessoa teramos o reinodos sentimentos, do particular, portanto, e de umahierarquia baseada na afeio (que sempre gra-dativa e particularizante).

    O que passa ento a ser imediatamente pro-blemtico explicar a prpria possibilidade de

    existncia desses espaos to antagnicos. Todasas vezes que enfrenta essa questo, Da Matta fazreferncia obra de Max Weber e s discussesdesse autor acerca do tema das ticas sociais

    dplices ou mltiplas tpicas de sociedades tradi-cionais ou semitradicionais (Da Matta, 1991, pp. 50,52, 69 e 98; ou ainda 1981, p. 178). Isso semdvida correto. Faz parte da interpretao weberi-ana do desenvolvimento ocidental demonstrarcomo havia a necessidade de se explicar o apare-cimento de uma tica unitria dentro do contextoda prpria concepo de mundo tradicional ereligiosamente motivada. A rpida expanso, noalvorecer da modernidade, da tica asctica protes-tante, com sua concentrao em objetivos intra-

    mundanos e singularizados e no mais dplices oucontraditrios, ajuda, sem dvida, a explicar oenorme impulso que essa idia representou para oprogresso material da cultura ocidental.

    No entanto, como a bela metfora do mantodo santo que se transforma em gaiola de ferro,apresentada ao final de A tica protestante e oesprito do capitalismo, nos lembra, ns, habitantesdo mundo impessoal moderno, podemos abdicardesse incentivo subjetivo. Os homens religiosos doalvorecer da modernidade tinham a possibilidade

    de escolher se seguiriam uma tica mltipla tradici-onal ou se optariam pela tica nica da novareligio. O fato de ns, modernos, no termos maisessa opo significa, para Weber, que as instituiesimpessoais do capitalismo moderno, principalmen-te o mercado competitivo e o Estado burocrtico,criam estmulos para a conduta individual que noesto mais disposio da volio dos agentes. Nssomos, em grande parte, at em nossas emoesmais ntimas, produto das necessidades da reprodu-o institucional do Estado e do mercado. para

    esse fato fundamental que Weber quer apontar como uso de suas metforas mais conhecidas comogaiola de ferro ou destino.

    Aqui no se trata apenas de uma viso weberi-ana. Todos os grandes clssicos da Sociologia estode acordo nesse ponto. Para um pensador comoGeorg Simmel, por exemplo, o domnio do merca-do como instituio fundamental do mundo moder-no, ou, nas suas palavras, o advento da economiamonetria, significa uma redefinio da conscincia

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    subjetiva individual de enormes propores. Asnoes bsicas de tempo e espao se modificam, ecom elas se modificam tambm toda a economiaemocional, a vida afetiva individual e recndita de

    cada um de ns, como a forma da atrao sexualentre os dois sexos, a necessidade de distanciamen-to interno e externo que os contatos impessoais da

    vida nas metrpoles exigem, a entronizao doprincpio da calculabilidade como alfa e mega dapersonalidade individual, a indiferena e o senti-mento blascomo emoes tpicas da indiferencia-o qualitativa operada pelo dinheiro transformadoem meio universal de troca etc. 5

    No s a economia, mas tambm o Estado um poderoso elemento transformador da vida

    individual. Talvez ningum melhor do que NorbertElias tenha tido tanta conscincia desse fato. ParaElias, o Estado moderno, com o seu monoplio da

    violncia fsica na sociedade, apenas a pontamais visvel de um desenvolvimento milenar nasformas de exerccio da dominao poltica, cujopressuposto uma completa modificao da psi-que individual. Ao invs do controle externo, apartir da ameaa do mais forte, o Estado modernopressupe controle interno e competio pelosbens escassos por meios mais ou menos pacficos.

    Elias (1989, especialmente vol. II) demonstra,com farto material emprico, como o processo decentralizao do Estado moderno, com seu aparatojurdico baseado em leis gerais e no monoplio da

    violncia, concomitante transformao do apa-relho psquico individual no sentido da formaode uma economia emocional especfica, com um idtornado inconsciente, onde as emoes e desejosagora impossveis de serem vividos se concentrame so reprimidos, e um superego encarregadoagora, como uma instncia interna ao prprio

    mecanismo psquico individual, pela represso,sublimao e reorientao de manifestaes perce-bidas como anti-sociais. Para Elias, toda a estruturada psique individual como vista por Freud seria oresultado (e pressuposto) histrico das modifica-es introduzidas pelo Estado moderno e por seuaparato de regulao social.

    Desse modo, os poderes impessoais quecriam o indivduo no limitam sua extraordinriaeficcia ao mundo da rua. Eles entram dentro da

    casa de cada um de ns e nos dizem, em grandemedida, como devemos agir, o que devemosdesejar e como devemos sentir. Ao contrrio doque supe a dualidade damattiana, os poderes

    impessoais (que criam o indivduo) do mercadoe do Estado no so instituies que exercem seusefeitos em reas circunscritas e depois se ausentamnos contatos face a face da vida cotidiana. Elesjamais se ausentam e na verdade penetram at nosmais recnditos esconderijos da conscincia decada um de ns. A dualidade damattiana pressu-pe a perda da eficcia especfica das instituiesque criam o mundo moderno. O vnculo funda-mental entre eficcia institucional e predisposio

    valorativa individual no levado em conta no

    raciocnio do autor. Os valores so percebidoscomo tendo existncia independente da vida insti-tucional.

    Desligando a dinmica valorativa social tantode uma relao com a estratificao social quantoda referncia eficcia institucional, pode entoDa Matta referir-se a indivduos que se contrapemem espaos sociais distintos, os quais carecem dequalquer determinao estrutural. Vejamos as con-seqncias disso para o seu conceito de cidadania:

    Se no universo da casa sou um supercidado, poisali s tenho direitos e nenhum dever, no mundo

    da rua sou um subcidado, j que as regras uni-

    versais da cidadania sempre me definem por mi-

    nhas determinaes negativas: pelos meus deve-

    res e obrigaes, pela lgica do no pode e no

    deve. (Da Matta, 1991, p. 100)

    Aqui observamos que as duas lgicas antag-nicas conduzem a um curto-circuito sociolgico aoequalizar esferas de ao a espaos especficos. 6

    Desse modo, supercidadania e subcidadania tor-nam-se uma varivel dependente do espaosocial onde me encontro. Seria razovel supor queuma operria negra e pobre da periferia de SoPaulo que, depois de trabalhar o dia inteiro e terefetivamente fartas experincias de subcidadaniana rua, apanha do marido em casa sente-seuma supercidad?7

    Todos sabemos que no apenas as mulheresnegras e pobres, mas todos os grupos sociais

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    oprimidos enfrentam situaes de subcidadaniaindependentemente do lugar ou do espao so-cial onde se encontram. A no referncia estra-tificao social de acordo com classes e grupos

    especficos cria uma iluso de espaos compositividade prpria. Da Matta (1991, p. 100) inclusive obrigado a apelar para explicaes subje-tivistas que ele prprio havia condenado como msociologia:

    Se minha viso do Brasil a partir da casa que a

    nossa sociedade uma grande famlia, com um

    lugar para todos, na esfera da rua minha viso de

    Brasil muito diferente. Aqui eu estou em plena

    luta e a vida um combate entre estranhos. Estou

    tambm sujeito s leis impessoais do mecado e dacidadania que freqentemente dizem que eu no

    sou ningum. Fico, ento, merc de quem quer

    que esteja manipulando a ordem social naquele

    momento.

    O fato de a dominao em ltima instnciaser feita em favor de um algum que estejamanipulando a ordem social sintomtico dadificuldade apontada acima. Afinal, era o prprioDa Matta quem pretendia superar o subjetivismo

    sociolgico que atribui a explicao ltima dalgica social intencionalidade individual. semdvida mais fcil explicar o funcionamento de re-gras sociais a partir da intencionalidade dos agen-tes. Afinal, assim que ns nos percebemos nosenso comum, e da fora do senso comum, comonos ensina Charles Taylor (1997, especialmentecap. I), que o ponto de partida subjetivista ounaturalista retira sua fora peculiar e evidncia. Ocaminho de quem pretende descobrir a gramticasocial profunda de uma formao social, no entan-

    to, mais espinhoso. So as normas e regras sociaisimplcitas que hierarquizam uma sociedade. Indi-

    vduos ou classes dominantes so, no mximo,suportes desses valores e normas, mas de modoalgum, sujeitos intencionais desse processo.

    Da Matta forado a buscar uma soluointencionalista para a questo do poder precisa-mente, vale a pena repetir, porque apenas as regrassociais anteriores e por trs da dualidade indiv-duo/pessoa e casa/rua que poderiam explicar a

    relao entre os dois princpios. porque Da Mattainterrompe sua busca da gramtica profunda brasi-leira na afirmao da prpria dualidade que arelao entre os dois termos e, por conseqncia,

    a prpria noo de relao sempre indetermi-nada. Um outro exemplo pode talvez ajudar aesclarecer esse ponto:

    Mas se a categoria profissional os trabalhadores

    como cidados e no mais como empregados

    tem uma ligao forte com o Estado, ou governo,

    ento eles podem ser diferenciados e tratados com

    privilgios. a relao que explica a perverso e

    a variao da cidadania, deixando perceber o que

    ocorre no caso das diversas categorias ocupacio-

    nais no Brasil, onde elas formam uma ntidahierarquia em termos de sua proximidade do

    poder, ou melhor, daquilo que representa o centro

    do poder. (Da Matta, 1991, p. 85)

    O que significa, nesse contexto, uma forteligao com o Estado? Poder-se-ia perceber essarelao a partir do esforo de um Estado moderni-zador de premiar e constituir vnculos de lealdadecom setores das classes trabalhadoras que contri-

    buam no esforo nacional de modernizao. Masa j estaramos falando de valores, dos quais oEstado nacional seria, ainda que parcialmente,suporte. E esses valores que definiriam quaissetores seriam ou no privilegiados e por qu.Estaramos falando de valores inscritos e instituci-onalizados na realidade social cotidiana, portanto,que ajudam a determinar o conceito de podernessa situao, esclarecendo seu uso e sua lgica.Esse, no entanto, no o caminho de Da Matta.

    Quando o autor se refere a uma hierarquia

    definida a partir da proximidade com o poder,no temos a menor idia de quais valores, regras ounormas explicam essa hierarquia. Poder torna-seaqui um conceito amorfo e indeterminado, j queno compreendemos o que a proximidade ou adistncia em relao a ele significam. As palavrasaqui, mais uma vez, nutrem sua eficcia do discursocomum, na medida em que imediatamente com-preensvel para qualquer pessoa que quem se rela-ciona ou est prximo do poder tem privilgios.

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    A SOCIOLOGIA DUAL DE ROBERTO DA MATTA 55

    De resto, a sociologia relacional de DaMatta parece retirar sua evidncia menos da cons-cientizao dos pressupostos valorativos subjacen-tes nossa cultura e que no haviam sido percebi-

    dos at ento, como ele prprio supe, do que,precisamente, do fato contrrio: do fato de permitira sistematizao da imagem do senso comum, daideologia do brasileiro mdio acerca de si pr-prio. Acredito que a prpria oposio entre indiv-duo e pessoa e entre casa e rua s mantm suaevidncia quando no nos perguntamos acercados seus pressupostos.

    Afinal, a separao entre as esferas do indi-vduo e da pessoa e entre os espaos da casae da rua tpica de toda sociedade moderna e

    complexa e no atributo de uma sociedade tradici-onal ou semitradicional como Da Matta percebe oBrasil. A confuso entre as esferas pblicas eprivadas (casa e rua, na linguagem damattiana) que uma caracterstica tpica de sociedades tradi-cionais e patrimoniais pouco diferenciadas. A no-o de indivduo como usada por Da Matta, paraespecificar a cultura ocidental moderna e desen-

    volvida, na verdade no existe desse modo emnenhuma sociedade concreta, muito menos nosEUA, como acredita o autor. Creio que por trs da

    evidncia dessas noes se esconde uma nooindiferenciada do indivduo ocidental moderno. 8

    Seno, vejamos.Uma genealogia do indivduo moderno como

    a elaborada por Charles Taylor (1997) no seu Asfontes do selfmostra que essa noo bem maisrica, contraditria e matizada. O elemento universa-lizante ao qual Da Matta faz referncia seria semdvida um de seus componentes fundantes, masno o nico. Esse componente normalizante egeneralizante seria o que Taylor chama de self

    pontual, para enfatizar o elemento disciplinvelque ser a matria-prima das burocracias da econo-mia e da poltica modernas. No entanto, essa nooest longe de contar toda a histria do individualis-mo ocidental.

    Se o self pontual permite as construesgeneralizantes da poltica (cidadania) e da econo-mia (o sujeito contratual), conferindo sentido noo de dignidade moderna, apenas com umaoutra fonte do individualismo moderno, o que

    Taylor chama de autenticidade, que alcanamosum quadro mais completo do indivduo modernoocidental. Na busca por autenticidade temos aprocura por caractersticas especficas e particula-

    res a cada um de ns, referindo-se nossa diferen-a especfica e a relaes e objetos que so particu-lares e no generalizveis, na medida em que sohierarquizados em sua importncia por nossosafetos e sentimentos.

    Na idia de autenticidade, a noo deprofundidade do self que muda. A revoluo noscostumes da dcada de 60 vista por Taylor comoum momento especialmente importante para aeficcia social dessa noo, na medida em que seusprincpios saem da vanguarda artstica e logram

    influenciar decisivamente o senso comum de todauma gerao com efeitos permanentes. O que h derevolucionrio na noo de autenticidade a idiade uma individuao mais completa e original.

    Nesse sentido, as profundezas do selfdeixamde ser sinnimo de erro e engano, num caminhoque havia sido originalmente traado por Montaig-ne e Rousseau. Essa mudana expressa na passa-gem das paixes aos sentimentos. Estes so reno-meados e reabilitados, tornando-se normativos o que as paixes no eram. Agora, descobrimos o

    que certo, ns indivduos modernos do limiar dosculo XXI, ao menos em parte, experenciandonossos sentimentos.

    Para Taylor, esse renascimento e nobilitaodo sentimento um trao marcante da culturamoderna. A vida social moderna contm, portanto,as duas vertentes da configurao moral ocidental,baseada numa noo dplice de indivduo: a noode dignidade generalizvel, cujo lugar privilegiado a economia e o mundo do trabalho, e a noo deautenticidade, que tem no casamento baseado em

    sentimentos e na constituio de um espao deintimidade e cumplicidade compartilhada talvezsua objetificao mais importante. A casa e a rua,portanto, dimenses que Da Matta supe to brasi-leiras, so construes sociais que se tornam poss-

    veis apenas no mundo moderno e diferenciado desociedades complexas e dinmicas.

    No apenas Charles Taylor que desenvolveessa dualidade do indivduo ocidental, embora elecertamente seja dos que mais contriburam para a

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    percepo de um conceito diferenciado e comple-xo do indivduo ocidental. Com outras denomina-es, essa dualidade amplamente aceita na Socio-logia moderna.9 O ponto essencial aqui que o

    elemento expressivo e afetivo da personalidadeindividual levado em conta como componenteconstitutivo da noo de indivduo moderno. Aalternativa damattiana entre indivduo e pessoarefere-se, na realidade, a dimenses distintas domesmo conceito de indivduo, o qual s encontracondies de desenvolvimento em sociedades mo-dernas e complexas. 10

    Sem dvida as noes de autenticidade eindividualizao expressiva no cobrem todo ohorizonte da noo de pessoa em Da Matta. Alm

    do aspecto do mundo emocional e do particularis-mo que ela implica, Da Matta chama a ateno paraum dado que seria peculiarmente brasileiro nanoo de pessoa: a troca de favores, o jeitinho, acarteirada em uma palavra, a tendncia corrupo e refrao da lei geral. O mundo dapoltica seria a esfera privilegiada dessa inclinaonacional, a qual no passaria despercebida aosindivduos, aos homens comuns sem meios detroca nesse comrcio generalizado de favores.

    O resultado no passa, porm, despercebido massa brasileira que v na atividade poltica um

    jogo fundamentalmente sujo, onde existe de tudo,

    menos tica. Da a expresso fulano muito

    poltico para exprimir algum que sabe cuidar de

    seus interesses pessoais. (Da Matta, 1991, p. 94)

    Seria, efetivamente, uma idiossincrasia brasi-leira a viso da poltica como um jogo desonestoentre pessoas que trocam favores e proteo? No

    creio. Em famosa pesquisa emprica realizada porBellah e sua equipe nos EUA, tambm a polticaenquanto tal, especialmente a grande poltica doEstado e da negociao partidria, vista comosuja pela grande maioria dos americanos.

    Nas nossas entrevistas, ficou claro que para a

    maioria das pessoas com quem falamos, os marcos

    da verdade e da virtude so percebidos como

    encontrveis nas relaes de intimidade e nas

    experincias mais pessoais. Tanto a situao social

    das classes mdias, quanto o vocabulrio da vida

    cotidiana j predispem para a orientao no

    sentido das fontes privadas e pessoais de sentido.

    Ns tambm percebemos uma forte identificaocom relao aos Estados Unidos como comunida-

    de nacional. No entanto, apesar de a nao ser

    vista como boa, tanto governo quanto poltica

    possuem freqentemente conotaes negativas.

    Os americanos, ao que parece, so genuinamente

    ambivalentes com relao vida pblica, e essa

    ambivalncia implica dificuldades de perceber os

    problemas que confrontam a todos. (Bellah et al.,

    1986, p. 250; traduo minha)

    Volto ao fio condutor dessa argumentao. a imagem (no caso, desvalorizada) do brasileiroacerca de si mesmo que dramatizadana teoriadamattiana. Afinal, por que supor uma tendnciainata dos brasileiros corrupo e ao estabeleci-mento de relaes de favores? Seria essa predispo-sio maior aqui do que em qualquer outro pas?Recentemente, foi descoberto na Alemanha Fede-ral um esquema de corrupo e favorecimentopoltico com 25 anos de estabilidade e incrveleficincia, que faria qualquer Fernando Collor

    brasileiro morder os lbios de inveja. 11 Admita-mos, por hiptese, que, desgraadamente, o graude corrupo no Brasil seja maior do que emoutros pases. No seria a causa desse fato umaausncia de mecanismos mais eficazes de controle,antes que uma misteriosa eficcia atvica de pa-dres culturais personalistas tradicionais da vidacolonial brasileira?

    No seria, ao contrrio, um dado estruturalda poltica em todos os pases modernos a existn-cia de um dficit de legitimidade, em oposio

    economia, por exemplo? Essa a opinio de Bellahna mesma pesquisa realizada nos EUA. Ao analisara desconfiana dos americanos em relao pol-tica, afirma o autor:

    A poltica sofre pela comparao com o mercado.

    A legitimidade deste ltimo baseia-se, em grande

    medida, na crena de que ele premia indivduos

    imparcialmente com base numa competio justa.

    Por contraste, a poltica da negociao local,

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    estadual e federal, apesar de compartilhar as mes-

    mas atitudes utilitrias do mercado, freqente-

    mente expe a competio entre grupos desiguais

    quanto aos recursos de poder, influncia, e probi-

    dade moral, os quais influem decisivamente noresultado final. (Bellah et al., 1986, p. 200; tradu-

    o minha)

    No reconhecemos nas citaes acima, nosinsuspeitos EUA, precisamente a contraprova pre-ferida de Da Matta em relao ao caso brasileiro, amesma oposio entre mundo pblico hostil emundo privado prenhe de sentido, e, mais impor-tante, a mesma percepo do mundo da grandepoltica, visto com desconfiana e distncia? Onde

    estaria, nesse sentido, a especificidade brasileira?Tambm esse aspecto no parece ser atributo

    de pases tradicionais e com tica dual. A explica-o de Bellah ao fato bem distinta. A grandepoltica percebida como amoral pela grandemaioria das pessoas porque em sociedades mo-dernas e complexas a barganha poltica realiza-

    da de forma intransparente para a grande maioria(Bellah et al., 1986, pp. 207-208). Essa umaconseqncia inevitvel da institucionalizao deesferas sociais segundo padres racional-instru-

    mentais no mundo moderno. Ao contrrio do mer-cado, no entanto, a poltica precisa legitimar-se apartir da noo de uma atividade dirigida ao bemcomum. O impulso utilitrio que a aproxima domercado afinal, todo poltico tem sua famlia pa-ra sustentar e sua carreira para cuidar precisa sertemperado e pelo menos parcialmente encobertopelo atendimento de necessidades que devem serpercebidas como de interesse de todos. A tensoentre esses dois componentes torna a corrupoum dado estrutural da esfera poltica moderna.

    Todo poltico tem de lidar com a contradio deperseguir seus fins egosticos como qualquer outrapessoa em qualquer outra atividade, e conciliaressa posio com a expectativa de que ele seja umpouco um monge extramundano. Essa contradi-o me parece estar no cerne da ambigidade en-tre figura privada e imagem pblica que to de-terminante para o resultado de eleies.

    Nesse sentido, a corrupo um fenmenoestrutural poltica e sua presena sempre latente,

    o que no significa, obviamente, que no deva sercombatida e controlada. O nosso ponto aqui mostrar que ela no tem nada a ver com o persona-lismo e o tradicionalismo que Da Matta identifica na

    sociedade brasileira. O que parece ser peculiarmen-te brasileiro a manipulao populista da corrup-o como tema central do debate poltico, num pasto carente de discusses pblicas de fundo sobreescolhas coletivas fundamentais.

    A razo ltima dessa brasilianizao decaractersticas to marcantes do mundo contempo-rneo tem a ver, acredito, com a forma idealistapela qual Da Matta percebe a relao entre valorese sua institucionalizao, assim como com a con-cepo indiferenciada de modernidade ocidental

    subjacente sua teoria. A tentativa mais recente deDa Matta (1994, especialmente pp. 125-151) de re-levar a posio do elemento intermedirio e depensar o Brasil com base no nmero trs e nomais em uma razo dualista no resolve a ques-to essencial, mas apenas a desloca. A questoessencial seria a explicao da lgica social subja-cente que permitiria tornar os fenmenos observ-

    veis determinados, ou seja, compreensveis apartir de regras e normas sociais globais. isso queDa Matta diz pretender e essa pretenso em si j

    elogivel. Mas ele substitui, sempre que lhe con-vm, a busca por essas regras ltimas por evidn-cias empricas. Isso fica claro na institucionaliza-o do intermedirio e do nmero trs.

    Afinal, de interesse para o conhecimentoseria perceber de que maneira individualismo eholismo se combinam, se institucionalizam e seestratificam de modo a produzir um terceiro ele-mento hbrido. Mas, se como vimos acima, DaMatta no determina a forma como individualismoe holismo se articulam, menos ainda pode ele

    determinar a forma como o elemento tercirioderivado desses ganha vida. O que temos naanlise damattiana desse ponto , portanto, comono poderia deixar de ser, a no mediada descrioconcreta de nossa paixo pelo hibridismo, indo ata caracterizao algo caricatural da nossa feijoadacomo hbrida de slido e lquido! O curto-circuitoconcretista chega s raias de um misticismo do trs!Nele cabem mulatas, feijoadas e o que mais nossaimaginao possa criar.

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    Uma tentativa de interpretaoalternativa do dilema brasileiro

    Mas, poder-se-ia perguntar, como esclarecer

    ento as inmeras situaes flagrantes de desigual-dade que abundam no nosso pas, como nosmostra a anlise do ritual do voc sabe com quemest falando? Como explicar a desigualdade e ainjustia social abismal no Brasil sem buscar umaduvidosa continuidade atvica de relaes pesso-ais todo-poderosas do passado? Como levar emconta as efetivas e profundas transformaes sofri-das pelo pas no nosso j secular processo demodernizao e, ao mesmo tempo, explicar apermanncia de desigualdades to inquas? Afinal,

    era essa questo fundamental que Da Matta haviaprocurado responder a partir da permanncia se-cular do personalismo e de relaes sociais associ-adas a este. Como construir uma explicao alter-nativa a esse problema to importante?

    O desafio passa a ser, portanto, explicar oatraso social e poltico brasileiro sem apelar paraexplicaes que enfatizem a permanncia do per-sonalismo como o ncleo da formao social brasi-leira. Em outro trabalho (Souza, 2000), com maiordetalhe e vagar, procurei demonstrar a ntima rela-

    o de noes como herana ibrica, personalismoe patrimonialismo, formando a interpretao domi-nante dos brasileiros sobre si mesmos, seja na esferada reflexo metdica, seja na esfera poltico-institu-cional. Essa concepo, que tem representantes docalibre de um Srgio Buarque ou Raymundo Faoro,alm do prprio Da Matta, logrou transformar-se,de h muito, tanto em senso comum na realidadecotidiana, quanto em projeto poltico explcito,influenciando decisivamente nossa realidade insti-tucional e as prticas sociais associadas a ela. De

    acordo com essa concepo, que poderamos cha-mar de nossa sociologia da inautenticidade, oBrasil o outro ou um desvio da modernidade,tendo sido modernizado para ingls ver, umamodernizao epidrmica e de fachada.

    Nos limites deste artigo procurarei me con-centrar apenas em demonstrar de que modo umaadequada considerao da relao entre valores esua institucionalizao, por um lado, vinculando-acom a questo da estratificao social, por outro

    lado, pode ajudar a vislumbrarmos uma outraconcepo do processo de modernizao brasilei-ro. Essa viso alternativa tem, a meu ver, a vanta-gem de permitir perceber a sociedade brasileira no

    seu dinamismo e complexidade inegveis, ou seja,permite perceber a efetiva modernizao do pas,ao mesmo tempo que nossa misria e nosso atrasorelativo como resultado da seletividade desse mes-mo processo de modernizao.

    Gostaria de desenvolver a tese acima, aindaque de forma tentativa e incompleta, a partir deuma reinterpretao do trabalho de um outroclssico do pensamento social brasileiro: GilbertoFreyre. A relao entre Roberto Da Matta e GilbertoFreyre interessante e intrigante. Por um lado, os

    dois so comumente percebidos como pensadoresde uma vertente peculiar de pensamento socialbrasileiro, aquela que concentra sua ateno emaspectos normalmente no considerados pela tra-dio cientfica dominante, como rituais, costumese hbitos cotidianos. O prprio Da Matta levantaum outro ponto em comum: os dois fariam umasociologia de quem gosta do Brasil, ou seja, queseria crtica da tendncia pessimista de s verdefeitos no pas (Da Matta, 1999b). De um pontode vista mais analtico, noes fundamentais para

    Da Matta, como a oposio casa/rua, seriam influ-ncias freyrianas (Da Matta, 1991, p. 60).

    No entanto, uma leitura atenta permite perce-ber que os dois autores partem de pressupostosdistintos e chegam a concluses que no poderiamser mais dspares. Seno, vejamos. J na viso dasingularidade histrica brasileira, um ponto bsicopara a empresa terica de ambos, a perspectivadesses autores no poderia ser mais antagnica.Enquanto Da Matta segue, no fundamental, a visofaoriana (Da Matta, 1991, p. 83) da transmisso da

    herana patrimonial portuguesa ao Brasil, de umEstado patrimonial centralizado e todo-poderosoque inibiria o localismo e o associativismo, Freyreparte do princpio oposto. Para Gilberto Freyre, oBrasil colonial seria um caso extremo de descentra-lismo poltico, criando as condies para um patri-arcalismo que se cristaliza em mandonismo localilimitado, pela ausncia seja de instituies inter-medirias acima da famlia, seja de efetiva ao econtrole do Estado.

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    A essa oposio inicial correspondem diag-nsticos conflitantes acerca do que caracterizaria amodernidade do Brasil. Enquanto Da Matta pareceacreditar na continuidade de um esquema rgido

    de poder que constitui a base emprica do seuquadro de uma sociedade hierrquica que, mesmono contexto de uma sociedade complexa e diferen-ciada como a do Brasil da segunda metade dosculo XX, seria misteriosamente comandada porrelaes pessoais de famlia e compadrio, Freyredesenvolve um raciocnio diametralmente oposto.

    Minha hiptese que encontramos em Gil-berto Freyre as bases para uma interpretao daformao social brasileira em que o dado da nossasingularidade posto em primeiro plano. De acor-

    do com essa interpretao, o Brasil seria umasociedade sui generise no uma mera continuaode Portugal. Esse ponto fundamental, j queFreyre tambm enfatizou, especialmente nos seusescritos luso-tropicalistas, essa continuidade. Semquerer negar que ele tenha estimulado decisiva-mente tambm essa tradio por exemplo, aoforjar o conceito de plasticidade do portugus,conceito esse que seria mais tarde adotado porSrgio Buarque e que implica uma viso idealistada relao entre valores e sua institucionalizao

    , creio ser possvel, porm, perceber uma visoalternativana sua obra. Essa viso alternativa tal-

    vez tenha sido pouco consciente para o prprioFreyre. De qualquer modo, penso que a partirdela que mais podemos aprender com este autor e dela que poderemos retirar o cerne da atualidadeda multifacetada obra freyriana.

    Essa viso alternativa baseia-se em duas idi-as principais. A primeira, que forma o ncleo doargumento de Casa-grande e senzala(Freyre, 1957[1933]), a idia da sociedade colonial brasileira

    como uma sociedade sadomasoquista. A segunda,ncleo do argumento desenvolvido em Sobrados emucambos (Freyre, 1990 [1936]), a idia daconstituio da modernidade brasileira sob a formapeculiar de uma europeizao que transforma opas de alto a baixo a partir da primeira metade dosculo XIX.

    A tese da sociedade sadomasoquista no isenta de ambigidades. Ela se refere ao estatutopeculiar da instituio da escravido no Brasil. J

    aqui temos uma descontinuidade fundamental emrelao a Portugal. A escravido, fenmeno margi-nal em Portugal, uma instituio total no Brasilcolonial. Em Freyre, a viso sobre a especificidade

    da escravido brasileira alterna-se entre uma nfa-se no sadomasoquismo e uma concentrao notema da mestiagem. Essa ambigidade constitu-tiva da forma como Freyre percebe a singularidadeda escravido brasileira. Esta seria uma formamuito peculiar de escravido, uma escravidomuulmana (Freyre, 1969, pp. 179-180). Malgradotodas as caractersticas comuns a todas as formasde escravido na Amrica, essa forma de escravi-do teria particularidades importantes.

    Para Freyre, a escravido muulmana aque-

    la que repete a estratgia muulmana nas suasguerras de conquista e escravizao, que permitiaao escravo nascido de muulmano ser equiparado aeste em status caso assumisse a religio e osvalores do pai (Freyre, 1969, p. 181). Essa astucio-sa estratgia propicia uma expanso e durabilidadeda conquista inigualveis na medida em que asso-cia o acesso a bens materiais e ideais muito concre-tos identificao do dominado com os valores doopressor. A conquista pode assim abdicar da vigi-lncia e do emprego sistemtico da violncia para a

    garantia do domnio e passar a contar crescente-mente com um elemento volitivo internalizado edesejado pelo prprio oprimido. O Brasil Colniaestava cheio de exemplos desse tipo de poltica.Isso permitia que fossem usados aqui capites-de-mato e feitores negros ou mulatos, fato impensvelnos EUA, por exemplo, onde toda a atividade de

    vigilncia e controle dos escravos era realizadaexclusivamente por brancos (Degler, 1971, p. 84).Permitia tambm a povoao de enormes massasterritoriais sem que a dominncia do elemento

    conquistador fosse posta seriamente em perigo.Essa astuciosa estratgia de domnio, se no

    plo negativo implica subordinao e sistemticareproduo social da baixa auto-estima nos gruposdominados, no plo positivo abre uma possibilida-de efetiva e real de diferenciao social e mobilida-de social. a partir desse plo positivo que Freyreconstri sua tese da mestiagem como peculiarida-de social brasileira. Essa construo, por secundari-zar o elemento de opresso e subordinao siste-

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    mtica, ideolgica e conservadora no mau sentidodesse termo. Ela efetivamente levou Freyre, prova-

    velmente influenciado pela tradio germnica doVolksgeist (esprito do povo), 12 estimulado talvez

    pelo seu mestre Boas, a pleitear uma espcie decontribuio singularmente brasileira civiliza-o. Apenas a partir dessa idia que podemoscompreender a contraposio que perpassa a suaobra entre a democracia racial ou social, comoele preferia brasileira e a democracia apenaspoltica dos norte-americanos. Esse relativismopoliticamente perigoso o levaria, especialmente nassuas obras luso-tropicalistas, a toda espcie dedelrio culturalista acerca de supostas especificida-des culturais do moreno e mestio, e toda sorte de

    elogio do autoritarismo poltico para a proteodessa pretensa originalidade luso-tropical. tam-bm o tema da mestiagem que faz Freyre enfatizara continuidade entre Portugal e Brasil. Este seria,afinal, um gen cultural herdado dos portugueses.

    No esse Gilberto Freyre que pretendoreaproveitar aqui. Bem mais interessante, no en-tanto, sua idia da construo de uma sociedadesingular no Brasil colonial uma clara desconti-nuidade em relao a Portugal, portanto dada aproeminncia da escravido e de uma forma muito

    peculiar desta. O tema do sadomasoquismo emFreyre ainda no foi, at onde sei, para alm decitaes tpicas dos casos mais escabrosos queabundam especialmente em Casa-grande e senza-la, tratado sistematicamente.

    Na construo do seu argumento, GilbertoFreyre retira todas as conseqncias do fato de quea famlia a unidade bsica, dada a distncia doEstado portugus e de suas instituies da forma-o social brasileira, o que o permite interpretar odrama social da poca sob a gide de um conceito

    psicoanaltico e da psicologia social. Na construodesse conceito, Freyre concentra-se em condicio-namentos estritamente macrossociolgicos, seme-lhantes queles que guiariam a reflexo de NorbertElias (apenas seis anos mais tarde) acerca do casoeuropeu na passagem da Baixa Alta Idade Mdia.

    Antes de tudo, o carter autrquico do dom-nio senhorial condicionado pela ausncia de insti-tuies acima do senhor territorial imediato era ofundamento dessa especificidade compartilhada por

    essas duas sociedades. Uma tal organizao societ-ria, especialmente quando o domnio da classedominante exercido pela via direta da violnciaarmada (como era o caso nos dois tipos de socieda-

    de), no propicia a constituio de freios sociais ouindividuais aos desejos primrios de sexo, agressivi-dade, concupiscncia ou avidez. As emoes so

    vividas em sua reaes extremas, so expressasdiretamente, e a convivncia de emoes contrriasem curto intervalo de tempo um fato natural.

    A explicao sociolgica para a origem dessepecado original da formao social brasileira,para Gilberto Freyre, exige a considerao danecessidade objetiva de um pequeno pas comoPortugal de solucionar o problema de como colo-

    nizar terras gigantescas pela delegao da tarefa aparticulares, antes estimulando do que coibindo oprivatismo e a nsia de posse. Como resultado, noexistia justia superior dos senhores de acar egente, como em Portugal era o caso da justia daIgreja, que decidia em ltima instncia querelasseculares; no existia tambm poder policial inde-pendente que lhes pudesse exigir cumprimentosde contrato, como no caso das dvidas impagveisde que fala Freyre; no existia ainda poder moralindependente, posto que a capela era uma mera

    extenso da casa-grande. nesse contexto de total dependncia dos

    escravos em relao ao senhor, sem a proteo queo costume e a tradio garantiam ao servo da glebaeuropeu e que lhe possibilitava a constituio deauto-estima e reconhecimento social independen-tes da vontade do senhor, que podemos compre-ender a especificidade do tipo de sociedade queaqui se constituiu. A proteo era discrio dosenhor e estava relacionada a outra caractersticarabe da sociedade colonial brasiliera: a famlia

    poligmica. Os filhos dos senhores e escravos,desde que assumissem os valores do pai, ou seja,se eles se identificassem com ele, tinham a possibi-lidade de ocupar os postos intermedirios emsociedade to marcadamente bipolar. Devia haverinclusive grande concorrncia seja entre os filhosilegtimos seja entre as candidatas a concubinaspelos favores e pela proteo do senhor e de suafamlia. Existiam prmios materiais e ideiais muitoconcretos em jogo de modo a recompensar quem

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    melhor interpretasse e internalizasse como se fossesua a vontade e os desejos do dominador. E

    precisamente essa assimilao da vontade externa

    como se fosse prpria, assimilao essa socialmente

    condicionadae que mata no nascedouro a prpriaauto-representao do dominado como um ser in-dependente e autnomo, que o conceito de sado-masoquismo quer significar.

    A importncia desse tema para uma compre-enso da sigularidade social e cultural brasileirano deve ser subestimada. No tipo de sociedadedescrito em Casa-grande e senzala o sadomaso-quismo tem os seus efeitos restritos famliapoligmica e sua complexa trama de favores eproteo, de afetos e invejas, de dio e amor. No

    entanto, na sociedade brasileira analisada em So-brados e mucambos, um Brasil que se modernizasob impacto de uma Europa agora no mais mou-risca como o Portugal que nos colonizou, mas jindividualista e burguesa conforme os exemplosda Inglaterra, Frana e Alemanha, o sadomasoquis-mo pode ser visto como condicionando de formamuito interessante o Brasil moderno.

    Em Sobrados e mucambosencontramos, ain-da que em estado bruto e no desenvolvido explici-

    tamente, uma viso absolutamente singular do

    processo de modernizao brasileiro, a partir daconsiderao da relao entre valores e sua institu-cionalizao, acrescida da preocupao com aquesto do acesso diferencial por grupos e classesaos frutos da mesma. Justamente os pontos quehavamos percebido como ausentes na sociologiadamattiana.

    que o processo que Freyre ir descreverneste livro sob a palavra-chave de reeuropeiza-o procura perceber modificaes tanto estrutu-rais quanto culturais no processo singular de mo-

    dernizao brasileiro. A Europa que nos chega denavio a partir de 1808, com a vinda da familia reale a abertura dos portos, contrape-se espcie deChina tropical que era o Brasil colonial. Umasociedade patriarcal sadomasoquista, onde mulhe-res, crianas e escravos eram extenso da vontadedo senhor. Uma sociedade que mal conhecia atrao animal, onde os brancos no se davam aotrabalho de andar na rua pelas prprias pernas,sendo carregados em palanquins pelos negros. Era

    uma sociedade movida a trao humana e primiti-vamente antiigualitria e antiindividualista.

    tendo esse contexto em mente que pode-mos compreender o que significou a reeuropeiza-

    o para os brasileiros. A interpretao dominantedesse processo enfatiza o carter superficial, epi-drmico, imitativo dessa transformao. isso quepermite a manuteno do paradigma do persona-lismo como interpretao dominante dos brasilei-ros sobre si mesmos at hoje. De Srgio Buarqueat Raymundo Faoro ou Roberto Da Matta, opersonalismo percebido como formando o n-cleo duro da sociedade brasileira e como a nicaforma de exercitarmos a crtica social de nossasmazelas. Somos atrasados porque somos persona-

    listas nessa verso largamente dominante na Soci-ologia entre ns. At Gilberto Freyre, especialmen-te em Sobrados e mucambos, pode ser, e na maiorparte das vezes foi efetivamente, interpretado nes-se mesmo sentido. O brasileiro teria se europeiza-do para ingls ver, passado a beber cerveja ecomer po como um ingls, passado a se vestircomo um francs, mas no s as suas idiasestariam fora de lugar, como todo o seu ser seriainautntico, uma grande farsa imitativa.

    Uma leitura alternativa de Sobrados e mu-

    cambos pode nos dar uma outra viso desseprocesso. que para Freyr e o personalismo, antestodo dominante, ferido de morte com a reeuropei-zao. E ele ferido de morte porque o que noschega de navio a partir de 1808 no so apenasidias e mercadorias exticas. Na verdade, e esse o ponto fundamental aqui, nos chegam as duasinstituies mais importantes da sociedade moder-na: Estado racional e mercado capitalista. Afinal,no apenas a famlia real que nos visita, mas todoum aparato de vinte mil funcionrios e o equiva-

    lente a dois teros do meio circulante portugus.Esse Estado, que merece o nome de racional nosentido moderno do termo, ir pela primeira vezno nosso pas se concentrar no atendimento dedemandas da populao local, sob a forma dosinmeros melhoramentos que so introduzidosnessa poca, assim como na criao da infra-estrutura para o funcionamento de comrcio eindstria, como a criao de instituies de crditoe fomento produo.

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    Tambm a abertura dos portos no significaapenas simples expanso da troca de mercadorias.

    A troca de mercadorias, o comrcio, ir reproduziraqui o mesmo processo que operou alhures: fun-

    cionar como principal elemento dissolvente derelaes tradicionais. Mais ainda, o comrcio seracompanhado da introduo de manufaturas e atda maquinofatura. Mercadorias e mquinas noso produtos materiais quaisquer. Eles so sintomade relaes sociais de outro tipo. Eles pressupemuma disciplina prpria para seus operrios eaprendizes, eles pressupem uma nova viso daconduo da vida cotidiana e at uma nova econo-mia emocional adequada s suas necessidades.No se precisa de uma revoluo protestante asc-

    tica para se construir uma sociedade moderna:Estado e mercado fazem esse trabalho e produzemo tipo de indivduo que precisam a partir deestmulos empricos bastante concretos.

    Estado e mercado no so o mundo da ruaque pra na porta das nossas casas. Eles entram nanossa casa; mais ainda, eles entram na nossa almae dizem o que devemos querer e como devemossentir. enganoso separar casa e rua (sendo a ruapercebida como o mundo impessoal do Estado edo mercado, como vimos), como enganoso

    supor a permanncia atvica de relaes persona-listas numa sociedade estruturada por Estado emercado. J discutimos acima a importncia dopoder constitutivo de relaes sociais de novo tipoa partir da eficcia do Estado e do mercado.Gilberto Freyre nos mostra com maestria como opersonalismo, ou patriarcalismo como ele preferia,desde o incio do processo de reeuropeizao, ferido de morte j na prpria casa do patriarca. Seucontrole sobre sua prpria mulher decresce e ele superado e vencido pelo filho formado em escolas

    europias que passam a atender melhor as novasnecessidades do aparelho estatal e do incipientemercado que se cria. 13

    Que esse processo de modernizao sejapaulatino, que tenha comeado a partir de umabase incipiente e que tenha sido repleto de revesese frustraes, no nos deve cegar com relao compreenso do processo como um todo. Pode-sereconstruir a anlise emprica e descritiva freyrianade modo a percebermos que a implantao incipi-

    ente do Estado e do mercado constitui, paralela-mente ao escravismo ainda todo dominante nomeio rural, uma sociedade de tipo novo nas cida-des brasileiras mais importantes do sculo XIX.

    Nossa modernizao no comea com o Estadointerventor dos anos 30 que cai dos cus criandodemiurgicamente o Brasil urbano e capitalista: essenovo Brasil moderno gestado paulatinamentedurante todo o decorrer do sculo anterior.

    Esse ponto importante posto que vai deencontro interpretao, dominante entre ns, deque esse processo fundamental seria um mal-entendido, uma revoluo para ingls ver, epi-drmica e inautntica. Essa uma viso idealista darelao entre valores e sua institucionalizao.

    Freyre capta, como Max Weber na sua sociologiada religio, os dois momentos dessa complexarelao recproca. Sem idias e valores novos noh mudana social possvel. Sem estruturas queinstitucionalizem esses novos valores e idias na

    vida cotidiana, por outro lado, no h como eles sereproduzirem no mundo concreto. essa relaoque Freyre percebe melhor que qualquer outrointrprete que conheo desse perodo.

    Mas reeuropeizao no apenas diferencia-o social das esferas poltica e econmica. Reeuro-

    peizao no se confunde, portanto, com simplesmodernizao. Ela tambm ndice de um padroespecfico de assimilao cultural. A forma pelaqual assimilamos a modernidade tem semelhanacom a forma pela qual, na anlise de Elias, as classesinferiores adotam o padro cultural e o gosto dasclasses superiores. Elas o fazem sob o preo de umaVerkitschung der Seele (Elias, 1989, vol. I, p. 426),algo como, numa traduo livre, uma ausncia deoriginalidade da alma. O kitch, ou seja, a assimi-lao irrefletida, produzida pelo prestgio de valor

    absoluto de tudo que tinha ou tem ainda hoje a vercom Europa. Se o valor absoluto, isso significa queno existe distncia crtica possvel em relao a ele.

    Aqui no se trata da inautenticidade da nossa mo-dernidade, lembrada por vrios crticos, mas preci-samente do fenmeno contrrio. Afinal, no a su-perficialidade da assimilao que est em jogo, mas,ao contrrio, sua absoro to completa que noexiste espaos de desenvolvimento de um projetoculturalmente original a partir dela.

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    Foi a absoro da modernidade de fora paradentro como um valor absoluto que impediu eimpede tanto a existncia de distncia crtica emrelao a esse projeto, como tambm a naturalida-

    de que encontramos nos europeus ocidentais. Oseuropeus, e os norte-americanos claro afinal,no estamos falando de geografia mas de raciona-lismos culturais , podem se dar ao luxo dedesenvolver um padro prprio e peculiar deserem modernos. A ansiedade de ser moderno, agrande vontade galvanizadora nacional desde ocomeo da reeuropeizao at hoje, nos impedeque sejamos modernos ao nosso modo e at, nolimite, que nos reconheamos como tais. Todauma gama de questes importantes se descortina a

    partir desse fato.Freyre tambm percebe, outra bvia corres-

    pondncia com Max Weber, que toda inovaovalorativa e institucional exige a identificao dasclasses e grupos que lhe servem de suporte. Oesclarecimento dessa relao permite visualizar,ainda, em benefcio de quem se deu a transforma-o. nesse ponto que podemos unir as duaspontas do raciocnio que estamos desenvolvendoneste texto. que a classe intermediria entresenhores e escravos criada pelo tipo singular de

    escravido muulmana que se desenvolveu entrens encontra no contexto da reeuropeizao, pelaprimeira vez, um lugar prprio e no apenas osinterstcios de um sistema to marcadamente bipo-lar como o escravista.

    O mulato, pensado aqui mais como tiposocial do que como cor de pele, filho da ntimacomunicao tipicamente muulmana entre desi-guais, o elemento que ir de certa forma equiva-ler ao nosso elemento mais tipicamente burgusnaquela sociedade em transformao. ele que

    ser o aprendiz do estrangeiro nas manufaturas ouo ajudante do comerciante, estimulado pela ausn-cia relativadaquele preconceito congnito ao ele-mento superior de toda sociedade escravocratacontra o trabalho manual. 14 ele tambm queascender, pelo estudo e mrito pessoal, compe-tindo com o elemento aristocrtico branco, a fun-es nobres do aparelho de Estado, na vida liter-ria, na esfera da cincia etc. Ele o primeirosuporte do componente burgus e individualista

    na nossa sociedade, por incorporar o elemento devalorizao pelo saber e pelo mrito pessoal. Nadamais burgus e individualista, pela oposio a todadeterminao adscritiva de valores e posies her-

    dadas familisticamente, que forma a base da estra-tificao social de sociedades tradicionais.

    Interessante que o padro de ascensosocial, ou de cidadania, como diramos hoje emdia, continua, no sculo XIX, o mesmo da pocacolonial: o princpio do escravismo muulmano.Ele se d individualmentee para aqueles que seidentificam com os valores do dominador, no caso,agora, j os valores impessoais do individualismoeuropeu. apenas o mulato talentoso, estudioso eapto que ascende. Apenas aquele que se europe-

    za. Mais interessante ainda notar que no sculoXX, quando os valores da modernidade j tm co-mo suporte o Estado interventor, os setores e gru-pos que ascendem cidadania, cidadania regula-da, no caso (ver Santos, 1998, pp. 103-109), sotambm aqueles que se identificam com o projetomodernizador estatal. A sociedade se impessoalizamas a regra da incluso e da excluso se mantm.

    Esse ponto importante posto que descobreuma especificidade fundamental de nossa socieda-de. Aqui a ascenso social no se deu, como na

    Europa, coletivamente. Na esteira de Weber, Char-les Taylor (1997, especialmente pp. 273-300) per-cebe que a auto-estima protestante, baseada nanoo de trabalho sagrado, inverte a ordem domundo tradicional em todas as suas dimenses,especialmente na esfera poltica. A noo de traba-lho intramundano como o caminho especifica-mente protestante de salvao revolucionria emdois sentidos fundamentais. Primeiro, ela reverte oiderio, que vingava desde a Antiguidade, dapreponderncia da contemplao sobre a ao, ou

    do trabalho contemplativo sobre o trabalho manu-al e prtico, acarretando aquilo que Taylor chamade afirmao da vida cotidiana. Ocorre umaespcie de inverso valorativa de 180 graus: asatividades prticas e manuais so valorizadas custa do desprestgio de qualquer esforo contem-plativo intil. O simples marceneiro vale mais doque o filsofo na sua torre de marfim. 15 Essa idia intrinsecamente democrtica, j que implica adeslegitimizao da hierarquia social, estamental e

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    tradicional, associada desqualificao do traba-lho manual e pragmtico.

    Em segundo lugar, ela revolucionria nosentido de que a dignidade individual, ou, em

    termos polticos, o direito cidadania passa a servinculado ao trabalho. A ascenso da burguesia sed quando a crtica aristocracia como classeociosa, que no trabalha, ganha legitimidade emamplas camadas da sociedade. Tambm a ascen-so do proletariado se deve ao prestgio do valor-trabalho. Nesse sentido, uma concepo como ado valor-trabalho marxista s se torna compreens-

    vel num contexto em que a revoluo protestantetenha fincado razes slidas e influenciado, inclusi-

    ve, pases catlicos, como o caso paradigmtico

    da Frana. A enorme eficcia social das teoriaspolticas seculares do valor social do trabalho, quepermitem a ascenso poltica do proletariado nodecorrer do sculo XIX, apia-se, vicariamente, narevalorizao protestante do trabalho til.

    Tambm foi o trabalho que permitiu a unifor-mizao de uma economia emocionalpara todosos estratos na sociedade moderna. A burguesia,como primeira camada dirigente da histria quetrabalha(Elias, 1989, vol. II, pp. 434-455), possibi-litou a produo de um tipo uniforme de ser

    humano, a partir do compartilhamento da relaotpica entre emoes e razo exigida pela produ-o capitalista, como calculabilidade, previsibilida-de, maior importncia da satisfao adiada denecessidades etc. Nos mais variados sentidos, por-tanto, o trabalho revalorizado o pressuposto domundo moderno como o conhecemos, sendo,inclusive, um pressuposto da idia de cidadaniamoderna baseada na noo da igualdade do valorde cada um, na medida em que todos trabalham econtribuem igualmente para o desenvolvimento da

    coletividade.Nesse sentido, divergindo em parte do que

    pensa Wanderley Guilherme dos Santos, o argutopropositor desse conceito, no creio que o proble-mtico na noo de cidadania regulada seja o fatode a cidadania no se originar da expanso dos

    valores inerentes ao conceito de membro da comu-nidade, na medida em que esses valores ineren-tes ao conceito de membro da comunidade atbem pouco tempo 16 eram corolrio do princpio

    de que os homens so iguais porque trabalham eseu trabalho possui um valor tendencialmenteintercambivel. O interesse da noo de cidadaniaregulada reside, a meu ver, em outro lugar. Antes

    de tudo no fato de sua seletividade estar ligada aoesforo de modernizao tendo o Estado comosuporte, ou seja, no fato de que algumas funesou profisses so tidas como mais importantes doque outras para o esforo societrio de moderniza-o, invertendo a tendncia equalizante que pre-dominou nos pases centrais do Ocidente, pondo anu, dessa forma, uma sobrevivncia histrica delonga durao.17 Nesse ltimo aspecto, ela mostrauma surpreendente continuidade histrica, evi-dentemente sob outras formas, agora impessoais,

    da regra de incluso e excluso vigente desde oBrasil Colnia. Esta implica, desde a escravidomuulmana, a cooptao sistemtica dos mem-bros mais capazes das classes populares, explican-do a convivncia de misria intermitente com realpossibilidade de ascenso social para os setoresdesprivilegiados que sempre caracterizou nossopas. Ajuda tambm a que se perceba a misria, aomenos parcialmente, como fracasso individual.

    Desse modo, fato que ajuda a relativizar ematizar o argumento que venho desenvolvendo ao

    longo deste artigo acerca da necessidade de consi-derarmos a eficcia institucional do Estado e domercado, essas duas instituies estruturais noforam suficientes para possibilitar, por si mesmas,a homogeneizao das condies e oportunidadessociais. que o mesmo conjunto de circunstnciasque constituram o Brasil moderno apenas acontraface de um processo maior que cria a nossamisria e desigualdade. A paulatina decadncia daeconomia e da sociedade escravocratas, o setormenos dinmico da dualidade transicional que se

    constitui na poca da reeuropeizao, vai expulsarpara a margem do sistema toda uma legio deinadaptados ao novo sistema vencedor. So elesque vo constituir nossos prias urbanos e ruraisdesde ento.

    O fato de a Europa moderna no ter tido suagnese em sociedades escravocratas, como lembraElias ao ressaltar sua ruptura em relao a essaherana do mundo antigo, facilitou esse processode equilbrio entre as diversas classes e a univer-

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    salizao da categoria de cidado. O cidado precisamente o resultado do longo processo desubstituio da regulao externa pela regulaointerna da conduta. Ele no s tem os mesmos

    direitos, mas tambm a mesma economia emocio-nal. O reconhecimento da interdependncia entreas diversas classes que trabalham, acordo s pos-svel quando a primeira classe dirigente da histriaque trabalha, a burguesia, assume o poder, propi-ciou uma equalizao efetiva internamente a cadaespao nacional. Foi criado um tipo humano uni-forme, seja na sua organizao afetiva, seja na suaorganizao racional e valorativa, uniformidadeessa percebida por Elias como o pressuposto estru-tural do cidado moderno. justamente essa cons-

    cincia da interdependncia socialque obstacu-lizada em sociedades to influenciadas pelo escra-

    vismo como a nossa (ver Elias, 1989, vol. II, p. 70).No caso brasileiro, o processo de moderniza-

    o que torna a sociedade escravocrata caduca apartir da primeira metade do sculo XIX abandona prpria sorte toda uma classe, a dos escravos, quejamais ir recuperar qualquer funo produtiva nanova ordem. a que se cria uma classe de priasurbanos e rurais que valem, no s para uma elitem mas, objetivamente, para toda a sociedade,

    inclusive para as prprias vtimas, menos do queoutros. Nesse contexto no existe, objetivamente,cidadania, mas apenas sub e supercidados. Masno , como afirma Da Matta, o no acesso arelaes personalistas privilegiadas que acarreta asubcidadania. So valores objetivamente inscritosna nossa lgica institucional e no mago do nossosenso comum, sendo resultado da forma singularpela qual fomos efetivamente, e no epidermica-mente como pensa Da Matta, modernizados. 18

    A tematizao do nosso atraso, misria e

    desigualdade no precisa do paradigma persona-lista para ser criticado. Essa idia, primeiro gestadapor pensadores em universidades e depois trans-formada em projeto poltico e prtica social einstitucional, reveste o brasileiro de hoje comouma segunda pele, com conseqncias e efeitosdeletrios. O projeto poltico do personalismo,especialmente na sua verso patrimonialista, oprograma poltico hegemnico tanto dos ocupan-tes do poder quanto da oposio. Para o projeto

    poltico no poder, o programa racionalizar oEstado de modo a estimular a competio e eficin-cia do mercado. Na oposio, o mote a crticapopulista corrupo, esse dado estrutural da

    poltica moderna, que no patrimonialismo transfor-mado em senso comum adquire contornos deespecificidade brasileira. Os aparentes contendo-res lutam num mesmo campo comum de idias.

    Essa concepo pressupe que a poltica uma atividade intra-estatal e esquece uma terceirainstituio, alm de Estado e mercado, que veiomodificar fundamentalmente a vida pblica e pri-

    vada modernas: a esfera pblica. Habermas, enisso reside sua importncia seminal para a Socio-logia contempornea, foi o terico da lgica espe-

    cfica a essa instituio. Uma discusso pblica dafuno dessa esfera social fundamental jamais foirealizada entre ns, embora seja indispensvel etalvez o passo mais importante para o resgatematerial e simblico dos nossos miserveis. Soquestes que ficam no limbo na interpretaopersonalista e patrimonialista de nossa reflexoterica e das prticas sociais e institucionais que seformam a partir dela.

    NOTAS

    1 Veremos mais adiante que essa atitude a raiz daquiloque iremos criticar como concretismo fora de lugar.

    2 O dualismo s vezes interpretado como um esquematripartite tambm, onde alm da casa e da rua teramoso outro mundo. Cf. Da Matta (1991, p. 68).

    3 Refiro-me aqui s aporias que marcaram boa parte doassim chamado marxismo ocidental, antes de tudopresentes na obra de Georg Lukcs. Ver especialmenteLukcs (1988).

    4 A noo que explica essa relao em Weber a de

    paradoxo das conseqncias. Para uma excelentediscusso desse aspecto da obra weberiana ver Cohn(1979). Em Elias, o conceito central nesse tema o demecanismo (por exemplo, o mecanismo de descentra-lizao, base do feudalismo europeu), para indicar umanecessidade sistmica independente da intencionalida-de dos grupos e classes que sofriam sua influncia. VerElias (1989, especialmente o vol. 2).

    5 Para uma introduo ao pensamento simmeliano e parao estudo de sua abordagem dos efeitos da economiamonetria sobre a personalidade individual, ver o con-junto de textos da coletnea que organizei com BertholdOelze (1998).

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    6 Essa mesma crtica de um concretismo fora de lugar foifeita ao Habermas da dcada de 60 pela sua proposiode uma oposio no mediada entre ao estratgica eao interativa como correspondendo a espaos soci-ais distintos. Durante toda a dcada de 70 procurou

    Habermas uma articulao entre os nveis da ao sociale da ordem social de modo a esclarecer essa relao. Oresultado dessas investigaes redundaram no seu Teo-ria da ao comunicativa, de 1981. No obstante, odualismo habermasiano ainda , talvez, o ponto maiscriticado de toda sua teoria sociolgica. Ainda sobre afallacy of misplaced concreteness ver Parsons (1968,pp. 29, 589 e 753).

    7 Esse exemplo me foi sugerido por Marcelo Neves emconversa acerca desse tema.

    8 A noo de pessoa mais complexa e ser discutidaseparadamente a seguir.

    9 A oposio correspondente mais comum aquela entre

    individualismo possessivo e expressivo.10 De resto, longe de ser uma caracterstica folcloricamente

    brasileira, no seria a oposio entre casa e espaopblico hostil uma construo apenas possvel no mun-do impessoalizado moderno? No seria uma necessida-de especificamente contempornea de pases urbaniza-dos e industrializados a produo fantasiada ou real deuma oposio entre vida pblica e vida ntima, repre-sentando essa ltima uma espcie de refgio nummundo sem corao (ttulo de um famoso livro deChristopher Lasch sobre o tema). No seria a matria-prima dessa extraordinria e multifacetada fbrica deiluses chamada Hollywood precisamente a habilida-de em manipular essa necessidade de todos ns, ho-

    mens e mulheres modernas, de proximidade, afeto,cumplicidade, que a unio romntica entre os sexospromete numa casa para dois? Casa na qual os futurosfilhos, amigos e parentes poderiam desfrutar de umasociabilidade oposta da sociedade hostil fora de ns.Por que chamar o sentimento de aconchego e de bem-estar que a vida da casa e da famlia promete, inclusiveo desejo de que essa lgica seja a dominante na nossa

    vida, de brasileiro? Ele me parece, ao contrrio, umacaracterstica invariante das sociedades modernas.

    11 Refiro-me ao escndalo envolvendo o ex-primeiro-ministro alemo Helmut Kohl amplamente divulgadopela imprensa.

    12 A noo de esprito do povo tributria da extraordi-nria influncia do romantismo alemo na filosofia e nascincias sociais daquele pas. O romantismo, em reaoao iluminismo e ao universalismo de origem francesa einglesa, enfatizou a singularidade e incomparabilidadetanto da personalidade individual quanto de culturassingulares. Uma cultura percebida como produzindoum tipo especfico de ser humano com caractersticastendencialmente incomparveis. Para um estudo dagnese histrica dessa concepo de mundo, assimcomo para suas conseqncias para a singularidadecultural e poltica alem, ver Souza (2000, pp. 143-158).

    13 Essa dominao dos mais jovens foi to caractersticanesse perodo que mereceu do sempre arguto JoaquimNabuco o nome de neocracia. Ver Freyre (1990, p. 88).

    14 Aqui cabe observar que o preconceito contra o trabalhomanual, como todo preconceito, espraia-se tendencial-

    mente por todos os estratos sociais. No obstante, ospreconceitos possuem tambm fora maior ou menordependendo do estrato social de que estamos falando,mormente para aqueles estratos que s possuam asmos como instrumento de trabalho.

    15 No por acaso, portanto, que essa atitude pragmticaem relao ao mundo foi desenvolvida nos EUA maisque em qualquer outra sociedade do Ocidente.

    16 A perda de eficcia estrutural da teoria do valor-traba-lho, como resultado do prodigioso progresso tecnolgi-co do capitalismo depois da Segunda Guerra Mundial,na medida em que o trabalho cientfico altamentequalificado aplicado produo deixa de guardar qual-

    quer relao de intercambialidade com o trabalho noqualificado, inspirou a mudana habermasiana do para-digma do valor-trabalho para a virada lingstica(linguistische Wende). Ver, sobre este tema, especial-mente Habermas (1969, pp. 48-104). A pressuposio deigualdade dos homens e mulheres no se d maisporque todos trabalham, mas, agora, porque todosparticipam com iguais direitos do mesmo horizontelingstico, prenhe de pressupostos e conseqnciasmorais.

    17 A cidadania regulada seria, nessa linha de raciocnio,antes que um achado de engenharia institucional daRevoluo de 30, como defende Santos (1998, p. 104),uma espcie de elo tardio e impessoal de uma prtica

    secular no nosso pas.18 Um argumento importante nesse contexto e que no

    pode ser desenvolvido nos limites deste artigo a tese,que defendo em detalhe no livro j citado, de que todoprocesso histrico concreto de modernizao foi seleti-

    vo, inclusive o caso da excepcionalidade americana.Isso significa que nenhuma sociedade concreta, nemmesmo a americana, logrou desenvolver todas as virtu-alidades do que chamamos cultura ocidental. Nessesentido, nosso processo de modernizao especficoapenas no seu grau de seletividade. Nossa sociologia dopersonalismo, ao adotar um conceito indiferenciado deracionalismo ocidental, derivado diretamente do casoconcreto americano tomado como modelo absoluto,

    tende a perceber o caso brasileiro, precisamente porconta desse curto-circuito sociolgico, como o outro,ou um desvio da modernidade. Ver Souza (2000, pp.129-270).

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