As Complexas Narrativas Da Nova Geração de Jogos Eletrônicos - 08-02-2015 - Ilustríssima - Folha...

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08 /0 2/ 20 15 As co mple xa s na rrativ as da nova ge raçã o de jog os ele trô nic os - 08/02/2015 - Ilu strí ssima - Folha de S.Paulo http ://tools.folha.com.br/print? site=emcim ad aho ra&url=http://www1.folh a.uol.com.br/ilustrissima/201 5/0 2/1 586 204 -as-complexas-narrativas- da -nova-ge ra… 1/5 As complexas narrativas da nova geração de jogos eletrônicos ALEXANDRE RODRIGUES 08/02/2015 03h20 RESUMO Histórias que conduzem videogames ultrapassam conceito de roteiro e aproximam-se de qualidade romanesca. Além de jogos ganharem mais texto, com tramas cujos rumos são decididos pelo jogador, também sua temática se aproxima do mundo literário, incorporando dilemas morais e aspectos cotidianos. *  Anna acorda em um castelo numa ilha, sem a menor lembrança de como foi parar ali. Enquanto procura a saída, sua história vai ficando cada vez mais estranha. Enigmas revelam episódios da vida de Anna, e um homem misterioso aparece de vez em quando.  Ao fim de s eis capítulos, a trama se revela um bizarro quebra-cabeça com muito texto, como um romance. Exceto por um detalhe: "Device 6" é um videogame. Uma nova geração reinventou formatos e temas dos videogames, dotando-os de recursos mais comuns à literatura. Ao contrário das narrativas cinematográficas que tornaram os videogames grandiosos e colocam os jogadores dentro de verdadeiros filmes, a inspiração quase intimista de games como "Device 6", "Dear Esther", "The Walking Dead" e "The Novelist" está nos livros e nas possibilidades de contar uma história. Divulgação

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As complexas narrativas da nova geraçãode jogos eletrônicos

ALEXANDRE RODRIGUES

08/02/2015 03h20

RESUMO Histórias que conduzem videogames ultrapassam conceito de roteiro eaproximam-se de qualidade romanesca. Além de jogos ganharem mais texto, com tramascujos rumos são decididos pelo jogador, também sua temática se aproxima do mundoliterário, incorporando dilemas morais e aspectos cotidianos.

*

Anna acorda em um castelo numa ilha, sem a menor lembrança de como foi parar ali.Enquanto procura a saída, sua história vai ficando cada vez mais estranha. Enigmasrevelam episódios da vida de Anna, e um homem misterioso aparece de vez em quando.

Ao fim de seis capítulos, a trama se revela um bizarro quebra-cabeça com muito texto,como um romance. Exceto por um detalhe: "Device 6" é um videogame.

Uma nova geração reinventou formatos e temas dos videogames, dotando-os de recursosmais comuns à literatura. Ao contrário das narrativas cinematográficas que tornaram osvideogames grandiosos e colocam os jogadores dentro de verdadeiros filmes, a inspiraçãoquase intimista de games como "Device 6", "Dear Esther", "The Walking Dead" e "TheNovelist" está nos livros e nas possibilidades de contar uma história.

Divulgação

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Imagem para pôster do jogo "Device 6"

"Eu não acho que existam limites", diz Simon Flesser, sueco que é um dos criadores de"Device 6", vendido apenas para iPad, iPod Touch e iPhone [Simogo, disponível na AppStore por US$ 3,99, aproximadamente R$ 10,70].

Para escrever o jogo, ganhador do Apple Design Award no ano passado, ele diz ter seinspirado em Franz Kafka, Agatha Christie e Lewis Carroll, além de na série clássica de TV"O Prisioneiro" e nos filmes de Alfred Hitchcock. A produtora sueca Simogo, formada por ele e Magnus Gordon, também é responsável por outro jogo inusitado: "Year Walk",inspirado numa lenda do folclore do país.

No caso de "Device 6", o ato de jogar é mesmo muito semelhante ao de ler um livro. O

game usa textos, imagens e sons para ajudar a protagonista a resolver o enigma e fugir dailha. A diferença é que o texto vem de qualquer direção. Pode aparecer na horizontal, decabeça para baixo, vindo de baixo ou do alto do cenário. Se Anna vira uma esquina, por exemplo, o texto a acompanha. O jogador precisa movimentar o aparelho para fazer ocenário se mexer. Pelas possibilidades inovadoras, a revista norte-americana "The

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Atlantic" saudou o jogo como uma possível revolução para a indústria editorial.

TRAMAS

A simbiose entre videogames e literatura não é nova. "Dante's Inferno", de 2010, foiinspirado na "Divina Comédia". Há também dezenas de jogos, novos e antigos, baseadosem tramas de Agatha Christie e em romances como "O Poderoso Chefão", "Alice no Paísdas Maravilhas" e "O Grande Gatsby". No sentido contrário, jogos de sucesso como

"Assassin's Creed" e "Halo", entre outros, viraram livro. E há associações inusitadas. Oprimeiro "BioShock", um sucesso de vendas e crítica de 2009, passado numa cidadesubmersa, é inspirado nos escritos da russo-americana Ayn Rand (1905-82) sobre aliberdade individual.

Em geral, porém, adaptações para games costumam oferecer não mais do que tênuesreferências ao universo dos livros aos quais aludem. Em "O Grande Gatsby", lançado em2011, por exemplo, não há na trama nada que se refira a decadência, idealismo e revoltasocial -a diversão é fazer o personagem Nick Carraway atirar coquetéis nos garçons quepassam carregando bandejas.

O que distingue alguns jogos da nova geração é o fato de que suas tramas acedem atemas pouco usuais no universo dos games e mais comumente associados às narrativasliterárias: dramas familiares, zonas cinzentas entre o bem e o mal, exploração daliberdade, moralidade, solidão, capitalismo selvagem e nostalgia, entre outros.

Dilemas morais, por exemplo, são o tema principal de "The Walking Dead" [TelltaleGames; de US$ 4,99 a US$ 19,99, de R$ 13,57 a R$ 54,38 aproximadamente, cadaepisódio, ou R$ 45 a temporada inteira, segundo a plataforma], inspirado na HQ do escritor Robert Kirkman e do ilustrador Tony Moore que deu origem à série de TV. O videogameusa elementos de "adventure" (nome dado ao gênero de jogos centrados na história), masgira em torno, principalmente, de tomadas de decisões.

Algumas são fáceis, como praguejar ou não na frente de crianças. Outras, mais difíceis:discutir ou sacar logo a arma diante de um estranho ameaçador? Deixar um adolescentede caráter duvidoso morrer? Matar um filho, mordido pelos zumbis, na frente do pai?

A fórmula não funciona somente com um apocalipse zumbi ou em jogos de mistério. Quetal o drama de um escritor estressado e os limites da criação literária? Em "The Novelist"[Orthogonal Games, US$ 14,99, aproximadamente R$ 40,85, no site do desenvolvedor], de2013, o jogador é um fantasma que explora as memórias e sonhos da família de DanKaplan, o escritor que precisa terminar o romance mais importante da sua carreira.

Algumas vezes não é agradável viver no jogo o dilema entre o trabalho e ser um pai e ummarido melhor. É praticamente impossível não se afeiçoar à família Kaplan e sofrer comseus problemas.

"Sem dúvida, há um espaço imenso para ser explorado nesta área. Games são interativose podem criar uma experiência diferente para cada jogador", diz Kent Hudson, criador de"The Novelist". "Literatura e filmes podem, claro, criar experiências para as quais diferentesespectadores dão diferentes interpretações; mas todas essas interpretações vêm de umamesma fonte. Em 'The Novelist', os capítulos se sucedem de maneira aleatória e reagemàs escolhas do jogador. Isso aprofunda a experiência, tornando-a mais pessoal."

No mesmo gênero de "The Novelist", "Gone Home" [Fullbright, US$ 19,99,aproximadamente R$ 54, no site gonehomegame.com] é sobre uma escritora fracassadaque tem de descobrir, após se deparar com o lar vazio, onde foi parar sua famíliadisfuncional, enquanto a trama revela detalhes sobre sua personalidade.

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Mesmo "blockbusters" da geração anterior se mostram, em suas novas versões, afetadospelos aspectos inovadores dos games mais recentes. "BioShock Infinite", de 2013, é umahistória sobre autoconhecimento, que apresenta o que tem sido chamadoconvencionalmente de "narrativa madura" -aquela que não tem (muitos) tiros e trazespeculações filosóficas.

Já "Dear Esther" [The Chinese Room, US$ 9,99, aproximadamente R$ 27 no site dear-esther.com], lançado em 2008 e depois reformulado seguidas vezes até uma versão

definitiva, de 2012, reduz o papel do jogador a um grau tão mínimo -não há missões acumprir, vidas, barras de energia ou fases a conquistar- que alguns críticos ainda discutemse ele pode mesmo ser classificado como um videogame. Sua narrativa epistolar efragmentada é um romance visual ambientado numa ilha fictícia no litoral escocês, que o

jogador precisa explorar, sendo obrigado às vezes a parar para ouvir a narração de umdiário. A sensação, por vezes, é de estar dentro de um fluxo de consciência, recurso quemarca uma parte importante da literatura moderna.

OFÍCIO

As possibilidades literárias ainda não levam multidões de escritores de ofício às

produtoras. Um dos poucos famosos a se unir à indústria foi Tom Bissell. Autor de "ExtraLives: Why Video Games Matter" (Vidas extras: por que videogames importam), elecolaborou com "Gears of War 2", jogo cujos diálogos somam 250 mil caracteres. Bisselldefendeu por anos a ideia de que escritores eram os mais indicados para desenvolver games. Mas mudou de ideia.

"Eu pensava que os jogos eram potencialmente um grande meio de contar histórias, e queescritores idiotas estavam ferrando com tudo. Não acredito mais nisso. Qualquer que sejao propósito desse meio, não é contar histórias", disse à revista "The New Yorker".Contatado, ele declinou dar entrevistas, dizendo-se afastado no momento do mundo dos

jogos.

No Brasil, a carioca Simone Campos desponta como exemplo de escritor que vem seembrenhando na produção de games. Autora do romance "A Vez de Morrer", lançado noano passado pela Companhia das Letras, ela aprendeu programação e trabalha na criaçãodo próprio game, cujo título provisório é "Garota Promíscua".

Ela diz ser um desafio, como autora, criar uma história que também obedeça à mecânicade um jogo. "Como toda mídia, jogos contam histórias de um jeito muito próprio. Seuverdadeiro diferencial são as regras e como elas regem suas interações com a história.

Além de serem um desafio, as regras espelham a vida por muitas vezes nos obrigar a

escolher entre opções eticamente limitadas, racionar recursos com que gostaríamos decontar liberalmente... ou seja, a engolir sapos."

NARRATIVA

Mas será que videogames algum dia poderão ser chamados de literatura? "Na verdade, anarrativa 'literária' foi um dos primeiros formatos dos games", explica o escritor DanielPellizzari, autor de "Digam a Satã que o Recado foi Entendido" (Companhia das Letras), eex-colunista de games da Folha.

"Os 'adventures' em texto, um dos principais gêneros em termos de vendas na primeira

metade dos anos 80, eram praticamente livros interativos. A qualidade do texto variavademais, mas há clássicos muito bons, especialmente da Infocom: o do 'Hitchhiker's Guide'['Guia do Mochileiro das Galáxias'] foi escrito pelo próprio [autor do livro,] Douglas Adams."

No entanto, com o avanço dos gráficos, aos poucos a narrativa literária foi trocada pela

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tentativa de imitar o cinema. Uma evolução gigante para um gênero que nasceu com jogoscomo "Pac Man" e "Space Invaders", em que a história, se existia, não importava. ParaDavid Lemes, professor de tecnologia e jogos Digitais da PUC-SP e editor doGameReporter, primeiro blog brasileiro especializado em games, a sofisticação narrativaacompanha não só gráficos e processadores, que tornaram computadores e consoles maispotentes, mas também o contexto econômico.

"'Pac Man' e 'Space Invaders' surgiram em uma época onde os 'arcades' [conhecidos no

Brasil como fliperamas] estavam se popularizando. Tinham que ser jogos nos quais o jogador não ficasse muito tempo jogando, deveria perder todas as suas 'vidas'rapidamente para comprar outra ficha e jogar outra partida. Era um modelo de negócio daépoca. Você jogava em pé, em um local público, por alguns minutos."

Contudo, acrescenta Lemes, depois que o videogame "tomou a sala de estar das famílias",fase iniciada com o Atari, o tempo de uma partida pôde ser aumentado: o jogador estava,afinal, no "conforto do lar". Novas categorias de jogos nasceram, com as grandesaventuras; partidas que poderiam levar dias e dias para acabar. "Hoje, a grande maioriados games, por mais simples que seja, traz consigo uma estrutura narrativa complexa",frisa.

Na Grécia antiga, os épicos eram narrados na forma de canções. A história jamais eracontada da mesma maneira, porque seus narradores tinham de recorrer apenas àmemória. A experiência desses novos videogames, de certo modo, remonta à tradição oralna cultura ocidental. Como a trama se renova a cada partida, na Antiguidade cadanarrativa era uma experiência pessoal do ouvinte. Só não tinha "game over".

ALEXANDRE RODRIGUES, 47, é jornalista e escritor, autor de "Veja se Você RespondeEssa Pergunta (Não Editora).

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