As Propostas para Participação dos Povos Indígenas no Brasil em Projetos de Desenvolvimento...

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Universidade Federal do Rio de Janeiro Museu Nacional Programa de pós-Graduação em Antropologia Social As Propostas para Participação dos Povos Indígenas no Brasil em Projetos de Desenvolvimento Geridos pelo Banco Mundial: um Ensaio de Análise Crítica Dissertação de Mestrado Autor, Roberto Salviani Orientador, Prof. Antonio Carlos de Souza Lima Rio de Janeiro 2002

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Dissertação de mestrado - Museu Nacional

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  • Universidade Federal do Rio de Janeiro

    Museu Nacional

    Programa de ps-Graduao em Antropologia Social

    As Propostas para Participao dos Povos Indgenas no Brasil em Projetos de Desenvolvimento Geridos pelo Banco

    Mundial: um Ensaio de Anlise Crtica

    Dissertao de Mestrado Autor, Roberto Salviani Orientador, Prof. Antonio Carlos de Souza Lima

    Rio de Janeiro

    2002

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    AGRADECIMENTOS

    Agradeo CAPES e FAPERJ pelo suporte financeiro. Dedico um agradecimento particular ao meu orientador, Prof. Antonio Carlos de

    Souza Lima pelo suporte, conselhos e contnuo apoio demonstrado ao longo desse tempo. Minha dvida com ele data de muitos anos atrs e aproveito essa oportunidade

    para renovar meus agradecimentos. Ao Prof. Joo Pacheco de Oliveira e, novamente, ao Prof. Antonio Carlos de

    Souza Lima, coordenadores do Laboratrio de Pesquisa sobre Etnicidade, Cultura e Desenvolvimento - LACED, e atravs dele, Fundao Ford, pelos recursos que possibilitaram realizar meu trabalho de campo.

    Aos demais professores do Museu Nacional, que sempre me apoiaram durante minha estadia nessa instituio.

    Ao pessoal da secretaria, em particular a Rosa e Tania, e a Carla e Cristina da Biblioteca Francisca Keller, vai um sincero agradecimento por ter facilitado em todas as ocasies o cumprimento de minhas tarefas.

    Minha gratido vai, ainda, ao pessoal de Braslia que ajudou-me na coleta de material e informaes que foram fundamentais para a elaborao deste trabalho. Juliana Sellani do PPTAL, Adriana Ramos do ISA e ao Prof. Henyo Trindade da UnB,

    minha sincera gratido. A Fabio, Gabriel e Joca, meus colegas, agradeo pela disponibilidade

    demonstrada nas discusses que contriburam notavelmente para tornar possvel essa dissertao.

    A eles, e a Fernando, Hernan, Daniela, Maria, Simonne, Luiz, Elena, Alexandra, Mariana e todos os outros que compartilharam meus momentos mais informais, agradeo pela amizade demonstrada, que contribuiu, no pouco, para meu bem estar.

    Aos meus pais, que com sua presena aqui no Brasil, fizeram com que minha

    saudade fosse menor. Enfim, a Maria, novamente, vai um agradecimento especial pela pacincia e

    disponibilidade demonstrada na leitura e reviso deste trabalho. As eventuais falhas de clareza so, contudo, de minha inteira responsabilidade.

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    Resumo

    Este trabalho concentra-se nas representaes da alteridade cultural no mbito de discursos, propostas e intervenes para o desenvolvimento das populaes

    etnicamente diferenciadas que norteiam o atual campo do desenvolvimento, com particular ateno atuao e ao papel do Banco Mundial. A anlise tem como foco o

    uso de conceitos como participao, empoderamento, comunidade, capital social e indigenous knowledge nos documentos do Banco Mundial. Procura-se individualizar, deste modo, os mecanismos de construo da e interveno sobre a realidade, com os quais operam o Banco e agncias similares, para avanar hipteses, e propostas metodolgicas relativas s oportunidades que os processos de interao social, conseqncia de particulares formas de interveno, oferecem anlise das relaes sociais.

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    Siglas

    AAA American Anthropological Association

    ADB Algemeen Diaakonaal Bureau

    APITU Associao dos Povos Indgenas do Tumucumaquee ARC Anthropology Resurce Center ASI Assessoria de Segurana Interna

    ASPLAN Assessoria de Planejamento BA Beneficiary Assessment

    CCB Comisso de Coordenao Brasileira do PPG7 CIDER Centro de Investigacin para el Desarrollo Rural COIAB Coordenao das Organizaes Indgenas da Amaznia Brasileira CSN Conselho de Segurana Nacional CTI Centro de Trabalho Indigenista CVP Common Vocabulary Paper

    DAF/FUNAI Diretoria de Assuntos Fundirios DfID Departamento for International Development

    DPI/FUNAI Departamento de Patrimnio Indgena EA Environmental Assessment

    FUNAI Fundao Nacional do ndio G7 Grupo dos Sete GT Grupo de Trabalho GTZ Gesellschaft fr Technische Zusammenarbeit

    IBAMA Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renovveis

    IK Indigenous Knowledge. KFW Kreditanstalt Fr Wiederaufbau LATEN Latin American and the Caribbean Regional Office MMA Ministrio do Meio Ambiente MS Mato Grosso do Sul OD Operational Directive

    OIT Organizao Internacional do Trabalho OMS Operational Manual Statement

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    OPAN Operao Amaznia Nativa. PAR Participatory Action Research

    PD/A Projetos Demonstrativos PDC Projetos de Desenvolvimento Comunitrio PDPI Projetos Demonstrativos dos Povos Indgenas PIDER Programa Integral para el Desarrollo Rural

    PK Projeto Kaiowa-andeva PLA Participatory Learning Analysis

    PPG7 Programa Piloto para a Conservao da Floresta Amaznica Brasileira

    PPM Po Para o Mundo PPTAL Projeto Integrado de Proteo s Populaes e Terras Indgenas

    da Amaznia Legal PRA Participatory Rural Appraisal

    RRA Rapid Rural Appraisal SA Social Assessment

    SEMAM Secretaria do Meio Ambiente SENAIME Secretaria Nacional de Assuntos Indgenas y Minoras Etnicas, SIDA Swedish International Agency for Development SNI Servio Nacional de Informaes SPI Servio de Proteo aos Indios TI Terra Indgena

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    Indice

    Introduo ............................................................................................. 1 Cap. 1. Antropologia e desenvolvimento. Uma introduo geral ..... 5 1.1 O Banco Mundial como objeto etnogrfico ................................ 5 1.2 Antropologia para o desenvolvimento e Antropologia do

    desenvolvimento ........................................................................ 9

    Cap. 2. Uma 'nova' metodologia de desenvolvimento: a participao .......................................................................... 16

    2.1 Pequena histria da participao, segundo algumas fontes mencionadas pelos desenvolvimentistas ..................................... 16

    2.2 A 'participao' no desenvolvimento .......................................... 18 2.3. O Banco Mundial e a participao ............................................ 21 2.4 PRA e social engineering: sugestes para uma comparao .... 27

    Cap. 3. Desenvolvimento e Populaes Indgenas. O caso do Banco Mundial ........................................................................... 34

    3.1 Qual Desenvolvimento para as Populaes Indgenas? Etnodesenvolvimento ................................................ 40

    3.2 Um parntese: o indigenismo, a antropologia e o desenvolvimento. Dois casos ....................................................... 42

    3.3 O Banco Mundial e o etnodesenvolvimento ................................ 48 3.3.1 Indigenous Knowledge (IK) e Desenvolvimento ................... 61

    3.4 Os Projetos de Desenvolvimento Comunitrio (PDCs), uma experincia de ao indigenista ................................................... 66

    3.5 PPG7, PPTAL, PDPI. As atuais formas de atuao na Amaznia brasileira ....................................................................................... 73 Concluses .............................................................................................. 83 Referncias Bibliogrficas ..................................................................... 88

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    Introduo H cerca de dez anos confrontei-me pela primeira vez com o tema do

    desenvolvimento de grupos indgenas no Brasil. Na ocasio, inicio dos anos 90, realizava pesquisa de campo com vista preparao de minha Tesi di Laurea, na Universidade romana La Sapienza, na Itlia (Salviani 1997), trabalhando junto ao Projeto Kaiowa-andeva (PK)1. A partir dessa experincia tive a oportunidade de observar a variedade de atores e instituies que compunha o panorama de atuao do

    Projeto. A tentativa de mapear este conjunto to heterogneo contribuiu para o surgimento de curiosidades e dvidas sobre as foras, ideologias e interesses em jogo na formulao de intervenes dirigidas ao desenvolvimento das populaes indgenas. O Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social do Museu Nacional (PPGAS/MN/UFRJ) ofereceu-me a oportunidade de retomar este conjunto de preocupaes na tentativa de melhor entender o atual estado das polticas desenvolvimentistas dirigidas s populaes indgenas. O trabalho apresentado a seguir

    um primeiro resultado dessa tentativa, e pretende ser um ponto de partida para pesquisas posteriores, devendo ser entendido, portanto, como uma pea de apoio para possveis direes de trabalho futuros.

    A escolha das atividades do Banco Mundial como eixo central deste trabalho responde, de um lado, preponderncia que o mesmo vm assumindo na definio de metodologias e prticas, e na gesto de recursos relativos ao desenvolvimento de grupos

    etnicamente diferenciados, e do outro, ao fato desta instituio constituir um dos lugares de produo e uso de tipos de conhecimento e prticas de interveno que do forma

    empresa desenvolvimentista. Trata-se de uma tentativa, mesmo que somente acenada, de contribuir para uma antropologia das instituies, isto , uma antropologia que tenha enquanto campo especifico de interesse, organizaes multilaterais como o Banco Mundial, bem como, as relaes entre estas e os processos de construo e difuso do modelo de organizao das relaes scio-poltico-econmicas, rotulado de Estado-nao.

    1 Ver item 3.4.

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    Nos ltimos dez anos, observa-se nos discursos que norteiam o campo do desenvolvimento2, o surgimento e a afirmao de uma srie de preocupaes relativas aos componentes sociais que incidem na realizao dos projetos de desenvolvimento. Neste processo, nota-se que as atividades das agncias multilaterais governamentais e

    no-governamentais vem sendo marcada por um crescente envolvimento de contribuies oriundas dos estudos antropolgicos, e de profissionais desta rea. As

    atuais relaes entre antropologia e desenvolvimento sero analisadas no primeiro capitulo a partir de dois eixos principais.

    O segundo captulo dedica-se ao tema da participao, elemento fundamental na maioria dos atuais discursos, metodologias e tcnicas de desenvolvimento. Nos concentraremos na histria das tcnicas participativas e nos diferentes significados que a participao assume no campo do desenvolvimento e, particularmente, no Banco

    Mundial, para tentar desenvolver algumas hipteses sobre as relaes entre as diferentes contribuies da antropologia e as imagens do outro que estas ajudam a transmitir, isto , sobre como conceitos gerados no interior da disciplina so incorporados e utilizados no campo do desenvolvimento e como, na atualidade, eles interferem na definio de

    objetivos e prticas de interveno junto aos grupos etnicamente diferenciados. A primeira parte do terceiro captulo apresenta uma anlise de carter preliminar

    das relaes postuladas entre desenvolvimento e etnicidade na Amrica Latina, com um parntese dedicado s relaes entre desenvolvimento, indigenismo e antropologia ao longo do sculo XX, para tentar entender os precedentes histricos das relaes atuais. Entramos aqui, atravs do caso Latino Americano, mais precisamente do Mexicano e do

    Brasileiro, no campo de uma antropologia das relaes entre desenvolvimento, Estado e produo intelectual, isto , das relaes especficas em que se d a produo das representaes relativas ao destino das populaes indgenas. Para tal

    analisamos os discursos, as idias e as prticas a partir das quais o Banco Mundial est operando em relao s populaes indgenas, concentrando-nos nas (poucas) experincias desenvolvidas por este nos ltimos anos na Amrica Latina. Das questes que emergem desta discusso, destacamos dois elementos que adquirem importncia

    luz dos discursos produzidos pelo Banco Mundial: o capital social e o conhecimento indgena.

    2 O termo campo aqui usado para descrever, de modo impressionista, o conjunto de elementos com

    os quais pensamos ser necessrio lidar para elaborar uma anlise antropolgica do fenmeno do desenvolvimento, sem a pretenso de fazer referncia a uma teoria especfica dos campos.

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    Se, de um lado, a anlise da categoria conhecimento, como vem sendo usada pelo Banco Mundial nos ilumina sobre as caractersticas que esta assume no interior da instituio, de outro, os discursos relativos capital social nos alertam sobre a possibilidade de que a interveno, no plano da organizao poltica e da representao

    pensada como necessria para levar os grupos indgenas construo do desenvolvimento com identidade cultural revele mecanismos e intenes no

    imediatamente evidentes. Para apontar os limites das vises que concebem os indgenas como receptores

    passivos ou, no mximo, como atores culturalmente informados, desprovidos dos meios e conhecimentos necessrios formulao de polticas que incidam nos mecanismos de Estado e de mercado e, portanto, vulnerveis frente ao processo de globalizao idias nas quais se espelha a ideologia modernista que permeia os

    discursos desenvolvimentistas trataremos brevemente de algumas experincias no campo das atividades de desenvolvimento, que vem ocorrendo no Brasil a partir dos

    anos 70. O espao e o tempo disponveis para a elaborao deste trabalho no permitiu aprofundar-nos numa importante dimenso desse universo: as formas pelas quais se d a

    mediao entre diferentes modelos de representao e sistemas de relaes sociais e polticas. Dessa forma, apontamos para a necessidade de trabalhos que analisem os lugares em que discursos e imaginrios diferentes so elaborados, aceitos ou rejeitados.

    Isto nos leva a problemas relativos escolha e construo do campo ou do objeto etnogrfico na antropologia do desenvolvimento, em que a conexo entre discursos e prticas, entre o global e o local, apresenta limitaes prticas para a

    realizao de pesquisas. Finalmente, a ltima parte do captulo dedica-se a introduzir as atividades de

    desenvolvimento na Amaznia brasileira, relativas s populaes indgenas, que esto

    sendo implementadas atravs a colaborao entre o Banco Mundial, o Estado brasileiro, vrias agncias bilaterais e outras instncias da assim chamada sociedade civil.

    Pensamos que estas atividades permitem observar os modos pelos quais a articulao das formas das polticas e modelos organizativos indgenas, identificados por Oliveira

    (2000), como organizaes indgenas, que surgem nos anos 80 para multiplicar-se somente ao longo do anos 90, so estimuladas e chamadas a desenvolver relaes com outras instncias do Estado, movimentos e instituies da sociedade civil, e do mercado, constituindo-se essas mesmas em objeto de interveno.

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    Os discursos sobre fortalecimento das formas de organizao, representao e administrao de recursos, ou sobre empoderamento das vontades locais atravs da participao nas aes de desenvolvimento no podem ser tomados at face value e precisam ser confrontados com os contextos especficos nos quais imagens e tcnicas

    produzidas no nvel global, se deparam com um universo que no se deixa necessariamente colonizar ou aculturar, sem deixar toda via de transformar-se. A

    observao desses encontros pode contribuir na gerao de idias que influenciem o rumo das intervenes, a mudana das imagens de alteridade que as informam e, sem dvida, as nossas prprias pesquisas. Se concordamos com a afirmao de Fabietti (1991: x), de que a antropologia sempre re-comeou no campo, ou seja no plano da observao do agenciamento dos atores sociais, os sub-programas do PPG7 e, sobretudo, do PDPI, permitem observar o encontro de diferentes agenciamentos,

    podendo, assim, contribuir na construo de uma antropologia do contato intertnico, no mbito de uma antropologia das relaes de poder, que saiba superar a simples

    polaridade com que so construdos os modelos tnico e moderno de ao social.

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    Cap. 1. Antropologia e desenvolvimento. Uma introduo geral

    1.1 O Banco Mundial como objeto etnogrfico Ao pretender observar as atividades de uma instituio como o Banco Mundial,

    seria necessrio, antes de tudo, explicitar que esta instituio no pode ser representada

    como um ator, dotado de intencionalidade e operacionalidade, cujas aes no interior do campo do desenvolvimento influenciam os processos de reestruturao das polticas e dos aparelhos administrativos dos Estados que a ele apelam para o financiamento de suas polticas econmicas. De fato, o Banco termo unvoco usado pelos autores que produzem e falam, tanto do interior do mesmo, quanto de uma posio externa a ele, para descrever a autoria das aes empreendida pelas vrias instncias que o compem,

    e que tambm adotaremos aqui como qualquer instituio de grande porte, perpassado por diferentes interesses que determinam, em conjunturas particulares, o predomnio de determinadas posturas frente s suas modalidades de interveno.

    Se o Conselho dos Diretores (Board of Directors) instncia decisria principal, que representa os pases proprietrios com proporcionalidade relativa cota de recursos de cada pas a nica autorizada a representar o Banco enquanto instituio, ao menos nas operaes de grandes montantes de emprstimo, necessrio frisar que os mecanismos atravs dos quais os integrantes deste Conselho tm acesso s informaes

    relativas aos assuntos sobre os quais so chamados a decidir, so objeto de manipulaes por parte da estrutura administrativa que detm o controle do carter de

    relevncia das informaes que sero repassadas ao Conselho, denotando a capacidade por parte dos aparatos executivos de influenciar notavelmente os processos decisrios.

    Assim, os discursos, documentos e operaes objeto deste trabalho no podem ser considerados como nica base sobre a qual o Banco modula suas decises.

    O trabalho de Bruce Rich (1994) permite-nos perceber as nuances destes mecanismos, explicando-os como dependentes, em grande parte, da necessidade do Banco to lend, dada a escassez de projetos que atendam s exigncias institudas pelo mesmo e, sobretudo, para manter o saldo positivo nos fluxos financeiros vindo dos

    pases emprestadores. De fato, em vrios perodos da histria, particularmente nos anos

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    50 e 80, assistiu-se ao montante de emprstimos ser quase superado pelas somas a serem restitudas ao Banco (Rich 1994: 78-80; cf. tambm Payer 1992).

    A maioria dos documentos produzidos no interior do Banco Mundial, e aqui analisados, so o produto do trabalho de antroplogos e socilogos profissionais, que

    assumiram cargos no Banco Mundial a partir, sobretudo, dos anos 90 com as poucas excees de Michael Cernea, primeiro cientista social a ser chamado para integrar o

    Banco desde meados dos anos 70 (e considerado como the doyen of social science at the World Bank Francis 2001: 74), e alguns outros poucos (por exemplo, Shelton Davis, que, antes de fazer parte da instituio, teve experincias de ensino no Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal de Rio de Janeiro-PPGAS/MN/UFRJ, e fundou o Anthropology Resurce Center (ARC), em Cambridge, Massachusetts, para acompanhar e verificar as informaes acerca dos

    efeitos sociais e ambientais dos programas de desenvolvimento na regio amaznica, distinguindo-se por seus trabalhos sobre os efeitos das polticas econmicas brasileiras

    de mega-desenvolvimento sobre as populaes indgenas e camponesas da Amaznia brasileira. Cf. Victims of the Miracle)3.

    Muitos autores, sobretudo nos ltimos quinze anos, procuraram singularizar os mecanismos, as prticas e os discursos atravs dos quais o Banco Mundial, e as demais agncias multilaterais, bilaterais e nacionais de desenvolvimento, tentam impor construes (como diria Bourdieu: 1974, 1979, 1980, vises e divises) da realidade como oficiais para legitimar as tipologias de interveno empregadas, atravs, sobretudo, da manipulao de conhecimentos (knowledge), ou seja, da legitimao de determinadas formas de conhecimento em detrimento de outras (Ferguson 1990; Sachs ed. 1992; Hobart 1993; Escobar 1995; Finnemore 1997; Mehta 2001; entre outros). A considerao crtica, observada, digamos, no campo4, e a conseqente deslegitimao

    3 A quase totalidade destes profissionais trabalha em setores e departamentos relativos ao meio ambiente.

    Uma breve citao de Rich nos informa sobre o peso relativo destes profissionais no interior do Banco Mundial: Operations was the part of the Bank where the action was, the careers proceeded on the fast track. Many Bank staff viewed policy, research, and external affairs as a bit of a dead end, and the Operations Evaluations Department as a humiliating exile. Those in operations proper who were responsible for pushing through debacles like Polonoreste, Indonesia Transmigration, and Narmada Sardar Sarovar suffered no consequencies to their careers. On the other hand, Bank operations staff who opposed or delayed proposed projects on policy and even ethical grounds have suffered the wrath of irate country department directors; the typical fate has been forced exile to the Environment Department (1994: 183). 4 Referimo-nos crise do paradigma economicista de desenvolvimento, que est sendo questionado

    principalmente luz da no efetividade (relativamente aos objetivos declarados) das prticas adotadas.

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    do modelo econmico de desenvolvimento (que isola as variveis relativas s transaes econmicas e aos modos de produo, das relaes scio-polticas das quais fazem parte), vem obrigando o Banco e outras agncias a operar uma reformulao nos modelos atravs dos quais pretendem ordenar a realidade.

    Uma das principais conseqncias desta mudana de paradigma no campo do desenvolvimento representada pela necessidade, por parte do Banco e de outras

    instituies similares, de adquirirem novos objetos processos, atores que passam a marcar os discursos sobre desenvolvimento, e de serem reconhecidas como capacitadas para operar com os mesmos; ao mesmo tempo em que a construo destes constituem uma resposta s caractersticas prprias destas instituies. O reconhecimento dos fatores sociais como variveis determinantes das atividades de desenvolvimento obriga aquisio de novos conhecimentos. Este fenmeno evidenciado pelo

    surgimento, na produo discursiva do Banco, de um novo vocabulrio constitudo de termos como stakeholders transformation, empowerment, participation, social

    capital, sustainable development, local/indigenous knowledge, etc. e nas operaes empreendidas para a definio, isto , para a atribuio de significado aos mesmos, com o objetivo de legitimar determinadas modalidades de interveno.

    A obra contnua de construo das pores de realidade sobre as quais o Banco pretende atuar pode ser evidenciada, por exemplo, na observao das prticas discursivas e das atuais operaes atravs das quais o Banco pretende enfrentar a questo da diferena tnica e cultural no campo das atividades de desenvolvimento. O etnodesenvolvimento ou desenvolvimento com identidade cultural (van Nieuwkoop e Uquillas 2000: 22), por exemplo, um tema extremamente recente nas atividades do Banco.

    A tentativa deste trabalho de um mapeamento preliminar dos textos,

    enunciados, conceitos e prticas com os quais o Banco enfrenta este novo empreendimento, qual seja, o problema de inserir horizontes e prticas pensadas como culturalmente outras ou diferentes no interior do paradigma desenvolvimentista, isto , do seu prprio campo de ao. Se, de um lado, o conjunto de tais atividades tende a construir uma imagem particular da diversidade cultural, que justifique ou pelo menos torne plausvel a ingerncia do Banco em determinadas situaes, de outro, ele age

    Vrios autores referem-se aos efeitos de tal crise relativos s modalidades atravs das quais tentou-se resolv-la, como Paradigm shift (Chambers 1995; Finnemore 1997; Cooper e Packard 1997).

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    sobre tais situaes atravs de processos e procedimentos que influem nos equilbrios internos dos grupos em questo: Indeed, all development projects provide symbolic resources in the local competition over power (Mosse 1997: 276). Uma das possveis tarefas da pesquisa antropolgica e sociolgica consistiria, portanto, em indagar os

    modos como esse processo acontece ao nvel local, considerando os efeitos produzidos pelos vrios tipos de interveno como resultado do confronto das imagens geradas

    pelas diversas facetas dos discursos desenvolvimentistas e as situaes locais em que pretende atuar. Uma outra linha de pesquisa possvel poderia ser, por exemplo, indagar-se a respeito das formas pelas quais a diversidade natural (biodiversidade) e os modos de transformao social de grupos etnicamente diferenciados (etnodesenvolvimento) so construdos e relacionados entre si nos discursos do Banco. Essa linha ofereceria a possibilidade de esclarecer alguns dos mecanismos de construo da alteridade com os

    quais operam parte das atividades de desenvolvimento, revelando o pano de fundo conceitual sobre o qual se apoiam determinadas vises de desenvolvimento.

    Se consideramos os discursos dominantes sobre desenvolvimento como marcados por uma viso positivista da histria (Rist 1999), que dispe as vrias realidades sociais ao longo de um percurso, admitindo uma nica direo, a possibilidade da existncia de determinadas formas de alteridade cultural admitida somente como herana, ou seja, como a presena do passado no presente e no futuro. A necessidade sentida de adaptar as formas de interao social e de representao poltica das populaes camponesas e indgenas de diversas partes do mundo s exigncias da mquina do desenvolvimento ou, mutatis mutandis, do Estado nacional, torna evidentes os modos como determinados discursos sobre desenvolvimento constrem os universos sociais e culturais, representando a tentativa de criao de objetos especficos para os quais propem certos tipos de interveno. Assim, categorias como pobres, people, comunidade, grupo etnicamente diferenciado, assim como, economia nacional, ambiente, mulheres e camponeses representam mecanismos

    retricos atravs dos quais o Banco constri os prprios objetos de sua interveno (Ferguson 1990; Escobar 1995) com base nas prprias necessidades: More generally, all utterances which have as their subject a collective noun people, class, university, school, state, etc. presuppose the existence of the group in question and conceal the same sort of metaphisycal boot-strapping that was denounced in the ontological argument (Bourdieu 1985: 215).

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    1.2 Antropologia para o desenvolvimento e Antropologia do desenvolvimento

    Os ltimos vinte anos constituem um perodo de notveis mudanas nas polticas de desenvolvimento das grandes agncia multilaterais como o Banco Mundial. Novos objetos passam a fazer parte do campo de interveno. Os pequenos agricultores, as mulheres, a degradao e conservao ambiental e a integridade de grupos tnica e culturalmente diferenciados representam novas preocupaes no campo internacional do desenvolvimento, cuja considerao parece influir na modificao das tipologias de interveno. As atividades do Banco Mundial, neste processo, revelam-se fundamentais na legitimao do poverty focus, como elemento principal do novo rumo da empresa desenvolvimentista. Martha Finnemore (1997), nos mostra o peso determinante do Banco Mundial (desde a gesto McNamara, 1968) na institucionalizao, dentro da empresa desenvolvimentista, da mudana de paradigma paradigm shift (Cooper e Packard 1997: 19) em direo ao basic needs approach:

    The goal of poverty alleviation become institutionalized as part of the international development effort. The driving force behind this new understanding of development was the World Bank (Finnemore 1997: 208).

    O objetivo de Finnemore, contudo, consiste em demonstrar que a forma dos programas, pensadas como corretas para alcanar os novos objetivos, depende estreitamente das caractersticas organizacionais do Banco:

    The kind of poverty-oriented development programs eventually pushed by the Bank looked the way they did, not because they were obviously or objectively best-suited to the task of poverty alleviation but because they met the organizational needs of the Bank (ibidem).

    Esta mudana nas polticas desenvolvimentistas liderada pelo Banco Mundial, denominada New Directions (Horowitz e Painter 1986: 2), revelou-se extremamente importante na medida em que influenciou processos internos disciplina antropolgica e intensificou as contribuies de antroplogos nas atividades de desenvolvimento

    (Hoben 1982). Autores como Lucy Mair (1984), Cernea (1983; 1991) e Tayer Scudder (1999), entre outros, descrevem os antroplogos como os especialistas mais indicados pelo conhecimento profundo das situaes locais e caractersticas culturais para oferecer contribuies valiosas na compreenso de aspectos at ento negligenciados, cuja considerao necessria na melhoria da qualidade das intervenes. Um nmero sempre maior de antroplogos vem sendo chamado para fazer parte das agncias de

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    desenvolvimento (Stirrat 2000; Eyben 2000; Francis e Jacobs 1999: 22 citado em Mehta 2001: 194), ao mesmo tempo, aumenta drasticamente o nmero de profissionais desta rea contratados na condio de consultores5. Como conseqncia, ao longo dos anos oitenta, a Development anthropology, que podemos traduzir como antropologia para

    o desenvolvimento, ganha uma consistncia notvel no campo dos estudos antropolgicos (Henkel e Stirrat 2001: 169). Esta antropologia ocupa-se da dimenso nativa dos contextos de desenvolvimento, tomando como objeto o local, o grupo alvo e as relaes entre as caractersticas scio-culturais destes e as dimenses institucionais dos projetos.

    Este conjunto de estudos e preocupaes est estreitamente ligado questo da aplicabilidade dos conhecimentos antropolgicos s situaes de mudana social induzida, ou seja, ao campo de atividade e produes relativas ao que se costuma denominar de antropologia aplicada. Campo controvertido das cincias sociais cuja relao com a vertente acadmica (isto , terica) da antropologia sempre mostrou-se problemtica, sobretudo a partir de consideraes ticas a aplicao dos conhecimentos antropolgicos com o fim de favorecer processos de mudanas pensados

    como necessrios para o desenvolvimento das condies de vida dos grupos culturalmente diferenciados, no constitui uma novidade no campo da disciplina. Sem pretender apresentar uma panormica histrica deste campo de prticas e estudos, assinalaremos aqui o surgimento de manifestaes explcitas quanto possibilidade de aplicao dos conhecimentos gerados por uma antropologia constituda como uma disciplina institucionalizada, e os modos a partir dos quais tal aplicao foi sendo

    pensada a partir da segunda metade do sculo XIX, tomando como referncia, sobretudo, os resumos destas primeiras formulaes oferecidos por Villa Rojas (1971).

    Segundo Villa Rojas, no contexto Norte-Americano, o primeiro a sugerir a utilidade dos estudos etnogrficos para questes de administrao relativas aos povos indgenas foi John Wesley Powell, major do exrcito e Diretor do Departamento de Etnologia do Smithsonian Institute, em 1881 (1971: 8). Na Amrica Latina Fu Gamio el iniciador de este tipo de ideas, a partir de 1915, y el ms empeoso luchador por hacer que las mismas se plasmaran en realidades concretas (ibid.: 9). O termo antropologia aplicada foi usado pela primeira vez por Radcliffe-Brown em 1930,

    5 A bibliografia dos trabalhos de antroplogos e socilogos, publicados pelo Banco Mundial entre 1975 e

    1993 (Cernea 1994), mostra o aumento exponencial destas colaboraes ao longo dos anos oitenta.

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    sendo que autores como Chinnery, Boas, Firth e Pitt-Rivers j tinham feito referncias s aplicaes prticas da antropologia como cincia aplicada da cultura (ibidem), ao mesmo tempo em que Malinowski rotulava de antropologia prtica os estudos relevantes s prticas administrativas coloniais (ibidem).

    Os principais modelos identificados por Villa Rojas so a engenharia social e a medicina social. O primeiro, pensado como conjunto de conhecimentos teis s tarefas dos administradores, missionrios, educadores, colonizadores e comerciantes segundo autores como Herskovits, Lantis e Radcliffe-Brown (ibid.: 13) perdeu sua fora em poucas dcadas, para ser substitudo pelo assim chamado modelo clnico, cuja diferena consiste, sobretudo, em no se limitar simples aplicao de modelos tericos estabelecidos, mas em demandar um contnuo movimento entre teorias e aplicao experimental das mesmas em situaes empricas (ibid.: 14). O modelo de antropologia aplicada, ou medicina social, cujas primeiras formulaes podem ser encontradas nas publicaes da The Society for Applied Anthropology, dos anos 40 (ibidem), ser aquele adotado por Michael Cernea na formulao da proposta de social Engineering (Cernea 1983).

    Na Amrica Latina, o impulso inicial para o surgimento do campo acadmico dos estudos antropolgicos est estreitamente ligado histria do movimento indigenista (Villa Rojas 1971: 23), cuja considerao ser parte do presente trabalho.

    Existem diferenas marcadas nas metodologias e nos objetivos no interior do campo da antropologia para o desenvolvimento, isto , a antropologia aplicada s aes de mudana social induzida, e tais diferenas derivam sobretudo de leituras,

    interpretaes e posturas diferenciadas do campo das relaes polticas, que usualmente vem sendo subordinadas s relaes econmicas. Assim, entre as propostas de aplicao das disciplinas sociolgicas ao campo do desenvolvimento encontramos um conjunto variado de propostas que vo da engenharia social de Michael Cernea (1983, 1991) ao Participatory Rural Appraisal de Robert Chambers (1995). Estes autores e as tcnicas por eles desenvolvidas constituiro objeto de anlise no decorrer do trabalho.

    Por outro lado, mais um ramo da pesquisa antropolgica relativa ao

    desenvolvimento vem tomando corpo nos ltimos anos. Esta perspectiva tem como foco, sobretudo, as idias e prticas daqueles que planejam e executam os projetos, ocupando-se em indagar a provenincia e os efeitos destas idias e prticas. Henkel e Stirrat (2001: 169) definem este campo como antropologia do desenvolvimento, cujo foco de ateno concentra-se na empresa do desenvolvimento como fenmeno social,

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    resultado da conjuno entre saberes e tcnicas de dominao particulares, no contexto mais amplo das relaes de poder que incidem nas imagens e configuraes do mundo contemporneo. Uma parte destes trabalhos trata o mundo do desenvolvimento como campo de prticas discursivas e, valendo-se dos instrumentos de anlise propostos por

    Foucault (1971), tenta entender as relaes existentes entre discursos e prticas no campo do desenvolvimento, e os efeitos de poder dos mesmos.

    Ferguson, por exemplo, numa etnografia de um projeto de desenvolvimento no Lesotho (1990), mostra os mecanismos discursivos atravs dos quais o Banco Mundial constri a realidade sobre a qual pretende intervir. Assim, nos documentos do Banco Mundial, o Lesotho transforma-se de um reservatrio de mo-de-obra inserido num contexto econmico regional mais amplo e dominado pelas polticas industriais sul-africanas, numa economia rural, subdesenvolvida, caracterizada por tecnologias

    tradicionais de gesto dos recursos, e sem conexes com o mercado internacional (Ibidem). Esta imagem, segundo prope Ferguson, serve para justificar o tipo de interveno que o Banco Mundial pode implementar, dependendo das prprias caractersticas institucionais, intervenes que tm como resultado o fortalecimento do

    controle estatal sobre territrio e atividades scio-econmicas de uma provncia rural do pas. Em outro trabalho, Escobar (1995), inspirando-se no conhecido estudo de Said sobre Orientalismo (1978), apresenta o discurso do desenvolvimento como atividade de representao e construo do outro em categorias como terceiro mundo, ambiente, mulheres e camponeses.

    Tambm nesta segunda vertente de pesquisa, encontramos uma heterogeneidade

    de posies, como demonstram as crticas a Ferguson e Escobar, entre outros (e. g. Sachs ed. 1992; Crush ed. 1995; Hobart 1993), acusados de ter uma viso monoltica do conjunto de fenmenos que abordam. Os autores desta crtica (Grillo 1997; Gardner 1997; Gardner e Lewis 2000) postulam que essa linha de autores contribui para a construo do myth of development (Grillo 1997: 20), obscurecendo, assim, a multiplicidade de processos, discursos e experincias que o constituem. Estas crticas, em nossa opinio, revelam leituras exageradamente rgidas dos trabalhos de Ferguson,

    Escobar e dos outros autores considerados, trazendo uma imagem distorcida das

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    construes e imagens apresentadas pelos mesmos. Reportemo-nos aqui brevemente a algumas consideraes nesse sentido, melhor desenvolvidas em outros trabalhos6.

    Como j acenado, as crticas mencionadas voltam-se, sobretudo, para a operao de construo da noo de desenvolvimento enquanto fenmeno totalitrio, como

    podemos ver na opinio de Grillo:

    There is a tendency illustrated, for example, by Hobart, Escobar and to a lesser degree Ferguson to see development as a monolithic enterprise, heavily controlled from the top, convinced of the superiority of its own wisdom and impervious to local knowledge, or indeed common-sense experience, a single gaze or voice which is all powerful and beyond influence. This underpins what I would call the myth of development which pervades much critical writing in this field. It might also be called the Development Dictionary perspective, as echoed throughout the book of that name (Sachs ed. 1992). The perspective is shared by Escobar, and to a lesser extent Ferguson and in a different way Hobart. Like most myths it is based on poor and partial history, betraying a lack of knowledge of both colonialism and decolonization, and throughout it reflects a surprising ethnocentrism: it is very much the view from North America. Ill-informed about the history of government, it has a Jacobinist conviction of the states power to achieve miraculous things: the title of Fergusons book, The Anti-Politics Machine, is an eloquent expression of this. It is also grounded in the victim culture. Rather as those engaged in antiracist training sometimes argued that there are racists and the victims of racism (Donald and Rattansi eds 1992; Gilroy 1993), the development myth proposes that there are developers and the victims of development (see the unfortunate souls portrayed on the dust-cover of Crushs edited collection, 1995). Escobar adds resister of development, but there is not other way.

    To think of the discourse of development is far too limiting. To that extent Hobart is correct to refer to several co-existent discourses of development (1993: 12). But there is as much diversity within the community of professional developers (one of the part identified by Hobart), as between them and other stakeholders or players (in Hobarts account, local people and national government). Within development there is and has always been a multiplicity of voices, a multiplicity of knowledges (Cohen 1993: 32) [...] Despite what Hobart says about distancing himself from romantic fantasies about indigenous knowledge (1993: 5), there is a real danger in assuming that ignorance is one-sided; that is, it is we who are only and always ignorant. The danger is that indigenous knowledge is seen as complete, accomplished, and hence static and unchanging. Neither side has a monopoly of knowledge or ignorance, neither party is impervious to argument. (Grillo 1997: 20s)

    Se, por um lado, importante reconhecer a cacofonia de consideraes,

    conceitualizaes, prticas e modalidades que marcam a noo de desenvolvimento, de outro, a sua crtica como mito, constitui, na nossa opinio, um instrumento de ruptura com as caractersticas de abrangncia do iderio desenvolvimentista (cf. Rist 1999, cap. 2). Ainda hoje, ao menos nas declaraes pronunciadas ao interior do Banco Mundial, a idia de desenvolvimento est revestida de uma viso mtica do destino da humanidade: aqueles que sustentaram e continuam sustentando o desenvolvimento,

    apelam unicidade, necessidade e inevitabilidade de tal processo para motivar as prprias iniciativas.

    6 Uma anlise parcial destas crticas encontra-se no trabalho final do curso Antropologia da

    Administrao Pblica, ministrado nesta instituio pelo Prof. A. C. de Souza Lima (1o semestre/ 2000).

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    Percebemos nas afirmaes de Grillo a convico quanto possibilidade de que o olhar cientfico/antropolgico d conta de um campo sem considerar os efeitos deste campo sobre o olhar que nele incide. Este tipo de confronto, ao nosso ver, somente se justificaria mediante a convico da possibilidade de produzir alguma forma de verdade na interpretao das realidades sociais (confrontar, por exemplo, o julgamento sobre o carter errneo das anlises histricas de Escobar - nota 8). Nessa mesma direo, seria legtimo indagar-nos sobre o quanto esta discusso est marcada pela necessidade da busca por bases cientficas e ticas plausveis para justificar a participao em iniciativas que satisfaam interesses outros que no o cientfico.7

    No entanto, se podemos concordar com o autor quanto idia de que qualquer tipo ou sistema de conhecimento no complete, accomplished and hence static and unchanging, devemos alertar para a necessidade de considerar o profundo lao

    existente entre conhecimento e poder. Assim, a atribuio de ignorncia a ns ocidentais, formulada por Hobart (1993), no pode ser considerada unicamente como uma postura filosfica, como Grillo a define, mas como um alerta para o fato que a prpria atribuio de ignorncia um ato poltico: As Claude Alvares (1992b: 230) points out, knowledge is power, but power is also knowledge. Power decides what is knowledge and what is not knowledge (Crush 1995: 6).

    Algumas sugestes de Grillo revelam-se, contudo, valiosas, como a de operar anlises e pesquisas multi-sited, que dem conta da multi vocality dos fenmenos internos ao campo do desenvolvimento. Isto no pode ser feito, pensamos, sem desenvolver meios que permitam avaliar como esta multi vocality se traduz nas

    prticas do development encounter, ou seja, nos lugares de aplicao onde indispensvel dedicar uma extrema ateno disjuno entre discursos e prticas, intenes declaradas e tcitas, e resultados historicamente dados. Neste sentido, a maior

    contribuio das crticas de Grillo (e dos outros autores anteriormente citados) consiste

    7 Even these students will continue to decline in number, however, if our training does not accommodate

    more adequately the needs of the market place. (Hinshaw 1980: 516). A este propsito pensamos que seja importante lembrar quem so, no fundo, os maiores beneficirios daquela que podemos definir a indstria do desenvolvimento: [...] Africa, Asia and South/Central America have over 150,000 expatriate residents or visitors working in development projects. This expert assistance consumes an estimate $7-8 billion of donor money a year in Africa alone, and even a non government organization (NGO) may spend up to 900 a day on a very expensive consultant (Crewe 1997: 61). Most of the loans the World Bank disbursed correspond to projects subjected to international bidding. Needless to say, most often the contracts go to multinational companies, which reap the profit of this multibillion-dollar market (a cumulative $80 billion at the end of 1980, of which about 80 percent had been allocated through international competitive bidding, mostly awarded to multinationals and experts from the First World). (Escobar 1995: 165)

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    em chamar a ateno para as diferentes interpretaes, vises e prticas presentes no campo do desenvolvimento, e que nos permitem questionar as relaes entre diferentes contribuies e abordagens desenvolvimentistas e a influncia que estas exercem entre si.

    Um dos fenmenos mais evidentes na histria recente8 do desenvolvimento, consiste na difuso macia de tcnicas e prticas participativas (Ranhema 1992; Nelson e Wright eds., 1995). A velocidade e intensidade com que esse processo vem ocorrendo leva vrios autores a definir a participao como a nova ortodoxia desenvolvimentista (Green 2000; Cooke e Kothari (eds.) 2001, p. ex.), cuja hegemonia atual reflete-se, tambm, na ateno que esta chegou a receber das agncias internacionais de desenvolvimento (Cf. BM 1994; IDB 1994).

    Tomando como objeto da primeira parte deste trabalho a natureza e a difuso destas tcnicas, iniciaremos ocupando-nos das caractersticas da participao, das razes histricas dos discursos, teorias e tcnicas participativas, e das diferentes

    perspectivas das vrias abordagens.

    8 Rist mostra como as idias de So Agostinho contriburam na estruturao do pensamento positivista,

    por oferecerem os argumentos para uma viso linear da histria e a conseqente possibilidade de articular uma ideologia desenvolvimentista (1999). Cowen e Shenton (1995), entre outros (Berman 1988 e Rich 1994), vem nascer o desenvolvimento no seio da problemtica situao europia dos anos 1830-40, atravs da obra de personagens como os saint simonianos, List, e Comte. Outros sublinham as conexes entre os aparatos de dominao colonial e as tcnicas de desenvolvimento (Cooper e Packard (eds.) 1997; Fisher 1997; Mosse 1997; Stirrat 2000). Outros, ainda, preocupam-se com os aspectos modernos do fenmeno, e restringem a ateno aos ltimos 50 anos, propondo que o incio do atual discurso do desenvolvimento pode ser individualizado no discurso nao norte-americana proferido por Truman em janeiro de 1949 (Sachs (ed.) 1992; Escobar 1995). Concentramo-nos, sobretudo, no processo de evoluo dos discursos do Banco Mundial sobre participao e povos indgenas, nos ltimos quinze anos, ou seja, o ltimo perodo da histria recente do desenvolvimento.

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    Cap. 2. Uma nova metodologia de desenvolvimento: a participao

    2.1 Pequena histria da participao, segundo algumas fontes mencionadas pelos desenvolvimentistas

    O incio do desenvolvimento das tcnicas participativas pode ser reconduzido ao contexto das formulaes de Kurt Lewin (1946) relativas Pesquisa Ao9. A pesquisa-ao lewiniana deu a partida construo de novas e diferenciadas abordagens mesma problemtica, conforme o objeto e os objetivos da pesquisa10, que se modifica tambm de acordo ao contexto geo-poltico de aplicao.

    A pesquisa-ao participativa (PAR) representa um modelo crtico de pesquisa-ao utilizado especialmente na Amrica Latina atravs do trabalho de Paulo Freire

    (1970) e Orlando Fals Borda (1981), e que se dirige mais emancipao das populaes objeto de estudo, do que pesquisa em si (Kennis, 1993).

    A pesquisa participativa gera uma metodologia, em parte, paralela quela da pesquisa-ao clssica, porm, voltada a sujeitos-objetos de estudo completamente diversos daqueles da pesquisa-ao (Brown e Tandom, 1983), buscando objetivos diferentes e fazendo explcita a referncia estreita ligao entre a metodologia e seus

    efeitos sociais.

    A pesquisa participativa chama os atores sociais objeto da pesquisa a assumir o papel de co-pesquisadores. Estes contribuem ativamente no delineamento do modelo e dos objetivos da pesquisa. Este resultado obtido atravs da presena do pesquisador que, em certa medida, deveria adotar uma postura similar quela da observao

    9 Metodologicamente o ciclo da Pesquisa-Ao bastante simples e substancialmente vlido para todas as

    suas elaboraes. Este compreende: 1) Identificao dos problemas a resolver, dos fatores causais existentes, das limitaes ambientais presentes e das habilidades profissionais passveis de serem aproveitadas; 2) Formulao das hipteses de mudana e dos planos de implementao; 3) Aplicao das hipteses nos contextos-objeto dos planos formulados; 4) Avaliao das mudanas e implementao dos mtodos aplicados; 5) Aprofundamento, institucionalizao e difuso capilar das aplicaes que foram avaliadas como bem sucedidas ou positivas (Walton e Gaffney, 1991). 10

    As principais linhas metodolgicas que foram desenvolvidas podem se resumidas em: - pesquisa ao (action research) - pesquisa participativa (participatory research) - pesquisa ao participativa (participatory action research) - pesquisa ao participada (participated action research) - cincia-ao (action science) - sociologia da ao (sociologie de laction).

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    participante11. Seu papel consiste em conferir legitimidade cientfica s experincias pessoais, aos conhecimentos populares e s outras formas de saber comumente consideradas no cientficas, como as formas locais de literatura oral e os modelos perceptivos locais.

    Na opinio de Stoecke e Bonacich (1992) o conhecimento assumido como sendo um instrumento de poder e, portanto, o fim da pesquisa participativa consiste em

    conectar a produo do conhecimento conscientizao e emancipao (self-reliance) do povo. A participao constitui-se, assim, enquanto conceito central da metodologia. Como afirma um dos pais da metodologia, Paulo Freire (1970), o objetivo do trabalho de pesquisa no medir e/ou descrever caractersticas de situaes particulares para permitir a manipulao da realidade, mas operar uma ao cognitiva junto aos pressupostos objetos da prtica experimental:

    La investigacin de los temas generadores o de la temtica significativa del pueblo, al tener como objetivo fundamental la captacin de sus temas bsicos, a partir de cuyo conocimiento es posible la organizacin del contenido pragmtico para el desarrollo de cualquier accin con l, se instaura como el punto de partida del processo de accin, entendida como sntesis cultural.

    De ah que no sea posible dividir en dos los momentos de este proceso: el de la investigacin temtica y el de la accin como sntesis cultura.

    Esta dicotoma implicara que el primero sera un momento en que el pueblo sera estudiado, analizado, investigado, como un objeto pasivo de los investigadores lo que es propio de la accin antidialgica.

    De este modo, la separacin ingenua significara que la accin, como sntesis, se iniciara como una accin invasora.

    Precisamente, dado que en la teora dialgica no puede darse esta dicotomizacin, la investigacin temtica tiene, como sujetos de su proceso, no slo a los investigadores profesionales sino tanbin a los hombres del pueblo cuyo universo temtico se busca encontrar. (Freire 1970: 238-9, grifo no original)

    Algumas das tcnicas de pesquisa (sobre as quais moldar a ao) derivadas desta tradio terica tm conquistado preponderncia no campo do desenvolvimento. Entre estas, Beneficiary Assessment (BA), Social Assessment (SA), Environmental Assessment (EA), Rapid Rural Appraisal (RRA), e Participatory Rural Appraisal (PRA), representam as mais difundidas no Banco Mundial, e outras, como Participatory Action Research (PAR), e Participatory Learning Analysis (PLA) tm ampla difuso12.

    Mas o que , exatamente, a participao? O que significa participar? Quais prticas podem ser definidas como participativas? Quem que participa, e em qu?

    11 Nelson e Wright (1996a) operam um confronto das duas tcnicas, pesquisa participativa e observao

    participante, evidenciando as diferenas entre as duas e os possveis ganhos que resultariam da unio de algumas das caractersticas que as distinguem. 12

    Chambers (1995: 36) oferece um elenco de 29 tipos de abordagem participativa que tomam forma a partir dos anos 70, assinalando o carter no exaustivo deste elenco.

  • 18

    2.2 A participao no desenvolvimento

    A participao, longe de representar uma novidade no campo da cooperao ao desenvolvimento, detinha uma certa popularidade nos esquemas de desenvolvimento

    comunitrio dos anos 60 e 70 (Ranhema 1992; Stone 1989; Peters 1996, 2000), e j estava presente na retrica do New Deal dos anos 30 (Eyben e Ladbury 1995: 192).

    A palavra participao, como adverte Ranhema (1992: 116), parte de um conjunto de termos notavelmente plsticos, cujos significados devem ser contextualizados para que adquiram um contedo, prestando-se, caso contrrio, a vrias manipulaes e ao uso retrico dos mesmos (Nelson e Wright 1995: 7). Linda Stone (1989), por exemplo, valendo-se de sua prpria experincia no Nepal, questiona a possibilidade da aplicao, em contextos culturais diferenciados, do conceito de

    participao comunitria, pondo em destaque as pressuposies culturalmente determinadas que o mesmo carrega. A autora demonstra como as idias relativas participao, assim como so formuladas pelos integrantes do projeto objeto da sua pesquisa diferem notavelmente das concepes dos beneficirios, cuja compreenso da mesma baseia-se, sobretudo, em experincias passadas com projetos e atividades de desenvolvimento. O quadro destas diferenas complica-se ainda mais pelo fato de que as vrias agncias e organizaes no compartilham as mesmas definies e prticas (Ranhema 1992; Hildyard et alii 2001), e no interior das mesmas, os membros detm posies que no coincidem entre si (Nelson e Wright 1995a; Kaufmann 1997).

    A maioria dos autores que se ocupa de investigar o uso das tcnicas participativas indica que a principal diferena entre as vrias concepes de

    participao empregadas no campo do desenvolvimento opera com a mesma enquanto: 1) meio para alcanar maior efetividade nos projetos e atividades de desenvolvimento; 2) resultado e fim em si mesmo (Nelson e Wright 1995a; Peters1996; Green 2000; Hildyard et alii 2001).

    Grande parte dos tericos e praticantes das abordagens participativas consideram estas tcnicas principalmente como instrumentos para fornecer maiores nveis e

    modalidades de controle aos atores envolvidos em projetos de desenvolvimento. Neste sentido, a natureza da participao determinada, sobretudo, pelo grau de influncia

    dos beneficirios na definio do tipo de atividade a ser implementada, e pelo grau de controle exercido por estes sobre as mesmas.

  • 19

    A multiplicidade de significados e usos da participao, isto , a sua polissemia, largamente reconhecida. Nesse sentido, vrios pesquisadores tm desenvolvido sistemas de classificaes das formas participativas (Michener 1998: 2106), na tentativa de precisar definies. Segundo Deshler e Sock (1985), as diferentes modalidades de participao podem ser divididas entre Genuine e Pseudo-Participation. A participao genuna pode dar lugar a situaes variadas, que vo

    desde efeitos de empowerment, atravs do qual os cidados ganham controle direto sobre as atividades dos projetos, at Cooperation, que compreende Partnership e Delegated power. A Pseudo-Participation, ao contrrio, instrumental s prticas de Assistencialism e Domestication, podendo dar lugar, na melhor das hipteses, a processos de consulta e extrao de informaes, e na pior, a mecanismos de manipulao (ibidem).

    O esquema classificatrio apresentado por White (1996) prev quatro formas de participao: Nominal, Instrumental, Representativa e Transformativa. As

    funes atribudas a estas dependem dos divergentes interesses dos Stakeholders, que podem ser Top-Down ou Bottom-Up. O autor, dessa forma, quer chamar a ateno

    para o fato de que podem existir diferentes perspectivas sobre as mesmas prticas participativas, como vimos com Linda Stone (1989). As diferenas entre as duas perspectivas, contudo, so eliminadas ao nvel das formas Transformativas, onde a participao tem efeitos de empoderamento para ambas vises (top-down e bottom-up), revestindo funes seja de meio, seja de fim.

    Outra proposta de classificao das formas de participao (Cohen e Uphoff 1980) busca ser mais compreensiva. Ao pretender distinguir as diferentes dimenses de participao em projetos de desenvolvimento rural, os autores reconhecem diferentes reas de participao (Participation in decision making, participation in implementation, participation in benefits, participation in evaluation), diferentes atores que participam (local residents, local leaders, government personnel e foreign personnel), e os modos em que esta ocorre (basis of participation, form of participation, extent of participation e effect of participation).

    As modalidades de participao, portanto, podem compreender um vasto raio de situaes. No entanto, a genuine participation ocorre somente quando o resultado o empoderamento dos beneficirios, e este o objetivo declarado de quem pratica o Participatory Rural Appraisal (PRA).

  • 20

    Os praticantes do PRA postulam uma estreita conexo entre participao e empoderamento dos mais pobres, afirmando que as nicas abordagens que podem ser consideradas participativas so aquelas que levam ao efetivo empoderamento dos grupos alvo (Chambers 1995: 39). A chave para que as prticas do PRA alcancem este resultado, sendo bem sucedidas, est mais na capacidade dos pratictioners em assumir uma postura que reverta os papis de pesquisador e pesquisado, do que no

    desenvolvimento e adeso a metodologias particulares. Nas palavras de Robert Chambers, um dos seus principais formuladores, o PRA a family of approaches and methods to enable rural people to share, enhance, and analyze their knowledge of life and conditions, to plan and to act (1994a: 953). As tcnicas usadas nas atividades do PRA distinguem-se, sobretudo, quanto nfase no uso de instrumentos visuais (vrios tipos de mapeamentos participativos, matrizes e diagramas), considerados mais idneos para o empoderamento dos mais fracos e despossudos, j que independem da alfabetizao (literacy) e so praticamente universais (Chambers 1995; cf. Francis 2001).

    Ao mesmo tempo os facilitadores/pesquisadores so convidados ao exerccio

    contnuo das prprias capacidades de julgamento, em funo da maior flexibilidade, criatividade e assuno de responsabilidades: The most striking insight of the experience of PRA is the primacy of the personal ... Responsability rests not in written rules, regulations and procedures but in individual judgement (Chambers 1994b: 1450).

    As tcnicas do PRA procuram dar lugar a uma reverso das relaes entre os

    vrios stakeholders (Chambers 1995; Stirrat 2000: 39; Francis 2001), na qual as perspectivas privilegiadas sejam as dos atores sobre os quais incide a ao (emic), e no as do observador (ethic). O objetivo capacitar as pessoas a realizar as prprias pesquisas e anlises, propondo e implementando solues ajustadas aos problemas evidenciados.

    Contudo, nas formulaes dos expoentes do PRA, a relao entre participao e empoderamento parece ser postulada de modo simplista, provocando crticas por

    parte de vrios autores. Alguns destes, que representam, digamos, a ponta de lana das crticas participao, sublinham o fato de que os efeitos do empoderamento, supostamente provocados na aplicao de formas genunas de participao, podem revelar-se tantamount, in Faucauldiam terms, to sujection (Henkel e Stirrat 2001: 13. Ver tambm Stirrat 2000 e Green 2000: 68).

  • 21

    Veremos agora como a problemtica participativa foi sendo desenvolvida no Banco Mundial, prestando particular ateno a um dos seus maiores proponentes e tcnica por ele proposta para atingir o objetivo da participao nos projetos financiados pelo Banco: Michel Cernea e sua engenharia social.

    2.3. O Banco Mundial e a participao

    No Banco Mundial e em outras agncias similares no obstante o uso do termo e as preocupaes relativas ao alcance da participao dos grupos objeto das intervenes estarem presentes desde os primeiros anos de sua ao (Ranhema 1992) somente no fim dos anos 80 que o tema comea a ser abordado com uma certa

    sistematicidade. Bathnagar e Williams atribuem iniciativa de dois vice-presidentes do Banco o incio de uma srie de atividades que resultam em vrios debates e num

    conspcuo corpus de literatura sobre participao popular como instrumento de desenvolvimento (1992: 1), produzido no interior da instituio. Em 1990, com o suporte financeiro da SIDA, agncia sueca de desenvolvimento, qual juntou-se, posteriormente, a alem GTZ13, foi institudo um Bank wide learning group sobre participao, com a tarefa principal de analisar 20 projetos financiados pelo Banco que could be considered participatory (ibidem), sendo o seu intuito retirar lies positivas e investigar as modificaes que o Banco deveria inserir em suas prprias prticas operacionais to encourage popular participation where appropriate (ibidem).

    As idias, conceitos e formulaes que caracterizam as atuais discusses sobre participao no Banco so sobretudo devedoras da obra de Michael Cernea, o qual props, em vrios trabalhos (1983, 1991, 1992), uma metodologia para a construo de modalidades participativas de desenvolvimento, baseando-se numa experincia particular: o Programa Integral para el Desarrollo Rural (PIDER).

    13 A Swedish International Agency for Development (SIDA) destina aproximadamente um tero dos

    recursos prprios s agncias multilaterais das Naes Unidas, ao Grupo Banco Mundial e outros Bancos regionais de desenvolvimento, e Unio Europia. Os seus principais objetivos so o combate pobreza, degradao ambiental e a resoluo de situaes de conflitos, para criar condies que conduzam mudana e ao desenvolvimento sustentvel ambiental, social e econmico. A Deutsche Gesellschaft fr Technische Zusammenarbeit (GTZ), fundada em 1975, depende principalmente do Ministrio Alemo para a Cooperao Econmica e o Desenvolvimento (BMZ), que vem encarregando-a de implementar a Cooperao Tcnica (TC) atravs da comunicao de conhecimentos relativos s reas da tecnologia, da economia e das formas organizativas.

  • 22

    O PIDER foi iniciado em 197314 como um vasto programa de investimentos rurais para a implementao de pequenos projetos locais em algumas das reas mais pobres do Mxico. A novidade deste tipo de atividade traduziu-se na necessidade de adotar um tipo de abordagem diferente daquele at ento usado em projetos financiados pelo Banco Mundial (Cernea 1983: vii). A perspectiva dos camponeses, os supostos beneficirios diretos destas intervenes, foi provavelmente, pela primeira vez,

    considerada relevante para a concepo e escolha dos vrios micro-projetos, o que levou ao desenvolvimento de uma metodologia para a incluso do ponto de vista local na formulao dos vrios programas. As tcnicas desenvolvidas ao longo da implementao do projeto so descritas por Cernea como uma metodologia social para a participao comunitria em investimentos locais, e apresentadas num primeiro trabalho em 1983. O incio destas atividades, em 1974, em sintonia com o novo paradigma desenvolvimentista oficializado nas New Directions, deu-se em funo de uma srie de consideraes sobre a ineficcia dos programas de desenvolvimento rural

    at ento implementados, cujas causas foram atribudas pouca considerao das realidades locais nas fases de planejamento, ou seja, na fase inicial de construo dos projetos (Cernea 1983: 10-12).

    Pela primeira vez, num projeto financiado pelo Banco Mundial, foi organizada uma task force de cientistas sociais (alm de economistas), na forma de um Centro de Investigacin para el Desarrollo Rural (CIDER), com o papel de desenvolver procedimentos para a identificao das necessidades prioritrias e otimizao de investimentos ao nvel das comunidades. Cernea descreve este exerccio como uma

    atividade de action research (1983: 13ss; 1992: 58), cujos resultados so pensados como importantes, sobretudo, porque tm transfer potential to other contexts for which a participatory methodology has to be elaborated (1983: 13). As atividades atravs das quais esta metodologia foi se formando so descritas por Cernea, no somente como applied social research, mas como

    Social engineering, which could be defined distinctly as using the body of sociological knowledge and of investigation techniques for designing policies, organization structures, and action methodologies to accomplish a definite social purpose (1983: 9)

    14 O processo de atividades ao qual nos referimos como PIDER constitudo, na realidade, por diferentes

    programas sucessivos, chamados de PIDER I, II, e III.

  • 23

    Estas tecnologias foram desenvolvidas a partir de um social learning process, constitudo de movimentos entre pesquisas realizadas ao nvel do campo e momentos de reflexo terica (ibid.: 19).

    Na opinio de Cernea, as duas posturas tpicas das retricas participativas

    denominadas por ele de paternalista e populista, s podero ser evitadas no momento em que os aspectos sociais e tcnico-econmicos sejam considerados conjuntamente no planejamento das intervenes15. Da a necessidade do trabalho de campo, que permita a coleta das opinies dos beneficirios, de outros dados sobre os mesmos e das caractersticas particulares das vrias situaes locais para serem posteriormente avaliados atravs de uma sound analysis [...] because often the proposals emerging from communities contained nothing more than an attractive idea, without back-up technical information and economic justification (1983: 25). O papel dos cientistas sociais revela-se, assim, absolutamente indispensvel e determinante no processo de planejamento, sendo eles os nicos capazes de, junto aos tcnicos, atuar na estipulao de projetos que consigam mobilizar latent local resources. Neste sentido, a participao um meio, e no um fim (ibid.: 37), atravs do qual os projetos vm a ser incorporados into the life of the community as part of its own achievements (ibidem).

    A metodologia que leva programao participativa dos planos divide-se em trs fases: a) field assessment, b) preliminary programming, c) final programming (Ibid.: 45). A participao dos beneficirios nas atividades de planejamento concentra-se, sobretudo, na primeira fase, quando so efetuados os field diagnosis. Estes dividem-se em quatro fases diferentes e tm uma durao mdia de dois dias em cada

    localidade. O grupo de experts (no caso em questo, dois ou trs tcnicos do PIDER e de agncias tcnicas), antes de efetuar a pesquisa, participa de um seminrio no qual so explicados e analisados os objetivos, mtodos e procedimentos da mesma. A primeira atividade consiste em a trip through the village, to get to know firsthand the social groups and the physical environment in which activities are to be carried out, and to

    inform the residents of the objectives of the study (ibid.: 47). Depois, efetuado um survey junto aos informantes selecionados, isto , as autoridades (neste caso a

    15 The simultaneity in preparing both types of instruments social and technico-economic was in

    fact an adequate response to two fallacies often present in the arguments for or against participation the populist fallacy and the paternalistic fallacy. As has been correctly argued, the populist fallacy which contends that the rural majority always knows better than the technical personnel and has sufficient skills is as erroneus as the paternalistic fallacy which pretends that the bureaucracy knows best and can do alone all that is needed for development Uphoff and Esman 1974). (Cernea 1992: 37-8).

  • 24

    liderana dos conselhos locais, ou seja, os ejidos16, os delegados das prefeituras etc.), o professor da escola local, os enfermeiros e mdicos (se houver) e a liderana das outras organizaes locais (como associaes de pais, grupos de crditos etc.). Os dados, assim coletados, so organizados e sistematizados em formulrios, cujos contedos, ainda que adaptados s condies especficas de cada regio, devem ser padronizados para a comparao das vrias pesquisas (ibid.: 49). A prxima fase consiste na organizao de reunies junto comunidade: there are two ways of holding them: selected issues are discussed with certain groups separately, or the meeting is held in a large, integrated group in which all the information of community interest is discussed. (ibidem). Dependendo da situao, os encontros podem ser organizados com diferentes grupos, ou seja, homens, mulheres e jovens ou, no caso de diferenas notveis na composio scio-econmica dos grupos, entre different strata (cultivadores com mais ou menos terras, com ou sem gado etc.).

    A metodologia ressalta a necessidade de que o grupo de experts faa um esforo

    para coletar farmers perspective on each individual investment proposed and should record it on the report form (Ibid.: 51), de modo que a vontade da comunidade em contribuir para os investimentos necessrios implementao dos vrios projetos, seja avaliada durante a atividade de diagnstico da localidade.

    A descrio da metodologia aqui efetuada serve, sobretudo, para ressaltar as diferenas em relao s abordagens do PRA. Como parece evidente, a possibilidade dos beneficirios em influenciar as atividades a serem implementadas depende, em grande medida, da capacidade dos experts na coleta de suas opinies sobre propostas

    formuladas externamente, limitando, assim, a influncia sobre a definio das necessidades que os projetos teriam de atender. Claramente, esto aqui em jogo questes de outra natureza, opera-se com uma viso particular do destino das sociedades

    humanas, ou seja, uma viso de mundo em que a nica possibilidade concreta de participao na construo do prprio futuro depende da aquisio de capacidades e

    aproveitamento das possibilidades de inserir-se nos circuitos econmicos e tecnolgicos de mercado17.

    16 Instncias administrativas das comunidades camponesas caractersticas do agro mexicano.

    17 Este tipo de viso do futuro definida por Ulf Hannerz como scenario of global homogeneization of

    culture (1993: 108).

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    Para concluir a apresentao da participao no Banco Mundial, voltemos agora aos trabalhos do Learning Group on Participation18. No Common Vocabulary Paper(CVP)19 redigido pelo Grupo (Bathnagar e Williams 1992: anexo 2 pp. 177-182), define-se a participao popular, como, a process by which people, especially

    disadvantaged people, influence decisions that affect them (ibid: 177)20. Para o Grupo, o que caracteriza as diferentes formas de participao so os

    objetivos, as unidades, a intensidade e os instrumentos, o que permite notar uma certa convergncia entre este esquema e aquele de Cohen e Uphoff, anteriormente apresentado. Uma leitura mais aprofundada desta classificao revela o carter, sobretudo, instrumental como um meio que marca a concepo da participao dentro do Banco. Os objetivos voltam-se, sobretudo, para as possibilidades que a participao oferece no sentido de aumentar a eficcia dos projetos (beneficiary capacity, effectiveness, cost sharing e efficency)21. H todavia uma exceo: o primeiro objetivo a ser mencionado, o empowerment, parece estar mais alinhado com abordagens que consideram a participao como um fim em si mesmo, mas as limitaes impostas pelo Banco restringem fortemente a possibilidade de que as

    atividades participativas a empreendidas possam ser pensadas para alcanar este tipo de resultado:

    One objective of popular participation may be empowerment a more equitable sharing of power and a higher level of political awareness and strenght for disadvantaged people. If empowerment is the objective, the most important result of a development activity might not be an increase in economic production or incomes but rather the development of peoples capacity to initiate actions on their own or influence decisions of more powerful actors. Given the Banks Articles of Agreement, the Bank does not pursue empowerment as an end in itself (ibid.: 178)

    As unidades da participao so individuals, households, groups, and communities (ibidem), e os nveis referem-se abrangncia das atividades participativas, community, provincial, and national levels. A intensidade pode ser

    18 O Grupo foi inicialmente composto por um Core Team de 15 funcionrios do Banco e, desde 1991,

    contam com a colaborao de 20 Task Managers responsveis por projetos that appear[ed] to be participatory, e de 10 Bank advisers que assistem aos demais sobres questes especficas (Bathnagar e Williams 1992: 2. Para ter acesso lista completa dos componentes do Grupo em 1992, ver o anexo 1, pp. 175-6,). Em 1994, o Grupo contava com 55 membros, e com a colaborao de 6 componentes do antigo Grupo que no trabalhavam mais no Banco (BM 1994, anexo 1). 19

    O CVP foi desenvolvido pelo core team do Grupo para explicitar definies e conceitos sobre participao que orientariam os trabalhos do Grupo (Bathnagar e Williams 1992: 2), e baseia-se, sobretudo, nas definies de Samuel (1987) (Bathnagar e Williams 1992: 177). 20

    O termo popular pretende incluir todos os indivduos who are disadvantaged in terms of wealth, education, ethnic group, or gender (ibidem). 21

    Em suma, so medidas de eficcia econmica.

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    low-level, como no caso da information sharing ou aumentar, como nas atividades de consultation, decision making e initiating action22. Este ltimo representa, na viso do Banco, o nvel mximo de intensidade de participao dos beneficirios nos projetos financiados por este, em que as pessoas chegam a possuir os meios para implementar projetos de desenvolvimento que no futuro no dependam do apoio externo: initiatives implies a proactive capacity and the confidence to get going on

    ones own (ibid.: 179). As tcnicas participativas adotadas pelo Banco so principalmente: BA, SA e,

    em menor medida, PRA. O primeiro um mtodo associado, principalmente, a Salmen, que o define enquanto an approach to information gathering which assesses the value of an activity as it is perceived by its principal users ... a systematic enquiry into peoples values and behaviour in relation to a planned or ongoing intervention for social

    and economic change (Salmen 1995: 1, apud Francis 2001: 73). SA consiste numa tcnica desenvolvida, principalmente, por Michael Cernea, para a aplicao das cincias

    sociais no trabalho do Banco23. As principais evidncias da adoo das tcnicas do PRA por parte de

    funcionrios do Banco podem ser encontradas no Participation Sourcebook (BM 1996), ltimo resultado do trabalho do Learning Group do Banco sobre participao, que busca mostrar as potencialidades e os possveis ganhos da incorporao de tcnicas participativas nas atividades de desenvolvimento, atravs da apresentao de uma srie de experincias amadurecidas no Banco. Contudo, estas experincias so dificilmente aproveitveis devido estrutura organizativa que caracteriza o Banco Mundial, e o texto

    que as contm apresenta-se mais como um testemunho dos resultados obtidos atravs de desempenhos excepcionais de indivduos singulares, do que como um manual de mtodos e tcnicas generalizveis, o que levou Paul Francis a consider-lo a mythical

    text, ou seja, uma narrao de gestas de indivduos excepcionais (2001: 82-3).

    2.4 PRA e social engineering: sugestes para uma comparao

    Para ressaltar as principais diferenas e semelhanas entre as duas metodologias acima analisadas pensamos ser til organiz-las graficamente:

    22 Esta tipologia de diferentes intensidades de participao baseia-se no trabalho de Simon (1987).

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    Social Engineering PRA

    Participao Meio Fim

    Unidade bsica da ao

    Comunidade Comunidade

    Foco Recursos locais Conhecimento local

    Metodologia

    Contnuo feedback entre coleta de dados no campo e sound analisys; entrelaamento das caractersticas sociais e tcnico-econmicas no planejamento das intervenes; produo de manuais.

    nfase na postura do pesquisador e adoo de instrumentos culturalmente neutros para facilitar o desenvolvimento das capacidades internas de anlise dos beneficirios.

    Resultados a serem alcanados

    Eficcia dos projetos atravs da sua adeso situao local; maior participao dos beneficirios nas atividades de desenvolvimento; produo de mtodos replicveis.

    Conscientizao; empoderamento; autogesto (self-realiance).

    A engenharia social quer dar contribuies na construo do software dos projetos, ou seja, the institutional components and the sociocultural parts of these projects (Cernea 1983: 13). Estes aspectos revestem-se de uma relevncia equivalente quela dos componentes tecnolgicos, e revelam a importncia da contribuio da comunidade das cincias sociais para as atividades de desenvolvimento (ibidem). O objetivo responder questes pragmticas relativas aos modos pelos quais pode-se incrementar a participao e quais os custos dessa iniciativa atravs da

    individuao dos fatores contextuais que incidem na probabilidade de sucesso dos projetos (ibid.: 14).

    Os conhecimentos locais que podem ser aproveitados dizem respeito, sobretudo, s informaes que permitam maximizar as intervenes que as agncias optam

    porimplementar. Cernea nos oferece alguns exemplos. Num caso, os conhecimentos locais relativos aos nveis de pluviosidade de uma determinada regio em que se

    construiu uma barragem poderiam ter evitado as falhas no projeto que levaram ao desabamento da mesma, aps chuvas que excederam os nveis mximos calculados

    pelos experts (Ibid.: 17). Em outro caso, o conselho dos experts relativo aquisio de

    23 Baseado-se em vrios documentos, Francis calcula a presena de BA, de 1983 a 1998, em 110 projetos

    do Banco e, a partir de 1994, um total de 125 SA completadas ou em via de formulao. A concentrao de tais prticas nos ltimos cinco anos atesta a crescente popularidade destas metodologias (2001: 84).

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    determinadas variedades de gado com o objetivo de cruz-las com as variedades locais, foi rejeitado com base na experincia de um dos criadores locais que j tendo realizado essa tentativa , revelou que as caractersticas fsicas do gado europeu no se adaptavam s condies climticas locais (Cernea 1992: 29).

    A incorporao dos conhecimentos locais nas atividades de planejamento constitui um princpio importante das abordagens participativas em geral (Mosse 2001: 16).Contudo, existem diferenas na importncia atribuda ao conhecimento detido pelos beneficirios. Se, de um lado, a engenharia social reconhece a utilidade destes conhecimentos para a eficcia dos projetos, prevendo formas para possibilitar aos encarregados da formulao dos programas de desenvolvimento a coleta destas informaes, o foco da metodologia PRA concentra-se nas possibilidades que o peoples knowledge oferece em desafiar e modificar as estruturas existentes de poder,

    o papel dos profissionais do desenvolvimento, e as prprias formas dos sistemas de conhecimento em que se baseia a ao desenvolvimentista. Estas idias pressupem

    conceitos particulares relativos ao que seja a comunidade, o poder e o conhecimento, e s relaes entre estes e possibilidades de agenciamento e

    emancipao dos atores sociais. Uma anlise da forma pela qual o conceito de comunidade empregado na

    maioria das prticas participativas e que representa o ponto de convergncia das duas abordagens aqui confrontadas revela algumas das falhas conceituais que norteiam tais atividades. A comunidade usualmente pensada como lugar do consenso, homogneo e livre de conflitos. Esta idealizao revela um paralelo com noes de organizao

    social, tpicas da antropologia estrutural-funcionalista: sistemas equilibrados de diferentes instituies, concepo hoje reconhecida enquanto mais uma representao-construo do observador, do que um fato emprico (Peters 1996). No entanto, esta representao no parece ter sido completamente abandonada (Mosse 1997; Green 2000), e os mesmos pressupostos parecem informar os discursos sobre participao e empowerment (Woost 1997: 229).

    necessrio deixar claro que, seja no trabalho de Cernea, seja no de Chambers, reconhecida uma certa natureza heterognea das comunidades. Cernea, ao definir os passos necessrios para efetuar aquilo que chama community diagnosis avisa que necessrio levar em conta a existncia de diferentes sets of interests (1983: 38-9). As mulheres, os jovens, os sem terras, os camponeses que aproveitam de sistemas de irrigao e aqueles que possuem terras no irrigadas, constituem os subgrupos que

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    compartilham os mesmos interesses. Chambers, por sua vez, afirma que at estas categorias so insuficientes para mapear a diversidade existente no interior das comunidades: Nor is it enough to identify just one category, such as women. For there are poor and less poor women, and many other differences between categories of

    people. The poorest, who live far from the centre, who are weak, or overworked, or used to being excluded, are easily left out of empowering participatory processes. (1995: 39)

    Contudo, a possibilidade de que os pesquisadores consigam dar conta destas diferenas limitada pela rapidez que caracteriza as atividades dos mesmos o que Chambers chama de rushing (ibidem) resultando da as dificuldades para mapear as diferentes relaes de poder no interior de cada comunidade24. Entretanto, at que seja dividida em subcategorias com interesses diferenciados, a idia de uma comunidade homognea enquanto realidade relevante sobre a qual devem incidir os esforos de

    anlise e aplicao continua sendo a referncia na aplicao das tcnicas participativas. Isso faz com fiquem obscurecidas as foras que agem na constituio

    destes grupos e as conexes existentes entre diferentes membros e grupos ao interior das comunidades, e os demais circuitos polticos, sociais e econmicos, nos nveis

    regionais, nacionais e internacionais (Green, 2000: 72). A falha maior das prticas participativas rotineiras parece, ento, jazer na construo de uma viso normativa das aes das pessoas, tendendo a eliminar, nas imagens das relaes sociais construdas atravs das tcnicas empregadas tudo aquilo que no pode ser representado em grficos e instrumentos similares de descrio da realidade, como ocorrncias irregulares, eventos no rotineiros ou considerados anormais (Kothari 2001: 147).

    A anlise dos modos pelos quais se pensa que os conhecimentos detidos por cada ator social contribuem possibilidade de exerccio do poder feita a partir de uma viso racionalista da ao humana, em que todos os atores compartilhariam as mesmas

    aspiraes na aplicao dos prprios conhecimentos sobre o mundo. Assim, a possibilidade que a engenharia social oferece aos beneficirios de vociferar as prprias

    opinies sobre os tipos de interveno que se pretende implementar, constitui, na viso de Cernea, um efetivo empoderamento dos mesmos, que poderia ser ulteriormente

    impulsionado atravs da incorporao dos beneficirios nas atividades de monitoramento das operaes, e na execuo das mesmas (1983: 69) da a

    24 Praticamente todos os autores que tratam o argumento lamentam-se dos tempos demasiadamente curtos

    disposio dos cientistas sociais encarregados de desenvolver as anlises sociais relativas a projetos de desenvolvimento.

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    importncia de oferecer informaes completas comunidade sobre as intervenes a serem implementadas. Cernea, no entanto, afirma que esta fase de atuao, que constitui uma das caractersticas mais importantes na efetividade e sustentabilidade dos projetos, no foi implementada no PIDER.

    O fato de que os tipos de conhecimentos locais, considerados importantes para um planejamento efetivo das intervenes, sejam filtrados pelos responsveis das operaes de coleta de dados instrudos para levantar determinados tipos de informaes, atravs de tcnicas padronizadas no se constitui em preocupao central, levando, assim, a ignorar os modos de produo destes conhecimentos, no problematizando as condies de comunicao e apreenso dos mesmos.

    Outro fator importante a ser sublinhado, diz respeito concepo do conhecimento enquanto um composto de informaes e prticas operativas

    quantificveis, passveis de codificao, e suscetveis de avaliao por parte dos experts, detentores dos instrumentos para medir a utilidade (instrumental) dos mesmos nos projetos de desenvolvimento. Neste modo, as demais formas de conhecimento, which cannot be understood in these terms; which appear to have no instrumental rationale [...] are therefore consigned to the dustbin of culture or even superstition (and perhaps more frequently are simply excluded from consultants reports). In other words, indigenous knowledge is only recognized as knowledge when it fits the models of modernity (Stirrat 2000: 39)25.

    No que concerne s tcnicas do PRA, o discurso mais complexo, na medida em que os praticantes destas tcnicas alegam a prioridade dos conhecimentos e vises

    locais (micas) sobre aqueles dos observadores (ticas), postulando uma estreita conexo entre o reconhecimento do valor do local knowledge e as possibilidades de empoderamento dos atores locais que o detm.

    Esta afirmao, contudo, no problematiza os modos como tais conhecimentos so produzidos e organizados atravs das tcnicas do PRA, nem a possibilidade de que a

    prpria natureza dos instrumentos adotados contribua para determinar as informaes e imagens dos conhecimentos locais assim obtidos (Kothari 2001: 145ss; Stirrat 2000).

    Para Maia Green, a construo de uma relao causal entre participao e empoderamento baseia-se no estabelecimento de a spurius relation between

    25 A mercantilizao dos conhecimentos representa a ltima novidade em termo de polticas do Banco

    Mundial, como mostra Lyla Mehta (2001). Voltaremos a abordar a questo quando nos ocuparmos das consideraes sobre conhecimentos indgenas apresentadas nos documentos do Banco.

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    knowledge and agency, in which individual agents are empowered at the level of consciousness, in a vacuum divorced from actual social and political action (2000: 68, grifos do original). Para a autora, este tipo de raciocnio esconde o fato de que os pobres so pensados como incapazes de atingir objetivos de transformao social por si mesmos (como tambm afirma Ranhema, 1992), e participam das atividades de desenvolvimento somente atravs das estruturas institucionais das agncias de

    desenvolvimento destinadas a este fim (ibidem). A possibilidade de que os representantes destas agncias consigam contribuir para o empoderamento dos supostos beneficirios das aes de desenvolvimento vem sendo criticada, sobretudo, atravs da anlise das vrias formas em que o poder conceitualizado no campo do desenvolvimento.

    Nelson e Wright (1995b: 8ss) apresentam trs modelos conceituais de poder atravs dos quais poderia-se analisar a efetividade das tcnicas do PRA e similares no sentido de garantir o empoderamento dos beneficirios. A primeira forma de poder

    apresentada pelos autores, power to, postula a possibilidade de que as pessoas possam aumentar o prprio poder (ou seja, o controle sobre as condies que influem em suas vidas), sem necessariamente privar outros de parcelas do mesmo. Isto pode acontecer atravs do desenvolvimento da confiana nos prprios potenciais, bem como, da mudana de atitudes, derivada de um confronto entre atores diferentes, por exemplo, um grupo de mulheres que compartilha detalhes do prprio cotidiano e um ator externo que fornece uma diferente sociolgical imagination (Hymes 1972). Este confronto permite a ambas as partes questionar as realidades de partida e, assim, modificar o prprio

    entendimento, oferecendo instrumentos para tentar mudar o sistema de relaes atravs do qual o poder exercido. Trata-se de um poder que vem sendo estimulado em cada um atravs de atividades coletivas, o ato de compartilhar conhecimentos, formas

    particulares de agir e de se comportar ou, em outras abordagens, o repasse de conhecimentos especficos a grupos e indivduos marginalizados (cf. Page 1999). Os limites desta viso podem ser identificados, sobretudo, no fato de que nela o poder assume a caracterstica de atributo pessoal, cujo aumento ou diminuio depende da posse de determinados instrumentos (especialmente cognitivos). Trata-se da viso do poder como algo substancial, inerente ao indivduo, que tende a obscurecer o carter relacional das situaes que definem a possibilidade de escolha dos vrios atores em cada situao (Elias 1991 [1970]: 158).

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    O segundo modelo de poder apresentado, power over, mais prximo dos modelos clssicos em que o poder eqivale possibilidade de influir nos processos de deciso poltica. Neste caso, mais do que corresponder a caractersticas pessoais, o poder parece constituir-se em um elemento que existe em quantidade finita,

    caracterizando uma viso do mesmo como soma-zero. Este poder considerado como estando situado nos centros institucionais e polticos, e exercido por aqueles que o

    possuem sobre aqueles que no o detm, sob formas que contribuem para a manuteno dos equilbrios existentes.

    O terceiro tipo de viso do poder devedor das anlises foucauldianas aplicadas por Ferguson (1990) s situaes de desenvolvimento. Trata-se de uma viso do poder como algo descentralizado, que no possvel descrever como substncia ou caracterstica pessoal, mas que pode ser representado como um