AS FORMAS E OS LUGARES DO AZULEJO ... - Pop Galo · PDF fileNeste sentido, a diversidade de...

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  • AS FORMAS E OS LUGARES DO AZULEJO CONTEMPORNEO Uma escultura cuja dimenso equivale a um prdio de 3 andares, integralmente revestida por 17.000 azulejos de diversas cores, formando vrias composies, sublinhadas e destacadas por 15.000 LEDs. Uma descrio formal e possvel mas que esconde a multiplicidade de leituras propiciadas por Pop Galo, a obra de Joana Vasconcelos que prope uma viso crtica e actualizada de uma pea que faz parte do imaginrio nacional - o galo de Barcelos -, revestida por azulejo, outro smbolo portugus. Com razes medievais associadas aos Caminhos de Santiago, a lenda do galo de Barcelos poder ajudar a explicar a fortuna que esta figurao conheceu no contexto da tradio oleira de Barcelos, que mais tarde o Estado Novo (re)construiu como um smbolo identitrio de Portugal. Apresentado em diversas exibies nacionais e internacionais, o galo de Barcelos tornou-se um cone da nacionalidade aps a Exposio do Mundo Portugus, em 1940, sobrevindo desde ento como uma pea sucessivamente recriada por diferentes geraes de artistas (Fernandes 2014, 45; Fernandes 2016). Entre as tradies conhecidas regista-se ainda a sua ligao s bodas camponesas e aos ritos matrimoniais (Alves 2007, 118). O Galo de Joana Vasconcelos, na sua verso Pop, apropria-se, criticamente e sob diversos aspectos, de um passado e de uma ideia de nao que actualiza e recria, recorrendo por sua vez a materiais tradicionais, como o azulejo, tambm ele metamorfoseado na forma e na ligao que estabelece com a iluminao artificial formada por LEDs que, citando o desenho puntiforme tradicional dos galos de Barcelos, destacam a sua vertente tecnolgica. Neste ensaio, que privilegia uma abordagem sob o ponto de vista do azulejo, Pop Galo assume-se como uma escultura que abre novas perspectivas no uso e explorao de uma das artes que mais caracteriza o imaginrio colectivo e a herana patrimonial portuguesa o azulejo. CITAES E APROPRIAES EM AZULEJO

    Ao longo das ltimas dcadas, diversos artistas plsticos introduziram na sua obra

    elementos identitrios da cultura popular, associados ideia de nao. Entre estes destaca-

    se, naturalmente, Joana Vasconcelos que, no seu percurso artstico, tem vindo a manipular

    objectos ou tradies populares portuguesas como as rendas e bordados, a filigrana, o ferro

    forjado ou mesmo o azulejo, numa perspectiva simultaneamente irnica e deslumbrada do

    patrimnio (Amado 2010, 44).

  • Com uma vasta obra que reflecte (...) sobre a ideia de nao, cimentando o seu trabalho

    nos esteretipos e smbolos nacionais e regionais (Almeida 2013, 20) e (...) mobilizando-se

    a cultura popular como plataforma de negociao identitria e de reflexo sobre a

    sociedade portuguesa (Almeida 2012, 43), Joana Vasconcelos incorpora, em muitas das

    suas peas, o azulejo, entendido enquanto smbolo cultural de um imaginrio partilhado e

    como material cognitivo.

    Aplicado no contexto de uma releitura crtica desta arte, o azulejo reveste volumes diversos

    que funcionam como esculturas - sries Caixas, Paredes e Tetris (iniciadas respectivamente

    em 2002, 2003 e 2012) e a pea Volupta (2014) -, ou aplicado a outros elementos, caso da

    embarcao intitulada Barco da Mariquinhas (2002) ou do logtipo de uma marca de

    desporto (Luso Nike, 2006).

    A ideia de citao e de evocao de uma arte reconhecida como identitria, encontra no

    projecto Trafaria Praia (2013) uma das suas expresses maiores. Concebido como uma

    obra de arte total que inclua a recuperao de um cacilheiro, a interveno artstica no

    interior e exterior e, ainda, a programao desenvolvida naquele espao, esta obra

    constituiu o Pavilho de Portugal na 55 Exposio Internacional de Arte - la Biennale di

    Venezia. O exterior da embarcao foi revestido por azulejos azuis e brancos, que

    actualizam o clebre Grande Panorama de Lisboa, um dos painis mais emblemticos que

    mostra a cidade na sua extensa frente ribeirinha na viragem para o sculo XVIII. O Grande

    Panorama de Lisboa (sc. XXI), como foi oficialmente designado, inovava tambm pelo local

    da sua aplicao um cacilheiro.

    Neste sentido, a pea Pop Galo vem consolidar uma das vias de explorao da tradio

    azulejar portuguesa que tem marcado o percurso de Joana Vasconcelos nos ltimos anos,

    abrindo uma nova direco na explorao do azulejo enquanto material escultrico, como

    veremos, e explorando novos formatos do material cermico, numa tendncia recorrente

    da azulejaria contempornea. Na verdade, a forma do azulejo e as superfcies de aplicao

    do mesmo so, neste projecto, subvertidas pela artista, que rompe com modelos e prticas

  • seculares, assumindo, ao mesmo tempo, um corte em relao ao uso do azulejo no contexto

    da sua prpria obra.

    NEM SEMPRE O AZULEJO QUADRADO

    Uma apreciao, ainda que sumria, sobre a histria do azulejo em contexto internacional,

    percorrendo o mundo desde o Egipto China, evidencia o uso de mltiplos formatos e

    tcnicas materializados numa riqueza imensa de materiais e modos de decorao, no

    sendo por isso estranha a opo de Joana Vasconcelos em conceber o seu prprio azulejo.

    No entanto, o mesmo exerccio aplicado azulejaria portuguesa, que a artista cita de forma

    mais directa, mostra que o azulejo usado ininterruptamente desde a viragem para o sculo

    XVI at aos dias de hoje privilegiou, sobretudo, o formato quadrado, conhecendo

    preferencialmente uma aplicao parietal, quer no interior, quer no exterior.

    Em todo o caso, e apesar desta aparente hegemonia do quadrado, convm recordar a Sala

    dos rabes, no Palcio Nacional de Sintra, com os seus paralelogramos e quadrados (mais

    tarde explorados por Querubim Lapa (1925-2016)), assim como os esquemas conhecidos

    como de enxaquetados, caractersticos do final do sculo XVI e incios da centria seguinte,

    que eram formados por quadrados e rectngulos de diversas dimenses, aplicados na

    diagonal. Embora partindo de uma base quadrada, j anteriormente alguns exemplares

    tinham um acabamento recortado, caso dos azulejos relevados do quarto de D. Sebastio

    ou da Sala dos rabes, em Sintra, tal como cortados seriam mais tarde os remates

    superiores de revestimentos barrocos a azul e branco, integrados no ciclo que ficou

    conhecido como Grande Produo Joanina (1725-1750), s para citar alguns exemplos. E de

    formato rectangular so os elementos de remate designados como frisos, que delimitaram

    composies figurativas ou de padro, numa cronologia extensa, ou os chamados biselados,

    to comuns nas fachadas e que o arquitecto lvaro Siza Vieira (1933-) utilizou na Estao

    Baixa-Chiado do Metropolitano de Lisboa (1992-1998) (ainda que com formatos especficos

    adaptados superfcie).

    interessante notar, todavia, que o azulejo foi sempre um material verstil, adaptando-se

    com facilidade aos desafios que lhe eram impostos, e revelando, por outro lado, a mestria

    de tantos mestres annimos que, ao longo dos sculos, foram responsveis pela sua

  • produo. Veja-se, entre os mltiplos exemplos que poderamos citar, os azulejos em

    losango especialmente criados para as escadarias, no sculo XVII, que tornavam a retcula

    vertical e paralela inclinao dos lanos.

    Se a regularizao dos formatos pode tambm ser devida a questes de economia de meios,

    a verdade que a forma e recorte foram um contraponto importante, testemunhando

    aplicaes especficas e complementares, que ganham uma muito maior visibilidade no

    sculo XX. A liberdade artstica e a procura de novos meios de expresso, aliada

    versatilidade do azulejo, com as suas especificidades - cor, capacidade reflectora (brilho) e

    durabilidade -, constituram factores de atraco para os artistas mas tambm para os

    arquitectos. Neste sentido, a diversidade de formas um aspecto que tem vindo a ser

    explorado desde o ps-guerra, e de que so exemplo, entre outros, as placas cermicas em

    cunha de Eduardo Nery (1938-2013), aplicadas num muro da Avenida Infante Santo (1993-

    1994), em Lisboa, no Museu da Olaria de Barcelos (1998) e na ETA da Asseiceira (2010); os

    azulejos em escama do Edifcio do Mar (2011), no Oceanrio de Lisboa, da autoria de Toni

    Cumella Vendrell (1951-); os azulejos hexagonais do novo Terminal de Cruzeiros do Porto de

    Leixes (2015) concebidos pelo arquitecto Lus Pedro Silva (1971-); ou os azulejos em

    trapzio do MAAT Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia (2016), da arquitecta Amanda

    Levete (1955-).

    Subvertendo o formato clssico do quadrado, Joana Vasconcelos concebeu um quadriltero

    que, em conjuntos de seis formam um hexgono. Com excepo de algumas unidades, em

    quadrado, rectngulo ou de formato circular (bico e olhos), estas peas, sempre dispostas

    em hexgonos, esto aplicadas em todas as superfcies, apenas se verificando uma alterao

    nas suas dimenses, conforme a escala do volume a revestir, adaptando-se ainda s curvas

    e contracurvas.

    A repetio regular dos quadrilteros organizados em hexgonos cria um padro

    geomtrico, cujas juntas alargadas e coloridas (no mesmo tom do azulejo) no deixam de

    evocar os esquemas da azulejaria mudjar, nas tcnicas da corda seca ou aresta. Mas esta

    teia de linhas orientadas em todas as direces, e que percorre a superfcie do galo, altera,

    tambm, o que a quadrcula tradicional do azulejo, gerando ainda diferentes ritmos visuais

  • (diagonais e elpticos, por exemplo) e permitindo a observao de outras formas (como

    tringulos e losangos), conforme o posicionamento do observador.

    Todavia, e ao contrrio do que seria expectvel num esquema de repetio, cada a