As ressignificações do espaço público da praça: lugares de memória e sociabilidades

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From the moment where old generations and the generations of our grandparents and parents generations start fading along with their life experience and period references, history sees the need of problematize the rememberings of remote past. Then, we start a selection process of facts and references in order to compose, according to our desires, the history process that transformed our grandparents and parents references, placing us under the resignifications of places where memories are built. In this article we search to comprehend about the constitution and eradication of the public space, particularly the Square Tancredo Neves in Vitória da Conquista, Bahia, concerning the public square in urban zone. Besides, we investigate the restructuration and meaning through time and space towards subjects from Bahia.

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QBahiaTERRA DE TOOOS /IoI6s

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO SUDOESTE DA BARIA

Abel Rebouças São JoséReitor

Rui MacêdoVice-reitor

Paulo Sérgio Cavalcanti CostaPró-Reitor de Extensão eAssuntos Comsnitários

Rossana Karla Dias FreitasGerente de Extensão eAssuntos Culturais

Marisa Fernandes Leite CorreiaDiretora do Museu Regional de Vitória da Conquista

Janaina de Jesus SantosCoordenadora Pedagógica

ColaboradoresAmara Costa Silva

Ana Cláudia Tomagnini 19urralaAna Vitória Fernandes A1meida

, Celso MacielFábio Alexis daSilva Sousa

João Renê Rodrigues de Oliveira

Marinho Rosa e Silva (In memoriam)Norma Alves Souza

Sued Sampaio

EstagiáriosBonieck Silva Campos

Fabiana Mércia Souto Stefano

Confecção da Ficha Catalográfica: Elinei Carvalho Santana - CRB 5/1026

F~43Memória Conquistense: Revista do Museu Regional de Vitória da

Conquista, v. 8, n. 9. --Vitória da Conquista: Edições UESB, 2009.

Dossiê temático: O Fio da Memória: Discurso e História no Sudoeste••: -,"i,da.Bahia:. .',.. .. "

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" 11,;: ~!} j;.;,.l~~~~; ,)' ", ~ ." ••• ~.~_"'i,a1. Vitória da Conquista (BA) - História. 2. Discurso - Vitória da

Conquista (BA) - Memória. I. Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia,Museu Regional de Vitória da Conquista. I. T.

CDD: 981.42

~fPlll)~U~B

Estrada do Bem Querer, km 4 - 45083-900 - Vitória da Conquista - BahiaFone: (77) 3424-8716. E-mail: [email protected]@yahoo.com.br

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AS RE-SIGNIFICAÇÕES DOESPAÇO PÚBLICO DA PRAÇA

lugares de memória e sociabilidades

The resignifications of square publicspace: places of memory and sociabilities

Túlio Henrique PEREIRA!

RESUMOÉa partir do instante em que as gerações antigas e as gerações das gerações de nossosavós e pais vão se exauri i~O e junto deles os referênciais de sua época e vivências, quea história vê a necessidade lK problematizar as lembranças de um passado remoto.Desse modo, iniciamos um processo de seleção de fatos e referências para tecermos,em prol de nossos anseios, o processo histórico que transformou as referências denossos pais e avós, deixando-nos submersos às re-significações dos lugares ondese constituíram memórias. Neste artigo tentamos entender um pouco sobre aconstituição e erradiação do espaço público da praça pública na zona urbana e suareestruturação e significados ao longo do tempo e do espaço de sujeitos baianos,particularmente, a Praça Tancredo Neves em Vitória da Conquista, Bahia.

PALAVRAS-CHAVEPraça Tancredo Neves. Vitória da Conquista. História regional. Iconografia.Memória.

ABSTRACTFrom the moment where old generations and the generations of our granparents and

. parents generations start fading along with their life experience and period references,history sees the need of problematize the rememberings of remote pasto Then, westart a selection process of facts and references in order to compose, acording to ourdesires, the history process that transformed our grandparents and parents references,placing us under the resignifications of places where memories are built. In this artielewe search to comprehend about the constitution and erradication of the public space,particularly the Square Tancredo Neves in Vitória da Conquista, Bahia, concerningthe public square in urban zone. Besides, we investigate the reestruturation andmeaning through time and space towards subjects from Bahia.

KEYWORDSSquare Tancredo Neves. Vitória da Conquista. Regional History. Iconography.Memory.

1 Graduado em História pela Universidade Estadual de Goiás (UEG), membro do GRUDIOCORPO;CNPq (Grupo de Estudos Sobre o Discurso e o Corpo) e autor do livro O Observador do MundoFinito. E-mai!: [email protected]

Memória Conquistense Vitória da Conquista 2005

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40 Túlio Hennqae Pereira

1. Praça pública: centro irradiador das cidades

Desde a Antiguidade Clássica, constitui-se a ágora, a partir dapólis, um espaço aberto que atrai atenção de mercadores interessados naexposição de seus artesanatos e alimentos. Esse espaço é inserido em umponto de intersecção per se, concomitante aos limites da vida pública eprivada, surgindo, então, a máxima expressão da esfera pública, quando oscidadãos gregos dividem espaço com o outro, em que se discute políticae ocorrem as tribunas populares.

De acordo com recente pesquisa desenvolvida por Caldeira(2007), a ágora grega seria o espaço urbano mais importante do período- tanto pelo exercício da democracia direta, dando voz igualitária aoscidadãos, quanto pela aplicabilidade da cidadania. Caldeira acredita queessa importância é estendida às praças das primeiras cidades coloniaisbrasileiras, nas quais encontramos, assim, como no modelo clássico daágora, os edifícios administrativos do poder constituído, ou seja, comoa própria autora diz: o centro irradiador da cidade.

Ainda, segundo Caldeira, muitos estudos nos levam ao modelode organização espacial indígena em oposição à organização das cidadesjesuítas, que desmontam o modelo espacial indígena, marcando o centrodeste espaço com o cruzeiro e a igreja, usufruindo desta centralidade jáexistente para imposição de certa ordem de dominação e representaçãodo poder estabelecido.

Com a ampliação e consolidação da política colonial, diversascidades criadasdurante a vigênciadas Capitanias Hereditárias sãoredesenhadas por especialistas,casos de Salvadore Rio deJaneiro.No século XVII, muitas cidades surgem de projetos urbanos eseus autos de fundação instituem praças em que deverão serinstalados edifícios, igreja, pelourinho, estabelecendo regras deocupação que refletem o momento social e político e atendemdeterminados valores simbólicos (CALDEIRA apud NEITO,2007,p.ll).2

2 Junia Marques Caldeira desenvolveu pesquisa de doutorado em 2007 sobre a gênese da praçapública no Brasil abrangendo a instituição da Colônia até os modelos arquitetônicos mais modernos(NEITO, 2007, p. 11).

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Tal prólogo se fez necessário para contextualização da gênesedo espaço público contemporâneo e um breve levantamento de suashistóricas funções sociais/civis por diferentes sociedades. Nessaperspectiva, o problema a ser discorrido ao longo desse artigoestá relacionado às funções atuais da praça pública, aos exercíciosdesenvolvidos pela sociedade contemporânea que perpassa tal ambiente,dando a ele novas representações, principalmente, em momentos nosquais as cidades desenvolvem novos espaços, considerados públicos,embora fechados, em detrimento da praça pública.

Pensar a re-significação e recolocação do espaço e do sentidoda praça pública no cotidiano presente é, sem dúvida, um desafio quetranscende os limites estabelecidos até mesmo pela história cultural,dentro da teorização possibilitada pela Nova História, que sob o olhardos detalhes e migalhas factuais corresponde à diversidade dos objetos ealteridade cultural, entre sociedades e dentro de cada uma delas Cardoso(1997), de modo a elucidar a macro história, partindo do micro olhardo historiador que seleciona seu objeto com intuito de problematizaruma inquietação subjetiva, embora, também, selecione métodos afim deobjetivar tal estudo.

Partindo desse pressuposto teórico, esse trabalho busca, nãoapenas pensar a genealogia das re-significações do espaço público da .praça pública na contemporaneidade, mas, principalmente, entendê-10 dentro de uma sociedade civilizada e desenvolvida por edificaçôesespraiadas com nuances de verticalização, constituindo o espaço públiconuma referência geograficamente urbana, na qual sujeitos socialmenteativos se vêem em oposição neste espaço - antes considerado lugarde sociabilidade e institucionalização, em detrimento das identidades eoposições centralizadoras de um sujeito.

Entender a praça pública de uma cidade interiorana no séculoXXI, seja como um lugar de memória", de sociabilidade, lazer ou

3 Nora (1981, P: 13) em seu artigo "Memória e história: a problemática dos lugares" discorre sobre aexistência dos lugares de memória partindo do pressuposto de que não há mais meios de memórianuma crítica contundente a história positivista e seu criticismo. De acordo com ele "[...) os lugares dememória nascem e vivem do sentimento que não há memória espontânea, que é preciso criar arquivos,que é preciso manter aniversários, organizar celebrações, pronunciar elogios fúnebres, notariar atas,porque essas operações não são naturais".

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património público, exige não apenas um olhar antropológico e

sociológico em cruzamento com a história, mas a utilização de dois

paradigmas historiográficos em bifurcação, constituintes de um

entendimento sobre o estudo da História Nova, que são: "ilurninismo"

e "pós-modernismo". O primeiro, nos leva a enfatizar a diversidade da

história a partir do método interpretativo - nesse caso iconológico -,

considerando a idéia de razão e progresso humanos e, o segundo, revê

a problematização e desconstrução dos espaços, do fato em história e

dos documentos oficiais com seu relativismo absoluto e sua convicção

de que o conhecimento se reduz a processos de serniose e interpretação,

que conforme Cardoso (1997), resultaria a seleção de idéias pessoais,

estudos superficiais e resultados desprovidos de contextualização

histórica ou mesmo de historicismo, embora construis sem uma idéia

geral sobre memória, nacionalidade e região em consonância com a

questão identitária."

Para tanto, nesse artigo, divido a questão em três etapas: a

primeira, entender o espaço público da praça pública e sua constituição

no Brasil, especificamente na cidade de Vitória da Conquista no interior

da Bahia. Em segundo, apresentar o espaço da Praça Tancredo Neves

- por meio da iconografia e análise iconológica -, localizada próximo

ao centro da cidade e, por último, pensar a morfologia deste espaço

em oposição ef o» junção ao seu significado atual, re-significado ou

não, nos dias atuais.

2. Constituição da praça pública e os estudos iconológicos e

iconográficos

É a partir da iconografia, ramo da História da Arte, que podemos

teorizar os significados das obras de arte, enquanto algo de diferente da suaforma (pANOFSKY, 1995, p. 19). Contudo, precisamos apresentar a obra

4 Para Halbwacs (1990, P:67-68) a memória seria a possibilidade de recolocação das situações escondidasque habilitam na sociedade profunda, na sociabilidade, e em conrrapartida Sruart Hall (2000, p.14)enfatiza ser a sociedade moderna passível de constantes mudanças e permanências, o que nos levaa crer que todo esse processo interinstirucional leva os sujeitos e/ ou indivíduos a criarem e/ ouadequarem seus desejos/anseios/identidades às estruturas sociais que os cercam habilitando-lhes ounão autorizando determinadas práticas subjetivas no seio da sociedade pública.

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e seu contexto histórico para compreensão dos conteúdos temáticos

Natural e Primário elou Factual e Expressivo, em consonância com os

conteúdos Secundário ou Convencional para alcançarmos os significados

Intrínsecos do Conteúdo.5

Partindo desses pressupostos, ,?resentarei, aqui, inicialmente,

uma obra do plástico catarinense Victor Meirelles, "Primeira Missa no

Brasil", de 1860, para entendermos melhor o que Caldeira (2007), nos traz

como desmontagem do modelo espacial indígena para demarcação do

centro com o cruzeiro e a igreja. Investigando não apenas as estruturas e

modelos adotados como espaço público, mas também as readequações e

mentalidades dos sujeitos conquistenses ao longo dessas reestruturações

espaciais, a partir de ilustração fotográfica. Vejamos:

Figura 1- Primeira Missa no Brasil (1860). Óleo sobre tela 268 x 356 em.Fonte: Museu Nacional de Belas Artes (Rio de Janeiro).

; Os termos em itálico cor respondem aos conceitos básicos da teoria de Panofsky (2001, p. 64)quanto a interpretação de um objeto artístico, dividindo de um lado o objeto e de outro o ato deinterpretação.

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Nessa tela, datada de 1860, o artista plástico brasileiro, Victor

Meirelles, nascido em Santa Catarina, busca a representação do que seria

a realização da primeira missa no Brasil. Segundo Pereira (2008), a partir

de sua leitura sobre o ensaio publicado pelo historiador de arte Jorge Coli,

a intenção de Meirelles seria a construção pictórica de tal acontecimento,

baseando-se na carta de Pero Vaz de Caminha. Pereira (2008, p. 2) destaca

que: "O cerne do texto concentra-se na cerimônia mais significante: a

missa que congregou navegadores e índios". De tal modo, acreditava-se

que a obra fosse a tradução verossímil do ato solene para os cristãos

portugueses, instituindo-se, conforme sugere o autor, numa "verdade

visual do episódio narrado: na carta presentificava à primeira missa no

Brasil diante do expectador moderno. O documento e a arte asseguravam

esta transposição do tempo" (PEREIRA, 2008, p. 2).

Entretanto, vale-nos, aqui, não apenas as especulações e

intencionalidades de Meirelles com o seu trabalho, mas a decodificação

primária traçada aos sentidos evocados pela problematização de Caldeira

(2007), sobre o cruzeiro e a igreja.Podemos ver no plano central da tela a imagem dos sacerdotes

católicos em suas vestimentas, bem como o enorme crucifixo,

sobrepondo-se ao plano superior, ocupando aleatoriamente o centro

numa perspectiva objetivamente clássica. A cena remonta a um ritual

de adoração ao cruzeiro, demarcando um espaço ermo, no qual apenas

os pares religiosos ocupam, sendo ladeados pelos nativos (índios) do

local, cujas peles se confundem a penumbra, o tronco e o plano sólido

inferior da imagem.

Antes de uma análise profunda sobre tal representação imagética,

recorramos ao que muitos caracterizariam como anacronismo histórico,

mas, que neste contexto, trata-se apenas de comparação, quando

apresento a fotografia da Praça Tancredo Neves, denominada nos idos de

1950 como Jardim das Borboletas de Vitória da Conquista, Bahia.

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Figura 2 - Panorâmica do Jardim das Borboletas, anos 50, original.Fonte: Acervo fotográfico Museu Regional de Vitória da Conquista.

Figura 3 - Igreja Matriz Nossa Senhora das Vitórias e Praça da República (15 denovembro), anos 40.Fonte: Acervo fotográfico Museu Regional de Vitória da Conquista.

Entre 1940-1950 as casas em Vitória da Conquista são térreas e,

a maior parte, cobertas por telhas francesas:

a praça é quadrilonga e de ladeira, ficando no centro a Matriz.A cadeia é perfeitamente péssima, tendo por maior segurançao tronco; allojando-se na mesma casa, o mais incommodantepossível [sic],o pequeno destacamento de polícia."

6 Conteúdo extraído do ensaio jornalístico "A cidade em fins do século passado" (O FIFÓ, Vitóriada Conquista, 11 out. 1977, p. 7).

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Inicialmente, em sua projeção urbana a praça ocupava o espaçoonde está localizada a igreja matriz, seguindo até um Templo Batista,

constituindo-se em um dos marcos da antiga Vila Imperial da Vitória

(como era conhecida a cidade), por sua imponência e simbologia para a

época. A praça, ladeada por becos e ruas que surgiam gradativamente,

levava inúmeros sujeitos anônimos e membros da sociedade a se

contemplarem com o horizonte, ornando as margens do lago que ali

existia. Em determinado período, conforme pontua Ruy Medeiros

(1998), :vpraça toma o nome de Rua Grande, fenômeno específico

dos anos 1940.

Contudo, é ao final deste período que o espaço sofre intervençãointerinstitucional, sendo remodelado e dividido em duas praças: TancredoNeves e Barão do Rio Branco, criando, assim, vias para inserção das ruas

Maximiliano Fernandes e Zeferino Correia. De acordo com a proposta

governamental, era o momento de tornar aquele largo territorial em

um espaço de lazer e descontração. Visando esses ideais, implanta-se

a feira livre, a Casa da Câmara, e a sociedade elitizada começa a morar

em volta da praça, por considerar glamoroso e distinto. Temos a partir

desse fato, a sensação de posse do espaço público como privado, poisentendemos que essa pequena elite, detentora dos direitos de moradia na

proximidade da praça pública, toma essas transformações paisagísticas,

que agora envolve uma fonte luminosa, chafarizes, arbustos, coqueiros,

pinheiros, bancos alinhados, coreto, pista de patinação etc., como ar vtensâo de sua varanda.

O projeto em prol da "funcionalidade" da Praça Tancredo Nevescontinuou ao longo de várias gestões, cada uma transformando o espaço

ao seu gosto e função. Em meados dos anos 1950, quando a implantação

do Jardim das Borboletas parecia não mais atrair tanta atenção dos sujeitos

que a tomavam, implantou-se na praça um zoológico e um parque temático

para distração das crianças que moravam no local. Enquanto isso a cidade

continuou crescendo espraiadamente e perifericamente, formando uma

massa de pessoas, cujo padrão de vida, as excluía do ambiente sofisticadoe ocioso representado pelo jardim. A população se dividia gradativamente,

criando seus próprios valores e determinando suas distinções.

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Pela fotografia retangular, podemos observar com mais solidez

como era o Jardim das Borbo/etas até meados de 1960. Esse espaço,

constituído no projeto de colonização e demarcação da vitória branca

sobre os nativos, obteve caráter funcional e cívico para contemplação da

mesma elite ou de seus sucessores genealógicos, utilizando-o mais tarde

para implantação de um símbolo em homenagem aos índios Imborés e

Mongóis, sacrificados em emboscada neste mesmo espaço.De acordo com os arquivos orais e cartográficos disponibilizados

pelo Museu Regional de Vitória da Conquista, o espaço do Jardim das

Borboletas concentra sítios arqueológicos, naquilo que seria um antigo

cemitério indígena. A mudança arquitetônica e paisagística mais significativa

na praça ocorreu a partir de 1993, enterrando o sítio arqueológico e

cerrando-o sob o concreto do cimento e da urbanização.

N essas imagens temos a representação 'real' da utilidade desse espaço,

ora utilizado para passeios, lazer, morada, comércio, poucas vezes visto como

espaço para exercício do civismo popular. Para Medeiros (1998),

[...] o espaço que compreende a antiga rua Grande sempre foidinâmico e polivalente: local de moradia (e sempre foi "chique"morar na praça), de comércio, de lazer, ou de "demonstraçõescívicas" [sicJ.

Entretanto, retomando a imagem representativa da primeira missa

no Brasil, percebemos o que chamaríamos de imposição da ordem neste

local, quando os "invasores" e/ou coloniza+ores demarcam o território,

fazem a assepsia removendo os nativos e projetam seus símbolos no

mesmo espaço da "vitória".Para entendermos um pouco sobre a representação imagética

em prol do resgate da memória coletiva de sujeitos, nos pautamos na

teorização de Paiva (2002, p. 27), que considera:

-,'.

[...] nesse complexo processo de recepção, divulgação,apropriaçãoe resignação das imagens no tempo e no espaço é precisosublinhar, ainda, alguns aspectos fundamentais. O primeiro é,talvez, reiterar, de maneira CQCplícita,o fato de as representaçõesintegrarem a dimensão "qêJ,. real, do cotidiano, da história

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vivenciada. O imaginário não é, como se poderia pensar, ummundo' à parte da realidade histórica, uma espécie de nuvenscarregadas de imagens e de representações que pairam sobrenossas cabeças, mas que não fazem parte de nosso mundo e denossas vidas.

Nesse sentido, é possível compreender a praça pública nesse

período, especificamente a analisada como um espaço que constitui

sociabilidades e exclusões, começando pelos frequentadores desse

espaço. Na imagem retangular, retratando os anos 1940, observamos

que o espaço do parque é cercado por um muro de telas, o que nos

possibilita diversas interpretações, sendo uma delas a apropriação do

espaço público como espaço privado, ou eletivo de uma determinada

classe; noutro sentido, evidenciaríamos o cuidado com a proteção de seus

frequentadores, considerando as crianças se divertindo nos brinquedos e

a mulher recostada sobre a proteção de telas do lado externo ao parque.

Atentemo-nos mais a esse sujeito: sua vestimenta nos dá um sinal de

seu pertencimento social a partir do alinhamento do vestido, embora os

outros sujeitos dispostos nas grades também nos ofereçam indícios para

outras interpretações.

A praça pública, nesse estudo, acaba sendo vista como um micro

espaço visualizada por uma simbologia macro de representação, ou seja, o

sujeito, ali constituído, é o reflexo de uma influência externa e a transpõe

naquele lugar afim de disseminar um modo, o que nos dá a compreensão

distinta das observações sociológicas sobre a constituição das identidades,

quando afirmam a existência de múltiplas identidades. Porém, essas

múltiplas identidades vão sempre em busca de uma ressignificação

histórico-social para constituírem, mesmo subjetivamente, uma única

unidade, seja essa material, cultural, política ou religiosa entre outras.

A Praça Tancredo Neves, assim como a ágora grega, foi palco de

muitos eventos sociais e ocupada em diferentes épocas por diferentes

sujeitos e suas intencionalidades, ora utilizada como púlpito em prol

de reivindicações políticas e melhorias sociais, manif<?stações grevistas;

passeios domingueiros da elite social da cidade que também testemunhou

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o jootini assim como em grande parte da história das praças públicas

nacionais; também foi tomada como espaço de lazer e socialização

especificamente de uma parcela não popular, mas, pertencida ao quemuitos consideravam comunidade conquistense.

Neste período, entre 1940-1950, a realidade das cidades brasileiras

não aspirava outros modelos de espaço público. Assim, a praça pública

é vista por muitos como um território de convivência social, que, na

modernidade, delimitará outros espaços, tais como as galerias; os shoppingcenters; bares e clubes aquáticos ou campestres, ~onstruções sempre

privilegiando uma parcela da sociedade "pertencida" a comunidade,

seja por seus prestígios, influência ou participação política e econômicareconhecida na cidade.

Outrossim, é possível encontrar uma resposta da função desse

espaço, correlacionando seus principais pontos condutores: cultura e

política, o que nos levará a uma concepção de que a praça pública vista

como um espaço coletivo advém dos processos urbanos decorrentes da

civilização ocidental, em particular, do capitalismo, refletindo uma forma

de ocupação e apropriação do espaço inerente à sociedade capitalista,independente da geografia.

Desse modo, temos, aqui, dois vértices: os sujeitos, aqui, criam

seus modos a partir da estrutura que lhes é oferecida institucionalmente,

impossibilitando a criação e/ ou desenvolvimento daquilo que evidenciaria

suas aspirações. Outro ponto relevante está relacionado à desocupação

do espaço público por uma camada social e ocupação de uma outra

camada, até então alheia à suas funcionalidades. A partir do momento em

que Vitória da Conquista, por meio de seus representantes autorizados,

percebe a necessidade de modernização do espaço público, a cidade ganha

edificações verticalizadas, maiores investimentos para expansão da infra-

estrutura urbana e com isso passa a abrigar, em seu centro, trabalhadores

e técnicos especializados ou não de diversas regiões do país.

- A tradução do termo inglês footing, é caminhando, que em nosso contexto trata-se do passeiorotineiro nos finais de semana. Os moços, em sua maioria, sozinhos admiravam as moças sempreem companhia umas das outras ou de familiares. O que chamavam de paquera, já que O contatoentre os gêneros não era bem visto (pEREIRA, 2008, p. 102).

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A elite, que antes se apossava e considerava "chique" morar napraça, sente-se agora ameaçada pelos "invasores", que em justificativade seus baixos salários são obrigados a se amontoarem em pequenasacomodações no centro da cidade. Ao mesmo tempo em queacompanham o progresso da modernidade, a elite se aglomera em outrosespaços mais reservados e distintos, tais como os parques residenciaisou os edifíciosverticais, deixando a praça livre para utilização dos novosmoradores que,mais tarde, ocuparão o espaço público para manifestaçõesgrevistas, reivindicando melhores salários, melhores condições demoradia e direitos.

Essencialmente, o ócio deixade se manifestar publicamente, sendoacomodado nos apartamentos, clubes, cafés, academias, bares e xalés.O ocioso do mundo moderno é sujo, anda descalço e faz do banco dapraça o lugar para se beneficiar do transeunte apressado para chegar aotrabalho ou pagar a sua conta no banco.

3. Concluindo

Entender o espaço público de uma cidade em desenvolvimentoe sua reestruturação urbana, nos permite versejar sobre as inúmeraspossibilidadesde adaptações e/ ou readequações dos sujeitosconstituintesdesse espaço. Porém, aqui, não é possível enxergarmos o sujeitoresponsável pelas transformações de seus espaços públicos a partir deuma organização coesa e coletiva, mas sim, observamos uma estruturaque liga o privado ao público de forma contundente e insteristitucional.Espaço esse em que o governante e uma determinada classe estabeleceseus códigos, partindo de interesses parciais, revelando laços edisparidades em oposição àquiloque conhecemos, e se estabeleceu comodemocracia e devir. A praça pública, espaço destinado as socializações,étomada pelos sujeitos, todos eles, contudo, cada um ao seu tempo, emespaços e horários, externos ao "ser" público.

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4. Referências

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Recebidoem 09/0 1/2009Aprovado em 22/01/2009