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Enigmático Especial: David Lynch Misterioso Bizarro Surreal O delirante caos na vida e obra do ARTISTA Fantasioso Inusitado

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Enigmático

Especial: David Lynch

Misterioso

Bizarro

Surreal

O delirante caos na

vida e obra do

artista

Fantasioso

Inusitado

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A irreverência de David Lynch é inegável. O diretor de cinema de Hollywood surpreende com sua criatividade e genialidade ao desenvolver filmes não-lineares e pouco compreensíveis para aqueles que não estão acostumados ao estranho universo lynchano. A característica simbólica, onírica e misteriosa do cineasta beira os extremos: ou se ama, ou se odeia.A revista faz um panorama da vida do artista, mostrando desde sua biografia até suas principais obras, como Veludo Azul, Cidade dos Sonhos e Twin Peaks. “Enigmático” o define e a fonte “Gigi” utilizada remete a outro de seus traços, a sua loucura. As palavras e letras em colorido resume os principais aspectos do marcante dire-tor de cinema e estão dispostas de formas desconexas em sua referência.A escolha do fundo preto se deu como reflexo da necessi-dade de se desvendar e melhor conhecer os segredos de alguém tão peculiar.Os títulos das páginas não seguem um padrão. Cada fon-te e cor foram selecionadas para melhor representar cada tema.A fonte utilizada nos textos foi “Clarendon Lt BT” devido a legibilidade, já que possui serifa e se diferencia das de-mais, remetendo à nossa personagem.Decidimos produzir dois ensaios fotográficos, um do próprio diretor e um de seus filmes, em virtude do caráter visual de Lynch. A maior parte das imagens se encontra desalinhada pela originalidade de se fugir do padrão apre-sentado, assim como pode ser visto nas obras do diretor.Com isso, a revista procura abordar as diversas faces do-audaciosos e autêntico artista David Lynch.

Realizado poR:BeatRiz Gimenez

déBoRa BandeiRa Rachel castilho

JoRnalismo pUc-sp 2017

Editorial

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Ensaio: David Lynch

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Biografia do artistaDavid Keith Lynch (Missou-la, 20 de janeiro de 1946) é um diretor, roteirista, pro-dutor, artista visual, músico e ocasional ator norte-amer-icano. Conhecido por seus filmes surrealistas, ele de-senvolveu seu próprio esti-lo cinematográfico, que foi chamado de “Lynchiano”, que é caracterizado por im-agens de sonhos e meticulo-so desenho sonoro. Na ver-dade, o surreal e, em muitos casos, os elementos violen-tos de seus filmes lhes der-am a reputação de “pertur-bar, ofender ou mistificar” seus públicos.Nascido em uma família de classe média em Missou-la, Montana, Lynch passou sua infância viajando pelos Estados Unidos, antes de ir estudar pintura na Academ-ia de Belas Artes da Pensil-vânia na Filadélfia, onde ele fez a transição para produz-ir curtas. Decidindo dedic-ar-se mais totalmente a esse meio, ele se mudou para Los Angeles, onde ele produziu seu primeiro filme, o ter-ror surreaslita Eraserhead (1977). Depois de Eraser-

head se tornar um clássico cult no circuito de filmes da meia noite, Lynch foi con-tratado para dirigir The El-ephant Man (1980), a partir do qual ele conseguiu suces-so comercial. Depois de ser contratado pela De Laurenti-is Entertainment Group, ele procedeu para fazer mais dois filmes: o épico de ficção científica Dune (1984), que foi um fracasso de crítica e bilheteria, e o filme de crime neo-noir Blue Velvet, que foi muito aclamado.Procedendo para criar sua própria série de televisão com Mark Frost, a altamente popular Twin Peaks (1990-1992), ele também criou a prequela cinematográfica Twin Peaks: Fire Walk with Me (1992); um filme de es-trada, Wild at Heart (1990), e um filme de família, The Straight Story (1999), no mesmo período. Se virando mais profundamente para o surrealismo, três de seus filmes seguintes trabalhar-am na estrutura não-linear da “lógica do sonho”, Lost Highway (1997), Mulhol-land Drive (2001) e Inland Empire (2006). No meio tempo, Lynch procedeu para abraçar a internet como um meio, produzindo vários pro-gramas para a web, como a animação DumbLand (2002) e o sitcom surreal Rabbits (2002).Nascido em 20 de janeiro de 1946 na cidade de Missoula (estado de Montana), Lynch é filho de um pesquisador do

departamento de agricultu-ra dos EUA (Donald Walton Lynch) e de uma professora de inglês (Edwina “Sunny” Lynch). Seus avós mater-nos imigraram da Finlândia para os EUA no século 19, Lynch nasceu e foi criado dentro dos preceitos da re-ligião prebisteriana. Teve uma infância itinerante no interior dos Estados Un-idos. Mesmo assim, con-seguiu concluir os estudos. Tendo o sonho de ser pintor, especializou-se sobre o tema numa academia de arte. Largou o curso mais tarde e partiu para uma viagem à Europa em busca de in-spiração para seu trabalho. De volta ao país de origem, Lynch viu-se na obrigação de trabalhar em ramos que não lhe agradavam. Ao mes-mo tempo resolveu retornar aos estudos, entrando na Academia de Belas Artes

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da Pensilvânia. Em 1967 casou-se com uma colega e teve sua única filha (teria mais dois homens), Jennifer Lynch, que se tornaria dire-tora e também tomaria gos-to pelo bizarro. Foi ela quem dirigiu o “clássico trash” Encaixotando Helena (1993) (Boxing Helena). Lynch es-tava totalmente envolvido com artes plásticas, e isso se refletiu na linguagem de seus primeiros trabalhos, que também eram bastante provocadores. Nessa época realizou os seguintes cur-ta-metragens: Six Men Getting Sick (1966), The Alphabet (1968), The Grand-mother (1970) e The Ampu-tee (1974).Em 1971 começou a tra-balhar na produção da sua primeira longa-metragem, Eraserhead (1977). E não foi tarefa fácil, tomando cin-co anos de sua vida para a sua conclusão, além do final de seu casamento. Eraser-

head foi considerado difícil. Na época de seu lançamento poucas pessoas assistiram o filme que já misturava o tão famoso mundo bizarro de Lynch e arte em stop-mo-tion. Anos depois, dirigiu seu primeiro grande filme, O Homem Elefante (1980) (The Elephant Man). Pro-duzido por Mel Brooks (que gostou do que viu em Eras-erhead), o longa foi muito bem recebida pela crítica e recebeu oito indicações ao Oscar, incluindo melhor di-retor. Em 1984 Lynch di-rigiria a ficção científica Duna, uma superprodução sob a tutela de Dino De Lau-rentiis. O resultado foi um retumbante fracasso, fazen-do com que o cineasta nun-ca mais se envolvesse em projetos grandiosos. A sua volta por cima seria dada em 1986 com O Veludo Azul (Blue Velvet), thriller com toques de fantasia que deu a Lynch nova indicação ao Oscar da categoria. Além de uma parceria que viria a ser constante com o compos-itor Angelo Badalamenti. Em 1990 ganhou a Palma de Ouro do Festival de Cannes com o estonteanteCoração Selvagem (Wild at Heart), protagonizado por Laura

Dern e Nicolas Cage.Ainda no mesmo ano Lynch faria sua estréia na televisão como criador de uma série que marcou época, Twin Peaks. Tendo como astro o mesmo ator principal de Duna e Veludo Azul, Kyle MacLachlan, a trama gira sobre a morte de uma jovem moradora da cidade que dá título à série. Lynch dirigiu apenas o piloto e cinco dos 29 episódios. Com o sucesso, em 1992 uma versão para o cinema foi lançada, onde mostrava mais detalhes so-bre a intrincada trama. Para desespero do diretor, o filme foi um fracasso, arrecadan-do míseros quatro milhões de dólares.

Por: Wikipédia

Principais obras:

Veludo Azul

Cidade dos Sonhos

Twin Peaks

Eraserheadn

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n

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A PinturaO estúdio de pintura de Da-vid Lynch, em uma cobertu-ra de Hollywood Hills, está repleto de subprodutos de suas obras. Pinturas com figuras infantis cruas em poses ameaçadoras ficam apoiadas contra as paredes, desenhos inacabados se es-palham sobre sua enorme mesa, e bitucas de cigarro salpicam o piso acarpetado.Enquanto a sombria sen-sibilidade do trabalho cin-ematográfico do cineasta de 68 anos — “Eraserhead” (1977), “O homem elefan-te” (1980), “Veludo azul” (1986) e “Coração selvagem” (1990), entre outros — per-meou o consciente coletivo do público e influenciou am-plamente outros diretores, escritores e artistas, seu tra-balho como artista plástico é quase desconhecido. No en-tanto, a pintura foi a sua es-cola artística primária, onde ele começou como aluno da

Academia de Belas Artes da Pennsylvania, na Filadélfia, em 1966, e segue como a sua atividade mais constante. A primeira retrospectiva de sua obra em um museu dos EUA, “David Lynch: The Unified Field” (David Lynch: O campo unificado, em tradução livre), abre no dia 13 de setembro na mesma Academia da Pennsylvania.“Eu adorei meu período na academia”, diz Lynch. “O prédio era praticamente pre-to. Toda a Filadélfia tinha um tipo de paleta de pó de carvão e um clima espetac-ular. Havia violência, medo, corrupção, insanidade, desespero, tristeza, tudo es-tava na atmosfera da cidade. Eu amava as pessoas de lá. Todas essas coisas foram a minha maior influência.”Apesar da devoção ao tra-balho do cineasta, “ninguém prestou atenção nele entre os meus colegas de museus

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de Lynchamericanos”, afirma Robert Cozzolino, curador da ex-ibição. A mostra abrigará pinturas e desenhos criados ao longo de cinco décadas.“Eu acho que o mundo da arte sempre teve um pé atrás com o David, apesar de sua formação como arti-sta”, diz Brett Littman, dire-tor do “Drawing Center” de Nova York. “Ele não é James Franco”, ironizou Littman, que organizou uma pequena exibição de desenhos e foto-grafias de Lynch no ano pas-sado, em Los Angeles.“Através de seus filmes, Da-vid mudou a maneira como nós pensamos a cultura visual nos EUA”, afirma. “Você pode não gostar de sua identidade visual, mas vale a pena ver o seu tra-balho.”Uma galeria da academ-ia será dedicada a pinturas mais recentes, inspiradas por temas como lar e vida doméstica, onde casais são vistos em beijos ambígu-os que poderiam ser afe-tivos ou sufocantes. Sua frequente justaposição de frases como “Eu te aperto” ou “Quem está em minha casa?” oferece múltiplas lei-turas.“Eu gosto de pensar bem próximo à minha casa”, diz Lynch, que tem uma filha de dois anos com sua mulher, a atriz Emily Stofle. (Ele tem outros três filhos de outros

três casamentos). “Tudo o que acontece lá fora, em todo o mundo, também se passa em um mundo menor, mas de uma maneira um pouco distinta”.Quando pedido para mostrar alguma obra em progresso, ele desconversa. “No mo-mento, estou perdido numa transição. O velho está mor-to, e eu não sei qual é o novo. A única maneira de encon-trar o novo é começar coisas diferentes e ver se há algo se surge da experimentação. É perturbador, mas pode ser uma coisa esperançosa de certa maneira. Eu já estive aqui antes. Muitas vezes.”

Por hilaRie m. sheet, do The New York Times.

“As ideias são como peixes. Se quiser-mos capturar peixes pequenos, podem-os ficar pelas águas pouco profundas. Mas, se quisermos capturar os peixes grandes, temos que ir mais fundo. Nas águas profundas, os peixes são mais poderosos e mais puros. São enormes e

abstratos. E são muito bonitos.”David Lynch

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The AlphabetO curta metragem The Al-phabet, dirigido por David Lynch, foi produzido no ano de 1968, enquanto o diretor cursava a Academia de Artes da Pensilvânia. Este é o seu segundo filme e foi feito por encomenda. O seu primeiro filme, Six men getting sick (six times), foi produzido em 1967 para um concurso de pintura e escultura experi-mental organizado pela Ac-ademia de Artes. Na época em que foi filma-do The Alphabet, David Lynch era casado com Peg-gy Lance, sua colega na Ac-ademia de Artes. Certa vez, uma sobrinha dela teve um pesadelo, no qual se via a repetir o alfabeto sem parar. Peggy contou contou a história a Lynch e ele apli-cou sua visão do aconteci-mento em seu filme.criança.A narrativa não permite uma visão linear. Ela é construída pelo forte efeito visual e sonoro do tema do abecedário. A presença de material fílmico com atuação de

humanos está belamente inserida no conturbado desenho que se encarrega de aumentar o sufo-co da personagem. Há uma boa quantidade de desespero pungente que reflete sobre o estado de uma criança, confusa com o aprendiza-do repetitivo que melodicamente a assusta. O desenho possui movi-mento apenas dentro da margem da tela em que foi sendo pintado, é uma conseqüência de prisão, de rendimento a um coro de vozes que repete, sem saber muito bem o motivo, um conjunto de sons ensinados. É a rendição pelas pala-vras, como primordial forma de comunicação.A letra “A” é colocada em difer-entes tons, invadindo a fronteira entre a infância escolar e os medos infantis. O som de dor que a letra A produz acaba por formar uma figura humana adulta, cheia de órgãos e letras, que mantém uma expressão passiva no meio do barulho incessante. Uma boca recomenda atenção sobre o que está sendo lidado ao se usar letras. Não há reconhecimento tran-qüilo nem na frente do espelho. A criança recorre, como lhe foi

mostrado, a letra A para expressar sua angústia. O medo da repetição com posterior impotência sub-linha o ambiente escuro do quarto. A criança quase brilha junto aos seus lençóis tão brancos quanto ela. Na hora de cantar a música que ensina o alfabeto, percebe-se um medo generalizado da person-agem, que através do stop motion parece quebrar os movimentos de acordo com o surgimento das letras. O cérebro mistura o ra-cional com emocional e machuca fisicamente a personagem. Não é à toa que no final, o sangue sai pela boca da criança. É como se todas aquelas letras tivessem saindo de sua boca da forma mais apa-vorante possível.

autor. A sensação que os de-senhos trazem é de algo que escorre e que pulsa como sangue, portanto, inerente ao ser. As linhas que se for-mam chocam-se às letras, desorganizadas, que obri-gam o espectador a querer organizá-las, a fim de obter alguma lógica. Porém é per-ceptível o caráter infantil de alguns traçados do desenho que se desenvolve. Há uma pequena retomada de formas cotidianas como nuvens e o sol, algo típico da imagética de uma criança.A narrativa não permite uma visão linear. Ela é construída pelo forte efeito visual e so-noro do tema do abecedário. A presença de material fílmi-co com atuação de humanos está belamente inserida no conturbado desenho que se encarrega de aumentar o su-foco da personagem. Há uma boa quantidade de desespero pungente que reflete sobre o estado de uma criança, con-fusa com o aprendizado re-petitivo que melodicamente a assusta. O desenho possui movimento apenas dentro da margem da tela em que foi

sendo pintado, é uma conse-qüência de prisão, de rendi-mento a um coro de vozes que repete, sem saber muito bem o motivo, um conjunto de sons ensinados. É a rendição pelas palavras, como primor-dial forma de comunicação.A letra “A” é colocada em dif-erentes tons, invadindo a fronteira entre a infância es-colar e os medos infantis. O som de dor que a letra A pro-duz acaba por formar uma figura humana adulta, cheia de órgãos e letras, que man-tém uma expressão passiva no meio do barulho inces-sante. Uma boca recomen-da atenção sobre o que está sendo lidado ao se usar let-ras. Não há reconhecimento tranqüilo nem na frente do espelho. A criança recorre, como lhe foi mostrado, a le-tra A para expressar sua an-gústia. O medo da repetição com posterior impotência sublinha o ambiente escuro do quarto. A criança quase brilha junto aos seus lençóis tão brancos quanto ela. Na hora de cantar a música que ensina o alfabeto, percebe-se um medo generalizado da personagem, que através do stop motion parece quebrar os movimentos de acordo com o surgimento das letras. O cérebro mistura o racion-al com emocional e machuca fisicamente a personagem. Não é à toa que no final, o sangue sai pela boca da cri-ança. É como se todas aque-las letras tivessem saindo de sua boca da forma mais apa-vorante possível.

Por: O que restou da tela

As características oníricas e perturbadoras do curta metragem The Alphabet, de David Lynch, instigam o es-pectador a imergir na con-fusão de sons recorrentes à infância, com zumbidos bizarros, que intensificam a proposta de pesadelo do

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EraserheadMas, afinal, o que é Eraser-head? Ou quem, talvez fos-se melhor perguntar? Seria um personagem, uma coisa, uma sensação, algo a ser conquistado ou despreza-do? Vindo de David Lynch, pode ser tudo isso, um pou-co mais, ou talvez nada do que foi apontado aqui. Sabe-se, no entanto, que este é, muito provavelmente, o mais próximo que o cinema já chegou de um pesadelo. Perturbador, intenso, prob-lemático, selvagem, violen-to e irremediável são algu-mas das palavras possíveis de descrevê-lo, ainda que nenhuma consiga fazê-lo por completo. Uma ópera visual, com ima-gens tão fortes quanto cal-culadamente apropriadas, que vasculham sentimentos do passado e temores pelo futuro, arrasando conceitos fundamentais e revendo o óbvio através de uma ótica avassaladora, até cometer o mais grave dos pecados e isentar o pecador do ato, como se fossem duas partes de um todo tão amplo quan-to desconexo – ou não. Um

filme essencial, porém de-cididamente para poucos.Trabalho de estreia de Lynch, Eraserhead levou quase oito anos para ficar pronto. Realizado a partir do momento que o cineas-ta ingressou no American Film Institute para iniciar seus estudos de Cinema, contou com o entusiasmo de alguns colegas da época, no começo da década de 1970, e com uma verba providencial fornecida pe-los programas de estímulo da entidade. No entanto, a inaptidão do diretor em se adequar aos formatos mais tradicionais da produção cinematográfi-ca impediram um cálculo mais específico, e logo o din-heiro acabou. Foram preci-sos apoios fundamentais e inesperados – como da atriz Sissy Spacek, que ao tomar conhecimento do projeto se tornou uma entusiasta – e muita perseverança para que, após quase uma déca-da, ele se fosse, enfim, fi-nalizado. E o resultado, tal qual se apresenta, segue tão poderoso quanto no mo-

mento de sua estreia.Henry Spencer (Jack Nance, um dos atores fetiches de David Lynch) vive, literal-mente, com a cabeça nas nuvens – ou na lua, para ser mais apurado. Sua vida é despreocupada, ocupan-do-se apenas com o trabalho entediante ou com inter-ações ocasionais com vizin-hos. Até que uma namorada surge com uma novidade: ela não só esteve grávida, como a criança já nasceu e precisa dele.Os dois se mudam para sua casa, e de uma hora para outra tudo muda. Mas nada é tão simples. Os elementos imagéticos estão dispostos por todo o filme, e cabe ao espectador decidir como lê-los. Há o asteroide perdido no espaço, o homem defor-mado que tudo observa como se manipulasse cada atitude a seu bel prazer, e a Marilyn pós-apocalíptica de bochechas enormes que insiste em afirmar que “no céu tudo dará certo”. Basta acreditar.

Por: Papo de Cinema

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VeludoQuando In Dreams, a bela e soturna canção de Roy Or-bison, irrompe o silêncio da madrugada para embalar o espancamento de Jeffrey Beumont, nosso protagonista e guia em Veludo Azul (Blue Velvet, 1986), já estamos sufi-cientemente imersos no uni-verso subversivo de David Lynch. O carro está estacio-nado à beira de uma auto-es-trada mal iluminada, pessoas bêbadas riem da desgraça de Jeffrey, que por sinal está com a boca toda borrada de batom vermelho, assim como seu algoz, Frank Booth, o in-sano personagem de Dennis Hopper que acabava de lhe beijar antes de sentar a porra-da. Uma mulher de formas es-tranhas dança sobre a lataria do carro, um homem com aspecto de boneco de cera acompanha tudo com encan-tamento. Arquitetura de um pesadelo, e Jeffrey o sente na pele; é real.Mesmo em seus filmes mais narrativos, como Veludo Azul, o cinema de David Lynch é todo sensorial. Imagens, canções, diálogos; os elemen-tos são dispostos cuidados-

amente para a composição desta atmosfera onírica, e geralmente possuem sig-nificância metafórica ou dúbia. Lynch é um grande reconhecedor da essência artística de construção de no-vas realidades; os filmes dis-cursam sobre nosso mundo, sobre como nos relacionamos com ele e com quem o habi-ta, sobre as perversões, fobias e sentimentos destes habit-antes, mas sua representação extrapola os significados que estes signos receberiam do lado de cá. Filmar, para Lynch, não é cercar, induz-ir ou subtrair-se até atingir a fórmula precisa; mas des-bravar, expandir e, principal-mente, explorar sensações, nem que isso resulte em um filme de três horas cheio de excessos.Veludo Azul abre mostrando o cotidiano de uma pacata ci-dade do interior dos Estados Unidos. Casas com cerquinhas brancas, flores coloridas, cri-anças brincando no jardim, o caminhão de Bombeiros pas-seando lentamente pela rua enquanto seus passageiros, sorridentes e num slow mo-

tion tosco, acenam para os vizinhos. Tudo muito bonito e tranquilo em Lumberton. A superfície da cidade é a rep-resentação estética do amer-ican way of life, o tal sonho estadunidense, a vida perfei-ta, aquela comercializada nas publicidades de creme dental onde o branco soa mais bran-co do que você jamais poderá ver, mas debaixo da grama os insetos remoem a terra e compõem uma paisagem ne-gra de depredação, e a câmera de Lynch, é claro, faz questão de os perseguir.Viver na cidade dos sonhos? Ah, puta tédio, hein. Andar pelo campo sentindo o ar fresco da natureza? Tédio. Tédio redobrado. A vida só volta a ficar interessante para Jeffrey em sua viagem ao in-terior quando finalmente en-contra uma orelha humana grudada na grama, apodre-cendo aos poucos. A câmera de Lynch, é claro, faz questão de persegui-la. Mais: de pene-trá-la. A orelha é um portal e um brilhante truque narrati-vo: adentramos, através dela, ao outro lado desta realidade. The dark side. Sai o sonho idealizado, surge o pesadelo do obscuro e do sadomaso-quismo, essa mistura de dor e fascínio que nos regra.

O universo de Veludo Azul respira ares de sarcasmo em torno deste paradoxo

subversivo.10

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AzulUm lado precisa existir para que também exista o efeito do outro, e é a partir deste par-adoxo que Lynch dá início à sua viagem por esse pesadelo carnal – e real.O universo de Veludo Azul respira ares de sarcasmo em torno deste paradoxo subver-sivo. O romantismo soa cafo-na, a perversão uma comédia, o sexo quase um ato de vi-olência. Aqui, a excitação é medida na ponta da navalha. Se Jeffrey tem duas opções (dificilmente existe apenas uma saída para qualquer sit-uação, isso na vida mesmo), depois da orelha escolhe sem-pre a mais estranha. “Não sei se você é um detetive ou um pervertido”, diz a formosa loira (Laura Dern, é, nem tão formosa assim) pela qual ele se apaixona, depois de vê-la surgir da escuridão da forma mais brega possível durante uma caminhada noturna – aparição que inclui ilumi-nação over no rosto da atriz e trilha de conto de fadas. “Isto eu sei, e você terá que desco-brir”, responde. Dito isso, se enfia dentro de um armário e observa uma mulher pertur-bada tirar a roupa e, logo em seguida, trepar de um jeito um tanto quanto maluco com seu homem, que a espanca,

preenche a boca com pedaços de veludo e respira com aux-ílio de um inalador aos gritos de “baby wants to fuck!”.Depois de situados nessa óti-ca perversa de Lynch, só res-ta mesmo nos entregarmos e aproveitarmos o espetáculo. E Veludo Azul é um deslum-bre. Suspense oitentista com cara de aventura juvenil fil-mada por alguém que viu muito filme noir e resolveu desmistificar o lado negro do ser humano misturando aro-mas vespertinos com odor de sangue e esperma. David Lynch abre espaço para diver-sas sensações, algumas delas chegando juntas num misto de fascínio e horror bastante semelhante ao vivido por Jef-frey nessa jornada insana. As reações do lado de cá podem soar tão subversivas quan-to alguns dos melhores mo-mentos do filme; ou vá dizer que as bizarrices de Dennis Hopper e suas dezenas de frases de efeitos, palavrões e atitudes inconsequentes não são o máximo de comicidade que se pode extrair de um filme que chafurda tão a fun-do na podridão dos instintos

carnais humanos?É de Hopper os melhores momentos de Veludo Azul, aqueles que os fãs do filme lembram com maior entusias-mo e dos quais sabem todos os diálogos de cor. Não é pra menos. Frank Booth é segu-ramente o personagem mais icônico construído pelo cine-ma de Lynch, que se aprove-ita da figura doentia do ator para viajar por sequências que beiram o seu surrealismo futuro. De frases antológicas como “I’ll fuck everything that moves!” a imagens bi-zarras como as inspirações com inalador, Frank Booth é ele próprio um genuíno per-sonagem dos pesadelos, mas que, em Veludo Azul, repre-senta perigo real ao nosso protagonista. E se ao final de tudo Lynch insinua um retor-no aos comerciais de creme dental com aquele epílogo sobre pintarroxos e sonhos idealizados, o belo e vasto gramado do quintal não nos deixa iludir. Afinal, debaixo dele sempre existirão os inse-tos.

Por daniel dalpizzolo, do Cine Playeres

Situados nessa ótica perversa de Lynch, só resta

mesmo nos entregarmos e aproveitarmos o espetáculo

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Cidade dos Sonhos

Um dos grandiosos trabalhos de David Lynch, “Cidade dos Sonhos” (2001), tem o poder de deixar qualquer especta-dor intrigado com a narrati-va e fatos que acontecem na película.Um acidente na estrada Mulholland (que dá nome ao filme) é o estopim para desencadear vários acontec-

imentos na trama que en-volve vários personagens. Rita(a belíssima Laura Har-ring), após sofrer o aciden-te, perde a memória e acaba conhecendo Betty (brilhan-temente interpretada por Naomi Watts), uma aspir-ante a atriz que acabara de chegar em Los Angeles. Em outra parte da cidade o cin-

easta Adam Kesher (Justin Theroux) vive sérios proble-mas com os irmãos Castig-liane e com a descoberta de que esta sendo traído pela esposa.Todos esses acontecimen-tos poderiam ser normais se o filme não fosse creditado por Lynch. A peculiaridade e genialidade do diretor em fazer cinema esta muito bem representada em “Cidade dos Sonhos”, sua especial-idade em retratar o univer-so onírico pode não ter sido bem aceita na academia e, embora o filme não tenha tido uma satisfatória bilhe-teria, sua fama na criação de seus filmes percorre os quat-ro cantos do mundo e com certeza coloca seu nome en-tre os grandes diretores de cinema.

“Cidade dos Sonhos é um filme surrealista de suspense de 2001 dirigido e produzido por David Lynch.”

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IlusãoBetty (Diane) chega a Los Angeles para realizar o son-ho de ser atriz e conhece um simpático casal de idosos. Ela ficará na casa da tia por uns dias, onde Coco (mãe de Adam na realidade) é a re-sponsável das casas.Lá conhece, por acaso, uma estranha que se diz chamar Rita e que perdeu a memória. Além de ter perdi-do a memória, está com uma bolsa com muito dinheiro (herança da tia de Diane na realidade) e uma chave azul com formato diferenciado. A busca para recuperar a memória e saber o porquê de tanto dinheiro e pra que serve a chave começa, e vão atrás de pistas. Descobrem que houve um acidente em Mulholland Drive um dia antes. No Winkie’s, a estra-nha lê o nome da garçonete no broche de identificação, a mesma se chama Diane e ela se lembra do nome Di-ane Sellwyn, buscam na lis-ta telefônica e descobrem o endereço da desconhecida. Vão até o local, e batem na porta, onde uma desconhe-

cida (ex-namorada de Diane na realidade) abre a porta. A mesma diz que trocaram de casas há um tempo, as duas vão para o novo endereço e invadem a casa, lá desco-brem um corpo feminino com um tiro na cabeça em estado de putrefação (corpo de Diane no sonho, que pode simbolizar a morte da vonta-de de viver).As duas vão embora assus-tadas e tentam mudar a aparência da estranha, te-mendo pela vida da mes-ma. Ela usa uma peruca como a do cabelo de Betty. As duas fazem amor e no meio da noite, a estranha acorda e pede para que vão a um local: o clube Silêncio, no qual acontece um show bizarro. No show, há vári-as menções de que tudo é uma ilusão/gravação e en-tão, parece que, aos poucos a realidade vem à tona para Betty. Começa a tremer e no meio do show, chorar mui-to. Uma garota que canta em espanhol, fala do amor, pergunta o que pode fazer já que a pessoa amada não a quer. Enfim, todo o sofri-

mento de Diane ao ser tro-cada por Adam. Após isso, a caixa aparece na bolsa de Rita, pois está pronta para ser aberta/descoberta.Ao chegarem a casa para abrir a caixa, Betty desa-parece e Rita abre a caixa. A consciência vem à tona. Percebe-se que a chave abre o consciente (caixa) de Di-ane, fazendo-a encarar a re-alidade, pois ela estava per-dida no pseudo-sonho, onde havia criado uma realidade alternativa.O Cowboy aparece no quar-to de Diane e fala que “é hora de despertar”, após isso o corpo em estado de-composição aparece, como se fosse uma última tentati-va de negar o ocorrido. En-tão o tempo do filme muda novamente. Ela volta a se levantar no período após ter mandado matar Camila. A ex-namorada anterior à Camila bate na porta para pegar as coisas que ainda estão lá. Diana percebe que há uma chave azul sobre a mesa, ou seja, Camila havia sido assassinada como ela havia encomendado.

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ExplicaçãoO início do filme começa mostrando um concurso de dança, o qual Diane Sellwyn venceu, e que a motivou a ser atriz e mudar-se do Canadá para os EUA (Hollywood), além disso, ganhou certa quantia de dinheiro depois que a tia morreu.Após a cena do concurso/in-trodução do filme, Diana se deita para dormir (nessa cena, não aparece um personagem, apenas a câmera em primei-ra pessoa mostrando que al-guém abatido está prestes a deitar). O sonho dela e o filme começam a partir desse mo-mento.Para entender, é preciso in-verter a ordem temporal do filme.O início na verdade, aconte-

ce numa festa dada pelo dire-tor de filmes de Hollywood, Adam. Na festa, Diane Sell-wyn é convidada por Cami-la Rhodes, a essa altura, sua ex-amante. Lá, Diane sofre os piores tipos de pressão/hu-milhações psicológicas. Por exemplo, ela fica sabendo na mesa de jantar que sua am-ada e ex-amante vai se casar com o diretor do filme e após perguntas na mesa de jan-tar, fala sobre o concurso de dança que venceu, o sonho de ser atriz e o fato de que foi preterida ao papel principal de um filme (o qual Camila ficou com o papel principal – inveja). É nessa festa que o inconsciente já perturbado de Diane seleciona a maioria dos personagens que ela vai colocar na história criada no sonho dela.Depois dessa festa, ela de-

cide pegar parte do dinheiro herdado de sua tia e contratar um assassino profissional para matar Camila. O tra-to é feito no Café Winkie’s, onde uma garçonete cham-ada Betty os atende. Betty é a personagem que, no son-ho, Diane decide interpretar, uma pessoa dócil e agradáv-el. Ao entregar o dinheiro, o assassino diz que assim que tiver terminado o trabalho, irá deixar uma chave azul em um local visível para ela. Essa chave é um símbolo. E Diane pergunta o que a chave abre, o assassino ap-enas gargalha.

Por: FirenewissuesWikipediaUm oscar por mês

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“The Big Dream”

“O som é quase como uma droga”

Trilhas Sonoras

As trilhas sonoras dos film-es e séries de Lynch sempre foram bem cuidadas pelo diretor. Um de seus tra-balhos mais impactantes nesse sentido foi logo no seu primeiro longa, Eras-erhead (1977), cuja trilha foi produzida por Lynch e pelo engenheiro de som

Alan Splet. Experimental, combina com o clima in-dustrial do filme, e usa e abusa de samplers com o órgão tocado pelo jazzista Fats Waller.Lynch também aprovei-tou suas composições an-teriores em seus projetos. “Falling”, tema da série

Twin Peaks, foi composta pelo próprio diretor, assim como todo o disco de estreia da intérprete da canção, Julee Cruise, em 1989. “Up in Flames”, outra música de autoria de Lynch para a cantora, serviu de tril-ha para Coração Selvagem (1990).

The Big Dream é suces-sor de Crazy Clown Horse (2011), um disco com músicas gravadas em seu estúdio caseiro e que Lynch era incapaz de re-produzir ao vivo, segundo o próprio. Antes, o artis-ta havia lançado BlueBob (2001), álbum de rock cria-do em parceria com John Neff, e produzido This Train (2012), da cantora norte-americana Chrysta Bell.A julgar pelas três canções divulgadas do novo tra-balho (são 13 ao todo), Lynch pode surpreender. “Acho que as músicas es-tão mais amarradas”, dis-se ele à Billboard. O disco é produzido por Dean Hur-ley, engenheiro de som e velho parceiro de Lynch. Foi dele a ideia de incluir o cover de “The Ballad of Hollis Brown”, de Bob Dy-lan. “Na verdade, é mais um cover da versão de Nina Simone para a músi-

No comunicado sobre o disco, Lynch o classificou como “um álbum de blues moderno” e disse que “a maioria das músicas do dis-co começou como um jam de blues, e depois nós segui-mos para outras direções dali. O resultado é uma for-ma híbrida e moderna de blues”. E pelo que se ouviu até agora nas músicas “I’m Waiting Here”, “Star Dream Girl” e “Are You Sure”, o grande sonho de Lynch vem carregado de melanco-lia e experimentalismo.Mais uma vez, shows seg-uem fora dos planos do diretor. “Eu sei que nós poderíamos fazer um show e tanto. Mas infelizmente, acho que não vai acontecer”, disse à revista norte-ameri-cana.

Por: Andréia Martins - Saraiva

ca. É um cover do cover”, revelou o diretor na mes-ma entrevista.

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Twin PeaksA série que revolucionou os anos 90 volta em 2017

Assim como as adaptações lit-erárias para o cinema devem ser vistas não pela semelhança ou riqueza de detalhes que conservam do original mas pela criação fílmica em si – são produtos e linguagens comple-tamente diferentes –, as séries devem ser vistas como um pro-duto de entretenimento para uma massa de espectadores (a faixa etária e o tipo específico de público-alvo variam con-forme censura e temática de série para série: o público de Friends dificilmente se interes-sará por uma série como Uto-pia ou Doctor Who, por exem-plo), que pretendem alcançar o maior número de audiência possível através de um progra-ma estruturalmente novelísti-co, com continuações narrati-vas e tudo o mais (nas sitcom essa relação de continuidade é mais maleável).Com o desenvolvimento da tecnologia digital nos anos 1990, as séries de TV ficaram cada vez mais parecidas com os filmes de cinema, a ponto de o Episódio Piloto de LOST (2004) ter custado cerca de US$ 14 milhões, valor que cor-responde geralmente ao orça-mento de um filme de Woody Allen.Twin Peaks foi uma série cri-

ada por Mark Frost e David Lynch, e teve apenas duas tem-poradas (1990 – 1991), com 29 episódios mais o Episódio Pi-loto. Todavia, isso bastou para que a série entrasse para o hall dos melhores programas de TV de todos os tempos.David Lynch jamais havia feito algum trabalho para a televisão antes de Twin Peaks e o con-vite para a realização da série certamente se deu pelo suces-so de seu filme anterior, Velu-do Azul (1986). Mark Frost já conhecia a produção para a TV, mas como escritor de poucos episódios para algumas séries no final dos anos 1970 e início dos anos 1980. Pois bem, esses dois grandes criadores de uni-versos reuniram-se para fazer um programa de televisão. O resultado, certamente, seria algo totalmente diverso daqui-lo a que o público estava acos-tumado ver.Apesar de ser uma série, Twin Peaks não se encaixou no pa-drão comercial (em nenhum sentido ou categoria) dos pro-dutos realizados para a peque-na tela, como citamos no início. Assim, é um grande espanto perceber que uma rede tão con-servadora quanto a ABC tenha patrocinado algo tão fora do normal televisivo e rentável

produto audiovisual. O estran-ho mundo inventado por Lynch e Frost recebeu carta branca da produtora para um Episódio Piloto e, mesmo relutante, para sete episódios iniciais, os mes-mos que se transformariam na 1ª Temporada da série.No dia 08 de abril de 1990, Twin Peaks estreou na ABC, com um Episódio Piloto de quase duas horas de duração, dirigido por David Lynch – uma das mel-hores coisas já feitas para a TV, por toda a densidade e ampli-tude que a história ganha, já de início.O estrondoso sucesso da exi-bição de estreia foi acompanha-do pela pergunta que ergueria e derrubaria a série: “Quem matou Laura Palmer?”. Na “versão europeia” do Episódio Piloto, há a inserção de uma se-quência final, praticamente um esquete, porque não se encaixa necessariamente em nada do que foi apresentado antes: a se-quência da Sala Vermelha, que na temporada seguinte seria identificada ao mesmo tempo como uma passagem, a an-te-sala de uma outra dimensão, o Black Lodge (sim, ela é tudo isso ao mesmo tempo). Nesta Sala Vermelha todos falam as palavras de trás para frente, dançam, geralmente andam

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a lei da gravidade não existe lá e coisas impossíveis aconte-cem. Ao fim do Episódio Pilo-to, vemos um cômodo de piso preto e branco, com cortinas vermelhas, sofás pretos, uma escultura grega (de Vênus), e o título do “esquete”: VINTE E CINCO ANOS DEPOIS. Nesta sala, a defunta Laura Palmer e um anão conversam com o agente Dale Cooper (já velho), o responsável pela investigação da morte da jovem.Twin Peaks é uma cidade som-bria, um vale cercado por mon-tanhas e rodeado por florestas de abetos, sempre fustigados pelo vento incessante que se mistura à névoa ou à neblina. Corujas e corvos são animais vistos frequentemente. Apesar do aspecto assustador, Twin Peaks é uma cidade pacata. Até o assassinato de Laura Palmer. A partir de então, é como se to-das as máscaras começassem a cair, todos os crimes fossem revelados e todas as mentiras descobertas. A loucura, a re-pressão dos desejos, as neuro-ses e os segredos dos ilustres cidadãos da cidade passam a ser revelados. Ninguém é ino-cente em Twin Peaks e não há

absolutamente nenhuma ver-dade nessa cidade.Após a morte de Laura Palmer, o agente do FBI, Dale Cooper (Kyle MacLachlan) assume as investigações ao lado do xerife local, Harry S. Truman (Michael Ontkean). Juntos, passam a re-unir as peças do quebra-cabeça para chegar ao assassino, ao passo que uma série de out-ros mistérios se apresentam e ligações impensáveis entre as personagens são reveladas.A 1ª Temporada foi um sucesso espetacular, com altos níveis de audiência, excelente crítica e o surgimento de um mercado de marketing à volta do progra-ma, um verdadeiro fenômeno cult, o que não era para menos: tudo, absolutamente tudo dá certo no primeiro ano da série. Cada episódio é um mistério, novas situações e personagens aparecem, o submundo mas-carado da cidade vem á tona, a “vida paralela” de Laura Palm-er é pausadamente revelada, para horror dos que a conheci-am como apenas uma inocente colegial. Todo o elenco é fenom-enal, inclusive o elenco jovem. Cada diretor que assumia um episódio da temporada imprim-ia sua marca pessoal, adicion-ava elementos particulares, o que só enriquecia a série. No úl-timo episódio da 1ª Temporada, um eletrizante e maravilhoso capítulo escrito e dirigido por Mark Frost, há um dos maiores choques para o espectador, pos-to que termina com uma arma

baleando o agente Dale Coop-er, na porta de seu quarto, no Great Northern Hotel. Nunca se desejou tanto o início de uma próxima temporada. A possível morte de Cooper, o incêndio na serraria, o mistério do Dr. Jacoby, a possessão demonía-ca de Leland Palmer e o desen-volvimento da personagem de BOB, um demônio, fizeram da 1ª Temporada de Twin Peaks uma explosão cult da televisão americana e o fim da tempo-rada intensificou ainda mais todas as dúvidas e sensações através do magnífico episódio 7: The Last Evening.A 2ª Temporada começa com o episódio May the Giant Be With You, (de 1h30), dirigido por David Lynch. Os elemen-tos surreais e o mundo onírico abrem as portas que ainda es-tavam fechadas. Aparece um gigante-mentor e um velho-an-jo. Perturbações mentais as-solam algumas personagens. O mistério de Twin Peaks contin-ua. No 5º episódio (e em mais alguns outros) Lynch faz o pa-pel do agente Gordon, o chefe surdo de Dale Cooper. Sonhos, intrigas, aparições surrealistas em um bar e recados

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do além ganham significação real na trama. Até que chega o episódio que arruinou a série, o episódio onde o assassino de Laura Palmer é revelado. Emb-ora o intrigante tom do discur-so da Senhora do Tronco, ao início do episódio, tente abrir possibilidades futuras, a aura crepuscular do discurso é inev-itável:Então agora vem a tristeza. A revelação. Há uma depressão depois que uma resposta é dada. Era quase divertido não saber. Sim, agora nós sabemos. Pelo menos sabemos o que pro-curávamos no começo. Mas ainda há a questão: “Por quê?”. E essa questão vai continuar e continuar e continuar, até a re-sposta final chegar. Aí o saber vai ser tão completo, que não haverá espaço para questões.A partir desse momento tudo perde o interesse em Twin Peaks. Não há mais a medula, o segredo estrutural do qual se ramificava toda uma série de possibilidades. Tão rapida-mente quanto ganhou, a série passou a perder espectadores. A ABC mudou diversas vezes o horário e o dia de transmissão do show, o que dificultava ain-da mais a localização do públi-co. Para piorar a situação, Mark Frost e David Lynch estavam envolvidos em outros projetos (Storyville e Coração Selvagem, respectivamente), o que dificul-tou ainda mais a retomada de

um fio de interesse que pudesse ser desenrolado satisfatoria-mente, retomando os elemen-tos de suspense e encantando novamente os fãs do programa.Para tentar salvar a audiên-cia que começou a despencar a partir do episódio 10 da 2ª Temporada (evidente resulta-do da revelação do assassino e não continuidade do nível de produção obtido até então), diversos astros foram convi-dados para incompreensíveis participações especiais. Apenas no fim da temporada as coisas voltaram aos trilhos e a série voltou a ser tão interessante quanto fora no início, com no-vos temas sendo trabalhados e novas portas-mistério sendo abertas – mas já era tarde de-mais. Apesar da genialidade do episódio Beyond Life and Death, o último episódio da 2ª Temporada, cheio de te-mas-enigma, inclusive com o agente Cooper sendo possuí-do pelo demônio BOB após sair do Black Lodge e Audrey morrendo com a explosão do banco, Twin Peaks chegou ao fim: não haveria uma próxima temporada.Mesmo tanto tempo depois, assistir à série é uma experiên-cia maravilhosa. Lynch e Frost criaram uma obra tão profun-da e tão cheia de atalhos que é preciso vê-la e revê-la para que se possa abstrair todos os de-talhes.

Além da trama em si, Twin Peaks é um desfile de genial-idade técnica. Dificilmente uma série de TV teve tanto es-paço para tantas mudanças de cenários simbólico-criativos (o que requer uma espetacular direção de arte, e o que não fal-ta, na série), pelo menos até a leva dos episódios milionários nos anos 2000. Os outros ele-mentos técnicos são de dar in-veja a séries contemporâneas: figurinos, maquiagem, foto-grafia, música (essa, assinada pelo habitual e genial colabo-rador de Lynch, Angelo Bada-lamenti), todos conseguem um desempenho esplêndido, o que talvez explique o por quê a série é tão cativante em vários sentidos.Twin Peaks foi um marco na televisão, obra de dois cri-adores que não se adequaram ao show comercial (aliás, parte da decadência do programa foi esse caráter, adquirido pelos episódios após a revelação do assassino e antes da retoma-da dos capítulos finais), e que trouxeram para a pequena tela muito mais do que entreteni-mento: trouxeram arte, e arte das mais revolucionárias para a TV em sua época. Twin Peaks ultrapassou a fronteira do pro-grama de televisão. Ela entrou no Black Lodge. Para sempre.

Por lUiz santiaGo, em Plano Crítico

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Ensaio: Filmes

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