Asas Quebradas
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Transcript of Asas Quebradas
Voltava Jaqueline à sua rotina normal. A viagem foi boa. É claro, poderia ter
sido maravilhosa. Mas foi apenas boa. Havia esse engasgamento das coisas que não
acontecem quando muitas coisas podem acontecer. Uma espécie de tristeza, que
apenas se faz presente em momentos de escolha entre uma e outra felicidade. Sempre
se perde alguma coisa, por mais que não se saiba o quê. Era assim que Jaqueline
amava mais o que poderia ter sido ao que realmente havia sido. Por mais que o fim de
semana na praia com os amigos tenha sido prazeroso, a garota não conseguia afastar a
sensação de que tudo poderia ter sido melhor. Tudo... Tudo. O luau. A fogueira. “E se
eu tivesse pedido pro Diego tocar aquela música? E se eu não tivesse saído pra buscar
mais madeira? E os colchões de encher? Tinha um a menos, bem que eu podia ter
chamado o João pra dividir o meu.” E ela ria amargamente.
Jaqueline mergulhava em si tentando voltar à praia, como se pudesse recuperar
as chances que as ondas haviam levado. Podia ter contado uma piada mais engraçada.
Hoje em dia ninguém mais ri de “o que é o que é”.
Mas tudo ficaria bem. Em sua rotina de ler e estudar nada de mais poderia
acontecer. Nada que a deixasse em desespero lamentando o emaranhado de
possibilidades que uma pessoa perde quando resolve escolher apenas uma. Mas ela já
havia se esquecido de tudo. E também do Nada. Que afinal, era o que mais a
perseguia. Desenhava a mitocôndria de uma célula animal quando percebeu, ao pé do
olho, sua mãe parada junto à porta.
- Que foi mãe? Fico um fim de semana fora e o mosquito da saudade pica de
jeito que num cansa de gastar olho em cima de mim?
- Filha, sua tia ligou. A Matilde sofreu acidente de carro. Tava sem cinto.
- A Ma... – Jaqueline engoliu secas as duas ultimas sílabas do nome da prima.
- Ela está na UTI. Quebrou muito osso.
Um copo. Dois. De água. Jaqueline perambulava pela casa como se procurasse
coisa perdida. A mãe falando sempre ao telefone. Quando o pai chegou do trabalho já
pelas horas da noite, Jaqueline já fingia sono para não ter que encarar mais ninguém.
Sentia um peso. Matilde era como sua melhor amiga. Irmã mesmo. De crescer,
brincar e fazer arte junta. Agora tudo o que Jaqueline imaginava era o corpo da
prima. Quebrado. Sangrando. Seu belo rosto desfigurado. Não, o rosto não havia
sofrido nada grave. E ela sabia disso. Ah, mas como é cruel a imaginação humana. A
imagem de Matilde impotente no hospital era como algo que não se pode acreditar
mesmo vendo. Tão forte era sua prima. Tão mais determinada, linda e corajosa.
Matilde não era garota para estar em hospital. Era incoerente. Inimaginável. O pai
batia na porta.
- Acho que já dormiu...
O pai vai se deitar e finalmente Jaqueline se aconchega no escuro de seu
quarto. Ela e os pensamentos nos ossos quebrados de Matilde. E como quem acabou
de assistir ao mais assustador dos filmes de terror, ela dorme.
O sol já voltava. Jaqueline havia sonhado com a prima. Péssimo sonho. Não
queria lembrar. Batidas na porta. Acorda Jaque, sua tia está aqui. Agora era uma
guerra. A garota sentia um peso pousado em suas costas. Era como se a culpa pelo
acidente fosse dela. A culpa, ou algo parecido. Poderia ser outra coisa que não culpa,
mas dela sim, dela caso agora não agisse como deveria agir a partir de agora.
Demorou um tempo para sair do quarto. Escovou os dentes por dez minutos e ficou
com a mão na maçaneta por mais dois – como quem toma fôlego pra um salto.
- Oi Jaque...
- Oi tia Lurdes. – abraçaram-se tristemente.
- A Matilde vai operar hoje...
Jaqueline balançou a cabeça como quem entende uma mensagem, mas não tem
animo para respondê-la. Felizmente sua mãe estava do lado. Ninguém no mundo fala
mais do que mãe. Num instante as duas irmãs conversavam e Jaque era apenas um
alvo de olhares e frases de positividade, ânimo, entre outros clichês. Ela não ligava de
apenas ouvir. Assim era bom. Só ouvindo. Sem participar daquilo. Não, aquilo era o
momento cruel. O momento infectado pelo acidente de Matilde. Em momentos como
esse tudo o que se faz, até mesmo fazer falar-sobre, é crueldade.
E a vida se tornava insuportavelmente cruel. Jaqueline não queria participar
daquilo... Participar do transbordamento daquelas horas era como fazer sofrer mais
ainda sua querida prima. Tudo o que ela desejava era se trancar em seu quarto e abrir
a porta somente às batidas da própria Matilde. Já recuperada. Já renovada. Linda e
altiva como antes.
- Amanhã já poderemos visitar...
Olhavam para Ela. Jaqueline arranjou-se com meia dúzia de forças para se
concentrar. Esperavam talvez uma resposta. Sua tia encarava-a com um sorriso
irritantemente doce. Voltou-se para sua mãe. Ela repetiria a frase, e a pergunta... Se é
que havia uma pergunta.
- Ouviu filha? Amanhã a gente vai poder visitar a Tildinha.
Visitar? Não, isso não. Não queria ter que ver sua prima daquele jeito. As
lembranças que tinha dela eram tão perfeitas. Por que sujá-las? Não, se recusava a
ver. Sua prima era forte e cheia de vida. Se acaso visse um corpo enfaixado estendido
numa cama, este não seria o corpo de Matilde. Jamais. Jamais. Não irei vê-la. Não
irei.
- Que bom... Então vou visitar...
Antes que algo pudesse ser feito seus lábios já havia dito. O que mais haveria
de fazer? Não ir realmente e ficar com fama de ingrata? Desnaturada? E se Tildinha
deixasse de amá-la? E se fosse o contrário? Sim, eu preciso ir vê-la. Preciso. Eu
preciso.
- Amanhã então depois do almoço a gente vai.
Acordo fechado. Contrato assinado. Era preciso ir. Não poderia mais voltar
atrás... Não... E pensava em Matilde presa na cama do hospital. Agora se questionava
sobre o amor que sentia pela prima. Que absurdo. Que tipo de amor é esse que tem
nojinho de meia dúzia de ossos quebrados? Quem ama, ama sempre e de forma
prestativa. Está sempre lá. E logo se dispõe a ajudar. A cuidar. Ora, que tipo de amor
eu tenho?
Jaqueline passou o resto do dia debruçada sobre estes mesmos pensamentos.
Chegou a poucas conclusões. Que amava a prima, sim. Que era egoísta demais,
talvez. Que era muito medrosa, certamente. Que a expectativa dos outros sobre a
reação dela a atormentava, isso era mais certo do que o branco das nuvens.
O dia era claro. As retinas de Jaqueline não se sentiam nada confortáveis. Eu
vou pra um hospital e esqueço o óculos escuro. Era como se estivesse nua. Todos
veriam a sua vergonha. Sua fraqueza. Seus olhos brilhando de medo. Ao lado da mãe
entrou no hospital. Apenas uma visita por vez, disse o moço alto e de cabelo
engraçado. Vai lá Jaque, eu espero. O moço alto lhe deu uma plaquinha, vinha escrito
o número do quarto e o leito onde estava Matilde, e indicou com o dedo a direção.
Jaqueline caminhou para onde o dedo do enfermeiro apontava. Vacilante. Olhando a
plaquinha como se ela fosse seus óculos escuros. Um passo mais pesado que o outro.
O peso nos ombros. A plaquinha. Olhar para a plaquinha. Já havia decorada a maldita
plaquinha. Quarto 238, leito 3. Hã... Leito... Que nome...
Ela ainda tentava achar um adjetivo que expressasse sua repulsa pela palavra
“leito”, quando enfim se deparou com o quarto 238. A porta estava entreaberta. Não
havia mais jeito, então ela entrou. Havia cinco camas. Três pacientes. Não demorou
sequer um segundo para que ela a avistasse. Matilde. Caminhou como se flutuasse.
Achegou-se ao lado do lei... Da cama. Um braço e uma perna enfaixados. Outra
grande faixa envolvendo o abdômen. E Matilde dormia como um anjo. Jaqueline
suspirou. Feliz por constatar que sua prima, apesar das circunstâncias, ainda estava
linda. Rodeou a cama. Descobriu que não sabia o que fazer. Não posso acordar ela...
Mas... Mas preciso falar com ela... - Resolveu sentar e esperar.
Havia uma cadeira logo ali ao lado. Não foi sua intenção, mas ao sentar-se a
cadeira rangeu de tal maneira que sua prima acabou por acordar... Talvez a cadeira
servisse exatamente para isso. Tanta morfina apaga até boi descontrolado.
- Matilde... – Sussurrou Jaqueline.
- Oooi prima... – A dificuldade com que essas palavras saíram da boca de
Matilde sangrou o coração de Jaqueline.
- Eu... Fiquei sabendo do acidente e... Vim te ver... – Ela tremia e gaguejava
sem motivo. Ou talvez houvesse um motivo. Ela sentia vergonha de sentia vergonha.
Tremia e gaguejava por estar tremendo e gaguejando.
Matilde começou a falar. Cada vez com menos dificuldade. Contava da dor. Do
carro. Da sorte que tivera por não ter morrido. Jaqueline fazia perguntas. Perguntas
óbvias. Só não queria passar por desinteressada, então perguntava. Olhava a prima
com carinho, e isso não era forçado. Todo o resto era. As frases clichês. Os típicos
“tudo-vai-dar-certo” e “logo-você-se-recupera”. E isso tudo não era falso. Era apenas
forçado.
Na hora da despedida, outra sacola de frases clichês. Jaqueline, que ficara
pensando sobre o quê e como dizer, ao se despedir da prima, desde o momento em
que entrara no hospital; simplesmente balbuciou uma meia dúzia de palavras tortas de
incentivo e força. Matilde sorriu. Quem sabe até percebendo a apreensão da prima. E,
com um suspiro aliviado, Jaqueline atravessou a porta em direção à entrada do
hospital. Porém tão logo já começava a se inundar de arrependimentos. Eu poderia ter
dito coisas melhores, reclamava. Poderia ter demonstrado um carinho menos
mecânico, mais... Reclamava de si mesma e de seu extremo nervosismo. Odiava
quando se observava falhando em algo que tantas vezes, na solidão e segurança de
seu quarto, já havia ensaiado e reensaiado.
Agora, sentada no carro, no caminho de volta pra casa, sua mente a
atormentava com ideias que diante de Matilde permaneceram intatas. Ideias de frases
e gestos totalmente originais no trato aos convalescentes. Mas agora de que adianta?
Não podia mais voltar atrás. Agora era aceitar o afobado pouco que havia dito e feito.
- Como foi a visita?
- Ela dormia... – Jaqueline respondeu absorta em seus pensamentos.
- E você não acordou ela?
- Ela dormia como um anjo...
- Então você não falou com ela?
- Como um anjo de asas quebradas.
Bernardo Barreto.