Às Portas Da Revolução - Prefácio (Slavoj Zizek)

6
E Slavoj Žižek A primeira reação pública à idéia de reatualizar Lenin é, obviamente, uma risada sarcástica. Marx, tudo bem – hoje em dia, até mesmo em Wall Street há gente que ainda o admira: o Marx poeta das mercadorias, que fez descrições perfeitas da dinâmica capitalista; o Marx dos estudos culturais, que retratou a alienação e a reificação de nossas vidas cotidianas. Mas Lenin – não, você não pode estar falando sério! Lenin não é aquele que representa justamente o fra- casso na colocação em prática do marxismo? O responsável pela grande catás- trofe que deixou sua marca em toda a política mundial do século XX? O res- ponsável pelo experimento do socialismo real, que culminou numa ditadura economicamente ineficiente? Então, se há um consenso dentro da esquerda radical da atualidade (o que resta dela), é que, para ressuscitar o projeto polí- tico radical, devemos deixar para trás o legado leninista: o implacável enfoque na luta de classes; o partido como forma privilegiada de organização; a tomada violenta e revolucionária do poder; a conseqüente “ditadura do proletariado”… todos esses “conceitos-zumbis” não devem ser abandonados se a esquerda quiser ter alguma possibilidade de vitória nas condições do capitalismo “pós- industrial” atual? O problema desse argumento aparentemente convincente é que ele en- dossa de maneira simplista a imagem herdada de Lenin como o sábio líder revolucionário que, após formular as coordenadas básicas de seu pensamento e prática em O que fazer?, simplesmente as aplicou, de modo implacável, a par- tir de então. Mas, e se houvesse outra história a ser contada sobre Lenin? É verdade que a esquerda de hoje está passando pela experiência devastadora do fim de toda uma era para o movimento progressista, uma experiência que a obriga a reinventar as coordenadas básicas de seu projeto. Contudo, foi uma experiência exatamente homóloga que deu origem ao leninismo. É bom recor-

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Às Portas Da Revolução - Prefácio (Slavoj Zizek)

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E

Slav

oj Ž

ižek

A p

rim

eira

reaç

ão p

úblic

a à id

éia d

e rea

tual

izar

Len

in é,

obv

iam

ente

, um

a ris

ada

sarc

ástic

a. M

arx,

tudo

bem

– h

oje

em d

ia, a

té m

esm

o em

Wal

l Str

eet h

á ge

nte

que

aind

a o

adm

ira: o

Mar

x po

eta

das

mer

cado

rias,

que

fez

desc

riçõe

s pe

rfei

tas d

a di

nâm

ica

capi

talis

ta; o

Mar

x do

s est

udos

cul

tura

is, q

ue re

trat

ou a

al

iena

ção

e a

reifi

caçã

o de

nos

sas v

idas

cot

idia

nas.

Mas

Len

in –

não

, voc

ê nã

o po

de e

star

fala

ndo

séri

o! L

enin

não

é a

quel

e qu

e re

pres

enta

just

amen

te o

fra-

cass

o na

colo

caçã

o em

prá

tica d

o m

arxi

smo?

O re

spon

sáve

l pel

a gra

nde c

atás

-tr

ofe

que

deix

ou su

a m

arca

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toda

a p

olíti

ca m

undi

al d

o sé

culo

XX

? O

res-

pons

ável

pel

o ex

peri

men

to d

o so

cial

ismo

real

, que

cul

min

ou n

uma

dita

dura

ec

onom

icam

ente

inef

icie

nte?

Ent

ão, s

e há

um

con

sens

o de

ntro

da

esqu

erda

ra

dica

l da

atua

lidad

e (o

que

rest

a de

la),

é qu

e, p

ara

ress

usci

tar o

pro

jeto

pol

í-tic

o ra

dica

l, de

vem

os d

eixa

r par

a tr

ás o

lega

do le

nini

sta:

o im

plac

ável

enf

oque

na

luta

de c

lass

es; o

par

tido

com

o fo

rma p

rivile

giad

a de o

rgan

izaç

ão; a

tom

ada

viol

enta

e re

volu

cion

ária

do

pode

r; a

cons

eqüe

nte “

dita

dura

do

prol

etar

iado

”…

todo

s es

ses

“con

ceito

s-zu

mbi

s” n

ão d

evem

ser

aba

ndon

ados

se

a es

quer

da

quis

er te

r alg

uma

poss

ibili

dade

de

vitó

ria n

as c

ondi

ções

do

capi

talis

mo

“pós

-in

dust

rial

” atu

al?

O p

robl

ema

dess

e ar

gum

ento

apa

rent

emen

te c

onvi

ncen

te é

que

ele

en-

doss

a de

man

eira

sim

plist

a a

imag

em h

erda

da d

e Le

nin

com

o o

sábi

o líd

er

revo

luci

onár

io q

ue, a

pós f

orm

ular

as c

oord

enad

as b

ásic

as d

e se

u pe

nsa m

ento

e p

rátic

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O q

ue fa

zer?

, sim

ples

men

te a

s apl

icou

, de m

odo

impl

acáv

el, a

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-tir

de

entã

o. M

as, e

se

houv

esse

out

ra h

istór

ia a

ser

con

tada

sob

re L

enin

? É

verd

ade q

ue a

esqu

erda

de h

oje e

stá

pass

ando

pel

a ex

peri

ênci

a de

vast

ador

a do

fim

de

toda

um

a er

a pa

ra o

mov

imen

to p

rogr

essis

ta, u

ma

expe

riênc

ia q

ue a

ob

riga

a re

inve

ntar

as

coor

dena

das

básic

as d

e se

u pr

ojet

o. C

ontu

do, f

oi u

ma

expe

riên

cia

exat

amen

te h

omól

oga

que d

eu o

rige

m a

o le

nini

smo.

É b

om re

cor-

Page 2: Às Portas Da Revolução - Prefácio (Slavoj Zizek)

14 /

Às p

orta

s da

revo

luçã

oIn

trod

ução

: Ent

re a

s dua

s rev

oluç

ões /

15

De v

olta

a Le

nin:

seu

O E

stado

e a

revo

luçã

o é e

strit

amen

te re

leva

nte p

ara

a de

vast

ador

a ex

periê

ncia

de

1914

– o

tota

l eng

ajam

ento

sub

jetiv

o de

Len

in

ness

a ex

periê

ncia

fica

cla

ro a

o se

ler a

fam

osa

cart

a a

Kam

enev

, esc

rita

em ju

-lh

o de

191

7:

Entr

e no

us: s

e m

e m

atar

em, t

e pe

ço q

ue p

ubliq

ue m

eu c

ader

no d

e an

otaç

ões

“O m

arxi

smo

e o

Esta

do” (

que

se e

ncon

tra

em E

stoc

olm

o). E

stá

envo

lto p

or

uma

capa

azu

l. É

uma

cole

ção

de to

das

as c

itaçõ

es d

e M

arx

e En

gels,

ass

im

com

o de

Kau

stky

con

tra

Pann

ekoe

k. H

á um

a sé

rie d

e ob

serv

açõe

s e

nota

s, fo

rmu l

açõe

s. A

cho

que

com

um

a se

man

a de

trab

alho

pod

eria

ser

pub

licad

o.

Eu o

con

sider

o im

port

ante

, já

que

não

ape

nas

Plek

hano

v, m

as t

ambé

m

Kau

tsky

, ent

ende

ram

err

ado.

Con

diçã

o: tu

do is

so fi

ca en

tre n

ous.2

O e

ngaj

amen

to e

xist

enci

al é

ext

rem

o aq

ui, e

o n

úcle

o da

“uto

pia”

leni

-ni

sta

nasc

e da

s ci

nzas

da

catá

stro

fe d

e 19

14, e

m s

eu a

cert

o de

con

tas

com

a

orto

doxi

a da S

egun

da In

tern

acio

nal:

o im

pera

tivo

radi

cal d

e esm

agar

o E

stad

o bu

rguê

s, qu

e sig

nific

a o

Esta

do c

omo

tal,

e in

vent

ar u

ma

nova

form

a so

cial

co

mun

al se

m e

xérc

ito, p

olíc

ia e

bur

ocra

cia

perm

anen

tes,

na q

ual t

odos

pod

e-ria

m to

mar

par

te n

a ad

min

istra

ção

das q

uest

ões s

ocia

is. P

ara

Leni

n, e

sse

não

era

um p

roje

to te

óric

o pa

ra a

lgum

futu

ro d

istan

te –

em

out

ubro

de

1917

, ele

af

irmav

a: “P

odem

os c

oloc

ar im

edia

tam

ente

em

mov

imen

to u

m a

pare

lho

de

Esta

do c

onst

ituíd

o de

dez

, ou

mes

mo

de v

inte

milh

ões

de p

esso

as”.3

Esse

im-

pulso

do

mom

ento

é a

ver

dade

ira u

topi

a. D

evem

os n

os a

ferr

ar à

louc

ura

(no

estr

ito se

ntid

o ki

erke

gaar

dian

o do

term

o) d

a ut

opia

leni

nist

a –

e, se

é q

ue si

g-ni

fica

algo

, o s

talin

ismo

repr

esen

ta u

m r

etor

no a

o “s

enso

com

um” r

ealis

ta. É

im

poss

ível

sup

eres

timar

o p

oten

cial

exp

losiv

o de

O E

stad

o e

a re

volu

ção

– ne

sse

livro

, “o

voca

bulá

rio

e a

gram

átic

a da

trad

ição

pol

ítica

oci

dent

al fo

ram

ab

rupt

amen

te a

band

onad

os”.4

O q

ue e

ntão

se

segu

iu p

ode

ser

cham

ado

de –

tom

ando

em

pres

tado

o

títul

o do

text

o de

Alth

usse

r sob

re M

aqui

avel

– la

solit

ude d

e Lén

ine:

o pe

ríod

o em

que

ele

pra

ticam

ente

fico

u só

, lut

ando

con

tra

a co

rren

te e

m s

eu p

rópr

io

part

ido.

Qua

ndo,

em

sua

s “Te

ses

de a

bril”

(191

7), L

enin

iden

tific

ou a

Aug

en-

blick

– a

opo

rtun

idad

e ún

ica

para

um

a re

volu

ção

–, su

as p

ropo

stas

fora

m in

i-ci

alm

ente

rece

bida

s com

estu

por o

u de

sdém

pel

a gr

ande

mai

oria

de s

eus c

ole-

gas

de p

artid

o. N

enhu

m l

íder

pro

emin

ente

den

tro

do P

artid

o Bo

lche

viqu

e ap

oiou

seu

cha

mad

o à

revo

luçã

o, e

o P

ravd

a de

u o

extr

aord

inár

io p

asso

de

diss

ocia

r o

part

ido,

ass

im c

omo

seu

cons

elho

edi

tori

al c

omo

um to

do, d

as

2 V.

I. L

enin

, Col

lect

ed W

orks

, Mos

cou,

Pro

gres

s Pub

lishe

rs, 1

965,

v. 4

2, p

. 67.

3

Cita

do d

e N

eil H

ardi

ng, L

enin

ism, D

urha

m, N

. C., D

uke

Uni

vers

ity P

ress

, 199

6, p

. 309

. 4

Ibid

., p. 1

52.

dar o

espa

nto

de L

enin

qua

ndo,

no

outo

no d

e 191

4, to

dos o

s par

tidos

soci

alde

-m

ocra

tas e

urop

eus (

com

a h

onro

sa e

xceç

ão d

os b

olch

eviq

ues r

usso

s e d

os so

-ci

alde

moc

rata

s sé

rvio

s) a

dota

ram

a “l

inha

pat

riót

ica”.

Len

in c

hego

u a

pens

ar

que a

ediç

ão d

o Vo

rwär

ts –

o jo

rnal

diá

rio

dos s

ocia

ldem

ocra

tas a

lem

ães –

que

no

ticio

u qu

e os

mem

bros

de

seu

part

ido

no R

eich

stag

hav

iam

vot

ado

pelo

s cr

édito

s mili

tare

s era

um

a fa

lsific

ação

feita

pel

a po

lícia

secr

eta

tzar

ista,

com

o

obje

tivo

de en

gana

r os t

raba

lhad

ores

russ

os. N

aque

la ép

oca d

o co

nflit

o m

ilita

r qu

e di

vidi

u o

cont

inen

te e

urop

eu a

o m

eio

foi d

ifíci

l rej

eita

r a n

oção

de

que

se

deve

ria

tom

ar p

artid

o ne

ssa

luta

e c

omba

ter o

“fer

vor p

atri

ótic

o” e

m se

u pr

ó-pr

io p

aís!

Mui

tas m

ente

s priv

ilegi

adas

(inc

luin

do F

reud

) suc

umbi

ram

à te

nta-

ção

naci

onal

ista,

aind

a qu

e po

r ape

nas u

m p

ar d

e se

man

as!

Esse

cho

que

de 1

914

foi –

na

expr

essã

o de

Ala

in B

adio

u –

um d

ésas

tre,

uma

catá

stro

fe n

a qu

al u

m m

undo

inte

iro d

esap

arec

eu: n

ão a

pena

s a id

ílica

burg

uesa

no

prog

ress

o, m

as ta

mbé

m o

mov

imen

to so

cial

ista q

ue a

acom

panh

a-va

. O p

rópr

io L

enin

(o

Leni

n de

O q

ue fa

zer?

) pe

rdeu

o p

é –

em s

ua r

eaçã

o de

sesp

erad

a nã

o há

satis

façã

o, n

enhu

m “B

em q

ue e

u di

sse!

”. Es

se m

omen

to d

e Ve

rzw

eiflu

ng, e

ssa

catá

stro

fe, l

impo

u o

terr

eno

para

o e

vent

o le

nini

sta,

para

o

rom

pim

ento

do

hist

oric

ism

o ev

oluc

ioni

sta

da S

egun

da I

nter

naci

onal

– e

Le

nin

foi o

úni

co q

ue p

erce

beu

isso,

o ú

nico

que

art

icul

ou a

Ver

dade

da

ca-

tást

rofe

. Naq

uele

mom

ento

de d

eses

pero

, med

iant

e um

a le

itura

aten

ta d

a Ló

gi-

ca, d

e H

egel

, sur

giu

o Le

nin

capa

z de

per

cebe

r a

poss

ibili

dade

ímpa

r de

um

a re

volu

ção.

1 É

cruc

ial d

esta

car

a re

levâ

ncia

da

“alta

teor

ia”

para

a lu

ta p

olíti

ca c

on-

cret

a de h

oje,

já q

ue at

é mes

mo

um in

tele

ctua

l eng

ajad

o co

mo

Noa

m C

hom

sky

cons

ider

a po

uco

impo

rtan

te o

con

heci

men

to te

óric

o pa

ra a

luta

pol

ítica

pro

-gr

essi

sta:

qua

l o s

entid

o de

se

estu

dar

gran

des

text

os f

ilosó

ficos

e t

eóri

co-

soci

ais p

ara a

atua

l lut

a con

tra o

mod

elo

neol

iber

al d

e glo

baliz

ação

? Dev

emos

lid

ar co

m fa

tos ó

bvio

s (qu

e sim

ples

men

te tê

m d

e ser

div

ulga

dos p

ubli c

amen

te,

com

o C

hom

sky

faz

em s

eus

num

eros

os t

exto

s po

lític

os)

ou c

om t

exto

s de

um

a co

mpl

exid

ade

tão

gran

de q

ue q

uase

os

torn

a in

com

pree

n sív

eis?

Se

qui-

serm

os co

mba

ter e

ssa t

enta

ção

antit

eóric

a, nã

o ba

sta c

ham

arm

os a

aten

ção

para

os

num

eros

os p

ress

upos

tos

teór

icos

sob

re li

berd

ade,

pode

r e

soci

e dad

e, qu

e ta

mbé

m a

bund

am n

os te

xtos

pol

ítico

s de

Cho

msk

y; o

mai

s im

port

ante

é q

ue,

atua

lmen

te, t

alve

z pe

la p

rim

eira

vez

na

hist

ória

da

hum

ani d

ade,

noss

a ex

pe-

riênc

ia d

iári

a (d

e bi

ogen

étic

a, ec

olog

ia, c

iber

espa

ço e

real

idad

e vi

rtua

l) ob

riga

to

dos n

ós a

conf

ront

ar a

s que

stõe

s filo

sófic

as b

ásic

as so

bre

a na

ture

za d

a lib

er-

dade

e d

a id

entid

ade

hum

anas

, e a

ssim

por

dia

nte.

1 Es

te tr

echo

dec

orre

de

conv

ersa

s com

Seb

astie

n Bu

dgen

e E

usta

che

Kou

véla

kis.

Page 3: Às Portas Da Revolução - Prefácio (Slavoj Zizek)

16 /

Às p

orta

s da

revo

luçã

oIn

trod

ução

: Ent

re a

s dua

s rev

oluç

ões /

17

gada

, tal

vez p

or d

écad

as. E

m su

a in

sistê

ncia

obs

tinad

a de

que

se d

ever

ia co

rrer

o

risc

o e

pros

segu

ir p

ara

o pr

óxim

o es

tági

o –

ou se

ja, r

epet

ir a

revo

luçã

o –,

el

e es

tava

só,

rid

icul

ariz

ado

pela

mai

oria

dos

mem

bros

do

com

itê c

entr

al d

e se

u pr

ópri

o pa

rtid

o; e

sta

sele

ção

de se

us te

xtos

pro

cura

mos

trar

um

pou

co d

o ob

stin

ado,

pac

ient

e –

e m

uita

s vez

es fr

ustr

ante

–, t

raba

lho

revo

luci

onár

io co

m

o qu

al L

enin

impô

s su

a vi

são.

Mes

mo

que

a in

terv

ençã

o pe

ssoa

l de

Leni

n te

nha

sido

indi

spen

sáve

l, co

ntud

o, n

ão d

evem

os tr

ansf

orm

ar a

hist

ória

da

Re-

volu

ção

de O

utub

ro n

a hi

stór

ia d

e um

gên

io s

olitá

rio,

con

fron

tado

com

as

mas

sas

deso

rien

tada

s e

grad

ualm

ente

im

pond

o su

as i

déia

s. Le

nin

triu

nfou

po

rque

seu

apel

o, a

o m

esm

o te

mpo

que

pas

sava

por

cim

a da

nom

enkl

atur

a do

pa

rtid

o, e

ncon

trou

eco

naq

uilo

que

se

pode

ria

cham

ar d

e m

icro

polít

ica

re vo

-lu

cion

ária

: a in

crív

el e

xplo

são

da d

emoc

raci

a po

pula

r, de

com

itês

loca

is su

r-gi

ndo

em to

rno

de to

das a

s gra

ndes

cida

des d

a Rús

sia e,

igno

rand

o a a

utor

idad

e do

gov

erno

“le

gítim

o”, t

oman

do a

situ

ação

em

sua

s pr

ópri

as m

ãos.

Essa

é a

hi

stór

ia n

ão c

onta

da d

a Re

volu

ção

de O

utub

ro, o

opo

sto

do m

ito d

e um

pe-

quen

o gr

upo

de r

evol

ucio

nári

os im

plac

avel

men

te d

edic

ados

que

der

am u

m

golp

e de

Est

ado.

A

pri

mei

ra c

oisa

que

cham

a a

aten

ção

do le

itor a

tual

é c

omo

os te

xtos

de

Leni

n de

191

7 sã

o fa

cilm

ente

leg

ívei

s: nã

o há

nec

essid

ade

de lo

ngas

not

as

expl

icat

ivas

– m

esm

o qu

e os

nom

es n

os se

jam

des

conh

ecid

os, i

med

iata

men

te

com

pree

ndem

os o

que

est

á em

jogo

. Da

dist

ânci

a hi

stór

ica

que

tem

os h

oje,

os

text

os ap

rese

ntam

um

a cl

arez

a qu

ase c

láss

ica

ao tr

açar

os c

onto

rnos

da

luta

da

qual

par

ticip

aram

. Len

in e

stá

com

plet

amen

te c

ient

e do

par

adox

o de

sta

situa

-çã

o: n

a pr

imav

era

de 1

917,

dep

ois d

a Re

volu

ção

de F

ever

eiro

, que

der

rubo

u o

regi

me

tsar

ista,

a Rú

ssia

era

o p

aís

mai

s de

moc

rátic

o em

toda

a E

urop

a, co

m

um g

rau

sem

pre

cede

ntes

de

mob

iliza

ção

de m

assa

s, lib

erda

de d

e or

gani

zaçã

o e

liber

dade

de

impr

ensa

– a

inda

ass

im, e

ssa

liber

dade

torn

ou a

situ

ação

não

tr

ansp

aren

te, p

rofu

ndam

ente

am

bígu

a. Se

uma

linha

com

um q

ue p

erpa

ssa

todo

s os t

exto

s de

Leni

n es

crito

s ent

re a

s dua

s rev

oluç

ões (

a de

Fev

erei

ro e

a

de O

utub

ro),

é su

a in

sist

ênci

a na

dis

tânc

ia q

ue s

epar

a os

con

torn

os fo

rmai

s “e

xplíc

itos”

da l

uta p

olíti

ca en

tre a

mul

tiplic

idad

e de p

artid

os e

outr

os as

sunt

os

polít

icos

das

ver

dade

iras

que

stõe

s (p

az im

edia

ta, d

istr

ibui

ção

da te

rra,

e, é

cl

aro,

“tod

o o

pode

r ao

s sov

iete

s”, o

u se

ja, o

des

man

tela

men

to d

o ap

arel

ho d

e Es

tado

exi

sten

te e

sua

subs

titui

ção

por

nova

s for

mas

de

adm

inist

raçã

o so

cial

ao

est

ilo d

as c

omun

as).

Essa

dis

tânc

ia é

a d

istâ

ncia

ent

re a

rev

oluç

ão q

ua

expl

osão

imag

inár

ia d

a lib

erda

de e

m e

ntus

iasm

o su

blim

e, o

mom

ento

mág

ico

da so

lidar

ieda

de u

nive

rsal

qua

ndo

“tud

o pa

rece

pos

sível

”, e

o tr

abal

ho d

uro

da

reco

nstr

ução

soci

al q

ue d

eve

ser r

ealiz

ado

se e

ssa

expl

osão

ent

usia

smad

a de

i-xa

r mar

cas n

a in

érci

a do

pró

prio

edi

fício

soci

al.

Essa

dist

ânci

a –

uma

repe

tição

da

dist

ânci

a en

tre 1

789

e 179

3 na

Rev

olu-

ção

Fran

cesa

– é

o p

rópr

io e

spaç

o da

inte

rven

ção

singu

lar

de L

enin

: a li

ção

“Tes

es d

e ab

ril”.

Len

in e

stav

a lo

nge

de se

r um

opo

rtun

ista

que

pro

cura

va li

-so

njea

r e e

xplo

rar a

atm

osfe

ra p

reva

lece

nte

entr

e o

popu

lach

o; se

us p

onto

s de

vist

a er

am a

ltam

ente

idio

ssin

crát

icos

. Bog

dano

v ca

ract

eriz

ou a

s “Te

ses

de

abri

l” co

mo

“o d

elír

io d

e um

louc

o”,5 e

a p

rópr

ia N

adej

da K

rups

kaia

con

clui

u:

“Tem

o qu

e Le

nin

tenh

a en

louq

ueci

do”.6

Esse

é o

Leni

n de

que

m ai

nda t

emos

o q

ue ap

rend

er. A

gra

ndez

a de L

enin

re

sidiu

em, n

essa

situ

ação

cata

stró

fica,

não

ter m

edo

de tr

iunf

ar –

em co

ntra

ste

com

o p

átho

s neg

ativ

o di

scer

níve

l em

Ros

a Lu

xem

burg

o e A

dorn

o, p

ara

quem

o

ato

autê

ntic

o em

últi

ma

inst

ânci

a er

a a

adm

issão

do

frac

asso

que

traz

à lu

z a

verd

ade

da si

tuaç

ão. E

m 1

917,

em

vez

de

espe

rar a

té q

ue a

s con

diçõ

es fo

ssem

pr

opíc

ias,

Leni

n or

gani

zou

um at

aque

pre

vent

ivo;

em 1

920,

com

o líd

er d

o pa

r-tid

o da

cla

sse

oper

ária

sem

cla

sse

oper

ária

(a m

aior

par

te h

avia

sido

diz

imad

a na

gue

rra

civi

l), e

le d

eu p

ross

egui

men

to à

org

aniz

ação

de

um E

stad

o, a

ceita

n-do

ple

nam

ente

o p

arad

oxo

de u

m p

artid

o qu

e tin

ha d

e org

aniz

ar –

e at

é rec

riar

– su

a pr

ópri

a ba

se, s

ua c

lass

e op

erár

ia.

Em n

enhu

m lu

gar e

ssa

gran

deza

é m

ais e

vide

nte

do q

ue n

os e

scri

tos d

e Le

nin

que

cobr

em o

per

íodo

de

feve

reir

o de

191

7 –

quan

do a

pri

mei

ra re

vo-

luçã

o ab

oliu

o ts

arism

o e

inst

alou

um

regi

me

dem

ocrá

tico

– at

é a

segu

nda

re-

volu

ção

em o

utub

ro. O

text

o de

abe

rtur

a de

ste

volu

me

(“C

arta

s de

long

e”)

reve

la a

com

pree

nsão

inic

ial d

e Le

nin

daqu

ela

poss

ibili

dade

rev

oluc

ioná

ria

únic

a, e

o úl

timo

text

o (a

s min

utas

da

“Reu

nião

do

Sovi

ete d

e dep

utad

os o

pe-

rári

os e

sold

ados

de

Petr

ogra

do”)

dec

lara

a to

mad

a de

pod

er p

elos

bol

chev

i-qu

es. T

udo

está

aqu

i, do

Len

in “e

ngen

hoso

est

rate

gist

a m

ilita

r” a

o Le

nin

“da

utop

ia d

ecre

tada

” (d

a im

edia

ta a

boliç

ão d

o ap

arel

ho d

e Es

tado

). Pa

ra n

os re

-fe

rirm

os n

ovam

ente

a K

ierk

egaa

rd: o

que

pod

emos

per

cebe

r nes

ses e

scri

tos é

o

Leni

n em

con

stru

ção:

não

é a

inda

o L

enin

“in

stitu

ição

sov

iétic

a”, m

as o

Le

nin

joga

do n

uma

situa

ção

inde

finid

a. S

erem

os a

inda

cap

azes

, hoj

e em

dia

, de

viv

enci

ar o

impa

cto

deva

stad

or d

e um

mom

ento

de “

aber

tura

” his

tó ri

ca d

e ta

l pro

porç

ão, q

uand

o se

“fec

ha” u

m ci

clo

no q

ual o

cap

italis

mo

tard

io d

ecre

-to

u o

“fim

da

hist

ória

”?

Em fe

vere

iro d

e 19

17, L

enin

era

um

em

igra

nte

polít

ico

quas

e an

ônim

o,

perd

ido

em Z

uriq

ue, s

em c

onta

tos c

onfiá

veis

na R

ússia

, inf

orm

ando

-se

sobr

e os

eve

ntos

bas

icam

ente

pel

a im

pren

sa su

íça;

em

out

ubro

de

1917

, ele

lide

rava

a

prim

eira

rev

oluç

ão s

ocia

lista

bem

-suc

edid

a no

mun

do. O

que

aco

ntec

eu

entre

esse

s doi

s mom

ento

s? E

m fe

vere

iro, L

enin

per

cebe

u im

edia

tam

ente

a po

ssi-

bilid

ade

revo

luci

onár

ia, o

resu

ltado

de

singu

lare

s circ

unst

ânci

as c

on tin

gent

es –

se

o m

omen

to n

ão fo

sse

apro

veita

do, a

pos

sibili

dade

da

revo

luçã

o se

ria p

oste

r-

5 Ib

id., p

. 87.

6

Ibid

.

Page 4: Às Portas Da Revolução - Prefácio (Slavoj Zizek)

18 /

Às p

orta

s da

revo

luçã

oIn

trod

ução

: Ent

re a

s dua

s rev

oluç

ões /

19

norm

as “

obje

tivos

”. Po

r is

so, o

pri

mei

ro p

asso

par

a co

mba

tê-lo

é a

nunc

iar

clar

amen

te: “

O q

ue, e

ntão

, se d

eve f

azer

? Dev

emos

aus

spre

chen

was

ist,

‘apr

e-se

ntar

os f

atos

’, ad

miti

r a v

erda

de d

e qu

e en

tre

nós,

no C

C e

nos

mei

os d

iri-

gent

es d

o pa

rtid

o, h

á um

a co

rren

te, o

u op

iniã

o…”.7

A r

espo

sta

de L

enin

não

é u

ma

refe

rênc

ia a

um

con

junt

o di

stin

to d

e “f

atos

obj

etiv

os”, m

as a

repe

tição

de

um a

rgum

ento

leva

ntad

o um

a dé

cada

an-

tes

por

Rosa

Lux

embu

rgo

cont

ra K

auts

ky: a

quel

es q

ue e

sper

am p

elas

con

-di

ções

obj

etiv

as d

a re

volu

ção

irão

esp

erar

par

a se

mpr

e – ta

l pos

ição

de o

bser

-va

dor

obje

tivo

(e n

ão d

e ag

ente

eng

ajad

o) é

em

si m

esm

a o

mai

or o

bstá

culo

pa

ra a

revo

luçã

o. O

arg

umen

to d

e Le

nin

cont

ra o

s cr

ítico

s de

moc

rátic

os fo

r-m

ais

do s

egun

do p

asso

é q

ue e

ssa

opçã

o “d

emoc

rátic

a pu

ra”

é ut

ópic

a: n

as

circ

unst

ânci

as co

ncre

tas r

ussa

s, o

Esta

do d

emoc

rátic

o-bu

rguê

s não

tem

pos

si-bi

lidad

e de

sobr

eviv

ênci

a –

a ún

ica

form

a “re

alist

a” d

e pr

oteg

er o

s ver

dade

iros

ganh

os d

a Re

volu

ção

de F

ever

eiro

(lib

erda

de d

e or

gani

zaçã

o e

da im

pren

sa,

etc.

) é se

guir

adi

ante

e p

assa

r par

a a

revo

luçã

o so

cial

ista,

do c

ontr

ário

os r

ea-

cion

ário

s tsa

rist

as v

ence

rão.

A

liçã

o bá

sica

da n

oção

psic

anal

ítica

de

tem

pora

lidad

e é

que

há c

oisa

s qu

e se

dev

e fa

zer p

ara

sabe

r que

são

supé

rflu

as: a

o lo

ngo

do tr

atam

ento

, per

-de

m-s

e m

eses

em

falso

s m

ovim

ento

s at

é qu

e há

um

“cliq

ue”

e se

enc

ontr

a a

fórm

ula

corr

eta

– ap

esar

de,

retr

ospe

ctiv

amen

te, p

arec

erem

sup

érflu

os, e

sses

de

svio

s são

nec

essá

rios

. E o

mes

mo

não

ocor

re co

m a

revo

luçã

o? O

que

, ent

ão,

acon

tece

u qu

ando

, em

seu

s úl

timos

ano

s, Le

nin

tom

ou p

lena

ciê

ncia

das

lim

itaçõ

es d

o po

der b

olch

eviq

ue? É

aqui

que

dev

emos

cont

rapo

r Len

in a

Stal

in:

nos

últim

os e

scri

tos

de L

enin

, mui

to d

epoi

s de

ele

ren

unci

ar à

uto

pia

de

O E

stado

e a

revo

luçã

o, p

odem

os p

erce

ber o

s con

torn

os d

e um

pro

jeto

mod

es-

tam

ente

“rea

lista

” do

que

o po

der b

olch

eviq

ue d

ever

ia fa

zer.

Por c

ausa

do

sub-

dese

nvol

vim

ento

eco

nôm

ico

e do

atr

aso

cultu

ral d

as m

assa

s ru

ssas

, não

com

o a

Rúss

ia “p

assa

r dire

tam

ente

ao

soci

alism

o”; t

udo

o qu

e o

pode

r sov

iéti-

co p

ode

faze

r é c

ombi

nar a

pol

ítica

mod

erad

a do

“cap

italis

mo

de E

stad

o” c

om

uma

inte

nsa

educ

ação

cul

tura

l das

mas

sas c

ampo

nesa

s ine

rtes

– n

ão a

lava

-ge

m c

ereb

ral d

a “p

ropa

gand

a co

mun

ista

”, m

as si

mpl

esm

ente

um

a im

posiç

ão

paci

ente

e g

radu

al d

e pa

drõe

s des

envo

lvid

os d

e ci

viliz

ação

. Fat

os e

núm

eros

re

vela

m “q

ue a

inda

mui

to tr

abal

ho b

raça

l a s

er fe

ito u

rgen

tem

ente

, ant

es

que s

e atin

ja o

pad

rão

de u

m p

aís q

ualq

uer d

a Eur

opa o

cide

ntal

… D

evem

os te

r em

men

te a

igno

rânc

ia se

mi-a

siátic

a da

qua

l ain

da n

ão n

os li

vram

os”.8

Entã

o,

Leni

n ad

vert

e re

petid

amen

te c

ontr

a qu

alqu

er ti

po d

e “im

plan

taçã

o di

reta

do

com

unism

o”:

7

V. I.

Len

in, “A

cris

e am

adur

eceu

”, ne

ste

livro

, p. 1

39-4

6.8

V. I.

Len

in, “

Page

s fro

m a

Dia

ry”, e

m C

ollec

ted

Wor

ks, M

osco

u, P

rogr

ess P

ublis

hers

, 196

6, v.

33, p

. 463

.

fund

amen

tal d

o m

ater

ialis

mo

revo

luci

onár

io é

que

a r

evol

ução

dev

e at

acar

du

as v

ezes

, e p

or ra

zões

ess

enci

ais.

A d

istân

cia

não

é sim

ples

men

te a

dist

ânci

a en

tre

a fo

rma

e o

cont

eúdo

: o q

ue a

“pri

mei

ra r

evol

ução

” per

de n

ão é

o c

on-

teúd

o, m

as a

pró

pria

form

a –

ela

perm

anec

e pr

esa

à ve

lha

form

a, ac

redi

tand

o qu

e a

liber

dade

e a

just

iça

pode

m s

er c

onse

guid

as s

e sim

ples

men

te c

oloc

ar-

mos

o a

pare

lho

de E

stad

o ex

isten

te e

os m

ecan

ismos

dem

ocrá

ticos

par

a fu

n-ci

onar

. E se

o p

artid

o “bo

m” v

ence

r as e

leiç

ões l

ivre

s e im

plem

enta

r “le

galm

en-

te” a

tran

sfor

maç

ão so

cial

ista?

(A m

ais c

lara

expr

essã

o de

ssa

ilusã

o, b

eira

ndo

o rid

ícul

o, é

a te

se d

e Kar

l Kau

tsky

, for

mul

ada

na d

écad

a de

192

0, d

e que

a fo

rma

polít

ica

lógi

ca n

o pr

imei

ro e

stág

io d

o so

cial

ismo,

da

pass

agem

do

capi

talis

mo

para

o so

cial

ismo,

é a c

oaliz

ão p

arla

men

tar d

e par

tidos

bur

gues

es e

prol

e tár

ios.)

A

qui h

á um

par

alel

o pe

rfei

to c

om o

iníc

io d

a er

a da

mod

erni

dade

, qua

ndo

a op

osiç

ão à

heg

emon

ia id

eoló

gica

da

Igre

ja se

art

icul

ou in

icia

lmen

te n

a fo

rma

de o

utra

ideo

logi

a re

ligio

sa, c

omo

uma

here

sia: s

egui

ndo

a m

esm

a lin

ha, o

s pa

rtid

ário

s da “

prim

eira

revo

luçã

o” q

ueri

am su

bver

ter a

dom

inaç

ão ca

pita

lista

em

sua

próp

ria

form

a de

dem

ocra

cia

capi

talis

ta. E

ssa

é a “n

egaç

ão d

a ne

gaçã

o”

hege

liana

: pri

mei

ro a

ant

iga

orde

m é

neg

ada

dent

ro d

e su

a pr

ópri

a fo

rma

po-

lític

o-id

eoló

gica

; dep

ois

é a

próp

ria

form

a qu

e de

ve s

er n

egad

a. A

quel

es q

ue

titub

eiam

, aqu

eles

que

têm

med

o de

dar

o se

gund

o pa

sso

para

supe

rar a

form

a em

si,

são

aque

les

que

(par

afra

sean

do R

obes

pier

re)

quer

em u

ma

“rev

oluç

ão

sem

rev

oluç

ão”

– e

Leni

n m

ostr

a to

da a

forç

a de

sua

“her

men

êu tic

a da

sus

-pe

ita” a

o ex

plic

ar a

s dife

rent

es fo

rmas

des

se re

cuo.

Em

seus

esc

ritos

de

1917

, Len

in re

serv

a su

a iro

nia

mai

s cru

el p

ara

aque

-le

s que

se e

mpe

nham

na

inte

rmin

ável

bus

ca d

e al

gum

tipo

de “

gara

ntia”

par

a a

revo

luçã

o; es

sa g

aran

tia as

sum

e dua

s for

mas

pri

ncip

ais:

tant

o a n

oção

reifi

cada

da

Nec

essid

ade s

ocia

l (nã

o se

dev

e arr

isca

r a re

volu

ção

tão

cedo

; dev

e-se

espe

-ra

r pel

o m

omen

to c

erto

, qua

ndo

a sit

uaçã

o es

tiver

“mad

ura”

de

acor

do c

om a

s le

is do

des

envo

lvim

ento

hist

óric

o: “É

ced

o de

mai

s par

a a

revo

luçã

o so

cial

ista,

a cl

asse

ope

rári

a ai

nda

não

está

mad

ura”

) ou

a le

gitim

idad

e (“A

mai

oria

da

popu

laçã

o nã

o es

tá d

o no

sso

lado

, ent

ão a

revo

luçã

o nã

o se

ria re

alm

ente

de-

moc

rátic

a”)

norm

ativ

a (“

dem

ocrá

tica”

). C

omo

Leni

n re

petid

amen

te a

firm

a, iss

o se

ria c

omo

se, a

ntes

que

o a

gent

e re

volu

cion

ário

arr

isca

sse

a to

mad

a do

po

der

de E

stad

o, t

ives

se d

e pe

dir

perm

issã

o pa

ra a

lgum

a fig

ura

do g

rand

e O

utro

(org

aniz

e um

refe

rend

o qu

e ir

á ga

rant

ir q

ue a

mai

oria

apó

ia a

revo

lu-

ção)

. Par

a Le

nin,

ass

im c

omo

para

Lac

an, a

que

stão

é q

ue a

rev

oluç

ão n

e s’a

utor

ise q

ue d

’elle

-mêm

e: d

ever

íam

os a

rrisc

ar o

ato

revo

luci

onár

io se

m o

ava

l do

gra

nde

Out

ro –

o m

edo

de to

mar

o p

oder

“pr

emat

uram

ente

”, a

busc

a da

ga

rant

ia, é

o m

edo

do a

bism

o de

agi

r. Es

sa é

a m

áxim

a di

men

são

do q

ue L

enin

in

cess

ante

men

te d

enun

cia

com

o “o

port

unism

o”, e

sua

pre

miss

a é

que

“opo

r-tu

nism

o” é

um

a po

sição

que

, em

si m

esm

a, é

ine

rent

emen

te f

alsa

, mas

ca-

rand

o o

med

o de

rea

lizar

o a

to c

om u

ma

tela

pro

teto

ra d

e fa

tos,

leis

ou

Page 5: Às Portas Da Revolução - Prefácio (Slavoj Zizek)

20 /

Às p

orta

s da

revo

luçã

oIn

trod

ução

: Ent

re a

s dua

s rev

oluç

ões /

21

é so

bre

o fa

to d

e qu

e a

exce

ção

(o e

xtra

ordi

nári

o co

njun

to d

e ci

rcun

stân

cias

, co

mo

aque

las

na R

ússia

em

191

7) o

fere

ce u

ma

man

eira

de

abal

ar a

pró

pria

no

rma. N

ão s

eria

ess

a lin

ha d

e ar

gum

enta

ção,

ess

a po

stur

a fu

ndam

enta

l, m

ais

adeq

uada

do

que

nunc

a na

atu

alid

ade?

Não

viv

emos

, tam

bém

, num

a er

a em

qu

e o E

stad

o e s

eus a

pare

lhos

– in

clui

ndo

seus

age

ntes

pol

ítico

s – sã

o sim

ples

-m

ente

cad

a ve

z m

enos

cap

azes

de

artic

ular

as q

uest

ões-

chav

e? N

ingu

ém m

e-no

s do

que J

ohn

le C

arré

afir

mou

rece

ntem

ente

: “O

s pol

ítico

s est

ão ig

nora

ndo

os p

robl

emas

reai

s do

mun

do” (

ou se

ja, e

colo

gia,

serv

iços

de s

aúde

em d

eter

io-

raçã

o, p

obre

za, o

pap

el d

as m

ultin

acio

nais,

etc

.). L

e C

arré

não

est

ava

simpl

es-

men

te c

ham

ando

a a

tenç

ão p

ara

a m

iopi

a de

alg

uns p

olíti

cos –

se le

varm

os a

rio o

que

ele d

isse,

a ún

ica

conc

lusã

o ló

gica

é qu

e nec

essit

amos

urg

ente

men

te

de u

ma

nova

form

a de

pol

itiza

ção

que

irá “s

ocia

lizar

” dire

tam

ente

ess

as q

ues-

tões

cru

ciai

s. A

ilus

ão d

e 19

17 d

e qu

e os

pro

blem

as u

rgen

tes q

ue a

Rús

sia e

n-fr

enta

va (

paz,

dist

ribu

ição

de

terr

a, et

c.)

pode

riam

ser

res

olvi

dos

por

mei

os

parla

men

tare

s “le

gais”

é o

mes

mo

que a

ilus

ão at

ual d

e que

a am

eaça

ecol

ógic

a, po

r exe

mpl

o, p

oder

ia se

r evi

tada

ao

se es

tend

er a

lógi

ca d

o m

erca

do à

ecol

ogia

(f

azen

do q

ue o

s pol

uido

res p

ague

m p

elos

est

rago

s que

cau

sam

). “L

enin

” nã

o é

um n

ome

nost

álgi

co p

ara

uma

velh

a ce

rtez

a do

gmát

ica;

pe

lo co

ntrá

rio, o

Len

in q

ue d

eve s

er re

cupe

rado

é o

Leni

n qu

e tev

e com

o ex

pe-

riên

cia

fund

amen

tal s

er jo

gado

num

a no

va e

cata

stró

fica

cons

tela

ção,

na

qual

as

vel

has c

oord

enad

as se

pro

vara

m in

útei

s, e q

ue fo

i com

pelid

o a

rein

vent

ar o

m

arxi

smo

– po

dem

os c

itar e

ste

duro

com

entá

rio

sobr

e um

nov

o pr

oble

ma:

“A

ess

e re

spei

to, M

arx

e En

gels

não

diss

eram

um

a só

pal

avra

”. A

idéi

a nã

o é

reto

rnar

a L

enin

, mas

repe

ti-lo

no

sent

ido

kier

kega

ardi

ano:

recu

pera

r o m

es-

mo

impu

lso n

a co

nste

laçã

o at

ual.

O r

etor

no a

Len

in n

ão p

rete

nde

ser

uma

reen

cena

ção

nost

álgi

ca d

os “

bons

vel

hos

tem

pos

revo

luci

onár

ios”

, nem

um

aj

uste

opo

rtun

ista

-pra

gmát

ico

do v

elho

pro

gram

a pa

ra “

nova

s co

ndiç

ões”

; bu

sca,

isto

sim

, rep

etir,

nas

con

diçõ

es d

o m

undo

atu

al, o

ges

to le

nini

sta

que

rein

vent

ou o

pro

jeto

revo

luci

onár

io n

a ép

oca

do im

peri

alis

mo

e do

col

onia

-lis

mo

– m

ais

prec

isam

ente

na

catá

stro

fe d

e 19

14, q

ue s

e se

guiu

ao

cola

pso

polít

ico-

ideo

lógi

co d

a lo

nga

era

de p

rogr

essi

smo.

Eri

c H

obsb

awm

def

iniu

o

conc

eito

do

sécu

lo X

X c

omo

o pe

ríodo

ent

re 1

914

– o

fim d

a lo

nga

e pa

cífic

a ex

pans

ão d

o ca

pita

lism

o –

e 199

0, a

emer

gênc

ia d

e um

a no

va fo

rma

de ca

pita

-lis

mo

glob

al d

epoi

s do

col

apso

do

soci

alis

mo

real

men

te e

xist

ente

.12 O

que

Le

nin

fez

para

191

4 de

vería

mos

faze

r par

a 19

90. “

Leni

n” re

pres

enta

a li

berd

ade

impe

rativ

a de

sus

pend

er a

s de

teri

orad

as c

oord

enad

as (

pós-

)ide

ológ

icas

12

Ver E

ric

Hob

sbaw

m, T

he A

ge o

f Ext

rem

es, N

ova Y

ork,

Vin

tage

, 199

6. [E

d. b

ras.:

A er

a do

s ext

rem

os,

São

Paul

o, C

ompa

nhia

das

Let

ras,

1995

.]

Em n

enhu

ma

circ

unst

ânci

a iss

o de

ve se

r ent

endi

do [n

o se

ntid

o de

] que

dev

e-m

os im

edia

tam

ente

pro

paga

r id

éias

est

ritam

ente

com

unist

as n

o ca

mpo

. En-

quan

to n

osso

cam

po n

ão ti

ver

a ba

se m

ater

ial p

ara

o co

mun

ismo,

isso

ser

á, de

vo d

izer

, pre

judi

cial

; na

verd

ade,

será

fata

l par

a o

com

unism

o.9

Seu

tem

a re

corr

ente

era

: “O

pio

r aq

ui s

eria

apr

essa

r-se

”.10 C

ontr

a es

sa

post

ura

de “r

evol

ução

cul

tura

l”, St

alin

opt

ou p

ela

noçã

o ve

rdad

eira

men

te a

nti-

leni

nist

a de

“con

stru

ir o

soci

alism

o em

um

só p

aís”.

Is

so s

igni

fica,

entã

o, q

ue L

enin

sile

ncio

sam

ente

ter

ia a

dota

do a

crít

ica

padr

ão m

ench

eviq

ue a

o ut

opism

o bo

lche

viqu

e, a

idéi

a de

que

a re

volu

ção

de-

veria

seg

uir

nece

ssar

iam

ente

est

ágio

s pr

edet

erm

inad

os (

ela

pode

ria o

corr

er

som

ente

qua

ndo

as c

ondi

ções

mat

eria

is es

tives

sem

dad

as)?

É a

qui q

ue p

ode-

mos

obs

erva

r o re

finad

o se

nso

dial

étic

o de

Len

in e

m a

ção:

ele

est

á co

mpl

eta-

men

te ci

ente

de q

ue, e

ntão

, no

com

eço

da d

écad

a de

192

0, a

pri

ncip

al ta

refa

do

pode

r bo

lche

viqu

e er

a ex

ecut

ar a

s ta

refa

s do

reg

ime

burg

uês

prog

ress

ista

(edu

caçã

o ge

ral,

etc.

); co

ntud

o, o

pró

prio

fat

o de

ser

um

gov

erno

rev

olu-

cion

ário

pro

letá

rio

a re

aliz

ar e

ssas

tar

efas

mud

ava

a sit

uaçã

o fu

ndam

enta

l-m

ente

– h

avia

um

a po

ssib

ilida

de ím

par

de q

ue e

ssas

med

idas

“civ

iliza

dora

s”

foss

em i

mpl

emen

tada

s de

tal

man

eira

que

saí

ssem

de

seu

limita

do q

uadr

o id

eoló

gico

bur

guês

(edu

caçã

o ge

ral s

eria

real

men

te e

duca

ção

para

todo

s, se

r-vi

ndo

ao p

ovo,

não

um

a m

ásca

ra id

eoló

gica

par

a pr

opag

ar e

stre

itos i

nter

esse

s de

cla

sse

burg

uese

s, et

c.).

O p

arad

oxo

dial

étic

o, p

orta

nto,

era

que

a p

rópr

ia in

-vi

abili

dade

da

situa

ção

russ

a (o

atra

so q

ue o

brig

a o

pode

r pro

letá

rio

a cu

mpr

ir a

miss

ão c

ivili

zado

ra b

urgu

esa)

pod

eria

se

tran

sfor

mar

em

um

a va

ntag

em

únic

a: E

se a

abs

olut

a in

viab

ilida

de d

a sit

uaçã

o, a

o de

cupl

icar

os e

sfor

ços d

os o

pe rá

-rio

s e

cam

pone

ses,

nos

abris

se a

opo

rtun

idad

e de

cria

r os

req

uisit

os f

un da

-m

enta

is da

civ

iliza

ção

de fo

rma

dife

rent

e da

dos

paí

ses d

a Eu

ropa

oci

dent

al?11

Aqu

i te

mos

doi

s m

odel

os,

duas

lóg

icas

inc

ompa

tívei

s, de

rev

oluç

ão:

aque

les q

ue e

sper

am p

elo

mom

ento

tele

ológ

ico

mad

uro

da c

rise

fina

l, qu

ando

a

revo

luçã

o irá

exp

lodi

r “em

seu

tem

po c

erto

” de

acor

do c

om a

nec

essid

ade

da

evol

ução

hist

óric

a; e

aqu

eles

que

est

ão c

ient

es d

e qu

e a

revo

luçã

o nã

o te

m

“tem

po ce

rto”

, aqu

eles

que

per

cebe

m a

pos

sibili

dade

revo

luci

onár

ia co

mo

algo

qu

e em

erge

e d

eve

ser

apre

endi

do n

os p

rópr

ios

desv

ios

do d

esen

volv

imen

to

hist

óric

o “n

orm

al”.

Leni

n nã

o é

um “s

ubje

tivist

a” v

olun

tari

sta

– su

a in

sistê

ncia

19

Ibid

., p. 4

65.

10

V. I.

Len

in, “

Bette

r Few

er, b

ut B

ette

r”, e

m C

olle

cted

Wor

ks, v

. 33,

p. 4

88.

11

V. I.

Len

in, “

Our

Rev

olut

ion”

, em

Col

lect

ed W

orks

, v. 3

3, p

. 479

.

Page 6: Às Portas Da Revolução - Prefácio (Slavoj Zizek)

22 /

Às p

orta

s da

revo

luçã

o

exis

tent

es, a

deb

ilita

nte

Den

kver

bot (

proi

biçã

o de

pen

sar)

na

qual

viv

emos

sim

ples

men

te si

gnifi

ca q

ue te

mos

per

mis

são

para

pen

sar n

ovam

ente

. En

tão

que p

apel

a pe

rson

alid

ade d

e Len

in d

ever

ia d

esem

penh

ar em

nos

sa

aval

iaçã

o de

sua c

ontr

ibui

ção?

Não

o es

taría

mos

, em

real

idad

e, re

duzi

ndo

sim-

ples

men

te a

um

sím

bolo

de

uma

dete

rmin

ada

post

ura

revo

luci

onár

ia?

Num

a ca

rta

a En

gels

escr

ita e

m 3

0 de

julh

o de

186

2, M

arx

desig

nou

Ferd

inan

d La

s-sa

lle –

co-

fund

ador

da

soci

alde

moc

raci

a al

emã

e se

u riv

al d

entr

o de

la –

não

ap

enas

com

o um

“jud

eu se

boso

disf

arça

do so

b br

ilhan

tina e

jóia

s bar

atas

”, mas

, de

form

a ai

nda

mai

s br

utal

, com

o um

“pre

to ju

deu”

: “Es

tá a

gora

tota

lmen

te

clar

o pa

ra m

im q

ue o

form

ato

de s

ua c

abeç

a e

seu

cabe

lo in

dica

m q

ue e

le

é de

scen

dent

e do

s neg

ros q

ue se

uni

ram

à fu

ga d

e M

oisé

s do

Egito

(a n

ão se

r qu

e su

a m

ãe o

u av

ó pa

tern

as ti

vess

em c

ruza

do c

om u

m n

egro

)”.13

Em

vez

de

inte

rpre

tar

tais

decl

araç

ões

com

o pr

ova

de u

m p

reco

ncei

to e

uroc

êntr

ico

da

teor

ia d

e M

arx,

dev

ería

mos

sim

ples

men

te d

espr

ezá-

las

com

o fu

ndam

enta

l-m

ente

irre

leva

ntes

; seu

úni

co si

gnifi

cado

pos

itivo

é qu

e ela

s nos

pre

vine

m co

n-tr

a qu

alqu

er t

ipo

de h

agio

graf

ia d

e M

arx,

já q

ue e

las

reve

lam

cla

ram

ente

a

dist

ânci

a irr

edut

ível

entr

e Mar

x, o

indí

vídu

o, e

sua

teor

ia, q

ue, ju

stam

ente

, for

-ne

ce o

s ins

trum

ento

s par

a a an

ális

e e cr

ítica

de t

ais a

rrou

bos r

acist

as. E

, é cl

aro,

o

mes

mo

se a

plic

a a

Leni

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