Aspectos Da Teologia de Paul Tillich

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ASPECTOS DA TEOLOGIA DE PAUL TILLICH Pensamentos da Teologia Sistemática Síntese elaborada por Paulo Roberto Rückert Mensagem e Situação. “A teologia, como função da igreja cristã, deve servir às necessidades da igreja.” Uma das necessidades básicas do sistema teológico é “a interpretação desta verdade para cada nova geração”. Com o fundamentalismo ocorre que “a verdade teológica de ontem é defendida como mensagem imutável contra a verdade teológica de hoje e amanhã. O fundamentalismo fracassa na tentativa de entrar em contato com a situação presente. [...] Eleva algo finito e transitório a uma validez infinita e eterna. Neste sentido o fundamentalismo tem traços demoníacos. [...] O fato de que as idéias fundamentalistas são avidamente recebidas em um período de desintegração pessoal e comunitária não prova sua validade teológica”. “O pólo chamado "situação" não pode ser ignorado em teologia, sem conseqüências perigosas.” Teologia Apologética e Quérigma. “Teologia apologética é ‘teologia que dá resposta’.” “[...] a única teologia real é a querigmática. [...] a teologia não pode evitar o problema da “situação”. A teologia quergmática deve abandonar sua exclusiva transcendência. Deve assumir seriamente a tentativa da teologia apologética de responder às perguntas apresentadas diante dela pela situação contemporânea”. “[...] os homens normalmente são mais fortes em suas negações do que em suas afirmações”. O Círculo Teológico. “Tentativas de elaborar uma teologia como ‘ciência’ empírica- indutiva ou metafísico-diva ou metafísico-dedutiva, ou como uma combinação de ambas, deram amplas evidências de que não chegam a ter o teológico. ...alguém pode ser teólogo só na medida em que reconhece o conteúdo do círculo teológico como sua preocupação última.”

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Apostila de Teologia Sistemática

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ASPECTOS DA TEOLOGIA DE PAUL TILLICHPensamentos da Teologia Sistemática

Síntese elaborada por Paulo Roberto Rückert

Mensagem e Situação.“A teologia, como função da igreja cristã, deve servir às necessidades da igreja.” Uma das necessidades básicas do sistema teológico é “a interpretação desta verdade para

cada nova geração”. Com o fundamentalismo ocorre que “a verdade teológica de ontem é defendida como

mensagem imutável contra a verdade teológica de hoje e amanhã. O fundamentalismo fracassa na tentativa de entrar em contato com a situação presente. [...] Eleva algo finito e transitório a uma validez infinita e eterna. Neste sentido o fundamentalismo tem traços demoníacos. [...] O fato de que as idéias fundamentalistas são avidamente recebidas em um período de desintegração pessoal e comunitária não prova sua validade teológica”.

“O pólo chamado "situação" não pode ser ignorado em teologia, sem conseqüências perigosas.”

Teologia Apologética e Quérigma.“Teologia apologética é ‘teologia que dá resposta’.”“[...] a única teologia real é a querigmática. [...] a teologia não pode evitar o problema da

“situação”. A teologia quergmática deve abandonar sua exclusiva transcendência. Deve assumir seriamente a tentativa da teologia apologética de responder às perguntas apresentadas diante dela pela situação contemporânea”.

“[...] os homens normalmente são mais fortes em suas negações do que em suas afirmações”.

O Círculo Teológico.“Tentativas de elaborar uma teologia como ‘ciência’ empírica-indutiva ou metafísico-diva

ou metafísico-dedutiva, ou como uma combinação de ambas, deram amplas evidências de que não chegam a ter o teológico. ...alguém pode ser teólogo só na medida em que reconhece o conteúdo do círculo teológico como sua preocupação última.”

Os dois Critérios formais de toda Teologia.Citando Marcos 12:29, Tillich declara: “A preocupação teológica é última.” E acrescenta

que além de última, ela é “incondicional, total e infinita”“O objeto da teologia é aquilo que nos preocupa de forma última. Só são teológicas aquelas

proposições que tratam de seu objeto na medida em que ele pode se tornar questão de preocupação última para nós.”

“Idolatria é a elevação de uma preocupação preliminar à ultimacidade. Algo essencialmente condicionado é considerado como incondicional. Algo essencialmente parcial é elevado à universalidade. E algo essencialmente finito é revestido de significado infinito. [...] Contradiz radicalmente os mandamentos bíblicos, e o primeiro critério teológico.”

“Quadros, poemas e música podem se tornar objeto da teologia.”“Intuições físicas, históricas ou psicológicas podem se tornar objeto da teologia.” [...]idéias

e ações sociais, projetos e procedimentos legais, programas e decisões políticas, podem se tornar objetos de teologia”.[...]problemas e desenvolvimentos da personalidade, alvos e métodos educacionais, cura corporal e mental, podem se tornar objetos de teologia”.

“Nossa preocupação última é aquilo que determina nosso ser ou não-ser.”“Nada pode ser de preocupação última para nós se não tiver o poder de ameaçar e salvar o

nosso ser. [...] o termo ‘ser’ significa a totalidade da realidade humana, a estrutura, o sentido, e o alvo da existência.”

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“O homem está infinitamente preocupado pelo infinito ao qual pertence, do qual está separado, e pelo qual anseia. O homem está totalmente preocupado pela totalidade, que é seu verdadeiro ser, e que está desintegrada no tempo e no espaço. O homem está incondicionalmente preocupado por aquilo que condiciona seu ser para além de todas as condições nele e ao redor dele. O homem está de forma última preocupado por aquilo que determina seu destino último para além de todas as necessidades e acidentes preliminares.”

Teologia e Cristianismo.“Teologia é a interpretação metodológica dos conteúdos da fé cristã.”“É a tarefa da teologia apologética provar que a reivindicação cristã tem validez também do

ponto de vista daqueles que estão fora do círculo teológico.”“[...]a teologia [...] é tão antiga como a própria religião”.“Todo mito contém um pensamento teológico que pode ser, e de fato o foi muitas vezes

tornado explícito.”A ‘teo-logia’, logos do theós, é “uma interpretação racional da substância religiosa dos ritos,

símbolos e mitos.”“A teologia cristã recebeu algo que é absolutamente concreto e absolutamente universal ao

mesmo tempo.”“A teologia cristã é a teologia, na medida em que se baseia na tensão entre o absolutamente

concreto e o absolutamente universal. Teologias sacerdotais e proféticas podem ser muito concretas, mas carecem de universalidade. Teologias místicas e metafísicas podem ser muito universais, mas carecem de concreticidade.”

“Só aquilo que tem o poder de representar todo o particular é absolutamente concreto. E só aquilo que tem o poder de representar todo o abstrato é absolutamente universal. Isto leva a um ponto onde o absolutamente concreto e o absolutamente universal são idênticos. E este é o ponto no qual emerge a teologia cristã. É o ponto descrito como sendo o “Logos que se tornou carne”. (A teologia cristã se move entre os pólos do universal e do concreto e não entre os de abstrato e particular.) A doutrina do Logos como doutrina da identidade do absolutamente concreto com o absolutamente universal não é uma doutrina teológica entre outras. É o único fundamento possível de uma teologia cristã que reivindica ser a teologia. [...] Mas é necessário aceitar a visão do cristianismo primitivo de que, se Jesus é chamado o Cristo, deve representar tudo o que é particular. E deve ser o ponto de identidade entre o absolutamente concreto e o absolutamente universal. [...] A referência bíblica a um desses aspectos é encontrada nas cartas de Paulo, quando ele falta do “estar em Cristo”. [...] Só podemos estar no que é absolutamente concreto e absolutamente universal ao mesmo tempo.”

Foi “uma questão de vida e morte para a igreja primitiva, o que a levou a usar a doutrina estóico-filônica do logos para expressar o sentido universal do evento ‘Jesus, o Cristo’.”

Teologia e Filosofia - uma pergunta.“[...] a questão da relação da teologia com as ciências especiais se funde com a questão da

relação entre teologia e filosofia”.“[...] não existe uma definição de filosofia aceita em geral. [...] A sugestão feita aqui é

chamar filosofia de: aquela abordagem cognitiva da realidade, na qual a realidade como tal é o objeto. [...] A partir deste ponto de vista a filosofia é por definição crítica”.

O labor filosófico de Aristóteles, Leibniz, Hegel, Wundt tornaram evidentes “os limites da mente humana e a finitude que impede compreender o todo. [...] Só ficaram os princípios gerais, sempre discutidos, questionados, mudados, mas nunca destruídos. Brilham através dos séculos, reinterpretados por cada geração; inexauríveis, nunca são antiquados ou obsoletos. Estes princípios são o material da filosofia”.

Observemos dois exemplos: a escola neo-kantiana e o positivismo lógico. “Ambas as tentativas de evitar a questão ontológica fracassaram. [...] Já que o conhecer é um ato que participa do ser.”

“A filosofia levanta a pergunta pela realidade como um todo; ela pergunta pela estrutura do ser. E responde em termos de categorias, leis estruturais e conceitos universais.”

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“A teologia, ao lidar com nossa preocupação última, pressupõe em toda sentença a estrutura do ser, suas categorias, leis e conceitos. A teologia, portanto, não pode evitar a questão do ser com mais facilidade do que o pode a filosofia. [...] A própria Bíblia usa as categorias e conceitos que descrevem a estrutura da experiência. Em cada página de cada texto religioso ou teológico aparecem esses conceitos: tempo, espaço, causa, coisa, sujeito, natureza, movimento, liberdade, necessidade, vida, valor, conhecimento, experiência, ser e não-ser.”

“Portanto, o teólogo sistemático deve ser um filósofo na compreensão crítica, mesmo que não o seja em poder criativo.”

Teologia e Filosofia - uma resposta.“A filosofia lida com a estrutura do ser em si mesma; a teologia lida com o sentido do ser

para nós.”“Embora conduzido pelo eros filosófico, o filósofo tenta manter uma objetividade

distanciada para com o ser e suas estruturas.”“Assim como todas as ciências têm sua origem na filosofia, assim também elas contribuem

por sua vez à filosofia.”“O teólogo, ao contrário, não se encontra distanciado de seu objeto, mas está envolvido

nele. Ele olha para seu objeto (que transcende o caráter de objeto) com paixão, temor e amor. Este não é o eros do filósofo ou sua paixão pela verdade objetiva; é o amor que aceita a verdade salvadora, e portanto pessoal. A atitude básica do teólogo é de comprometimento com o conteúdo que expõe. [...] O teólogo, em resumo, é determinado por sua fé.”

“A teologia é necessariamente existencial, e nenhuma teologia pode evitar o círculo teológico.”

“O filósofo olha a totalidade da realidade para descobrir dentro dela a estrutura da realidade como um todo.”

“O teólogo, por outro lado, deve olhar ali onde se manifesta aquilo que o tem preocupado de forma última. [...] A fonte de seu conhecimento não é o logos universal mas o Logos ‘que se tornou carne’, isto é, o logos manifestando-se num evento histórico particular. [...] O logos concreto que ele vê é recebido através de um comprometimento de fé. Não é como o logos universal, ao qual o filósofo olha, através de um distanciamento racional.”

Também devemos considerar “a diferença em seu conteúdo”. “O teólogo, por outro lado, relaciona as mesmas categorias e conceitos à pergunta por um

‘novo ser’. Suas afirmações têm caráter soteriológico. Ele discute a causalidade em relação com a causa primeira, o fundamento da série total de causas e efeitos; ele lida com o tempo em relação à eternidade, com o espaço em relação à ausência de um lugar próprio do homem na existência.”

“O filósofo, como o teólogo, ‘existe’ e não pode saltar sobre a concreticidade de sua existência e de sua teologia implícita. Ele está condicionado por sua situação psicológica, sociológica e histórica.”

“Todo filósofo criativo é um teólogo oculto (às vezes mesmo um teólogo declarado). [...] O conflito entre a intenção de tornar-se universal e o destino de permanecer particular caracteriza toda existência filosófica. Este é seu fardo, bem como sua grandeza.”

“O teólogo carrega um fardo análogo. [...] Ele deve assumir o risco de ser conduzido além da linha-limítrofe do círculo teológico. [...] A teologia, já que serve não só ao logos concreto mas também ao universal, pode se tornar uma pedra de tropeço para a igreja e uma tentação demoníaca para o teólogo. O distanciamento exigido num trabalho teológico honesto pode destruir o envolvimento necessário da fé. Este tensão é o fardo e a grandeza de todo trabalho teológico.""Nem existe um conflito necessário entre filosofia e teologia, nem é possível uma síntese entre elas.”

A história da filosofia “revela que em todo filósofo de importância a paixão existencial (preocupação última) e o poder racional (obediência ao logos universal) estão unidos.”

Tillich declara que os filósofos gregos prepararam inconscientemente a vinda de Cristo. “Os primitivos gregos, por cuja cultura Nietzsche estava ansiando, não tiveram que combater o Cristo. De fato, eles prepararam inconscientemente sua vinda. Elaboraram as questões às quais Ele deu a resposta, e as categorias nas quais a resposta podia ser expressa.”

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“Ameaçados pelo destino demoníaco, as pessoas buscavam um destino salvador – queriam a ‘graça’.” (A Era Protestante).

“A Filosofia, no seu desespero, clamou pela revelação” (A Era Protestante). “A revelação é a resposta às perguntas implícitas nos conflitos existenciais da razão”

(Teologia Sistemática)."O cristianismo não necessita de uma "filosofia cristã" no sentido mais estrito do termo. A

reivindicação de que o logos concreto em Jesus como o Cristo é ao mesmo tempo o logos universal, inclui a reivindicação de que, onde quer que o logos esteja atuando, ele concorda com a mensagem cristã. Nenhuma filosofia que é obediente ao logos universal pode contradizer o logos concreto, o Logos ‘que se tornou carne’.”

A Organização da Teologia.“Teologia é a explanação metódica dos conteúdos da fé cristã.” “O critério de qualquer disciplina teológica é se ela lida com a mensagem cristã como sendo

questão de preocupação última ou não.”“[...] na mensagem cristã a história é teológica, e a teologia é histórica”.“O critério para que uma disciplina seja ou não teológica não é sua origem pretensamente

sobrenatural, mas seu significado para a interpretação de nossa preocupação última.”“As doutrinas da finitude e existência, da ansiedade e culpa, são simultaneamente

ontológicas e éticas quanto a seu caráter.”“Dogmática é a afirmação da tradição doutrinal para nossa situação presente.”“E a igreja está baseada num fundamento, cuja formulação protetora está dada nos credos.

[...] a teologia prática pode se tornar uma ponte entre a mensagem cristã e a situação humana. [...] Ela pode preservar a igreja do tradicionalismo e do dogmatismo”.

As Fontes da Teologia Sistemática.“A Bíblia é o documento original sobre os eventos em que está baseado o cristianismo.”“E a mensagem bíblica não se tornaria mensagem para ninguém, incluindo o próprio

teólogo, sem a participação experiencial da igreja e de todo cristão. Se a ‘palavra de Deus’ ou o ‘ato da revelação’ é chamado a fonte da teologia sistemática, devemos enfatizar que a ‘Palavra de Deus’ não está limitada às palavras de um livro. [...] A teologia sistemática, portanto, tem fontes adicionais, além da Bíblia.”

“A Bíblia, contudo, é a fonte básica da teologia sistemática.”“[...] ela contém o testemunho original daqueles que participaram nos eventos reveladores.”“A inspiração dos escritores bíblicos é sua resposta receptiva e criativa a fatos

potencialmente reveladores.”“...o ato da recepção é uma parte do próprio evento”.“O teólogo bíblico [...] nos dá fatos teologicamente interpretados. [...] Ele une filologia e

devoção ao lidar com os textos bíblicos.”“A Bíblia é a Palavra de Deus em dois sentidos. É o documento da revelação final; e

participa na revelação final da qual ela é o documento.”“A teologia sistemática necessita de uma teologia bíblica que seja histórico-crítica sem

quaisquer restrições.”“[...] o Novo Ser em Jesus como o Cristo é a resposta à pergunta levantada implícita e

explicitamente pelas religiões da humanidade.”Tillich definiu assim a Teologia da cultura: “Esta é uma tentativa de analisar a teologia que

está por trás de todas as expressões culturais.”

Experiência e Teologia Sistemática.“A experiência é o meio através do qual as fontes ‘falam’ a nós, através do qual podemos

recebê-las.”“Experiência não é a fonte da qual são tirados os conteúdos da teologia sistemática, mas o

meio através do qual eles são existencialmente recebidos.”No pragmatismo ocorre a “elevação da experiência ao grau ontológico mais alto”.

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“Alguns dos teólogos empíricos tentaram aplicar o método da experiência científica à teologia. Mas eles nunca tiveram bons resultados e nem poderiam por duas razões. Primeiro, o objeto da teologia (isto é, nossa preocupação última e suas expressões concretas) não é um objeto dentro da totalidade da experiência científica. Não pode ser descoberto por observação distanciada ou por conclusões derivadas de tal observação. Só pode ser encontrado em atos de entrega e participação. Segundo, não pode ser testado por métodos científicos de verificação. Nestes métodos o sujeito que testa se conserva fora da situação de teste. E se isto é parcialmente impossível, como por exemplo na microfísica, ele inclui os efeitos deste fato em seus cálculos. O objeto da teologia só pode ser verificado por uma participação na qual o teólogo que testa se arrisca a si mesmo no sentido último de ‘ser ou não ser’.”

“Para os reformadores, a experiência não era uma fonte de revelação. O Espírito divino testemunha em nós a respeito da mensagem bíblica. O Espírito não dá nenhuma revelação nova.”

“Experiência como presença inspiradora do Espírito é a fonte última da teologia.”“Experiência aberta é a fonte da teologia sistemática.”“A teologia cristã se baseia no evento único Jesus o Cristo. E, apesar do sentido infinito

deste evento, permanece só este evento. Como tal, ele é o critério de toda experiência religiosa. Este evento está dado à experiência e não se deriva dela. Portanto, a experiência recebe e não produz.”

“Até mesmo o santo deve ouvir aquilo que o Espírito diz ao seu espírito.”

Norma da Teologia Sistemática.“A igreja desenvolveu uma norma doutrinal (resposta material: credos, confissões) e

também uma hierarquia de autoridades (resposta formal: bispos, concílios, papa - para salvaguardar contra distorções heréticas). "Nas igrejas católicas (romana, grega, anglicana) a segunda resposta se tornou tão predominante, que desapareceu a necessidade de uma norma material. [...] E é a razão porque a Bíblia teve tão pouca influência no desenvolvimento dogmático posterior das igrejas grega e romana.”

“A justificação e a Bíblia em interdependência mútua foram as normas da reforma luterana. No calvinismo a justificação foi cada vez mais substituída pela predestinação.”

“O leitor solitário da Bíblia de forma alguma se encontra fora da igreja. Ele recebeu a Bíblia, colecionada e preservada pela igreja através dos séculos. Ele recebeu o livro através da atividade da igreja ou algum de seus membros.”

“Não é exagero dizer que hoje o homem experimenta sua presente situação em termos de dilaceração, conflito, auto-destruição, falta de sentido e desespero em todos os reinos da vida. Esta situação se exprime na arte e na literatura, está conceitualizada na filosofia existencial, concretizada nas divisões políticas de todos os tipos, e analisada na psicologia do inconsciente. [...] É a questão de uma realidade na qual seja superada a auto-alienação de nossa existência, uma realidade de reconciliação e reunião, de criatividade, sentido e esperança.”

“O Cristo é aquele que traz o novo eon, a nova realidade. E é o homem Jesus quem, numa afirmação paradoxal, é chamado o Cristo. Sem este paradoxo o Novo Ser seria um ideal, não uma realidade.”

“[...] a norma material da teologia sistemática hoje é o Novo Ser em Jesus como o Cristo enquanto nossa preocupação última.”

A respeito de Lutero: “Ele deu uma norma material, segundo a qual os livros bíblicos deveriam ser interpretados e avaliados, a saber: a mensagem do Cristo ou da justificação através da fé. À luz desta norma ele interpretou e julgou todos os livros bíblicos.”

“Deve-se encontrar um caminho intermédio entre a prática católico-romana ... e a prática protestante radical”.

“[...] a norma da teologia sistemática [...] pode ser chamada de produto da experiência coletiva da igreja”.

O Caráter Racional da Teologia Sistemática.“Chamaremos o órgão com o qual recebemos os conteúdo da fé de razão autotranscendente

ou extática”. Mas, “a razão não é a fonte da teologia. Ela não produz seus conteúdos. [...] A razão não produz um objeto de preocupação última por processos lógicos, como tentou fazê-lo uma

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teologia errônea em seus "argumentos a favor da existência de Deus". Os conteúdos da fé possuem a razão”.

“No reino da vida espiritual as palavras não podem ser reduzidas a equações matemáticas.”“A teologia é tão dependente da forma lógica, quanto qualquer outra ciência.”“A dialética segue o movimento do pensamento ou o movimento da realidade através do

sim e do não. [...] A doutrina da trindade [...] descreve, em termos dialéticos, o movimento interno da vida divina como uma eterna separação de si mesma e retorno a si mesma”.

“O pensamento dialético não está em conflito com a estrutura do pensamento. [...] A dialética teológica não viola o princípio da racionalidade lógica”.

“[...] o agir de Deus transcende toda expectativa humana”.“[...] no agir de Deus a razão finita é superada mas não aniquilada”.“Existe, em última análise, só um paradoxo genuíno na mensagem cristã: o aparecimento

daquele que conquista a existência, sob as condições da existência. Encarnação, redenção, justificação, etc., estão implícitas neste evento paradoxal. Não é uma contradição lógica que o torna um paradoxo mas o fato de que ele transcende todas as expectativas e possibilidades humanas. Ele irrompe no contexto da experiência e da realidade, mas não pode ser derivado delas. A aceitação deste paradoxo não é a aceitação do absurdo, mas é o estado de ser possuído pelo poder daquilo que irrompe em nossa experiência a partir de cima. O paradoxo em religião e teologia não conflita com o princípio da racionalidade lógica. O paradoxo tem seu lugar lógico.”

O Método de Correlação.O método de correlação é “um ponto de vista apologético e efetuado em correlação com a

filosofia. [...] uma forma de unir mensagem e situação. Ele tenta correlacionar as perguntas implícitas na situação, com as respostas implícitas na mensagem. [...] Ele correlaciona perguntas e respostas, situação e mensagem, existência humana e manifestação divina”.

“O método é um instrumento, literalmente um ‘caminho através de’, que deve ser adequado a seu assunto. [...] Método e sistema se determinam mutuamente. Portanto, nenhum método pode reivindicar ser adequado para qualquer assunto.”

“O método da correlação explica os conteúdos da fé cristã através de perguntas existenciais e de respostas teológicas, em interdependência mútua.”

“Deus em sua automanifestação ao homem é dependente da forma em que o homem recebe sua manifestação.”

“A relação divino-humana é uma correlação também em seu aspecto cognitivo. Falando simbolicamente, Deus responde às perguntas do homem. E sob o impacto das respostas de Deus, o homem levanta perguntas. A teologia formula as perguntas implícitas na existência humana. E a teologia formula as respostas implícitas na automanifestação divina, sob a guia das perguntas implícitas na existência humana.”

O homem possui a “capacidade de perguntar pelo infinito ao qual ele pertence: o fato de que o homem deve perguntar por ele indica que se encontra separado do mesmo”.

“Só aqueles que experimentaram o choque da transitoriedade, a ansiedade na qual se tornam conscientes de sua finitude, e a ameaça do não-ser, podem entender o que significa a palavra de Deus. Só os que experimentaram as ambigüidades trágicas de nossa existência histórica e questionaram totalmente o sentido da existência podem compreender o que significa o símbolo: Reino de Deus. A revelação responde perguntas que foram levantadas e sempre serão levantadas, pois estas perguntas somos ‘nós’ mesmos. O homem é a pergunta que ele formula a respeito de si mesmo, antes que qualquer outra pergunta possa ser formulada. [...] Ser humano significa formular as perguntas sobre o próprio ser, e viver sob o impacto das respostas dadas a elas. E, reciprocamente, ser humano significa receber respostas à pergunta do próprio ser e formular perguntas sob o impacto das respostas.”

O método de correlação "faz uma análise da situação humana, a partir da qual surgem as perguntas existenciais. E demonstra que os símbolos usados na mensagem cristã são respostas a estas perguntas. [...] Toda vez que o homem contemplou seu mundo, ele se descobriu como parte dele. Mas ele descobriu também que é um estranho no mundo dos objetos, incapaz de penetrá-lo além de um certo nível de análise científica.”

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“Quem penetrou na natureza de sua própria finitude pode encontrar traços da finitude em tudo o que existe.”

A respeito de Calvino: “Ele fala da miséria do homem, que dá a base existencial para sua compreensão da glória de Deus. E fala da glória de Deus, que dá a base essencial para sua compreensão do homem de sua miséria.”

“A análise da existência, inclusive o desenvolvimento das perguntas implícitas na existência, é uma tarefa filosófica.”

“Como filósofo ele não diz a si mesmo o que é teologicamente verdadeiro. Mas pode ajudar a ver a existência humana e a existência em geral de tal forma que os símbolos cristãos apareçam a ele cheios de sentido e compreensão.”

“[...] a pergunta é a própria existência humana. [...] Deus é a resposta implícita na questão da finitude humana. Esta resposta não pode ser derivada de uma análise da existência. Contudo, se a noção de Deus aparece na teologia sistemática em correlação com a ameaça do não-ser que está implícita na existência, Deus deve ser chamado de poder infinito do ser, que resiste à ameaça do não-ser. Na teologia clássica isto é o ser-em-si. Se definimos ansiedade como a consciência do ser finito, Deus deve ser chamado de fundamento infinito da coragem. Na teologia clássica isto é a providência universal. Se a noção de Reino de Deus aparece em correlação com o enigma de nossa existência histórica, Ele deve ser chamado de sentido, plenitude e unidade da história. Desta forma se consegue uma interpretação dos símbolos tradicionais do cristianismo que preservam o poder destes símbolos e que os abre às perguntas elaboradas pela nossa presente análise da existência humana.”

A Razão e a Pergunta pela Revelação.A. A Estrutura da RazãoSempre houve “a ameaça de que o ‘raciocinar’ se pudesse separar da razão. Desde a metade

do século dezenove esta ameaça se tornou uma realidade dominante. [...] Em algumas formas de positivismo lógico o filósofo rejeita até mesmo ‘compreender’ qualquer coisa que transcenda a razão técnica, tornando assim sua filosofia completamente irrelevante para questões de preocupação existencial. A razão técnica, não obstante ser competente em aspectos lógicos e metodológicos, desumaniza o homem quando está separada da razão ontológica. E, além disso, a própria razão técnica se empobrece e corrompe quando não se nutre continuamente da razão ontológica. [...] Nem estruturas, processos, Gestalt, valores, nem sentidos podem ser compreendidos sem a razão ontológica. [...] A razão técnica sempre teve uma função importante, mesmo na teologia sistemática. Mas a razão técnica é adequada e significativa só como expressão da razão ontológica e como sua companheira.”

“Por exemplo, a teologia não pode aceitar o auxílio da razão no ‘raciocinar’ a existência de Deus. Tal Deus pertenceria à relação meios/fins. Ele seria menos do que um Deus. Por outro lado, a teologia não fica perturbada pelos ataques à mensagem cristã feitos pela razão técnica. Esses ataques não atingem o nível no qual se firma a religião. Eles podem destruir superstições, mas nem mesmo atingem a fé. [...] Onde quer que domine a razão técnica, a religião é superstição e é ou mantida estupidamente pela razão, ou rejeitada corretamente por ela.”

“A razão técnica é um instrumento. E, como todo instrumento, ele pode ser mais ou menos perfeito, e pode ser usado mais ou menos habilmente. Mas em seu uso nenhum problema existencial está envolvido. A situação é totalmente diferente com respeito à razão ontológica. O erro da filosofia idealista foi que ela identificou revelação com razão ontológica, ao mesmo tempo que rejeitou as reivindicações da razão técnica.”

“Razão ontológica pode ser definida como a estrutura da mente capaz de compreender e estruturar a realidade.”

“A mente recebe e reage. Ao receber racionalmente, a mente compreende seu mundo. Ao reagir racionalmente, a mente estrutura seu mundo.”

“Transformamos a realidade de acordo com a forma como nós a vemos. E nós vemos a realidade de acordo com a forma com que a transformamos.”

“[...] em todo ato racional está presente um elemento emocional.”“A música não é menos racional do que a matemática. O elemento emocional na música

abre uma dimensão da realidade que se acha fechada para a matemática. [...] Este é o sentido da

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frase de Pascal sobre as ‘razões do coração que a razão não pode compreender’. Aqui ‘razão’ é usada em um duplo sentido. As ‘razões do coração’ são as estruturas da experiência estética e de comunhão (beleza e amor); a razão ‘que não pode compreendê-las’ é a razão técnica.”

“O conservadorismo social é uma distorção de algo que uma vez foi uma criação dinâmica.”“A vida, assim como a mente, é criativa. Só podem viver aquelas coisas que incorporam

uma estrutura racional. Os seres vivos são ensaios exitosos da natureza para se atualizar de acordo com as exigências da razão objetiva. Se a natureza não segue estas exigências, seus resultados são ensaios frustrados.”

“O mito não é ciência primitiva, nem o culto, moralidade primitiva. Seu conteúdo, assim como a atitude das pessoas para com eles, revela elementos que transcendem tanto a ciência, quanto a moralidade.” O mito e o culto “contradizem a razão essencial. Eles traem, por sua própria existência, o estado ‘caído’ da razão. Ela perdeu a unidade imediata com sua própria profundidade. [...] Se, contudo, o mito e o culto são considerados como expressão da profundidade da razão de forma simbólica, eles permanecem numa dimensão onde não é possível nenhuma interferência com as funções próprias da razão. Onde quer que o conceito ontológico da razão for aceito e a profundidade da razão for compreendida, não é necessário nenhum conflito entre mito e conhecimento, entre culto e moral. A revelação não destrói a razão. Mas a razão levanta a pergunta pela revelação.”

B. A Razão na Existência“O ser é finito, a existência é autocontraditória, e a vida é ambígua.”O homem “se conscientiza do infinito que está presente em todo finito”.“Apesar de sua finitude, a razão se conscientiza de sua profundidade infinita.”“As categorias da experiência são categorias da finitude. Elas não capacitam a razão

humana a compreender a realidade-em-si. Mas elas capacitam o homem a compreender seu mundo, a totalidade dos fenômenos que aparecem a ele, e que constituem sua experiência atual. A principal categoria da finitude é o tempo. Ser finito significa ser temporal. A razão não pode romper os limites da finitude e alcançar o eterno. Ela também não pode romper os limites da causalidade, espaço e substância, para alcançar a causa primeira, o espaço absoluto, a substância universal.”

“A queda de uma razão deificada após Hegel contribuiu decisivamente para a entronização da razão técnica em nosso tempo e para a falta de universalidade e de profundidade da razão ontológica.”

“Na vida atual da razão as forças essenciais e existenciais, forças de criação e de destruição, estão unidas e desunidas ao mesmo tempo. Estes conflitos na razão atual dão o conteúdo para uma crítica teológica justificável da razão. Mas uma acusação da razão como tal é um sintoma de ignorância teológica, ou de arrogância teológica. Por outro lado, uma ataque à teologia como tal em nome da razão é um sintoma da superficialidade racionalista ou de hybris racionalista.”

A razão deve ser levada a "reconhecer sua própria alienação existencial".

Autonomia contra heteronomia.“Autonomia significa a obediência do indivíduo à lei da razão, que ele encontra em si

mesmo como um ser racional. [...] É a obediência à sua própria estrutura existencial, à lei da razão que é a lei da natureza dentro da mente e da realidade. Esta é a lei divina, enraizada no fundamento do próprio ser.”

“A heteronomia impõe uma estranha (heteros) lei (nomos) sobre uma ou todas as funções da razão. Ela emite ordens a partir de "fora", sobre como a razão deveria compreender e estruturar a realidade.”

“O problema da heteronomia é o problema de uma autoridade que reivindica representar a razão, contra sua atualização autônoma. [...] Uma autoridade heterônoma geralmente se expressa em termos de mito e culto porque estas são as experiências diretas e intencionais da profundidade da razão. [...] Heternomia nesse sentido em geral é uma reação contra uma autonomia que perdeu sua profundidade e se tornou vazia e sem poder.”

“Autonomia e heteronomia estão enraizadas na teonomia. Cada uma delas se perde quando sua unidade teônoma se rompe. Teonomia não significa aceitação de uma lei divina imposta sobre a razão por uma autoridade mais elevada. Significa razão autônoma unida à sua própria

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profundidade. Numa situação teônoma, a razão se atualiza a si mesma em obediência a suas leis estruturais e no poder de seu próprio fundamento inexaurível. Já que Deus (Theós) é a lei (nomos) tanto para a estrutura quanto para o fundamento da razão, eles estão unidos nele. Sua unidade é manifesta numa situação teônoma. Mas não há teonomia completa sob as condições da existência. [...] Portanto, a pergunta pela reunião daquilo que sempre está partido no tempo e no espaço surge da razão, e não em oposição à razão. Esta pergunta é a pergunta pela revelação.”

“Ao final do período medieval a heteronomia se tornou todo-poderosa (Inquisição).”O Renascimento mostrou um caráter teônomo no início, para se desenvolver como

autônomo.Também a Reforma enfatizou a autonomia no início (Lutero confiava em sua consciência, e

Calvino e Zwinglio tinham ligação com os humanistas). Mas com o desenvolvimento da ortodoxia protestante, a Reforma “muito cedo se converteu em uma heteronomia ainda pior do que a da Idade Média posterior”.

“Sob a guia da razão técnica a autonomia conquistou todas as reações, mas perdeu completamente a dimensão da profundidade. Ela se tornou vazia, superficial, sem um sentido último, e produziu desespero consciente ou inconsciente. Nesta situação, poderosas autonomias de caráter quase político entraram no vazio criado por uma autonomia que carecia da dimensão de profundidade. A dupla luta contra uma autonomia vazia e uma heteronomia destrutiva torna a pergunta por uma nova teonomia tão urgente hoje como o foi no fim do mundo antigo. A catástrofe da razão autônoma é total. Nem autonomia nem heteronomia, isoladas e em conflito, podem dar a resposta.”

Relativismo contra absolutismo.“O elemento estático impede a razão de perder sua identidade dentro do processo vital. O

elemento dinâmico é o poder da razão de atualizar-se a si mesma racionalmente no processo da vida, ao passo que sem o elemento estático a razão não poderia ser a estrutura da vida. Sob as condições da existência os dois elementos se separam um do outro e sem movem um contra o outro.”

“O elemento estático da razão aparece em duas formas de absolutismo - o absolutismo da tradição e o absolutismo da revolução. O elemento dinâmico da razão aparece em duas formas de relativismo - relativismo positivista e relativismo cínico.”

“Mas depois que um absolutismo é destruído por um ataque revolucionário, o vencedor se estabelece igualmente em termos absolutos.”

“A razão revolucionária crê tão profundamente quanto o tradicionalismo que ela representa a verdade imutável.”

“Isso mostra que os dois tipos de absolutismo não são exclusivos: eles se supõem um ao outro.”

“Cinismo é a atitude de superioridade, ou indiferença para com qualquer estrutura racional, seja estática ou dinâmica. [...] Seu castigo é o espaço vazio que ele produz, o vácuo completo dentro do qual incorrem novos absolutismos.”

“O criticismo combina um elemento positivista com um revolucionário excluindo tradicionalismo, bem como cinismo. Sócrates e Kant são representantes da atitude crítica na filosofia.”

“[...] tanto no mundo antigo, quanto no mundo moderno, o criticismo foi incapaz de superar o conflito entre absolutismo e relativismo. Só aquilo que é absoluto e concreto ao mesmo tempo pode superar este conflito. Só a revelação pode fazê-lo.”

Criação e queda.Com a criação aconteceu a passagem da essência para a existência. Por isso, criação e queda

são inseparáveis. “A vida divina é criativa, atualizando-se em abundância inexaurível. A vida divina e a

criativdade divina não são diferentes. Deus é criativo porque é Deus.”“A doutrina da criação não é a história de um evento que aconteceu “uma vez antigamente”.

É a descrição básica da relação entre Deus e o mundo. É o correlato à análise da finitude do homem. Ela responde à questão implícita na finitude do homem e na finitude em geral. Ao dar essa

Page 10: Aspectos Da Teologia de Paul Tillich

resposta, descobre-se que o sentido da finitude é a criaturalidade. A doutrina da criação é a resposta à questão implícita na criatura como criatura. Esta questão é levantada continuamente e sempre é respondida na natureza essencial do homem. A questão e a resposta estão além da potencialidade e atualidade, assim como todas as coisas o estão no processo da vida divina. Mas de fato a questão é levantada e não respondida na situação existencial do homem. O caráter da existência é que o homem levanta a questão de sua finitude sem receber uma resposta. Segue-se que, mesmo que houvesse algo como uma teologia natural, ela não conseguiria atingir a verdade da criatividade de Deus e da criaturalidade do homem. A doutrina da criação não descreve um evento. Ela aponta para a situação de criaturalidade e seu correlato, a criatividade divina.

Já que a vida divina é essencialmente criativa, devem ser usados os três modos do tempos para simbolizá-la. Deus criou o o mundo, é criativo no momento presente e plenificará criativamente seu telos. Portanto, devemos falar em criação originante, criação mantenedora, e criação diretiva. Isso significa que não só a preservação do mundo, mas também a providência estão incluídas na doutrina da criatividade divina.” (Teologia Sistemática, p. 212 e 213).

“Todas reconheceram que a existência não pode ser derivada de dentro da existência; que ela não pode ser derivada de um evento individual no tempo e no espaço. Eles reconheceram que a existência tem uma dimensão universal.” (Teologia Sistemática, p. 272 e 273).

“Criação e Queda coincidem na medida em que não existe um ponto no tempo e no espaço no qual a bondade criada se atualizasse e tivesse existência. Essa é uma conseqüência necessária da rejeição da interpretação literal da história do paraíso. Não havia “utopia” no passado, assim como não haverá “utopia” no futuro. Criação atualizada e existência alienada são idênticas. Só o literalismo bíblico tem o direito teológico de negar essa afirmação. Aque que exclui a idéia de um estágio histórico da bondade essencial não deveria tentar escapar da consciência disso. Isso é ainda mais óbvio se se aplica o símbolo da Criação à totalidade do processo temporal. Se Deus cria aqui e agora, tudo o que ele cria participa da transição da essência à existência. Ele cria a criança recém-nascida; mas, quando criada, ela cai no estado de alienação existencial. Esse é o ponto de coincidência entre Criação e Queda. Mas não é uma coincidência lógica; pois a criança, quando chega à maturidade, afirma o estado de alienação em atos de liberdade, que implicam em responsabilidade e culpa. Criação é boa em seu caráter essencial. Se atualizada, cai na alienação universal através da liberdade e do destino.” (Teologia Sistemática, p. 277 e 278).

O Sentido da Salvação.“O termo ‘salvação’ tem tantas conotações quantas são as negatividades que necessitam de

salvação. Mas pode-se distinguir salvação em relação à negatividade última [ ..]. a exclusão da unidade universal do Reino de Deus, a exclusão da vida eterna”.

“[...] pode ser adequado interpretar salvação como ‘cura’. [...] Nesse sentido, curar significa reunir aquilo que está alienado, dar um centro àquilo que está disperso, superar o abismo entre Deus e o homem, entre o homem e seu mundo, e do homem consigo mesmo. [...] Salvação é a saída do antigo ser e a transferência para o Novo Ser.”

Quanto à universalidade da salvação em Jesus como o Cristo: “Somente se salvação é entendida como poder salvador e curador através do Novo Ser na história toda, o problema fica colocado em seu devido lugar.”

“Jesus como o Cristo é o Salvador através do significado universal de seu ser como Novo Ser.”

“Ele é Mediador na medida em que consegue reconciliar.”“Em Cristo a eterna unidade Deus-Homem apareceu sob as condições da existência.”“Mas a mensagem do cristianismo é que Deus, que é eternamente reconciliado, quer que nos

reconciliemos com ele. Deus se revela a nós e nos reconcilia com ele através do Mediador. Deus é sempre aquele que age, e o mediador é aquele através de quem ele age.”

Doutrinas de Expiação.“O ato divino supera a alienação entre Deus e o homem na medida em que essa é uma

questão de culpa humana. Na expiação, a culpa humana é eliminada como fator que separa o homem de Deus.”

Page 11: Aspectos Da Teologia de Paul Tillich

“O malogro que Satanás sofreu por parte de Cristo tem uma dimensão metafísica profunda. Ele aponta para a verdade de que o negativo vive do positivo, ao qual distorce. Se ele vencesse completamente o positivo, destruiria a si mesmo. Satanás nunca pode prender Cristo, pois Cristo representa o positivo da existência porque representa o Novo Ser. A traição de Satanás é um motivo espalhado em toda história da religião, porque Satanás, o princípio da negação, não tem realidade independente.”

“A mensagem de um amor divino que desrespeite a mensagem da justiça divina não pode dar ao homem uma consciência tranqüila.”

“Ele começa com a tensão que há em Deus entre sua ira e seu amor e mostra que a obra de Cristo torna possível que Deus exercite sua misericórdia sem violar as exigências da justiça. O valor infinito do sofrimento de Cristo dá satisfação a Deus e torna desnecessário o castigo do homem pelo peso infinito de seu pecado. Só o Deus-Homem poderia fazer isso porque, enquanto Homem, ele podia sofrer e, enquanto Deus, ele não tinha que sofrer por seus próprios pecados.”

“[...] os processos expiatórios são criados por Deus e tão somente por Deus”.“Mas a justiça de Deus é o ato através do qual ele permite que as conseqüências auto-

destrutivas da alienação existencial se desencadeiem. ... a justiça é a forma estrutural do amor sem a qual esse seria puro sentimentalismo.”

“[...] a atividade expiatória de Deus deve ser entendida como sua participação na alienação existencial e em suas conseqüências auto-destrutivas”.

“A consciência culpada que olha para a Cruz vê o ato expiatório de Deus em e através dela, a saber, o fato de que ele assume as conseqüências da alienação existencial sobre si mesmo.”

“Deus participa do sofrimento da alienação existencial, mas seu sofrimento não é um substituto para o sofrimento da criatura. Nem o sofrimento de Cristo é um substituto para o sofrimento do homem.”

Encarnação.“O Logos, o princípio de toda manifestação divina, torna-se um ser há história, sob as

condições da existência.”Quando Deus se manifesta, ele se expressa a si mesmo por intermédio do Logos divino.“O Logos revela o mistério e reúne o que está alienado, mediante seu aparecimento como

realidade histórica numa vida pessoal. [...] Ele se sujeita às condições de existência e conquista a alienação existencial dentro da existência alienada. A participação no Logos universal é dependente da participação no Logos atualizado numa personalidade histórica. O cristianismo substitui o homem sábio do estoicismo pelo homem Espiritual.”

“Mas Deus não tem essência separada de existência, pois ele está para além de essência e existência.”

“A afirmação de que Jesus como Cristo é a unidade pessoal de uma natureza divina e uma humana deve ser substituída pela afirmação de que em Jesus como Cristo a unidade eterna de Deus e homem se tornou realidade histórica.”

“Esse evento não teria ocorrido se não houvesse uma unidade eterna de Deus com o homem dentro da vida divina.”

“Essa unidade [...] no evento único Jesus como o Cristo tornou-se atualizada constra a desintegração existencial.”

“Quando o cristianismo usa o termo ‘Encarnação’, ele tenta expressar o paradoxo de que aquele que transcende o universo aparece nele sob suas condições.”

“A encarnação do Logos não é metamorfose mas sua manifestação total numa vida pessoal.”

“Já que o protestantismo afirma a justificação do pecador, assim também exige uma cristologia de participação do Cristo na existência pecaminosa, incluindo, ao mesmo tempo, sua vitória. O paradoxo cristológico e o paradoxo da justificação do pecador são um e mesmo paradoxo. É o paradoxo de Deus aceitando um mundo que o rejeita.”

“[...] o Novo Ser participa na existência e conquista-a”.

Page 12: Aspectos Da Teologia de Paul Tillich

Providência de DeusProvidência significa pre-ver, que é um pre-ordenar. Deparamo-nos com a ambigüidade do

sentido de providência.Se acentuamos o significado de prever, “Deus se torna um espectador onisciente, que sabe o

que vai acontecer, mas que não interfere na liberdade de suas criaturas”. Deus é reduzido a um espectador.

Se enfatizamos a dimensão de pre-ordenar, Deus é transformado no planejador que ordenou tudo o que acontece. Os acontecimentos são apenas a execução do plano divino estabelecido desde sempre. Deus é o único agente ativo.

Estas duas interpretações de providência devem ser rejeitadas.Com seu agir, Deus sempre cria através da liberdade do ser humano. Deus atua de um modo

criativo através dos acontecimentos. Mesmo os acontecimentos contrários à vontade de Deus são incluídos no agir criativo divino. Deus age de um modo criativo até mesmo através das conseqüências destrutivas da resistência contra a atividade divina. Tudo é incluído em seu agir criativo. Deus aproveita a liberdade humana e também o destino para conduzir os acontecimentos à plenitude. Providência é criação que se faz presente em toda situação. Mesmo em meio a uma tragédia, Deus continua com o controle dos acontecimentos.

Crer na providência de Deus significa afirmar que nenhum acontecimento é capaz de frustar a realização do plano divino. Nada pode nos separar do amor de Deus revelado em Cristo Jesus.

Liberdade e destino“À luz desta análise de liberdade se torna compreensível o sentido de destino. Nosso destino

é aquilo a partir do qual surgem nossas decisões. [...] O destino não é um poder estranho que determina aquilo que irá acontecer a mim. É minha própria pessoa, tal como dada, formada pela natureza, pela história e por mim mesmo. Meu destino é a base de minha liberdade; minha liberdade participa da estruturação de meu destino.

Só quem tem liberdade tem um destino. As coisas não têm destino porque não têm liberdade. Deus não tem destino, porque ele é liberdade. A palavra “destino” aponta [...] não para o oposto de liberdade, mas para suas condições e limites. [...]

Já que liberdade e destino constituem uma polaridade ontológica, tudo o que participa do ser deve participar desta polaridade. [...]

A natureza não obedece – ou desobedece – a leis no sentido em que o faz o homem; na natureza a espontaneidade está unida à lei, da mesma forma que liberdade está unida ao destino no homem. [...]

A analogia com a liberdade em todos os seres torna impossível uma determinação absoluta. As leis da natureza são leis para unidades autocentradas com reações espontâneas. A polaridade de liberdade e destino é válida para tudo o que é.” (Teologia Sistemática, p. 158 e 159).

MediadorMediar é estabelecer uma ponte sobre o abismo intransponível entre o infinito e o finito.Mediação é reunião. É religar o incondicional e o condicionado.A função do mediador é salvífica. Mediação e salvação provêm de Deus.Cristo é esperado como mediador e salvador, pois ele representa Deus perante o ser

humano. As pessoas vivem sob as condições da existência. E Cristo representa aquilo que o ser humano é em essência: o que ele deveria ser sob as condições da existência. Cristo é o homem essencial, e por sua própria natureza ele representa Deus. Ele representa a imagem de Deus no homem. E desempenha sua função sob as condições de alienação entre Deus e o ser humano.

Esta é a dialética do infinito e do finito: a humanidade essencial inclui a união entre Deus e o ser humano.

E este é o paradoxo do Evangelho: a humanidade essencial apareceu em uma vida pessoal. E assim aconteceu sob as condições da existência sem que as mesmas predominassem.

O Logos se tornou carne.O termo “carne” representa a existência histórica. Deus se manifesta numa vida pessoal

tornando-se salvador da condição humana. Deus participa naquilo que está separado dele.O homem essencial aparece sob as condições de alienação existencial.

Page 13: Aspectos Da Teologia de Paul Tillich

Jesus de Nazaré representa a história humana. Em sua vida apareceu o homem essencial na existência. Esse evento central cria o sentido da história humana. Em Cristo se manifesta a eterna relação de Deus com o ser humano.

O infinito entrou no finito para superar a alienação existencial.O Messias é o portador do novo ser. Sua vinda foi cercada de expectativa. E sua vinda

aconteceu porque Deus ama o mundo.

Fé e dúvida. Tillich salientou que fé é estar possuído pelo incondicional. Trata-se de um ato da pessoa

inteira. A preocupação última pede submissão total. Ele também apontou para a dimensão da fé: ela é a superação da dicotomia entre finito e infinito. E a fé também implica comunhão.

É importante observar que a preocupação última pode até ser falsa, como a busca exclusiva do sucesso e da prosperidade, mas é uma fé. Sempre que algo condicional é elevado à categoria de absoluto, o resultado é uma profunda decepção. Seguidas decepções desembocam em depressão. Por isso, a fé pode salvar ou destruir a pessoa. Se o conteúdo da fé é uma realidade limitada elevada ao caráter incondicional e último, a pessoa pode se encaminhar para o desespero e a desintegração total.

“Fé e dúvida têm sido colocados como opostos, exaltando-se a certeza da fé como o fim de toda a dúvida. É verdade que existem semelhante serenidade muito além das agitadas lutas entre fé e dúvida; e alcançar este estado é um desejo natural e justo. Mas, mesmo quando ele é atingido – como, por exemplo, por santos ou pessoas que estão firmes em sua fé - , nunca está ausente o elemento da dúvida. Nos santos, a dúvida aparece como o mostram as lendas em tornos dos santos, sob a forma de tentação, a qual aumenta na medida em que cresce a santidade. Nas pessoas que clamam ter uma fé inabalada, o farisaísmo e o fanatismo são freqüentemente a prova infalível de que a dúvida provavelmente foi reprimida ou de fato ainda está atuando secretamente. A dúvida não é superada pela repressão, e sim pela coragem. A coragem não nega que a dúvida está aí; mas ela aceita a dúvida como expressão da finitude humana e se confessa, apesar da dúvida, àquilo que toca incondicionalmente. A coragem não precisa da segurança de uma convicção inquestionável. Ela engloba o risco sem o qual não é possível qualquer vida criativa. Quando por exemplo a preocupação incondicional de uma pessoa é a convicção de que Jesus é o Cristo, então semelhante fé não é uma questão de certeza isenta de dúvida, e sim de coragem que se arrisca, que encerra o perigo do fracasso. Mesmo quando a confissão “Jesus é o Cristo” é exprimida com a convicção mais profunda, ela contém risco e coragem. A própria “confissão” indica isso” (A dinâmica da fé, p. 66).

A vivência da fé sempre traz consigo os dois pólos: a fé e a dúvida. Portanto, a fé requer decisão e coragem. A dúvida existencial não é uma perda da fé, mas é a confirmação da fé.

A busca da vida-sem-ambigüidade“Em todos os processos da vida estão misturados um elemento essencial e um elemento

existencial, bondade criada e alienação, de tal forma que nem um nem o outro é exclusivamente efetivo. A vida sempre inclui elementos essenciais e existenciais; essa é a raiz de sua ambigüidade.

As ambigüidades da vida são manifestas sob todas as dimensões, em todos os processos e em todos os reinos da vida. A busca da vida sem-ambigüidade está latente em toda parte. Todas as criaturas anseiam por uma realização não-ambígua de suas possibilidades essenciais; mas somente no homem, como portador do espírito, as ambigüidades da vida e a busca da vida sem-ambigüidades se tornam conscientes. Ele experimenta a ambigüidade da vida em todas as dimensões, já que ele toma parte em todas elas, e experimenta-as imediatamente dentro de si mesmo como a ambigüidade das funções do espírito: da moralidade, cultura e religião. A busca da vida sem-ambigüidade resulta dessas experiências; essa é a procura por uma vida que haja alcançado aquilo rumo ao qual ela se auto-transcende.

Já que religião é a auto-transcendência da vida no reino do espírito, é na religião que o homem começa a busca da vida sem-ambigüidade e é na religião que ele recebe a resposta. Mas a resposta não se identifica com a religião, já que a própria religião é ambígua. A realização da busca da vida sem-ambigüidade transcende qualquer forma ou símbolo religioso no qual ela se expressa.

Page 14: Aspectos Da Teologia de Paul Tillich

A auto-transcendência da vida nunca atinge incondicionalmente aquilo rumo ao qual transcende, embora a vida possa receber sua auto-manifestação na forma ambígua de religião.

O simbolismo religioso produziu três símbolos principais para expressar a vida sem-ambigüidade: Espírito de Deus, Reino de Deus, e Vida Eterna. Cada um deles e sua relação recíproca requerem uma breve consideração preliminar. O Espírito de Deus é a presença da Vida Divina na vida da criatura. O Espírito Divino é “Deus presente”. O Espírito de Deus não é ser separado. Portanto, podemos falar em “Presença Espiritual” para revestir esse símbolo de um significado pleno. [...]

Reino de Deus é a resposta às ambigüidades da existência histórica do homem mas, por causa da unidade multidimensional da vida, esse símbolo inclui a resposta à ambigüidade sob a dimensão histórica em todos os reinos da vida. A dimensão da história se atualiza, por um lado, nos eventos históricos que mergulham suas raízes no passado e determinam o presente, e por outro lado, na tensão histórica que é experienciada no presente, mas corre irreversivelmente na direção do futuro. Portanto, o símbolo Reino de Deus engloba tanto a luta da vida sem-smbigüidade contra as forças que provocam ambigüidade, como a realização última em cuja direção a história caminha.

Isso conduz ao terceiro símbolo: vida-sem-ambigüidade é Vida Eterna. Aqui o material simbólico é tomado da finitude espácio-temporal da todas as formas de vida. A vida-sem-ambigüidade conquista a servidão aos limites categoriais da existência. Isso não significa uma continuação sem fim da existência categorial, mas a conquista de suas ambigüidades. [...]

Vida-sem-ambigüidade pode ser descrita como vida sob a direção da Presença Espiritual, ou como vida no Reino de Deus, ou como Vida Eterna. [...]

A busca de tal vida-sem-smbigüidade é possível porque a vida tem o caráter de auto-transcendência.” (Teologia Sistemática, p. 466 – 468)

“Nós não podemos possuir Deus; mas nós podemos esperar por ele. Espera pressupõe aquilo que ainda não é realidade. Se nós esperamos em esperança e paciência – também além da festa anual de Natal – , então a força daquele, em quem esperamos, já é atuante em nós; pois nós somos possuídos por aquilo que esperamos. Nós somos mais fortes quando esperamos do que quando possuímos.”

Paulo Roberto Rückert é professor de Teologia Contemporânea na Faculdade Teológica Unida.

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O REINO DE DEUS E O DEMONÍACO

O pensamento de Paul Tillich. Citações extraídas da Teologia Sistemática.

Síntese elaborada por Paulo Roberto Rückert.

“Não é exagero dizer que hoje o homem experimenta sua presente situação em termos de dilaceração, conflito, auto-destruição, falta de sentido e desespero em todos os reinos da vida.”

“É a questão de uma realidade na qual seja superada a auto-alienação de nossa existência, uma realidade de reconciliação e reunião, de criatividade, sentido e esperança. Chamaremos a essa realidade de “Novo Ser”, um termo cujas pressuposições e implicações podem ser explicadas só através da totalidade deste sistema. Ele se baseia naquilo que Paulo chama “a nova criação”, e se refere a seu poder de superar as divisões demoníacas da “velha realidade” na alma, na sociedade e no universo.”

“O estado extático no qual ocorre a revelação não destrói a estrutura racional da mente. Os relatos sobre experiências extáticas na literatura clássica das grandes religiões coincidem neste ponto – que, enquanto que a possessão demoníaca destrói a estrutura racional da mente, o êxtase divino a preserva e eleva, embora a transcenda. Possessão demoníaca destrói os princípios éticos e lógicos da razão: o êxtase divino os afirma. “Revelações” divinas são expostas e rejeitadas em muitas fontes religiosas, especialmente no Antigo Testamento. Uma pretensa revelação, na qual a justiça como princípio da razão prática é violada, é antidivina, portanto, é considerada uma mentira.O demoníaco cega; não revela. No estado de possessão demoníaca a mente não está de fato “fora de si mesma”. Ela de fato está em poder de elementos dela mesma, que aspiram ser a totalidade da mente, que se apoderam do centro do eu racional e o destróem. Há, contudo, um ponto de identidade entre êxtase e possessão. Em ambos os casos, a estrutura sujeito-objeto da mente é desativada. Mas, êxtase divino não viola a totalidade da mente racional, enquanto que possessão demoníaca a enfraquece ou destrói. Isso indica que, embora êxtase não seja um produto da razão, ele não destrói a razão.”

“Em última análise, uma forma mecânica ou qualquer outra doutrina não-extática de inspiração é demoníaca. Ela destrói a estrutura racional que pretende receber inspiração.”

“Segundo Paulo, os poderes demoníaco-idólatras que regem o mundo e distorcem a religião foram conquistados na cruz de Cristo.”

“Só como aquele que sacrificou sua carne, isto é, sua existência histórica, ele é Espírito e Nova Criatura. Estes são os “paradoxa” nos quais deve ficar manifesto o critério da revelação final. Mesmo o Cristo só é Cristo porque não insistiu em sua igualdade com Deus, mas despojou-se dela enquanto posse pessoal (Filipenses, cap. 2). A teologia cristã pode afirmar a finalidade da revelação em Jesus como o Cristo só nesta base. A reivindicação de qualquer coisa finita de ser final em seu próprio direito é demoníaca.”

“O cristianismo, sem ser em si mesmo final, testemunha a respeito da revelação final. Cristianismo como cristianismo não é final, nem universal. Mas aquilo a respeito de que testemunha é final e universal.”

“... o demoníaco é a elevação de algo condicional a um significado incondicional”.“A revelação é a resposta às perguntas implícitas nos conflitos existenciais da razão.”“O santo é uma qualidade daquilo que preocupa o homem de forma última. Só aquilo que é

santo pode dar ao homem preocupação última. E só aquilo que dá ao homem preocupação última tem a qualidade de santidade.”

“Justiça é o critério que julga a santidade idólatra. Os profetas atacam formas demoníacas de santidade em nome da justiça. Os filósofos gregos criticam um culto demoniacamente distorcido em nome da Diké. Em nome da justiça que Deus dá, os Reformadores destróem um sistema de coisas sagradas que protegem a injustiça social. Em nome da justiça social, os movimentos revolucionários modernos desafiaram instituições sagradas que protegem a injustiça social. Em todos estes casos é a santidade demoníaca, não santidade como tal, que é atacada.”

“O conceito de santo está em contraste com dois outros conceitos: o de impuro e o de secular.”

Page 16: Aspectos Da Teologia de Paul Tillich

“O secular é o reino das preocupações preliminares. Ele carece de santidade. Todas as relações finitas em si mesmas são seculares.”

“Além disso, o santo necessita ser expresso e só pode se expressar através do secular. Só através do finito o infinito pode se expressar a si mesmo. É através de “objetos” sagrados que a santidade se torna atual. O santo não pode aparecer, exceto através daquilo que a rigor é secular. Em sua natureza essencial, o santo não constitui um reino especial, ao lado do secular. O fato de que, sob as condições da existência, ele se estabelece a si mesmo como um reino especial, é a expressão mais aguda de desintegração existencial.”

“Politeísmo é um conceito qualitativo e não quantitativo. Não é uma crença numa pluralidade de deuses mas sim a falta de um último unificador e transcendente que determina seu caráter. Cada um dos poderes divinos politeístas reivindica ultimacidade na situação concreta que aparece. Ele ignora reivindicações semelhantes feitas por outros poderes divinos em outras situações. Isto leva a reivindicações conflitantes e ameaça destruir a unidade do eu e do mundo.”

“Também é verdade que não existe maneira de falar sobre Deus a não ser através de termos mitológicos.”

“Portanto, a relação pesoa-a-pessoa entre Deus e o homem é constitutiva para a experiência religiosa. O homem não pode estar interessado em forma última por algo que seja menos do que ele é, algo impessoal.”

“Um Deus pessoal: isto indica a concreticidade da preocupação última do homem. Mas esta preocupação última não só é concreta, como também última. Ela traz outro elemento à imaginação mitológica. Os deuses são sub-pessoais e trans-pessoais ao mesmo tempo. Deuses-animais não são brutalidades deificadas: são expressões da preocupação última do homem, simbolizadas nas várias formas da vitalidade animal. Esta vitalidade animal representa uma vitalidade trans-humana, divino-demoníaca.”

“A tentativa mais radical de separar o divino do demoníaco é o dualismo religioso. Embora sua expressão clássica seja a religião de Zoroastro e, de forma derivada e racionalizada, o Maniqueísmo, estruturas dualistas aparecem em muitas outras religiões, inclusive no Cristianismo. O dualismo religioso concentra a santidade divina em um reino e a santidade demoníaca em outro.”

“O dualismo vislumbra a vitória última da santidade divina sobre a santidade demoníaca.” “Teologicamente falando, o monoteísmo exclusivo pertence à revelação final, pois é uma

preparação direta para ela.”“O princípio protestante é a reafirmação do princípio profético como um ataque contra a

auto-absolutização e, conseqüentemente, contra a igreja demoniacamente absolutizada. Tanto os profetas, quanto os reformadores, anunciaram as implicações radicais do monoteísmo exclusivo.”

“Mas o monoteísmo exclusivo exclui o finito, contra cujas pretensões demoníacas ele protestou.”

“O amor divino é a resposta final à questão implícita na existência humana incluindo a finitude, a ameaça de desintegração e alienação. Esta resposta é dada realmente só na manifestação do amor divino sob as condições da existência.”

“Se Deus é invocado como “Meu Senhor”, está incluído o elemento paternal. Se Deus é invocado como “Pai nos Céus”, o elemento de senhorio está incluído. Eles não podem ser separados; até mesmo a tentativa de enfatizar um mais do que o outro destrói o sentido de ambos. O Senhor que não é Pai é demoníaco; o Pai que não é Senhor é sentimental. A teologia errou em ambas as direções.”

“O cristianismo afirma que Jesus é o Cristo. O termo “o Cristo” aponta, por marcado contraste, para a situação existencial do homem. Pois o Cristo, o Messias, é aquele que deve trazer o “novo Eon”, a regeneração universal, a nova realidade. Nova realidade pressupõe uma velha realidade; e esta velha realidade, segundo as descrições proféticas e apocalípticas, é o estado de alienação do homem e seu mundo com relação a Deus. Este mundo alienado é regido por estruturas do mal, simbolizadas como poderes demoníacos. Eles regem as almas individuais, as nações, e até mesmo a natureza. Eles produzem ansiedade em todas as suas formas. É tarefa do Messias conquistá-los e estabelecer uma nova realidade, da qual os poderes demoníacos ou as estruturas de destruição estejam excluídos.”

“Todos os homens têm o secreto desejo de serem como Deus, e atuam de acordo com isso em sua auto-avaliação e em sua auto-afirmação. Ninguém está disposto a reconhecer, em termos

Page 17: Aspectos Da Teologia de Paul Tillich

concretos, sua finitude, sua fraqueza e seus erros, sua insegurança e sua ignorância, sua solidão e sua ansiedade. E se alguém está diposto a reconhecê-los, ele transforma essa sua disposição em outro instrumento de hybris. Uma estrutura demoníaca impele o homem de confundir auto-afirmação natural com auto-elevação destrutiva.”

“Não é a experiência do tempo como tal que produz desespero; antes, porém, é o fracasso em opor resistência contra o tempo. Em si mesma, essa resistência brota da pertinência essencial do homem ao eterno, de sua exclusão dela no estado de alienação, e do seu desejo de transformar os momentos transitórios de seu tempo numa presença duradoura. Sua indisposição existencial de aceitar sua temporalidade converte o tempo numa estrutura demoníaca de destruição para ele.”

“Pode-se afirmar isso de forma mitológica dizendo que nenhum problema pessoal é questão de mera transitoriedade, mas que tem raízes eternas e exige uma solução em relação com o eterno.”

A “parousia do Cristo tem duas funções. Primeira, expressa de forma especial que Jesus é o Cristo, isto é, aquele que não pode ser transcendido por nenhum outro que possa eventualmente aparecer no curso da história humana.”

“A outra é dar uma resposta à crítica judaica de que Jesus não poderia ter sido o Messias, já que o novo eon ainda não chegou e que o antigo estado de coisas permanece inalterado. Portanto, o argumento judaico é que ainda devemos esperar pela vinda do Messias. O cristianismo concorda em que estamos num período de espera. E prova que, à medida em que cresce o poder do Reino de Deus, cresce igualmente o reino demoníaco, que se torna cada vez mais destrutivo. Mas, em contraste com o judaísmo, o cristianismo afirma que o poder do demoníaco está desarticulado em princípio (em poder e início) porque o Cristo apareceu em Jesus de Nazaré, o portador do Novo Ser. Seu ser é o Novo Ser. E o Novo Ser, a conquista do velho eon, está naqueles que participam nel e na igreja na medida em que está baseada nele como seu fundamento. [...] o eterno irrompe no temporal, entre um “já” e um “ainda-não”, e sujeita-o às infinitas tensões dessa situação na existência pessoal e histórica.”

“O termo “salvação” tem tantas conotações quantas são as negatividades que necessitam de salvação.”

“Com respeito a ambos os sentidos de salvação, o original (de salvus, “curado”) e o de nossa situação presente, pode ser adequado interpretar salvação como “cura”. Isso corresponde ao estado de alienação como característica principal da existência. Nesse sentido, curar significa reunir aquilo que está alienado, dar um centro àquilo que está disperso, superar o abismo entre Deus e o homem, entre o homem e seu mundo, e do homem consigo mesmo. A partir dessa interpretação de salvação é que se desenvolveu o conceito de Novo Ser. Salvação é a saída do antigo ser e a transferência para o Novo Ser. Essa compreensão inclui os elementos de salvação que foram enfatizados em outros períodos; inclui, sobretudo, a realização do sentido último da própria existência, mas o considera sob uma perspectiva especial, que é a de tornar salvus, ‘curado’.”

“Existe uma história de revelação, cujo centro é o evento Jesus Cristo; mas esse centro não está desprovido de uma linha que conduz até ele (revelação preparatória) e uma linha que deriva dele (revelação recebida). Além disso, afirmamos que onde existe revelação, existe salvação. Revelação não é informação a respeito de coisas divinas; é a manifestação extática do Fundamento do Ser em eventos, pessoas e coisas. Essas manifestações têm poder de abalar, transformar e curar. Elas são eventos salvíficos nos quais está presente o poder do Novo Ser. Ele está presente de forma preparatória, fragmentária, e aberta à distorção demoníaca. Mas está presente e cura onde quer que seja realmente aceito. A vida da humanidade depende dessas forças curadoras; elas impedem que as estruturas auto-destrutivas da existência mergulhem a humanidade numa aniquilação completa.”

Jesus Cristo é “o critério último de toda cura e de todo processo salvífico. Dissemos anteriormente que mesmo aqueles que o encontraram existencialmente só estão curados fragmentariamente. Mas devemos dizer agora que nele a qualidade curadora é completa e ilimitada.”

“O malogro que Satanás sofreu por parte de Cristo tem uma dimensão metafísica profunda. Ele aponta para a verdade de que o negativo vive do positivo, ao qual distorce. Se ele vencesse completamente o positivo, destruiria a si mesmo. Satanás nunca pode prender Cristo, pois Cristo representa o positivo da existência porque representa o Novo Ser. A traição de Satanás é um motivo espalhado em toda história da religião, porque Satanás, o princípio da negação, não tem realidade independente.”

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“A mensagem do cristianismo foi de libertação com relação ao temor demoníaco.”“Sem a experiência do poder do Novo Ser em Jesus como o Cristo, sua sujeição expiatória

às forças da existência não poderia superar o temor demoníaco.”“A primeira ambigüidade da religião é a de auto-transcendência e profanização na própria

função religiosa. A segunda ambigüidade da religião é a elevação demoníaca de algo condicional à validez incondicional.”

“Demônios [...] não são simplesmente negações do divino mas participam de forma distorcida no poder e santidade do divino.”

“E a reivindicação de algo finito querer ser infinito ou de aspirar à grandeza divina é característica do demoníaco.”

“A característica principal do trágico é o estado de ser cego; a característica principal do demoníaco é o estado de ser desintegrado.”

“Uma conseqüência dessas desintegrações, relacionada com a natureza do demoníaco, é o estado de ser “possuído” pelo poder que produz a ruptura. Os demoníacos são os possessos. A liberdade da centralidade é eliminada pela ruptura. Estruturas demoníacas na vida pessoal e comunitária não podem ser rompidas por atos de liberdade e boa-vontade. Elas são até fortalecidas por esses atos – exceto quando o poder de mudar procede de uma estrutura divina, isto é, de uma estrutura de graça.”

“... religião é o ponto no qual é recebida a resposta à busca do que é sem-ambigüidade”. “... o fato de que toda religião se baseia em revelação e que toda revelação se auto-expressa

numa religião”. “Mas nenhuma religião é revelação; religião é a criação e distorção da revelação.”“Mas religião como auto-transcendência da vida em todos os reinos reivindica uma

superioridade sobre elas que se justifica na medida em que religião apontar para aquilo que transcende a todas elas, mas a reivindicação de superioridade se torna demoníaca quando religião como realidade social e pessoal faz essa reivindicação para si mesma e para suas formas finitas mediante as quais ela aponta ao infinito.”

“Assim como em relação à justiça e à humanidade diretamente, também em relação à verdade e expressividade indiretamente – religião não é a resposta à busca da vida sem-ambigüidade, embora a resposta só possa ser recebida através dela.”

“O êxtase não destrói a centralidade do eu integrado. Caso o fizesse, então ser possessão demoníaca substituindo a presença criativa do Espírito.”

“Embora o caráter extático da experiência da Presença Espiritual não destrua a estrutura racional do espírito humano, faz algo no espírito humano que ele não poderia fazer por si mesmo Quando ela se apodera do homem, cria vida-sem-ambigüidade. O homem em sua auto-transcendência pode atingi-la, mas não pode agarrá-la, a não ser que ele primeiro seja possuído por ela. O homem continua estando dentro de si mesmo. Por sua natureza mesma de auto-transcendência, o homem é levado a levantar a pergunta pela vida-sem-ambigüidade, mas a resposa deve vir a ele através do poder criativo da Presença Espiritual.”

“O finito não pode forçar o infinito; o homem não pode violentar a Deus. O espírito humano como dimensão da vida é ambíguo, como o é toda forma de vida, ao passo que o Espírito divino cria vida-sem-ambigüidade.”

“Já que a humanidade nunca é deixada só por Deus, já que ela está continuamente sob o impacto da Presença Espiritual, sempre existe Novo Ser na história. Sempre existe participação na união transcendente da vida-sem-ambigüidade. Mas essa participação é fragmentária. [...] A união transcendente plena é um conceito escatológico. O fragmento é uma antecipação (como Paulo fala do fragmento e da posse antecipatória do Espírito divino, da verdade, da visão de Deus, e assim por diante). [...] A experiência fragmentária da fé e a atualização fragmentária do amor ciram a participação do indivíduo na união transcendente da vida-sem-ambigüidade.”

“... para a religião profética a Presença Espiritual é a presença do Deus de humanidade e justiça. A história do conflito entre o profeta Elias e os sacerdotes de Baal é significativa, pois mostra diferentes tipos de êxtase. O êxtase produzido pelo espírito de Baal nas mentes e corpos de seus sacerdotes está relacionado com auto-intoxicação e auto-mutilação, enquanto que o êxtase de Elias é o de um encontro pessoa-a-pessoa na oração que certamente transcende as experiências ordinárias em intensidade e efeito mas que nem elimina nem desintegra o centro pessoal do profeta

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nem produz intoxicação física. Em todas as partes o Antigo Testamento segue essa linha. Não existe Presença Espiritual onde não há humanidade e justiça. Sem elas – e esse é o juízo dos profetas contra sua própria religião – há apenas Presença Espiritual demonizada e profanizada. Esse juízo é assumido pelo Novo Testamento e reaparece na história da igreja em todos os movimentos de renovação, entre os quais podemos citar a Reforma Protestante como sendo um deles.”

“A fé de Cristo é o estado de ser possuído de forma não-ambígua pela Presença Espiritual.”“Contudo, isso nunca produz uma profanização ou demonização de sua fé. O Espírito nunca

o abandona; o poder da união transcendente da vida-sem-ambigüidade sempre o sustenta.” “A cristologia pneumatológica reconhece que o Espírito divino que fez de Jesus o Cristo

está criativamente presente no conjunto da história da revelação e salvação antes e depois de seu aparecimento.”

“A Comunidade Espiritual é a comunidade de fé e amor, que participa da união transcendente da vida-sem-ambigüidade.”

“as ambigüidades da vida religiosa são conquistadas em princípio na vida das igrejas; sua força auto-destrutiva é rompida. Elas não são completamente eliminadas – e até podem estar presentes com força demoníaca – mas como Paulo diz no capítulo 8 da carta aos Romanos e em outras passagens: o aparecimento do Novo Ser supera o poder último das ‘estruturas demoníacas de destruição’.”

“É um demoníaco e portanto destrutivo para a comunidade de fé ser interpretada como sujeição incondicional às afirmações doutrinárias de fé tal qual se desenvolveram há história das igrejas, por sinal uma história bastante ambígua.”

“O que significa “comunidade de fé” se a comunidade, bem como as personalidades dos membros individuais está desintegrada pela crítica e dúvida?”

“Essas questões mostram quão poderosas são as ambigüidades da religião nas igrejas e como é difícil para a fé resistir a elas.”

“Nesse sentido podemos dizer que uma igreja é uma comunidade daqueles que afirmam que Jesus é o Cristo.”

“... a igreja pode incorrer em erros desintegradores, destrutivos ou mesmo demoníacos”.“Ao mesmo tempo em que são uma comunidade de fé, as igrejas são também uma

comunidade de amor”.“Como tudo o mais na natureza das igrejas, a comunidade de amor tem o caráter de “apesar

de”; o amor nas igrejas manifesta o amor da Comunidade Espiritual, mas o faz sob a condição das ambigüidades da vida.”

“Já que a igreja, em contraste com outros grupos na sociedade, julga em nome da Comunidade Espiritual, seu julgamento corre o perigo de se tornar mais radical, mais fanático, mais destrutivo e demoníaco. Por outro lado, e por esse motivo, o Espírito está presente na Igreja, e ele julga o juízo da igreja e luta contra suas distorções.”

“Nessa situação o fanatismo, como sempre, é resultado de uma insegurança interior, e a perseguição, como sempre, é produzida pela ansiedade.”

“O perigo da promulgação da veracidade sem adaptação, como indicado acima, é um absolutismo demoníaco que atira a verdade como se fosse pedras, sobre as cabeças das pessoas, não se importando se elas a aceitam ou não.”

“A igreja mostra sua presença como igreja apenas quando o Espírito irrompe nas formas finitas e as conduz para além de si mesmas.”

“O estabelecimento do princípio de desigualdade entre pecadores socialmente condenados e justos socialmente reconhecidos é uma das negações mais óbvias do princípio cristão de igualdade. Contra essa atitude de muitos grupos e indivíduos das igrejas está o fato de que a psicologia secular do inconsciente redescobriu a realidade do demoníaco em cada pessoa; isso deveria ser interpretado como sendo um impacto da Presença Espiritual. Ao fazer isso ela restabeleceu, pelo menos negativamente, o princípio da igualdade como elemento da justiça. Se as igrejas não sentem nesse desenvolvimento um chamado à conversão, elas acabarão ficando obsoletas, e o Espírito divino irá atuar em e através de movimentos aparentemente ateístas e anti-cristãos.”

“O motivo dessa mutualidade [das igrejas com outros grupos] é a igualdade de condição. Esse princípio é o critério anti-demoníaco da santidade das igrejas, porque ele impede a arrogância

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de uma santidade finita, que é a tentação básica de todas as igrejas. Se elas interpretam sua santidade paradoxal como se fosse santidade absoluta, incorrem em hybris demoníaca, e suas funções sacerdotal, profética e real frente ao “mundo” se tornam instrumentos de uma vontade de poder pseudo-Espiritual. Foi a experiência da demonização da igreja romana na Idade Média tardia que produziu o protesto da Reforma bem como do Renascimento. Esses protestos libertaram o Cristianismo em muitos lugares da escravidão ao poder demoniacamente distorcido da igreja, fazendo com que as pessoas se conscientizassem das ambigüidades da religião atual.”

“Mas a experiência de Lutero dos ataques demoníacos levou também a uma profunda compreensão dos elementos demoníacos na vida em geral e na vida religiosa em particular.”

“Santificação inclui a consciência do demoníaco bem como do divino. Essa consciência, que aumenta no processo de santificação, não conduz ao surgimento do “homem sábio” dos estóicos, que é superior às ambigüidades da vida porque venceu suas paixões e desejos, mas sim a uma consciência dessas ambigüidades em si, como nos demais, e ao poder de afirmar a vida em sua dinâmica vital apesar de suas ambigüidades.”

“Crescimento na liberdade Espiritual é, antes de tudo, o crescimento na liberdade com relação à lei.”

“Na medida em que estamos alienados, aparecem proibições e mandamentos, que produzem uma consciência inquieta. Na medida em que estamos reconcilizados, atualizamos aquilo que somos essencialmente, em liberdade, sem mandamento.”

“Nenhum prazer é inofensivo, e a busca de prazeres inofensivos conduz a uma valoração vazia do poder da dinâmica vital na natureza humana.”

“Aquele que admite a dinâmica vital no homem como elemento necessário em todas as suas auto-expressões (suas paixões ou seu eros) deve saber que aceitou a vida com sua ambigüidade divino-demoníaca e que é triunfo da Presença Espiritual a atração dessas profundidades da natureza humana para dentro de sua esfera, em vez de substituí-las pela ajuda da repressão mediante a distinção sutil dos ‘prazeres inofensivos’.”

“Aquele que tenta evitar o aspecto demoníaco do sagrado perde igualmente o aspecto divino e lucra apenas uma segurança enganadora entre eles. A imagem de perfeição é o homem que, no campo de batalha entre o divino e o demoníaco, vence o demoníaco, embora fragmentária e prolepticamente (isto é, em antecipação).”

“Não é uma atitude negativa com relação às potencialidades humanas que produz o contraste, mas a consciência da luta indecisa entre o divino e o demoníaco em cada homem, que no humanismo é substituída pelo ideal de auto-atualização harmoniosa. E é a busca da Presença Espiritual e do Novo Ser como conquista do demoníaco que está faltando na imagem humanista do homem e contra a qual o humanismo se revolta.”

“A vinda do Cristo não significa a fundação de uma nova religião, mas a transformação do antigo estado de coisas. Conseqüentemente, a igreja não é uma comunidade religiosa, mas a representação antecipatória de uma nova realidade, o Novo Ser como comunidade.”

“Na medida em que a religião é conquistada pela Presença Espiritual, a profanização e demonização são conquistadas.”

A Comunidade Espiritual é “a essência das igrejas e da qual as igrejas são simultaneamente a representação existencial bem como a distorção existencial”.

“A demonização também é conquistada na medida em que religião também é conquistada.”Cristo e os mártires sofreram “em sua disposição de participar das conseqüências trágicas da

alienação humana”.“A grandeza auto-afirmada no reino do sagrado é demoníaca.”“O mesmo vale para indivíduos que, como integrantes de um grupo que faz tal

reivindicação, se tornam auto-convencidos, fanáticos e destrutivos da vida dos demais e do sentido da sua própria vida. Mas na medida em que o Espírito divino conquista a religião, ele impede a reivindicação ao absolutismo, tanto por parte da igreja como por parte de seus membros. Onde o Espírito divino é efetivo, a reivindicação de uma igreja de representar Deus, com exclusão de todas as outras igrejas, é rejeitada. A liberdade do Espírito opõe resistência a isso. E quando o Espírito divino é efetivo, a reivindicação de um membro da igreja de ter posse exclusiva da verdade é destruída pelo testemunho do Espírito divino, referente à sua participação fragmentária bem como ambígua da verdade. A Presença Espiritual exclui o fanatismo, porque na presença de Deus

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nenhum homem pode se vangloriar de possuir Deus. Ninguém pode possuir aquilo pelo que é possuído – a Presença Espiritual.”

“O Princípio Protestante é uma expressão da conquista da religião pela Presença Espiritual e conseqüentemente uma expressão da vitória sobre as ambigüidades da religião, sua profanização e demonização. É Protestante, porque protesta contra a auto-elevação trágico-demoníaca da religião e liberta a religião de si mesma para as outras funções do espírito humano, ao mesmo tempo em que liberta essas funções de sua auto-reclusão contra as manifestações daquele que é último.”

“O Princípio Protestante [...] impede que a profanização e demonização destruam completamente as igrejas cristãs. [...] É a expressão da vitória do Espírito sobre a religião.”

É um erro “considerar que o Espírito divino está preso à religião [...] é na verdade a identificação demoníaca das igrejas com a Comunidade Espiritual e é uma tentativa de limitar a liberdade do Espírito pela reivindicação absoluta de um grupo religioso”.

“Em algumas dessas tentativos [de conquistar a ruptura] a Presença Espiritual se manifesta; em outras se manifesta o desejo desesperado e freqüentemente demoníaco de evitar esse ruptura mediante uma fuga da realidade.”

Existe um “conflito entre o divino e o demoníaco dentro de cada religião”.O evento único é o “critério de todas as religiões”, pois tem o poder de ter “rompido o

demoníaco em todos os tempos”.“A história, ao mesmo tempo em que caminha para frente, rumo a seu alvo último,

continuamente atualiza alvos limitados e, ao fazer isso, ao mesmo tempo consegue seu alvo último e o perde. Todas as ambigüidades da existência histórica são formas dessa ambigüidade básica.”

“Os grandes conquistadores são, conforme a visualização de Lutero, “máscaras” demoníacas de Deus através de cujo impulso rumo à centralidade universal Deus realiza sua tarefa providencial.”

“Os conflitos históricos entre o velho e o novo atingem seu estágio mais destrutivo quando um dos lados reivindica para si ultimacidade auto-elevada. Essa reivindicação à ultimacidade é a definição do demoníaco, e em nenhum lugar o demoníaco é tão manifesto como na dimensão histórica.”

“A luta entre o velho sagrado e o novo profético é um tema central da história das religiões e, de acordo ao fato de que o lugar favorito do demoníaco é o sagrado, esses conflitos atingem uma destrutividade infinitamente maior nas guerras e perseguições religiosas.”

Uma reivindicação arrogante da igreja pode evidenciar “tanto seus traços divinos quanto demoníacos”.

Devemos entender o Reino de Deus “com os escritores bíblicos, como um poder dinâmico sobre a terra por cuja vinda oramos no Pai Nosso e que, conforme o pensamento bíblico, está em luta com os poderes demoníacos que atuam com grande força tanto nas igrejas quanto nos impérios”.

Na literatura apocalíptica, a visão histórica é ampliada e substituída por uma visão cósmica. A terra se tornou velha, os poderes demoníacos tomaram conta dela. Guerras, enfermidades e catástrofes naturais de caráter cósmico ocorrerão antes do renascimento de todas as coisas e do novo eon em que Deus finalmente se tornará o governante das nações e em que serão cumprids as esperanças proféticas. Isso não ocorrerá mediante desenvolvimentos históricos mas mediante interferência divina e uma nova criação, resultando num novo céu e numa nova terra. Essas visões independem de qualquer situação histórica e não são condicionadas por atividades humanas. O mediador divino não é mais o Messias histórico, mas o Filho do Homem, o Homem Celestial. Essa interpretação da história foi decisiva para o Novo Testamento.”

“A referência ao império romano – às vezes visto como o último e maior da série dos impérios – mostra que a visão dos poderes demoníacos não é meramente imaginária.”

“O Novo Testamento acrescenta um elemento novo a essas visões: o aparecimento intra-histórico de Jesus como o Cristo e a fundação da igreja no meio das ambigüidades da história. Tudo isso mostra que a ênfase na transcendência no símbolo “Reino de Deus” não exclui traços intra-históricos de importância decisiva – assim como o predomínio do elemento imanente não exclui o simbolismo transcendente.”

“Onde aumenta o poder do bem, também aumenta o poder do mal. A providência histórica inclui tudo isso e é criativa através disso em direção ao novo, tanto na história quanto acima dela.

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Esse conceito de providência história também inclui a rejeição de um pessimismo reacionário e cínico. Ele dá a certeza de que o negativo na história (a desintegração, destruição, profanização) nunca podem prevalecer contra os alvos temporais e eternos do processo histórico. Esse é o sentido das palavras de Paulo sobre a conquista dos poderes demoníacos pelo amor de Deus tal qual manifesto no Cristo (Romanos, capítulo 8). As forças demoníacas não são destruídas, mas elas não podem frustrar o alvo da história, que é a reunião com o fundamento divino do ser e do sentido.”

“A representação do Reino de Deus pelas igrejas é tão ambígua como a incorporação da Comunidade Espiritual nas igrejas. Em ambas as funções as igrejas são paradoxais: elas revelam e ocultam. Já indicamos que as igrejas podem representar até o reino demoníaco. Mas o reino demoníaco é uma distorção do Reino divino e não teria ser sem aquilo de que é a distorção.”

“Ao encetar essa luta através de toda a história as igrejas são instrumentos do Reino de Deus. Elas são capazes de servir como instrumentos porque se baseiam no Novo Ser em que são vencidas as forças de alienação. O demoníaco, conforme o simbolismo popular, não pode suportar a presença imediata do sagrado caso ele apareça em palavras, signos, nomes ou materiais sagrados. Mas além disso as igrejas crêem que o poder do Novo Ser, ativo nelas, vencerá os poderes demoníacos bem como as forças de profanização na história universal.”

O Reino de Deus “abarca toda a realidade. E se as igrejas reivindicam representá-lo, não devem reduzir seu sentido a um elemento apenas”.

“As igrejas que representam o Reino de Deus em sua luta contra as forças de profanização e demonização estão elas mesmas sujeitas às ambigüidades da religião e expostas à profanização e demonização.”

“Sua luta contra o demoníaco e o profano é dirigida contra o demoníaco e o profano na própria igreja.”

“... o enigma mais terrível da história da igreja é o poder manifesto do demoníaco nela”. “Há uma linha de demonização no cristianismo, desde a primeira perseguição aos hereges

imediatamente após a elevação do cristianismo à posição de religião de Estado do império romano, mediante fórmulas de condenação nas declaração dos grandes concílios, através de guerras de eliminação contras as seitas medievais e os princípios da Inquisição, através da tirania da ortodoxia protestante, do fanatismo de suas seitas e a teimosia do fundamentalismo, à declaração da infalibilidade do papa. O evento em que o Cristo sacrificou todas as reivindicações de absolutizar algo particular, em que os discípulos queriam forçá-lo ocorreu em vão para todos esses exemplos de demonização da mensagem cristã.”

“A história sagrada está na história da igreja mas não se limita a ela; e história sagrada não é apenas manifesta mas também oculta pela história da igreja.”

“Conseqüências demoníacas resultam da absolutização da realização fragmentária do alvo da história dentro da história.”

“E já que a linha vertical é antes de tudo a linha que vai do indivíduo até aquele que é último, surge a questão de como o Reino de Deus, em sua luta dentro da história, vence as ambigüidades do indivíduo em sua existência histórica.”

Paulo Roberto Rückert é professor de Teologia Contemporânea na Faculdade Teológica Unida.