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LUX FILM DAYS 3 FILMES EUROPEUS 23 LÍNGUAS 27 ESTADOS-MEMBROS AS NOSSAS HISTÓRIAS. A NOSSA CULTURA. ILUSTRADAS ATRAVÉS DA EMOÇÃO DO CINEMA. PORQUE O CINEMA TEM A FACULDADE DE EMOCIONAR. PORQUE A CULTURA TEM O PODER DE ESCLARECER. PORQUE A UNIÃO EUROPEIA É O NOSSO ESPAÇO COMUM. JUST THE WIND EM FOCOU

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LUX FILM DAYS3 FILMES EUROPEUS23 LÍNGUAS27 ESTADOS-MEMBROS

AS NOSSAS HISTÓRIAS. A NOSSA CULTURA. ILUSTRADAS ATRAVÉS DA EMOÇÃO DO CINEMA.

PORqUEO CINEMA TEM A FACULDADE DE EMOCIONAR.

PORqUEA CULTURA TEM O PODER DE ESCLARECER.

PORqUEA UNIÃO EUROPEIA É O NOSSO ESPAÇO COMUM.

JUSTTHE wINDEM FOCOU

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PORqUEO CINEMA TEM A FACULDADE DE EMOCIONAR.

PORqUEA CULTURA TEM O PODER DE ESCLARECER.

PORqUEA UNIÃO EUROPEIA É O NOSSO ESPAÇO COMUM.

Csak a szél (Just the Wind) de Bence Fliegauf, IO sONO lI (shun li e o poeta), de andrea segre, e TaBU, de Miguel Gomes, integram o programa da primeira edição das JORNaDas DE CINEMa lUX, organizada sob os auspícios do Parlamento Europeu.

Juntos, estes três filmes notáveis refletem a riqueza, a densidade e a beleza do cinema europeu. Separadamente, abordam questões sociais com realismo ou fantasia, com dureza ou pudor, com modernidade ou nostalgia.

Venha ver ou rever estes filmes e, depois, em luxprize.eu, debata as discriminações de que é vítima a minoria cigana (Csak a szél), a imigração e, neste âmbito, o conflito entre as tradições comunitárias e as aspirações individuais (IO SONO LI), assim como o estado [político] do mundo e, dentro dele, a nossa intimidade sentimental (TaBU).

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3 FILMES EUROPEUSCSAK A SZÉL, IO SONO LI, TABU

O que são os LUX Film Days?

Consistem na difusão de três filmes em 23 línguas, nos 27 países da União Europeia, durante um mesmo período (outono de 2012). O objetivo é partilhar a riqueza e a diversidade do cinema europeu com o maior número possível de cidadãos e discutir, in loco ou em linha, os assuntos tratados nos filmes em liça pelo Prémio LUX 2012. Trata-se de questões que nos interessam a todos e que dizem respeito à nossa história ou à nossa cultura.

O que é a Menção Especial do público?

a Menção Especial do público é o voto dos espetadores. Aproveite a oportunidade para compartilhar as suas opiniões, o que pensa dos filmes LUX e os temas que abordam. Para tal, basta visitar o nosso sítio Web ou a nossa página no Facebook!

VEJADISCUTA VOTE

27 Estados-MembrosBELGIQUE / BELGIË BRUXELLES / BRUSSELSБЪЛГАРИЯ SOFIAČESKÁ REPUBLIKA PRAHA, JIHLAvADANMARK KØBENHAvNDEUTSCHLAND BERLIN, MüNCHENEESTI TALLINNÉIRE/IRELAND CORKΕΛΛΑΔΑ ATHINAI, THESSALONIKIESPAÑA BARCELONA, GIJóN, SEGOvIA, SEvILLAFRANCE PARIS, MARSEILLE, STRASBOURGITALIA ROMA, MILANOΚΥΠΡΟΣ NICOSIALATvIJA RĪGALIETUvA vILNIUS, KAUNASLUXEMBOURG LUXEMBOURGMAGYARORSZÁG BUDAPESTMALTA vALLETTANEDERLAND AMSTERDAMÖSTERREICH WIENPOLSKA WARSZAWA, WROCłAWPORTUGAL LISBOAROMÂNIA BUCURESTISLOvENIJA LJUBLJANASLOvENSKO BRATISLAvASUOMI/FINLAND HELSINKI/HELSINGFORSSvERIGE STOCKHOLMUNITED KINGDOM LONDON, EDINBURGH

@luxprize#luxprize

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1. EM POUCAS PALAVRASEntre dois empregos, um pai inválido e dois adolescentes para educar, Birdy tenta gerir, da melhor forma que pode, os problemas criados pelos seus dias sobrecarregados. O seu objetivo: juntar o mais depressa possível uma quantia suficiente de dinheiro para ir ter com o marido, que emigrou para o Canadá. São tempos difíceis para os Roma da Hungria, país onde uma família acaba de ser morta a tiro, enquanto dormia.

Foi, pois, através do dia-a-dia difícil desta família que o realizador húngaro Benedek Fliegauf optou por pôr o espetador em contacto com as formas múltiplas, muitas vezes insidiosas, que podem ser assumidas pela expressão de um ódio enraizado nos preconceitos mais arreigados. Ao acompanhar ora o percurso de Birdy, a mãe, ora o dos seus dois filhos, Anna e Rio, ao longo de um único dia, o realizador desenha um retrato realista da comunidade Roma, bem distanciado das representações folclóricas que habitam o nosso imaginário, realçando a imensa precariedade económica que caracteriza as suas condições de vida, bem como a marginalização de que são vítimas, seja a nível social ou geográfico, acompanhada por um isolamento da população, que desperta a triste lembrança dos regimes segregacionistas. Toda esta discriminação denunciada no filme deveria dar azo a uma consciencialização salutar por parte do espetador, nomeadamente numa época caracterizada por uma recrudescência da intolerância de que são alvo as minorias étnicas, bem como a uma reflexão mais abrangente sobre os valores que a sociedade europeia pretende, na verdade, transmitir através do tratamento que reserva aos Roma e às demais minorias.

2. CONTEXTUALIZAÇÃO: A SITUAÇÃO DOS ROMA NA EUROPAOriundos do norte da Índia, os Roma instalaram-se na Europa a partir da Idade Média. Dotados de uma cultura e de um estilo de vida característicos, apresentavam-se, na altura, como artesãos — cesteiros, estanhadores, caldeireiros, ferreiros —, músicos, criadores de cavalos, vendedores ambulantes... A sua maneira precária de trabalhar, baseada numa prospeção quotidiana, que os leva a interpelar regularmente a população, contrasta então fortemente com os hábitos da comunidade camponesa, vinculada a um trabalho ritmado pelas estações e motivada, a longo prazo, pela criação de reservas ou de um património. Não obstante essas diferenças, os dois grupos conseguem, todavia, manter relações baseadas no intercâmbio: uns providenciam ferramentas e utensílios diversos, cuidados veterinários, música ou uma força de trabalho temporária aos outros, que, por seu turno, lhes fornecem alimentos. Por muito tempo, os Roma conseguiram viver, deste modo, das suas atividades económicas, mas o choque cultural acarretado pela sua chegada ocasionaria, muito em breve, o surgimento de numerosos estereótipos que, ainda hoje, alimentam o clima de exclusão de que são vítimas.

Hoje em dia, os Roma constituem uma população estimada entre oito e doze milhões de habitantes, na sua maioria sedentarizada e instalada na Europa Central e nos Balcãs, onde a sua situação económica e social é deplorável. Entre 60 % e 80 % dos Roma da Hungria em idade ativa estão desempregados. Mais de 60 % dos Roma da Roménia vivem abaixo do limiar local de pobreza; 80 % destes não têm qualquer qualificação. Na Bulgária, 60 % dos Roma que vivem nas cidades estão, igualmente, desempregados, situação que se agrava no ambiente rural. Em certas comunidades da Eslováquia, todos os Roma adultos estão privados de recursos. Residentes, em geral, de bairros de lata insalubres, os Roma conhecem, além disso, um endividamento catastrófico, que os obriga a ficar à mercê de usurários sem escrúpulos.

CSAK A SZÉL(JUST THE wIND)

um filme de Benedek (Bence) Fliegauf

Hungria, Alemanha, França. 2012. 95’

Com Lajos Sárkány (Rio), Katalin Toldi (Birdy), Gyöngyi Lendvai (Anna), György Toldi (avô)

Grande Prémio do Júri, Berlinale 2012

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Em 2005, oito países — a República Checa, a Eslováquia, a Hungria, a Roménia, a Bulgária, a Croácia, a Macedónia e a Sérvia e Montenegro — comprometeram-se a eliminar a discriminação dos Roma, mas esse compromisso não se traduz, na realidade, em qualquer medida concreta no terreno, bem pelo contrário. Na Hungria, uma lei recente impõe aos beneficiários de prestações sociais (a maior parte dos Roma pertence a essa categoria) tarefas de interesse geral, nas obras públicas (limpeza das ruas, manutenção dos parques e das florestas), ao passo que as agressões contra eles se multiplicam. Na Bulgária, sucedem-se as manifestações anti-Roma, por iniciativa de partidos de extrema direita e, por vezes, com a complacência das forças da ordem. Um pouco por toda a parte — na Roménia, na Eslováquia, na República Checa…—, estão a ser construídos muros, a fim de isolar os bairros Roma do resto da sociedade, dando origem a verdadeiros guetos.

Na Europa Ocidental, a situação dos Roma é igualmente alarmante. A maior parte deles vive em condições de extrema pobreza. Em França, o número de Roma detidos aumenta de forma significativa e todos se lembram das expulsões maciças de que foram alvo, em 2010. Também na Dinamarca e na Alemanha, as autoridades procederam recentemente à expulsão violenta de Roma. Em Itália, na periferia de Nápoles, foram queimados acampamentos Roma em 2008; dois anos mais tarde, as autoridades governamentais solicitavam autorização à Europa para proceder à sua expulsão… Em suma, os Roma — a quem se recusa qualquer legitimidade territorial sob pretexto de um nomadismo muito mais ilusório do que real — representam uma população que foi esquecida, senão mesmo abandonada, pelos Estados e pelas suas instituições. O seu futuro e o seu devir representam, atualmente, questões particularmente preocupantes, que devem continuar a estar no cerne dos debates, de modo a que se construa uma sociedade europeia mais justa e mais tolerante em relação às suas minorias.

3. A FICÇÃO AO SERVIÇO DE UM DISCURSO UNIVERSALEmbora o pré-genérico anuncie um filme inspirado numa realidade exata, claramente situada no espaço — a Hungria — e no tempo — os anos 2008 e 2009 —, a ficção desenvolvida por Just the Wind não contém qualquer referência espácio-temporal, o que confere ao seu discurso uma verdadeira dimensão universal.

Ultrapassando o enquadramento documental dos eventos trágicos evocados, o filme interroga, de forma mais geral, sobre os preconceitos contra os membros da comunidade Roma, os mecanismos que levam ao ódio racial e aos atos irracionais daí decorrentes . Abre-se caminho a uma reflexão sobre o elemento de humanidade que nos distingue do resto dos seres vivos, reflexão esta que é, aliás, muito concretamente desenvolvida na escola, no âmbito de um curso de ciências, aquando da única aula à qual assistimos ao lado a Anna e que se versa sobre as características cerebrais próprias do ser humano.

Ao ódio racial e às suas consequências dramáticas, o realizador opõe três reações emblemáticas, encarnadas nas personagens cujos percursos seguimos, alternadamente, ao longo de todo o filme: o projeto de fuga de Birdy, o retraimento de Anna e a autoproteção de Rio, três atitudes que estão, todas, ligadas, mais ou menos diretamente, ao “desaparecimento”.

3.1. O ESPAÇO E O TEMPO DO FILMEO tempo da ficção corresponde, em linhas gerais, a um dia de vinte e quatro horas, dividido implicitamente em três grandes momentos: manhã, tarde e noite. Este período cíclico de tempo, escolhido por vezes como duração convencional para estruturar um enredo (texto ou filme) cujo discurso tende para a universalidade, é muitas vezes associado a uma dimensão simbólica ou metafórica. Embora tal dimensão não seja, certamente, percetível em Just the Wind, podemos identificar na atitude de Bence Fliegauf, pelo contrário, um evidente cuidado de descontextualizar os factos evocados no prólogo, com a provável intenção de chamar a atenção para uma situação preocupante a um nível muito mais lato.

Nesse mesmo sentido, podemos dizer que os locais onde tem lugar a ação do filme, embora estejam circunscritos ao território húngaro, estão-no de forma indefinida. A ação tem lugar em dois terrenos distintos: um espaço “socializado” — o de uma aldeia bastante importante, cujo nome desconhecemos — e o espaço “selvagem” de uma floresta, ambos relativamente afastados um do outro e ligados por um caminho aparentemente pouco frequentado.

O que há de notável no filme de Bence Fliegauf não é tanto a escolha destes lugares para fixar a ação, como o modo mediante o qual deixa discernir a fronteira invisível, mas bem real, que existe entre os dois grupos de indivíduos. Com efeito, se no cinema é possível transmitir facilmente a opressão de um gueto urbano, recorrendo a sinais visuais, como, por exemplo, um interior material, é, pelo contrário, muito mais complicado transmitir o apartheid, a que está submetida a comunidade Roma, dentro de um espaço não delimitado, como a floresta, tradicionalmente associada aos valores positivos relacionados com a ecologia. Perante esta falta de marcos visíveis, a banda sonora assume essa função e desempenha um

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papel importante na circunscrição do espaço. Os ruídos naturais, muito amplificados — cantos de pássaros, movimentos e zumbidos de insetos, latidos de cães ao longe, o estremecer das folhas e da ramagem —, tornam-se, no filme, marcadores fortes do espaço reservado à comunidade Roma. Esta fronteira sonora que a isola do resto da população cria, aliás, um tipo de aliança tácita entre os Roma e o mundo natural da floresta que os afasta ainda mais da “civilização”.

3.2. PRECONCEITOS E ÓDIO RACIAL“O racismo não é mais do que uma sucessão fatal de erros de raciocínio”, confessa Bence Fliegauf numa entrevista. O diálogo entre os dois polícias presentes no domicílio da família Lakatos, brutalmente assassinada, permite explicitar este comentário e concretizar os principais elementos que deixam encetar uma reflexão sobre o ódio racial, os preconceitos que o alimentam, os factos utilizados para o justificar, bem como os atos criminosos aos quais conduz, e a tolerância mais ou menos admitida das autoridades a seu respeito.

Durante a conversa entre os dois homens, o polícia local lamenta o facto de os agressores terem atacado uma família integrada, cujos membros não eram parasitas; antes pelo contrário, trabalhavam muito, tinham uma casa de banho e os filhos andavam na escola. Este polícia exprime, deste modo, toda uma diferença entre uma violência que julga legítima — como aquela que sancionaria um delito cometido contra a sociedade dos autóctones — e um ódio cego, indiferenciado, sem justificação. “Sei exatamente que família deviam ter atacado”, diz ele ao colega. Evoca, então, uma família de ladrões, que não hesitaram em agredir uma senhora idosa, de 82 anos, para lhe roubar uma caixa de ovos e algum dinheiro. Ele próprio teria podido mostrar a casa, mas ninguém lho tinha pedido. “É uma sorte estares aqui. Da próxima vez, poderás mostrar-lhes que família devem executar! As balas estão demasiado caras para disparar ao acaso sobre crianças Roma...”, responde o colega. E o outro conclui: “Mas as crianças Roma têm uma tendência chata: crescem... E depois é tarde demais! É tão simples quanto isso. Finalmente, alguém fez alguma coisa. Eu sou a lei aqui. Se fosse o teu bairro em Budapeste, eras tu quem representava a lei!”.

O laxismo parece ser, portanto, muito frequentemente, a regra em matéria de atos criminosos cometidos contra a comunidade Roma. De qualquer forma, é essa a direção que parece seguir a investigação na ficção de Bence Fliegauf, que, logo no início, coloca os polícias numa atitude de falta de respeito perante a família assassinada. Durante toda a conversa em casa dos Lakatos, vemo-los, com efeito, descascar e comer pistachos encontrados no local. Esta atitude particularmente displicente, tendo em conta os acontecimentos que ocorreram na casa, substitui ostensivamente o trabalho de investigação que os polícias deveriam efetuar, situação esta que reflete muito bem uma total falta de consideração para com este tipo de vítimas.

Para além dessa cena muito explícita, é através de réplicas muitas vezes inofensivas, ou de meros gestos, que o realizador húngaro nos transmite os preconceitos, a hostilidade e mesmo o ódio perante os Roma, exprimidos quase de forma subliminar. Logo no início do filme, por exemplo, a motorista do autocarro que, de manhã, leva Anna para a escola, não pára ao pé dela, mas sim a trinta metros mais longe, buzinando e obrigando a adolescente a percorrer essa distância em passo de corrida, antes de entrar para o veículo. Um pouco mais tarde, quando se senta numa sala de aula vazia, antes do começo das aulas, o porteiro vai ter com ela para lhe perguntar se sabe que tinham sido roubados um computador e oito ratos, em pleno dia. Sem a acusar abertamente, deixa, obviamente, entender que ela poderia ser culpada desse delito. A atitude de Anna (cabeça baixa, ombros encolhidos...) mostra, então, que entende bem a acusação tácita, à qual não se pode opor abertamente, sob risco de agravar as coisas. Do mesmo modo, quando, depois do seu segundo trabalho na escola, Birdy compõe o seu penteado, o mesmo porteiro entra na sala e queixa-se de um mau cheiro: “Cheiras a morte!”, diz-lhe e aproxima a ventoinha do seu rosto. A seguir a Anna, é, portanto, a sua mãe que sofre uma profunda humilhação por parte desse homem cheio de hostilidade e de preconceitos.Todavia, nem toda a comunidade de origem húngara é retratada com a mesma postura racista. Assim,

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a supervisora da equipa encarregada da manutenção das orlas dos grandes eixos rodoviários oferece a Birdy um saco de roupa usada, revelando um pouco de compaixão, ou mesmo empatia, perante esta mulher que trabalha arduamente para prover às necessidades da sua família. De forma mais surpreendente e mesmo um tanto enigmática, o porteiro da escola, que se obstina a humilhar os Roma, convida Anna a continuar a carregar o seu telemóvel na sala de aula; mais tarde, o usurário que vem exigir a Birdy o pagamento da sua dívida, deixa em cima da mesa, antes de sair, uma enorme melancia. Serão estes alguns gestos de pura condescendência ou havemos de interpretar esta parte ínfima de humanidade, que surge nos seres mais abjetos, como um sinal de esperança ou de confiança na natureza humana, indicando a possibilidade de mudança?

3.3. TRêS PERSONAGENS, TRêS MODOS DE REAGIRTanto o filme de Bence Fliegauf como a atualidade recente mostram que os Roma não estão no cerne das preocupações das autoridades judiciárias, a fim de serem protegidos ou obterem justiça. Através das suas três personagens principais, o realizador descreve o modo como esta população abandonada é obrigada a desenvencilhar-se sozinha, para escapar aos pogroms.

Birdy dá o seu melhor para emigrar para o Canadá o mais rapidamente possível: tem dois empregos, recusa-se a pagar a sua dívida, garantindo ao usurário que poderá ficar com a casa após a sua partida. “Antes morrer que voltar”, retorque ela, como se já tivesse partido, quando o usurário lembra a possibilidade de o seu projeto falhar... Portanto, é uma verdadeira esperança de viver melhor que Birdy coloca nesta partida, que lhe parece iminente, pese embora o atraso de alguns meses evocado pelo seu marido já instalado no estrangeiro, quando fala com a sua filha pela Internet. Esta determinação ajuda-a, de certa forma, a livrar-se ao mesmo tempo do medo e da dominação exercida pelas personagens que a exploram ou a humilham, como o porteiro da escola (o seu “patrão”) ou ainda o usurário que vem pedir o dinheiro da dívida, duas pessoas que ela não hesita em enfrentar, nem em chamar à ordem, apesar dos riscos que corre por isso. A confiança total num futuro melhor leva-a, de certa forma, para além do presente e, portanto, do perigo bem real que subsiste no seu ambiente. Esta confiança dá-lhe forças para avançar, a despeito de todos os obstáculos mas, ao mesmo tempo, expõe-na ainda mais a eventuais represálias de que nem sequer se apercebe.

Ao passo que Birdy tudo faz para ultimar o mais rapidamente possível o seu projeto de se juntar ao marido no Canadá, com os filhos, Anna, ao invés, parece estar em vias de integração: frequenta regularmente a escola, estuda a sua lição de inglês, vai buscar água à bomba para fazer a sua higiene matinal; leva Zita ao lago para lhe lavar os cabelos, tenta averiguar se a irmã foi às aulas... Apesar do assassínio da família Lakatos e do medo que se apodera dela, não parece querer desistir deste percurso. Uma situação sintomática, aliás, é a conversa que tem com o pai através da Internet, no decurso da qual não enuncia o desejo de se juntar a ele, mas sim de ele voltar para os proteger. A sua estratégia pessoal visa menos a fuga e mais uma vida completamente apagada, de modo a chamar o mínimo de atenção possível para ela e para a sua família. Por isso, não responde às provocações do porteiro, que a acusa tacitamente de ter roubado um computador à escola; de maneira geral, profere apenas o estritamente necessário, caminha cabisbaixa, responde docilmente aos pedidos dos seus colegas, mas, sem ter com eles (elas) verdadeiras relações de camaradagem. Esta forma transparente de existir leva-a, aliás, a atitudes quase extremas a nível moral, como a cena em que sai tranquilamente, sem intervir, nem alertar as autoridades escolares, do vestiário feminino, onde uma colega de turma tenta desesperadamente escapar às garras de adolescentes que vinham violá-la.

Enquanto a mãe se esforça por fugir e a irmã escolhe viver como se fosse uma sombra de si própria, Rio decide, quanto a ele, proteger toda a sua família, arranjando um abrigo escondido no coração da floresta. Como resulta da conversa que tem com o jovem do grupo de autodefesa, diz que não precisa de armas, porquanto a construção do “bunker” é apenas uma solução provisória, caso aconteça alguma coisa antes da partida para o Canadá. Contrariamente a Birdy, que avança contra ventos e marés rumo ao seu objetivo, o adolescente parece, estar consciente dos riscos que corre a sua família durante o tempo que lhe falta passar neste recanto rural da Hungria. Das três personagens principais do filme, é o único que não sai da floresta, para chegar à aldeia. Tendo abandonado a escola, não parece ter qualquer contacto com a população de origem húngara, procurando apenas a companhia de membros da comunidade que têm aproximadamente a mesma idade. Vemo-lo, com efeito, entrar numa habitação escura e mais ou menos arruinada, onde alguns jovens passam o tempo a jogar PlayStation. Mais tarde, vai até ao lago, onde encontra outros amigos que brincam na água…

Através do percurso destas três personagens são-nos apresentados neste filme, globalmente, o exílio, a “integração” passiva e silenciosa e a desconfiança entre as comunidades, como as três atitudes possíveis face aos atos criminosos cometidos contra os Roma. É óbvio que nenhuma destas atitudes é satisfatória, porquanto todas elas coagem os indivíduos em causa a repudiar uma vida normal, que deveria ser sua.

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4. UMA ELEVADA TENSÃO DRAMáTICAUma característica notável da encenação de Just the Wind é o modo como o realizador consegue manter uma tensão dramática perceptível do início até ao fim do filme. Assim, embora seja muito pouco expresso, o medo que nasce do sentimento permanente de ser acossado — o termo empregado para designar os indivíduos que tinham cometido os crimes é “caçador”, remetendo para a imagética de uma população instintiva e até “animal” — é facilmente transmitido por empatia ao espetador, que é levado a partilhar, quase do interior, o dia-a-dia angustiado dos Roma. Vários mecanismos dotados de grande eficácia cinematográfica contribuem, neste caso, para criar tal ambiente.

4.1. A CRIAÇÃO DE UMA EXPECTATIVAAntes do prólogo e do pré-genérico do filme, ouvimos um trecho que enumera uma série de eventos dramáticos que tiveram realmente lugar na Hungria, num passado muito recente. Desde o início, esse anúncio cria um clima de tensão, que será cuidadosamente mantido até ao final do filme, obrigando o espetador a estar constantemente alerta.

4.2. A OMNIPRESENÇA DO PERIGOO realizador consegue, de uma forma notável, deixar pressentir o perigo nos detalhes mais anódinos. Os exemplos são numerosos. Assim, no início, quando a equipa de manutenção dos espaços públicos que integra Birdy está a trabalhar, um grande plano sobre um cortador de relva permanece no ecrã durante um longo período, enquanto o campo sonoro é invadido pelo barulho amplificado produzido pela máquina. No contexto anunciado dos assassínios cometidos contra os Roma, a máquina adquire, nestas circunstâncias, o aspeto de uma arma temível, que poderia ser implicada em novos atos de violência.

Mais tarde, um plano aproximado de Anna, acocorada na floresta, para urinar, insiste na vulnerabilidade acrescida da jovem adolescente, que, aliás, olha incessante e inquietamente em redor, como se o perigo pudesse surgir brutalmente da vizinhança imediata. Similarmente, os sinais não-verbais do medo, que se manifestam ao longo de todo o filme, contribuem para a manutenção de uma forte tensão dramática: enquanto espera pelo autocarro que a leva à escola, Anna, sozinha na orla da floresta, está alerta, apertando-se nos seus próprios braços cruzados, como se quisesse proteger-se; ao ir para o abrigo, por uma azinhaga paralela à estrada, Rio nota que um carro abranda e começa a avançar devagar, ao ritmo do rapaz, para o intimidar. Para evitar, sem dúvida, uma provocação, o adolescente não se atreve a encarar abertamente o motorista, limitando-se a olhar de soslaio, muito furtivamente; continua a caminhar sustendo, manifestamente, a respiração, e acaba por parar e agachar-se, esperando que o carro desapareça, o que, por fim, acontece após uma pausa que parece interminável.

Por último, o ritmo lento do filme, em que as sequências alternam em função da evolução do dia, tal como vivido pelas três personagens, faz pressentir continuamente a irrupção de um drama que será, contudo, adiada para o final do filme: pouco faladores, Birdy, Anna e Rio caminham em silêncio e os seus trajetos são longamente acompanhados pela câmara de Bence Fliegauf, que se fixa ora na nuca ou nos ombros, ora nos pés ou nas silhuetas das personagens, ora, ainda, no pneu que Rio empurra — um tanto misteriosamente — à sua frente. O silêncio pesado que acompanha todas essas cenas de deslocação contribui, igualmente, para reforçar o clima de tensão e de ameaça que paira no filme.

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4.3. O DÉFICE DE INFORMAÇÃO De modo geral, o filme caracteriza-se por um défice de informação que, neste contexto, se mostra particularmente inquietante para nós, espetadores do filme. Confrontados com situações que não podemos dominar ou que não compreendemos imediatamente, não podemos antecipar o que vai acontecer. Este procedimento obriga-nos, portanto, a estar constantemente alerta. De onde vem Rio quando, durante o prólogo que se passa de madrugada, o vemos aparecer do fundo do ecrã e recolher a casa? Quem são aquelas pessoas que observa de longe e que estão a cantar em cima de um túmulo? Quem morreu? Quem são as pessoas que interrogam Anna quando sai da floresta para ir para a escola? Todas estas situações não explicitadas permanecem enigmáticas, pelo menos numa primeira fase, o que contribui para reforçar a tensão dramática. Mas embora a ambiguidade se dissipe progressivamente ao longo das cenas que se seguem a grande parte destas situações — deste modo, percebemos depressa que os homens que Anna encontra fazem parte da sua comunidade e, mais especificamente, do grupo de autodefesa encarregado de vigiar os arredores —, existe no filme um certo número de situações que ficam, propositadamente, inexplicadas e, por conseguinte, completamente enigmáticas e abertas à interpretação pessoal.

Em Just the Wind, a personagem do avô parece estar presente para adensar ainda mais o mistério que envolve a história da família. Incapaz de se expressar por palavras, o velho fica calado do início ao fim do filme, soltando apenas como que uns gemidos quando a filha o chama.

Noutro plano, o passado de Birdy, evocado de maneira muito lapidar em três momentos do filme, permanece completamente opaco. A primeira alusão a esse passado é feita durante uma conversa telefónica que tem, muito provavelmente, com o seu segundo empregador, após ter acabado as suas tarefas de limpeza dos espaços públicos. “Não, não andei a beber… O autocarro é que está atrasado”, diz ela ao seu interlocutor. Esta réplica lacónica e relativamente anedótica volta a ser lembrada ao fim do dia, quando a mulher atravessa a aldeia para regressar a casa e é interpelada por um cliente da tasca. O homem faz de novo alusão a um passado conturbado, evocando os bons tempos em que ela se sentava à mesa com os clientes e se dedicava a atividades de prostituição. A situação degenera, porém, em briga entre os homens, o que lhe permite livrar-se das propostas obscenas do agressor. Por último, a terceira alusão ao passado de Birdy está relacionada com a dívida importante que tem para com o usurário que vem ter com ela no início da tarde. Por que razão lhe deve dinheiro? Terá servido todo esse dinheiro para a partida do seu marido (o qual, portanto, não terá de reembolsar seja o que for)? Ou será que ela já tinha feito uma tentativa da emigrar com os seus filhos, mal sucedida? “Desta vez, é para sempre…” responde o seu filho quando o vigia do grupo de defesa realça que já era para terem partido no ano anterior.

Embora não haja, de forma manifesta, quaisquer implicações fundamentais ligadas ao passado de Birdy, toda a opacidade que encobre a sua história pessoal, contribui para manter uma certa pressão em volta desta personagem fechada e pouco comunicativa e induz a ideia de que o perigo pode, efetivamente, vir de qualquer lado.

Finalmente, o que acontece a Rio após o assassínio da sua família jamais será revelado, conquanto o espetador conjeture, graças aos indícios sonoros presentes no filme, que o adolescente esteja, também, morto, abatido pelos “caçadores” enquanto tentava fugir, sem dúvida, para se esconder no seu abrigo. Um único tiro disparado na noite, seguido pela brusca cessação dos ruídos ligados à corrida e à respiração arquejante do jovem deixam entender, deste modo, que a bala atingiu o alvo. E podemos imaginar como, à semelhança do porco cujo cadáver ele próprio tinha encontrado por acaso, nesse mesmo dia, jaz estendido algures, à espera de ser, por seu turno, descoberto casualmente, o que, como ficou patente, ainda não aconteceu, porquanto são apenas os corpos crivados de balas do avô, da mãe e da irmã, que estão a ser vestidos na morgue. Este final aberto no que respeita ao destino de Rio — o qual estará, talvez, “apenas” gravemente ferido e inconsciente — alimenta, de facto, a tensão dramática para além do plano final, assombrando lancinante e insistentemente a imaginação do espetador.

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5. qUESTõES OU SITUAÇõES DESTINADAS AO DEBATE SOBRE O FILME

qUEM MATOU BIRDY E A SUA FAMÍLIA?O realizador Bece Fliegauf deixou, propositadamente, na sombra a identidade dos assassinos. serão pessoas que avistamos no filme? Provavelmente, mas não há qualquer certeza... Imaginem qual seria o trabalho dos investigadores: quem vão interrogar? Porquê? Quais poderiam ser os motivos dos assassinos?

AS REAÇõES NO MEIO SOCIAL DAS VÍTIMASApós o assassínio da família de Birdy, imaginem quais poderiam ser as reações das seguintes personagens:• o porteiro da escola;• o jovem vigia que trabalha para o grupo de autodefesa;• a supervisora da equipa de limpeza das bermas das estradas;• o usurário;• a adolescente gótica para quem Anna desenhava uma tatuagem.

DESTINOS qUE ESTÃO POR UM FIONum contexto caracterizado por um défice de informação e, por conseguinte, amplamente aberto à interpretação, podemos imaginar que certos acontecimentos casuais tenham influenciado o desenrolar dos eventos e, em consequência, o próprio desfecho do filme. Tentem, assim, imaginar o que poderia ter sucedido se:• a camioneta de Birdy não tivesse chegado com uma hora de atraso;• Rio não tivesse encontrado o cadáver do porco dos Lakatos, que teve de enterrar em seguida;• Anna tivesse denunciado os adolescentes que vinham agredir uma colega da escola no vestiário.

De que dependem, portanto, a vida e a sobrevivência dos Roma? Quais são as suas hipóteses de serem donos do seu próprio destino?

Vinciane FonckLes Grignoux (Liège, Bélgica)www.grignoux.be

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