AS TREVAS E OUTROS POEMAS LORD...

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Possíveis dialogismos trabalhados neste Projeto: 1. Ecos da recusa (Leitura 1) 2. O abade do crânio (Leitura 2) 3. Os monges negros (Leitura 3) LEITURA 1 ECOS DA RECUSA TEXTO 1 A INÊS Não te sorrias, não, para o meu carregado aspecto. Ai! já me não posso sorrir! Todavia, não permita o céu que ja- mais chores, e talvez que chores em vão. E tu inquires do oculto mal que me oprime e me corrói a alegria e a mocidade? E quererás em vão procurar conhecer uma dor que tu própria não poderias mitigar? Não é amor nem ódio, não são as honras perdidas de uma baixa ambição, que me fazem aborrecer o meu presen- te estado e fugir de tudo o que mais prezei: É esse tédio que ressalta de quantas cousas topo, ouço ou vejo: a beleza nenhum prazer me dá; os teus olhos mal têm encanto para mim. É essa tenaz e incessante tristeza do fabulado judeu er- rante, que nada veria além do túmulo, mas aquém dele não espera ter descanso. Que desterrado pode fugir de si próprio? Em quais- quer zonas que me ache, por mais remotas que sejam, per- PROJETO LEITURA E DIDATIZAÇÃO AS TREVAS E OUTROS POEMAS LORD BYRON Por Cid Vale Ferreira 1

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Possíveis dialogismos trabalhados neste Projeto:

1. Ecos da recusa (Leitura 1)

2. O abade do crânio (Leitura 2)

3. Os monges negros (Leitura 3)

LEITURA 1

ECOS DA RECUSA

TEXTO 1A INÊS

Não te sorrias, não, para o meu carregado aspecto. Ai! já me não posso sorrir! Todavia, não permita o céu que ja-mais chores, e talvez que chores em vão.

E tu inquires do oculto mal que me oprime e me corrói a alegria e a mocidade? E quererás em vão procurar conhecer uma dor que tu própria não poderias mitigar?

Não é amor nem ódio, não são as honras perdidas de uma baixa ambição, que me fazem aborrecer o meu presen-te estado e fugir de tudo o que mais prezei:

É esse tédio que ressalta de quantas cousas topo, ouço ou vejo: a beleza nenhum prazer me dá; os teus olhos mal têm encanto para mim.

É essa tenaz e incessante tristeza do fabulado judeu er-rante, que nada veria além do túmulo, mas aquém dele não espera ter descanso.

Que desterrado pode fugir de si próprio? Em quais-quer zonas que me ache, por mais remotas que sejam, per-

PROJETO LEITURA E DIDATIZAÇÃO

AS TREVAS E OUTROS POEMASLORD BYRON

Por Cid Vale Ferreira

1

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Forma de apresentação: A fragilidade conceitual da “oposi-ção” entre forma e conteúdo na literatura levou alguns críticos a propor a substituição desses termos por “forma de apresenta-ção” (no lugar de forma) e “forma interna” (no lugar de con-teúdo). Com isso, reforça-se a afirmação de que – ao menos em literatura – essas duas faces de uma mesma moeda não estabelecem oposição entre si.

segue-me sempre, sempre a maldição da vida – o demônio Pensamento.

Outros, contudo, parecem-me engolfados no prazer, sa-boreando quanto eu deixei. Oxalá que sonhem sempre com transportes e que nunca despertem, ao menos, como eu!

É-me destino perlustrar muitos climas com bastas re-cordações amaldiçoadas; e toda a minha consolação é saber que; suceda o que suceder, já conheci o pior.

O que seja esse pior não o perguntes – por piedade, foge de o indagar: continua a sorrir – e não te aventures a desvendar o coração do homem e o inferno que existe lá.

LORD BYRON. Peregrinação de Childe Harold. Tradução de Alberto Telles.

Lisboa: Ferreira, 1881. p. 56-57.

1. Os tradutores dos poemas mais extensos de Byron muitas vezes preferiram a prosa aos versos, tendência exemplifi-cada pela tradução de Childe Harold’s Pilgrimage (1812-1818) publicada em 1881 pelo açoreano Alberto Telles. Leia-a aten-tamente e, em seguida, compare-a à versão de Fagundes Va-rela (página 30). Ciente de que ambos buscaram transpor ao português a mesma canção, prossiga às questões:

a) Às nove estrofes de Fagundes Varela correspondem nove parágrafos de Alberto Telles. Aponte na versão poética duas estrofes cujo sentido você considere particularmente diferen-te do sentido de seus parágrafos correspondentes. Que seme-lhanças e diferenças você nota no “conteúdo” expresso pelos trechos escolhidos?

b) No século XIX, versões como a de Fagundes Varela não eram consideradas ou denominadas traduções, mas sim imitações, por apresentarem soluções poéticas que não se-guiam à risca as obras originais. A versão de Alberto Telles, por sua vez, é um ótimo exemplo daquilo que recebia a alcunha de tradução, reconstituindo fielmente os aspectos semânticos da canção original (neste caso, à custa de sua forma de apresentação). Pois bem, sabendo que os versos de “To Inez” (1812) compõem paralelismo métrico, e que suas estrofes seguem o mesmo esquema de rimas, seria

possível considerar a imitação do brasileiro mais fiel ao ori-ginal em qual(is) aspecto(s)?

TEXTO 2A INÊS

I

Não mais sorrias a esta fronte turva.Ai! – não posso pagar-te o teu sorriso;Praza no entanto ao céu vedar-te as lágrimas!Praza ao céu, que jamais debalde as vertas!II

Conhecer queres que desgraça ocultaJuventude e prazeres me envenena?Por que buscas saber que dor me punge,Se mesmo tu não podes mitigá-la?

III

Não me obriga o amor, nem mesmo o ódio,Nem da baixa ambição perdidas honrasA praguejar meu fado, abandonandoTudo o que eu mais prezava sobre a terra.

IV

É este horrível tédio que me inspiraTudo o que vejo e ouço. A formosuraCessou de me agradar; teus próprios olhosConservam para mim encanto apenas.

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V

É a sombria dor que acompanhavaO fabulado Hebreu no mundo errante:Temo os olhos lançar além da campa;E entanto nela só repouso aguardo.

VI

Que exilado evitar pode a si próprio?Inda mesmo nos mais remotos climas,Persegue-me o flagelo da existência,E o terrível Demônio – o Pensamento.

VII

Gozem outros arroubos de delícias,E em paz desfrutem tudo o que abandono!Oxalá que aos seus sonhos de venturaMais feliz despertar os céus lhe fadem!

VIII

Sou condenado a errar por mil países,C’o anátema horroroso das lembranças:Meu consolo ao sofrer desgraças novas,É que a maior de todas já feriu-me.

IX

Que desgraça esta é. – Ah! não me inquiras;Por piedade; sim, não me interrogues:Continua a sorrir; rasgar não busquesO véu de um coração que oculta o inferno.

LORD BYRON. A Ignez. Tradução de João Cardoso de Meneses e Sousa

Júnior. Ensaios Litterarios, São Paulo: Typographia do Governo. p. 18-19. 1848.

2. Nenhum outro poema de Byron foi tão traduzido no Brasil quanto “To Inez”, e o confronto de suas diferentes versões tem se mostrado no mínimo revelador. Segundo nossos le-vantamentos, a primeira tradução brasileira da canção foi publicada no ano de 1848. Confronte-a com a imitação de Fa-gundes Varela, “Childe Harold” (página 30), publicada mais de 15 anos depois, e atente ao estilo de ambas as versões. A seguir, responda:

a) Em qual versão é possível perceber uma maior carga de elementos que evocam a morte, os mortos ou o aparato sepul-cral? Justique sua resposta com elementos do próprio texto.

b) Que temas de “To Inez” podem ser identificados na tradu-ção de João Cardoso?

c) Os temas que você identificou se mantiveram intactos na imitação de Fagundes Varela?

TEXTO 3FOGE DE MIM

Foge de mim, qual foge o passarinhoDo tronco estéril sem raiz na terra, Sem sombra nem folhagem;Foge, – não queiras perscrutar desta alma A lúgubre voragem.

Não vás crestar nas chamas de meu peitoDo cálix teu a mádida frescura, Gentil, cândido lírio;Foge, – não queiras esgotar comigo A taça do martírio.

Sorris?… oh! quanto é belo o teu sorriso;Mas em minha alma derramar não podem

Estilo: Na criação literária, é a escolha de recursos expressivos da língua que refletem as intenções e a natureza de quem escreve.

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Nem sombra de ventura;São como os raios da manhã fulgindo Em feia sepultura.

Ah! tu choras; – e as lágrimas que vertes,Na aridez de meu peito vêm secar-se, Bem como almo rocio,Que o céu derrama em vão na ardente areia De páramo bravio.

Dizem que os dias meus correm serenos!…Não creias, não; – a paz que me rodeia É lúgubre ironia;É como essa que os túmulos povoa, Paz gélida e sombria.

Quem me dera chorar! – o pranto é sangueQue nos escorre das feridas d’alma, E o gérmen peçonhentoDelas lavando, um pouco a dor acalma, E adoça o sofrimento.

Não vertem sangue as úlceras desta alma,E nem ressoa fora de meu peito De minha dor o grito.Em suspiros não sai; – tenaz se agarra Ao coração aflito.

Eu bem quisera amar-te; – mas como hei deGuiar-te pelas sendas em que piso, Em que só vejo espinhos?…Como?!… se para mim estão fechados Do porvir os caminhos?… Fica-te pois em teu puro horizonte,Belo astro de amor, e não pretendas Perder tua luz pura,Nesta, que a triste vida me escurece, Medonha noite escura.

Hera mimosa e tenra, oh! não te abracesAo tronco estéril sem raiz na terra, Sem folhagem no céu;Melhor seria te envolvesse a fronte O mortuário véu.

GUIMARÃES, Bernardo Joaquim da Silva. Poesias de B. J. da Silva Guimarães.

Rio de Janeiro: B.-L. Garnier, 1865. p. 295-297.

3. Entre os principais motivos literários que nortearam a po-esia byroniana brasileira, o da recusa amorosa, de notável dis-seminação, pode ser exemplificado por obras como “Versos escritos sobre um álbum” (1849), do Barão de Paranapiacaba, “Foge de mim” (1865), de Bernardo Guimarães, “Amargura” (1873), de Aureliano Lessa, e “Descrença” (poema anônimo publicado pelo periódico carioca A Luz em 1872). Além do tema, os poemas supracitados compartilham o mesmo mo-delo estético e formal: a canção “To Inez” (da qual você pôde ler duas traduções e uma imitação em português). Reflita sobre essas afirmações e responda:

a) Que elementos do poema de Bernardo Guimarães podem confirmar ou refutar a afirmação do enunciado de que “Foge de mim” também se modela em “To Inez”?

b) Aponte as três passagens do poema brasileiro em que há intertextualidade com a canção inglesa. Os trechos selecio-nados citam Byron repercutindo ou subvertendo o sentido geral de seus versos?

Motivo: Tema que, recorrente em determinado autor ou tradição, serve como o desencadeador de uma ou mais ações. O motivo da mu-lher idealizada que esvaece, sumindo nas ondas ou evaporando, por exemplo, pode servir de ponto de partida para o tratamento da deca-dência de determinado modelo de feminilidade.

Intertextualidade: Aspecto da transtextualidade que consiste na pre-sença de aspectos de um texto em outro por meio de citações, alusões, plágios etc.

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c) Em “Foge de mim”, Bernardo Guimarães lança mão de vá-rias imagens poéticas. Algumas delas são elaboradas como símiles, figuras de pensamento que se diferenciam das me-táforas por relacionarem seres de natureza diversa por meio de conectivos comparativos (“um sentimento é como uma paisagem”, “um ser vivo é como um fenômeno natural” etc.). Identifique os quatro símiles presentes no poema e respon-da: como eles caracterizam o enunciador?

LEITURA 2

O ABADE DO CRÂNIO

TEXTO 4

Foi encontrado pelo jardineiro, durante uma escavação, um crânio que provavelmente pertenceu a algum venturoso frei ou monge da Abadia nos tempos em que ela foi “desmonasterizada”.

(…)Ao observar-lhe o tamanho gigante e o perfeito estado de

preservação, vi-me tomado pelo estranho capricho de adaptá-lo e montá-lo como uma taça. Conseqüentemente, enviei-o à cidade, e ele retornou perfeitamente polido, em cores matizadas como as dos cascos de tartaruga (o Coronel Wildman é seu dono ago-ra). Lembro-me de ter escrito alguns versos a respeito, mas isso não foi tudo: posteriormente, estabeleci na Abadia uma nova ordem. Seus membros somavam doze, e eu me autodeclarei grão-mestre, ou Abade do Crânio, um imponente título herál-dico. Um conjunto de hábitos negros, o meu diferenciado dos demais, foi encomendado, e de tempos em tempos, quando um dia particularmente revolto era esperado, um capítulo era con-vocado; o crânio era então preenchido com vinho tinto e, numa imitação dos antigos godos, circulado pelos deuses do Consistó-rio, enquanto várias piadas sinistras eram feitas a sua custa.

Tradução do organizador.

MEDWIN, Thomas. Conversations of Lord Byron: noted during

a residence with his lordship at Pisa, in the years 1821 and 1822.

London: Henry Colburn. 1824. p. 70-71.

1. Poucos trechos da longa seqüência de entrevistas entre Byron e Medwin foram tão reproduzidos quanto o que acabamos de destacar. Ao confirmar rumores a respeito de seu crânio-taça, a declaração do poeta serviu de base não apenas a ensaios críticos e biográficos, mas também a uma longa lista de textos aciden-tais que ajudaram a exportá-lo como um semideus do imaginá-rio frenético. A surpreendente acolhida desse trecho fez com que ele se tornasse a maior referência sobre a vida estudantil de Byron, com desdobramentos literários fundamentais ao de-senvolvimento da ficção byroniana brasileira. Voltemos a ele, portanto, como ponto de partida de outras reflexões:

a) O local de residência de Byron (uma abadia medieval), a suposição de que o crânio desenterrado tenha pertencido a um frei ou monge, o estabelecimento de uma “nova ordem” monástica e o abuso de jargão eclesiástico católico (“capítu-lo”, “consistório” etc.), entre outros elementos, impregnam o relato de elementos próprios à esfera religiosa. De que ma-neira o Catolicismo é tratado no texto?

b) Ao qualificar Abade do Crânio como “um imponente títu-lo heráldico” e descrever seus companheiros de orgia como “deuses do Consistório”, Byron emprega uma linguagem hi-perbólica (propositalmente exagerada) ou irônica (contrária ao que realmente deseja expressar)? Justifique sua resposta com elementos do contexto do qual as expressões constam.

c) O poema de Byron traduzido por Castro Alves como “A uma taça feita de um crânio humano” (página 26) foi fielmente ver-tido ao português por Péricles Eugênio da Silva Ramos. O título de sua versão publicada em 1989, “Versos inscritos numa taça feita de um crânio”, reforça o tom de profanação observável no original ao sugerir que as convidativas estrofes lidas na caixa óssea teriam sido gravadas por um terceiro. Ciente dessa sutile-za do título original, relacione o poema ao relato de Byron para tecer argumentos a favor de apenas uma das seguintes propo-sições: 1) “os versos que lemos são manifestações debochadas do espírito da caveira, que procura atenuar seu presente esta-do e encorajar seu portador a beber nela”; 2) “os versos que lemos são o toque final de abuso por parte daquele que, além

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de não devolver o crânio ao túmulo, transformou-o em taça por capricho e, por meio das inscrições, fez dele uma espécie de fantoche a ironizar a própria profanação”.

TEXTO 5UMA ORGIA DE LORD BYRON EM VENEZA

“Tratávamos, amigos, da imortalidade da alma. É uma verdade de sentimento? É uma verdade de razão? É mister entendermo-nos; e, para isso, bebamos!

– É uma verdade de sentimento.– Peters! destapa o champanhe, e dize-nos se sentes a

tua alma em algum lugar.– Com o respeito que vos devo, Senhor, certo que não.– Bem! chamem o meu cocheiro, o meu moço da es-

trebaria, os meus criados todos, e perguntem-lhes se têm o sentimento da sua alma.

– É inútil, Byron. Será, se o quiserdes, uma verdade de razão.

– De razão? – Por São Jorge! estou louco, eu, que não creio nela! – Ouvi, amigos, é uma disputa frívola. Acredi-tamos em uma alma, como acreditamos na Providência quando não temos nem um real. Possuindo mil guinéus, sou ateu, bebo; tendo apenas quinhentos, sou pirrônico, discuto e duvido; quando tenho cem, sou deísta, creio; enfim quan-do nada tenho, sou religioso, oro e – amo. Porque é preciso ter uma alma profundamente religiosa para amar. No amor – tudo é religião. O gérmen é o mesmo. Amai uma espa-nhola e ouvi uma missa de finados; vede seus olhos negros a vos seguirem por entre as pilastras de uma catedral e con-templai os pálidos brandões esmorecidos pelo incenso – que banham com sua luz mortiça a imagem da Virgem; tomai da mão acetinada da castelhana ou mergulhai vossos dedos na pia de pórfido; casai-a ao vosso peito – a ela com suas lágrimas, seus gritos e sua mantilha enrugada ou embebei-vos no êxtase ao levantar o sacerdote a Hóstia no momento da consagração; e depois – perguntai ao coração a diferença que sente nessas duas emoções. Amigos – nenhuma. Assim, pois, orar é amar; beber, – ainda é amar. O amor e a religião existem em toda parte. A propósito disso convido-vos a todos

se me quereis bem, para beber por esta taça.Homero vos diria: “Agathos a possuía de Osmindas;

Osmindas a ganhara a Triptolemo nos jogos do Disco; Trip-tolemo a recebera de Júpiter”. Mas eu digo-vos: “Está cheia de vinho das Canárias”. Bebei!

– É extraordinário, Byron. Que louca idéia a de fazer en-gastar em ouro esta taça de marfim, assentá-la sobre um pé a semelhar um esqueleto cujos olhos ocos de nós escarnecem, cuja boca parece beber conosco! Byron, sois egípcio e quereis que vossos amigos alegres vos paguem a quota da tristeza?… Vamos, ei-lo no delírio da melancolia. Peters, leva esta taça!…

– Deixai-a… Vou contar-vos. Era uma mulher que en-contrei em uma casa de jogo; sua sociedade era de dissolutos, banqueiros, membros do parlamento, filhos de lords, duques e condes. Em sua casa, Sardanapalo corara; mas ali, viva São Jorge, estávamos mais à vontade do que em um palácio, Senhores; nos entregávamos sem reserva ao vinho, à licen-ça, ao prazer; eram mulheres que nos embriagavam, a nós aristocratas, com todo o descaro. Se tivésseis visto a minha; tomava rapé como Southey, o poeta, e cigarrava como um andaluz. Pobre mulher! amei-a…

“Oh! peregrinei o mundo, bem o sabeis, Senhores; res-pirei o perfume das rosas de Madri, das pálidas anêmonas de Portugal, dos lírios da França. Falemos sem figuras; – amei as mulheres belas de todas as nações; conheci algumas que para me verem, a mim, Byron, saltaram de noite os muros do convento; outras que por paixão se afogaram no mar; ou-tras que se finaram sem revelar o segredo de suas dores. Ri-me delas como um louco: porque após uma – outra: o Sol faz o mesmo: elas e as flores: num dia as cora, as desabotoa; no dia seguinte as mirra.

“Porém ela, com seu vício e suas cartas e seus dedos carregados de diamantes e sua conversação cínica e sua ebriedade e seu brutal marido, ei-la sempre diante de mim. Dir-vos-ei por que a amei tanto.

“Porque tinha um marido que envenenou por amor de mim: um homem belo, timbaleiro do Royal Cumberland.

“Seu crime a conduziu ao cadafalso. Sou a causa da sua morte, bem o vedes; ah! deixai-me prantear a mulher do timbaleiro!”

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– Mas por quê, Byron, a propósito da história da taça vêm as recordações de uma libertina que hoje é apenas um pouco de pó?

– Um pouco de pó? Em presença da morte, ao lem-brar-me de tamanha perda, nada de materialismo, Senhores. Creio na imortalidade da alma, na ressurreição da carne, na remissão dos pecados, na vida eterna.

– Amém! Byron, mas não choreis com tanta paixão um dia de embriaguez.

– Que eu não chore?! Pois não sabeis que na noite da sua execução, procurei por ela, cortei-lhe a cabeça e mandei ferver essa cabeça? Não a comi, acreditai-o! Tirei-lhe os cabe-los e a carne, e quando a mão do artista a poliu, um joalheiro de Milão ma afeiçoou em taça!

– Grande Deus! Byron, fizeste-nos beber no crânio da vossa querida!

E Byron caiu, completamente ébrio, debaixo da mesa.

GOZLAN, Léon. Uma orgia de Lord Byron em Veneza. Trad. A. Ensaios

Litterarios, São Paulo: Typographia do Governo. p. 19-21. 1848.

2. Traduzido e publicado no Brasil sete anos após sua pu-blicação, o conto do francês Léon Gozlan figurou entre os principais alicerces da nossa produção byroniana. Suas características – a estrutura dramática (na qual o diálogo predomina sobre a narração e a descrição), a ambientação simposíaca (focada nas conversas de orgias e festins), a tematização de discussões filosóficas enviesadas pela em-briaguez e o rememorar de histórias fatais protagonizadas pelo próprio simposiarca – serviram de modelo a trechos de obras de vulto como “Folhas de minha carteira – fatali-dade” (1850), de Andrada e Silva, e Noite na taverna (1855), de Álvares de Azevedo. Tenha em mente tais elementos ao prosseguir às questões.

a) Contraste o relato do Byron real às lembranças do Byron fictício e responda: qual dos dois textos trata a aquisição do crânio de maneira “trágica”? Justifique sua resposta.

b) Leia o seguinte trecho sobre a fase estudantil de Byron: “Formava uma espécie de associação monástica com os seus amigos e bebiam num crânio montado e cinzelado em pra-ta; o que originou a infundada crença vulgar de que bebiam pelo crânio de uma fantástica amante que imaginavam mor-ta violentamente”1. Confronte mentalmente o poema “A uma taça feita de um crânio humano” (página 25), o relato sobre a “nova ordem” colhido por Thomas Medwin e esse fragmen-to biográfico por Emilio Castelar. De acordo com esses tex-tos, seria mais adequado descrever o conto de Gozlan como um tratamento literário de “elementos contidos no poema de Byron”, de “um de seus mais notórios episódios biográficos” ou de “uma das várias lendas circuladas a seu respeito”?

TEXTO 6BERTRAM (EXCERTO)

(…)– Por que empalideces, Solfieri? a vida é assim. Tu o

sabes como eu o sei. O que é o homem? é a escuma que ferve hoje na torrente e amanhã desmaia: alguma coisa de louco e movediço como a vaga, de fatal como o sepulcro! O que é a existência? Na mocidade é o caleidoscópio das ilusões: vive-se então da seiva do futuro. Depois envelhece-mos: quando chegamos aos trinta anos e o suor das agonias nos grisalhou os cabelos antes do tempo, e murcharam como nossas faces as nossas esperanças, oscilamos entre o passado visionário, e este amanhã do velho, gelado e ermo – despido como um cadáver que se banha antes de dar à sepultura! Miséria! loucura!

– Muito bem! miséria e loucura! interrompeu uma voz.O homem que falara era um velho. A fronte se lhe des-

calvara, e longas e fundas rugas a sulcavam – eram ondas que o vento da velhice lhe cavava no mar da vida… Sob espes-sas sobrancelhas grisalhas lampejavam-lhe os olhos pardos e um espesso bigode lhe cobria parte dos lábios. Trazia um gibão negro e roto, e um manto desbotado, da mesma cor lhe caía dos ombros.� CASTELAR, Emilio. A vida de Lord Byron. Tradução de M. Fernandez Reis. Porto: Typo-graphia do Jornal do Porto, 1876. p. 41.

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– Quem és, velho? perguntou o narrador.– Passava lá fora: a chuva caía a cântaros: a tempestade era

medonha: entrei. Boa noite, senhores! se houver mais uma taça na vossa mesa, enchei-a até às bordas e beberei convosco.

– Quem és?– Quem eu sou? na verdade fora difícil dizê-lo: corri

muito mundo, a cada instante mudando de nome e de vida. – Fui poeta – e como poeta cantei. Fui soldado e banhei minha fronte juvenil nos últimos raios de sol da águia de Waterloo. – Apertei ao fogo da batalha a mão do homem do século. Bebi numa taverna com Bocage – o Português, ajoelhei-me na Itália sobre o túmulo de Dante – e fui à Gré-cia para sonhar como Byron naquele túmulo das glórias do passado. – Quem eu sou? Fui um poeta aos vinte anos, um libertino aos trinta – sou um vagabundo sem pátria e sem crenças aos quarenta. Sentei-me à sombra de todos os sóis – beijei lábios de mulheres de todos os países – e de todo esse peregrinar só trouxe duas lembranças – um amor de mulher que morreu nos meus braços na primeira noite de embriaguez e de febre – e uma agonia de poeta… Dela, tenho uma rosa murcha e a fita que prendia seus cabelos. – Dele – olhai…

O velho tirou do bolso um embrulho: era um lenço ver-melho o invólucro: desataram-no: dentro estava uma caveira.

– Uma caveira! gritaram em torno: és um profanador de sepulturas?

– Olha, moço, se entendes a ciência de Gall e Spurzheim, dize-me pela protuberância dessa fronte, e pelas bossas dessa cabeça quem podia ser esse homem?

– Talvez um poeta – talvez um louco.– Muito bem! adivinhaste. Só erraste não dizendo que

talvez ambas as coisas a um tempo. Sêneca o disse – a poe-sia é a insânia. Talvez o gênio seja uma alucinação, e o en-tusiasmo precise da embriaguez para escrever o hino san-guinário e fervoroso de Rouget de l’Isle, ou para, na criação do painel medonho do Cristo morto de Holbein, estudar a corrupção no cadáver. Na vida misteriosa de Dante, nas orgias de Marlowe, no peregrinar de Byron havia uma som-bra da doença de Hamlet: quem sabe?

– Mas a que vem tudo isso?

– Não bradastes – miséria e loucura! – vós, almas onde talvez borbulhava o sopro de Deus, cérebros que a luz divina do gênio esclarecia, e que o vinho enchia de vapores e a sa-ciedade de escárnios? Enchei as taças ate à borda! enchei-as e bebei; bebei à lembrança do cérebro que ardeu nesse crânio, da alma que aí habitou, do poeta-louco – Werner! e eu brada-rei ainda uma vez: – miséria e loucura!

(…)

AZEVEDO, Alvares de. Noite na taverna. In: PIRES, Homero (org.). Obras

completas de Alvares de Azevedo. São Paulo/Rio de Janeiro/Recife/Porto Alegre:

Companhia Editora Nacional. 1942. v. 2. p. 112-115.

3. Publicação póstuma de Álvares de Azevedo, Noite na taver-na (1855) é uma das obras mais lidas do Romantismo brasi-leiro. Conhecê-la bem é familiarizar-se com alguns dos prin-cipais motivos de nossa produção byroniana, e entender seu diálogo com a tradição literária européia é o primeiro passo para a compreensão do papel exercido pela transtextualidade em nosso byronismo. Leia atentamente o trecho selecionado e estabeleça mentalmente alguns paralelos entre o excerto de Álvares de Azevedo e o conto de Léon Gozlan. Em segui-da, prossiga às questões a seguir.

a) Assim como no conto francês, em determinado momento os convivas reunidos no texto brasileiro voltam suas aten-ções a um crânio humano. Em relação ao uso que se faz delas, o que diferencia as duas caveiras dessas obras? E em relação ao relato de Byron? O sentimento que leva os porta-dores fictícios de ambas as “relíquias” a mantê-las é o mes-mo demonstrado pelo poeta inglês?

b) Atente às seguintes passagens: “um poeta aos vinte anos, um libertino aos trinta – sou um vagabundo sem pátria e sem crenças aos quarenta”, “beijei lábios de mulheres de todos os países” e “um amor de mulher que morreu nos meus braços”. Relacione esses trechos ao conto de Gozlan e responda: já que Álvares de Azevedo figurava entre os co-laboradores do periódico Ensaios Litterarios, no qual a tradu-ção desse conto foi publicada, é bastante provável que ele

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a tenha lido; assim, caso as passagens assinaladas tenham sido cunhadas visando à intertextualidade, quais seriam as prováveis passagens da obra francesa que nosso poeta teria implicado em seu texto?

c) Assuma que o “velho” do trecho lido tenha sido efetivamen-te calcado em Byron. Em sua opinião, com “qual Byron” esse homem compartilha mais traços comuns: o poeta de “carne e osso” ou a personagem de Gozlan? Justifique sua resposta.

LEITURA 3

OS MONGES NEGROS

TEXTO 7

É algo de curioso e místico o fato de, no período ao qual aludo – e pouquíssimo tempo, apenas um mês, antes de ele pedir com êxito a mão da senhorita Milbanke –, estando em Newstead, ele cogitar ter visto o fantasma do monge que su-postamente assombra a abadia e faz sua aparição ominosa quando desventura ou morte iminente ameaçam o mestre da mansão. – A história da aparição no décimo sexto canto de Don Juan deriva dessa lenda familiar, e a Abadia Normanda, no décimo terceiro canto do mesmo poema, é uma descrição rica e elaborada de Newstead.

Tradução do organizador. GALT, John. The Life of Lord Byron.

New York: J & J. Harper, 1830. p. 185.

1. Em 1830, o poeta inglês Thomas Moore, amigo íntimo de Byron durante boa parte de sua vida, publicou o indispensável Letters and journals of Lord Byron. Exaustivamente citadas pelas biografias do poeta, as notas de rodapé do livro freqüentemen-te ressurgiam transplantadas em outros textos. Uma delas, a que relata o encontro de Byron com o lendário “monge ne-gro” da abadia de Newstead, por exemplo, serviu de base para um trecho da biografia The life of Lord Byron (1830), de John Galt, que a expandiu relacionando-a ao casamento de Byron e

a passagens de Don Juan. Baseado na leitura desse trecho e da canção “O monge negro” (página 59), responda:

a) Segundo Galt, o “fantasma do monge” faz sua “aparição ominosa [ou seja, de mau agouro] quando desventura ou morte iminente ameaçam o mestre da mansão”. Além des-sas duas circunstâncias (desventura e morte), quais são as duas outras ocasiões em que, de acordo com o poema, é co-mum que o espectro se manifeste?

b) Em outra curiosa passagem da biografia publicada por Galt, o autor conjectura que o crânio encontrado pelo jardi-neiro de Byron “deve ter sido o do monge que assombrava a casa, ou de um de seus ancestrais, ou de alguma vítima da sisuda raça”. É possível apontar, em “O monge negro”, pas-sagens que confirmem essa suposta relação entre o espectro e o crânio-taça de Byron?

TEXTO 8O MONGE DO HORROR; OU, O CONCLAVE DE CADÁVERES

Há cerca de trezentos anos, nos dias de glória do convento de Kreutzberg, um dos monges ali confinados, desejoso de ave-riguar algo acerca da posteridade daqueles cujos corpos jazem incorruptos no cemitério, visitou-o desacompanhado na calada da noite a fim de esclarecer suas dúvidas a respeito daquele te-meroso assunto. Tão logo abriu o alçapão da câmara, uma luz irrompeu de baixo; supondo, porém, tratar-se da lamparina do sacristão, o monge recuou e aguardou sua passagem escondido atrás do elevado altar. O sacristão, porém, não saiu pela aber-tura e, cansado de esperar, o monge aproximou-se e finalmen-te desceu os degraus tortuosos rumo à lúgubre profundeza. Assim que seus pés palmilharam o último lance de escadas, o cenário bem conhecido por ele havia sofrido uma completa transformação ante seus olhos. Há tempos ele se acostumara a visitar a câmara, e, cada vez que o sacristão para lá se dirigia, era quase certo que ele o acompanhasse. Dessa forma, conhecia cada uma de suas partes tão bem como o interior de sua estreita cela; além disso, a disposição de seu conteúdo era perfeitamen-

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te familiar ao seu olhar. Destarte, qual não foi seu horror ao perceber que esse arranjo, que até aquela manhã pareceu-lhe normal, apresentava-se inteiramente alterado, tendo sido subs-tituído por uma nova e insólita arrumação?

Permeou o breu da desolada câmara uma luz crepitan-te e débil, quase incapaz de vislumbrar-lhe aquele panorama da mais singular descrição.

Por todos os lados, os corpos mumificados dos confrades inumados há tempos estavam sentados em seus caixões des-tampados; seus gélidos e faiscantes olhos encaravam-no com mortuosa rigidez, seus definhados dedos cobriam-lhes os pei-tos, seus membros enrijecidos permaneciam silenciosamente estáticos. Era uma visão de petrificar os mais intrépidos cora-ções, e o monge horripilou-se ante ela, apesar de ser um filó-sofo e, além disso, cético. Na porção mais elevada ao fim da câmara, numa mesa rústica formada por um esquife deteriora-do, ou algo que servira ao mesmo propósito, sentaram-se três monges. Eram os cadáveres mais antigos do ossário, pois o ir-mão inquisitivo conhecia bem seus rostos; e o matiz cadavérico de suas faces parecia ainda mais cadavérico na penumbra sobre elas projetada, enquanto as ocas órbitas de seus olhos exalavam algo como centelhas fumegantes. Um grande livro jazia aberto ante um deles, e os outros se debruçaram sobre a mesa apo-drecida contorcendo-se como se padecessem de intensa dor, ou com profunda e absorta atenção. Palavra alguma foi dita; som algum foi ouvido; a câmara estava quieta como um túmulo; seus funestos inquilinos, estáticos como estátuas.

O curioso monge daria tudo para retirar-se deste lugar horrível, daria tudo para descobrir o caminho de volta e procu-rar novamente sua cela, daria tudo para fechar seus olhos ante a cena aterradora; mas ele não conseguia afastar-se daquele local, sentia-se enraizado ali. Apesar de antes ter conseguido volver seu olhar à entrada da câmara, para sua infinita surpresa e desolação ele não era mais capaz de apontá-la, nem de perceber quaisquer meios de escapar. Assim permaneceu por alguns instantes até que, finalmente, o velho monge à mesa acenou para que se apro-ximasse. Com passos lentos e hesitantes ele avançou ao grupo, parando a seguir diante da mesa, enquanto os demais monges levantaram suas cabeças e o encararam fixamente com olhares vítreos que congelaram seu sangue nas veias. Ele não sabia o que

fazer; suas faculdades rapidamente o abandonavam; o Céu pa-recia tê-lo deserdado por sua incredulidade. Nesse momento de dúvida e temor, lembrou-se de orar e, à medida que prosseguia, sentiu-se possuído por uma confiança que até então desconhecia. Ele olhou o livro à sua frente. Era um grande tomo, de encader-nação preta reforçada por tiras de ouro, com um fecho do mes-mo metal. No cabeçalho de cada página lia-se Liber Obedientiae�.

Nada mais pôde ler. Então olhou, primeiro nos olhos daquele ante quem o livro se abria, depois nos de seus pares. Finalmente, viu ao redor da cripta os cadáveres que ocupa-vam cada esquife visível nesse negro e vasto útero. A fala se lhe apresentou, assim como a iniciativa de usá-la. Dirigiu-se aos seres hediondos em cuja presença se encontrava, com termos próprios de alguém com autoridade sobre eles.

– Pax vobis� – destarte se pronunciou.– Hic nulla pax� – respondeu-lhe um velho monge num

timbre trêmulo e solene, enquanto descobria seu peito.Ele apontou o próprio tórax enquanto falava – e o mon-

ge, deitando ali o seu olhar, entreviu sob suas costelas um coração cercado por chamas que dele pareciam alimentar-se sem, porém, consumi-lo. Virou-se num transporte de hor-ror, mas não encerrou sua interpelação.

– Pax vobis in nomine Domini� – ele tornou a dizer.– Hic non pax� – os tons abismais e pungentes do vetusto

monge sentado à direita na mesa ressoaram como resposta.Após essas palavras, o ente a quem elas se endereça-

vam levantou sua cabeça, aproximou sua mão e, fechando o livro com forte estampido, disse:

– Fala. Cabe a ti perguntar e a mim responder.O monge sentiu-se assegurado e, com isso, sua cora-

gem reergueu-se.– Quem sois vós? – ele interpela; – quem podeis ser?– Não sabemos! – foi a resposta, – lástima! Não sabemos!– Não sabemos, não sabemos! – ecoaram em tons me-

rencórios os habitantes da câmara.

� “Livro da Obediência.”� “Que a paz esteja convosco.”� “Não há paz alguma aqui.”� “Que a paz esteja convosco, em nome do Senhor.”� “Não há paz aqui.”

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– O que fazeis aqui? – prosseguiu o inquiridor.– Aguardamos o derradeiro dia, o dia do Juízo Final!

Quão desafortunados! Ai de nós!– Ai de nós! – reverberaram todos os lados.O monge estava consternado, mas mesmo assim

prosseguiu.– Que fizestes para merecer tal fadário? Qual crime

vosso seria merecedor de tal pesar e angústia?Ao levantar a questão, o solo sob ele tremeu, e uma tur-

ba de esqueletos empilhou-se de um sem-número de covas repentinamente escancaradas aos seus pés.

– Aí estão nossas vítimas – respondeu o velho monge. – Elas sofreram em nossas mãos. Sofremos agora, enquanto estão em paz; e continuaremos a sofrer.

– Por quanto tempo? – perguntou o monge.– Para todo o sempre! – foi a resposta.– Para todo o sempre, para todo o sempre! – o som dis-

sipou-se ao longo da câmara.– Que Deus tenha piedade de nós! – foi tudo o que o

monge pôde exclamar. Os esqueletos sumiram, os túmulos lacrando-se sobre eles. Os anciãos desapareceram de sua vis-ta, os cadáveres tombaram de volta aos seus esquifes, o lume extinguiu-se e o covil de morte foi mais uma vez recoberto por seu negrume usual.

Em seu despertar, o monge se viu estendido ao pé do al-tar. A aurora plúmbea de uma manhã primaveril se fez visível e ele ansiava por retirar-se tão secretamente quanto lhe fosse possível, temeroso da possibilidade de ali flagrarem-no.

Daí em diante, diz a lenda, ele evitou a vã filosofia e – devotando seu tempo à busca do verdadeiro conhecimen-to e à extensão do poder, da grandeza e da glória da Igreja – morreu no odor da santidade e foi enterrado naquela cripta sagrada, onde seu corpo ainda pode ser visto.

Tradução do organizador.

THE monk of horror. In: HAINING, Peter (ed.). Great british tales of terror.

Harmondsworth: Penguin, 1974. p. 133-137.

2. Publicado originalmente na coletânea Tales of the Crypt (1798), o conto anônimo “The monk of horror, or The con-

clave of corpses” teve sua sobrevida garantida por antologias que, ao traçar a história da literatura terrífica, o utilizaram como exemplo dos títulos baratos que diluíram os lugares-comuns do romance gótico inglês entre a população de baixa renda. Seu clímax alude ao final de Vathek (1786), de William Beckford, no qual é revelada a punição do arquidemônio Eblis àqueles que alimentam paixões irrefreáveis: a “perda da esperança”, acompanhada de chamas inextinguíveis que lhes devorarão o coração. Ao lê-lo, tenha em mente o poema “O monge negro” e, após sua leitura, prossiga às questões:

a) No aparato fantasmagórico da literatura gótica, freiras, padres e monges mortos-vivos geralmente desempenham papéis secundários, e romances como O monge (1796), Manuscrito encontrado em Saragoça (1805) e Melmoth, o viandante (1820) o comprovam. Porém, nos contos góticos publicados nos panfletos baratos conhecidos como gothic bluebooks, a brevidade das narrativas não permitia a exis-tência de algo como um “enredo secundário”, o que fazia com que o episódio sobrenatural apresentado se tornasse o cerne do texto, implicando assim todos os traços de sua carga ideológica. Observe a caracterização dos monges mu-mificados, compare-a com a do “monge negro” e respon-da… Em qual caso a “morte em vida” é um meio de o(s) monge(s) se vingar(em)? Em qual caso ela é um castigo para ele(s)?

b) O conto exala um acentuado anticatolicismo, algo mui-to comum na literatura da Inglaterra, um país anglicano. Aliás, o fato de essa história publicada no século XVIII ter sido ambientada na Alemanha de “trezentos anos atrás” (ou seja, antes da Reforma de Martinho Lutero), deixa claro

Romance gótico: Escola do romance inglês iniciada pela publicação do influente O Castelo de Otranto (18��), de Horace Walpole. Seus enredos, geralmente am-bientados na Idade Média, eram pontuados pelas atrocidades de vilões marcan-tes que ameaçavam uniões amorosas. Entre seus principais recursos, destaca-se o uso ora requintado, ora sensacionalista de referências do imaginário sobrena-tural, geralmente pinçadas de antigas lendas e superstições. A estética gótica na literatura predominou na ficção e no drama ingleses até a década de 18�0, mas inúmeras obras românticas e vitorianas também beberam de seu legado.

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que o convento de Kreutzberg abriga uma ordem católica. Da mesma maneira, o “monge negro” de Byron também já assombrava sua abadia antes da dissolução da Igreja Católica na Inglaterra: há até mesmo uma passagem que evoca as ordens do rei Henrique VIII, o criador do Angli-canismo, no sentido de que inúmeras construções católi-cas fossem desapropriadas e vendidas aos nobres. Ciente desses dados, responda: em sua opinião, é possível que – nos dois textos – essa caracterização terrível do passado católico coexista com elementos de valorização do Cristia-nismo? Justifique sua resposta com passagens das obras.

TEXTO 9A GUARIDA DE PEDRA (EXCERTO)

(…)O soldado levantou-se um pouco sobre o cotovelo, pas-

sou a mão pela testa, e falou desta maneira:– Eu estava encostado à guarida com minha espin-

garda ao lado, e assobiava para distrair-me do medo que se tinha apoderado de mim. Sem uma estrela acordada, o céu era negro como uma furna, o vento corria desespera-do, e o mar empolado batia com tal fúria sobre as pedras que até fazia a escuma entrar pelas janelinhas da guarida. De repente, o relógio principiou a tocar; contei até onze pancadas, quando chegou a doze, ouvi uma gargalhada tão estridente, tão medonha, que os cabelos se me arrepiaram na cabeça, e a espingarda caiu de minhas mãos trêmulas; a gargalhada tinha soado perto, bem perto, a quatro passos de mim!… Nossa Senhora, agora mesmo parece-me que ainda a tenho nos ouvidos!…

André interrompeu-se, os camaradas benzeram-se, e o comandante disse com interesse:

– Continua, meu rapaz, continua.O rapaz prosseguiu nestes termos:– Inda bem a gargalhada não tinha acabado de soar,

quando eu escutei o som lúgubre e funerário de uma sine-ta, era toque lento e compassado como o que anuncia um enterro. O suor corria-me em bagas pela testa, meus dentes rangiam com força e minhas pernas tremiam como varas

verdes. Voltei o rosto para o lado… Oh! meu Deus! era hor-rível o que eu!…

– Então calaste?… gritou o comandante já um pouco impressionado.

– Eu vi, continuou André lentamente, eu vi uma figu-ra sombria e medonha! era um frade; o capuz cobria-lhe a cabeça, e lá dentro, à luz amarelenta de um círio que trazia na mão, divisei um rosto lívido e esverdeado como o de um cadáver, e dois olhos que ardentes inflamados me faziam correr calefrios nas veias. Atrás dele vinham quatro vultos todos mais alvos do que a neve, e seguravam com uma mão um chicote fumarento, enquanto a outra sustinha um caixão mortuário. Eles caminhavam lentos que parecia gastar uma hora para mover um pé; e canta-vam com voz trêmula e cavernosa a encomendação dos defuntos. Um vento gelado e furioso corria por todos os lados, as aves da morte piavam desoladamente, as ondas exalavam soluços frenéticos, batendo-se umas contra as outras. Entretanto a diabólica procissão caminhava sem-pre. O frade que ia na frente estava já perto, e estendia seu braço de esqueleto para me agarrar.

– Valha-me, Nossa Senhora! gritei eu, então tudo sumiu-se, frade, espectros, caixão mortuário, e eu caí sem sentidos no chão!

(…)

VARELA, Fagundes. Crenças populares: A guarida de pedra. In:

CAVALHEIRO, Edgard. Fagundes Varela. São Paulo: Martins, 1953. p. 295-296.

3. Os exemplares do jornal Correio Paulistano nos quais Fagundes Varela publicou vários de seus contos são hoje quase impossíveis de localizar. Dessas narrativas, apenas algumas foram reeditadas em biografias e coletâneas, sendo que várias delas ainda não estamparam páginas de livros. Nesse contexto, “A guarida de pedra” (1861) é uma das exceções, estando hoje acessível graças ao trabalho de Edgard Cavalheiro. Transcrevê-lo aqui seria, por razões de espaço, inviável, mas o breve trecho que selecionamos já vai ao encontro dos nossos objetivos. Tome-o, portanto, como base para as seguintes questões:

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a) Levando em conta a forma como André evita as apari-ções, responda: em sua opinião, a personagem do monge esquelético implica alguma forma de crítica aos crimes passados da Igreja Católica ou, segundo o uso que Fagun-des Varela faz dele, trata-se simplesmente de uma reto-mada não-ideológica de um ícone tradicional da literatura de horror?

b) Ciente de que o poema “O monge negro” é cantado por Lady Adeline como forma de precaver Don Juan, e de que a evocação a Nossa Senhora foi colocada na boca do soldado André, responda: tais trechos podem ser considerados pro-vas definitivas da orientação religiosa de seus autores?

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