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ASPECTOS JURÍDICOS DA FRAUDE DE ENERGIA ELÉTRICA Érika Wilza Brito de Assis 1 RESUMO A evasão de tributos, o comprometimento do resultado e indicadores das concessionárias, o impacto na tarifa, tudo isso faz com que as perdas de energia elétrica sejam uma preocupação nacional. Diante disso, o presente artigo busca abordar os diversos aspectos jurídicos que envolvem a fraude de energia elétrica, desde as formas de combate, até sua resolução no âmbito do Judiciário, passando por questões controversas que envolvem o tema. Também serão pontuadas as correlações existentes entre os diversos ramos do direito e o tema em estudo. Levantar esse debate fazer com que essa matéria seja difundida no meio jurídico é também uma das vigas mestras do presente estudo. A pesquisa desenvolve-se basicamente pela análise de diplomas legislativos e jurisprudências, com apoio na escassa doutrina existente sobre o tema. Palavras-Chaves: Concessão. Energia Elétrica. Irregularidade 1 INTRODUÇÃO As perdas não-técnicas de energia elétrica são um dos maiores desafios das empresas distribuidoras de energia elétrica do Brasil e do mundo. Estas perdas, que também são denominadas de perdas comerciais, repercutem sob os usuários de duas maneiras principais: uma quando é realizada a revisão tarifária 2 , na qual a ANEEL - Agência Nacional de Energia Elétrica permite que um percentual das perdas das concessionárias seja remunerado na tarifa seguinte 3 ; a outra quando a concessionária deve suportar o percentual não incluído na tarifa, o que provoca inevitável reflexo no serviço, uma vez que a concessionária terá que deixar de aplicar recursos na melhoria das atividades para direcioná-los ao combate as perdas. Dentre as várias origens de perdas não-técnicas destacaremos aqui o furto/fraude de energia elétrica. Nem sempre as variáveis que colaboram ou interferem na elevação do furto/fraude de energia elétrica estão associadas a fatores diretamente vinculados às concessionárias, muitas vezes eles são externos às organizações, tais como: baixo nível de renda da população, situação econômica do país, elevação da carga tributária, ocupação desordenada das cidades, taxa de 1 Concludente do Curso de Bacharelado em Direito do CEUT, Turma 2009.2. Trabalho apresentado para a obtenção do título de Bacharel em Direito. 2 As revisões tarifárias são feitas ordinariamente a cada 05 (cinco) anos e têm por objetivo restabelecer o equilíbrio econômico-financeiro da concessão. As revisões também podem ser solicitadas extraordinariamente pelas Concessionárias sempre que algum evento provoque significativo desequilíbrio financeiro na concessão. Nesse caso, o Contrato de Concessão deve ser revisto e auditado para assegurar a justa remuneração. O objetivo é manter intacto o equilíbrio entre a prestação do serviço e a remuneração. 3 Conforme Resolução 456/2000 da ANEEL.

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ASPECTOS JURÍDICOS DA FRAUDE DE ENERGIA ELÉTRICA

Érika Wilza Brito de Assis1

RESUMO

A evasão de tributos, o comprometimento do resultado e indicadores das concessionárias, o impacto

na tarifa, tudo isso faz com que as perdas de energia elétrica sejam uma preocupação nacional.

Diante disso, o presente artigo busca abordar os diversos aspectos jurídicos que envolvem a fraude

de energia elétrica, desde as formas de combate, até sua resolução no âmbito do Judiciário,

passando por questões controversas que envolvem o tema. Também serão pontuadas as correlações

existentes entre os diversos ramos do direito e o tema em estudo. Levantar esse debate fazer com

que essa matéria seja difundida no meio jurídico é também uma das vigas mestras do presente

estudo. A pesquisa desenvolve-se basicamente pela análise de diplomas legislativos e

jurisprudências, com apoio na escassa doutrina existente sobre o tema.

Palavras-Chaves: Concessão. Energia Elétrica. Irregularidade

1 INTRODUÇÃO

As perdas não-técnicas de energia elétrica são um dos maiores desafios das empresas

distribuidoras de energia elétrica do Brasil e do mundo. Estas perdas, que também são denominadas

de perdas comerciais, repercutem sob os usuários de duas maneiras principais: uma quando é

realizada a revisão tarifária2, na qual a ANEEL - Agência Nacional de Energia Elétrica permite que

um percentual das perdas das concessionárias seja remunerado na tarifa seguinte3; a outra quando a

concessionária deve suportar o percentual não incluído na tarifa, o que provoca inevitável reflexo

no serviço, uma vez que a concessionária terá que deixar de aplicar recursos na melhoria das

atividades para direcioná-los ao combate as perdas.

Dentre as várias origens de perdas não-técnicas destacaremos aqui o furto/fraude de

energia elétrica. Nem sempre as variáveis que colaboram ou interferem na elevação do furto/fraude

de energia elétrica estão associadas a fatores diretamente vinculados às concessionárias, muitas

vezes eles são externos às organizações, tais como: baixo nível de renda da população, situação

econômica do país, elevação da carga tributária, ocupação desordenada das cidades, taxa de

1 Concludente do Curso de Bacharelado em Direito do CEUT, Turma 2009.2. Trabalho apresentado para a obtenção

do título de Bacharel em Direito. 2 As revisões tarifárias são feitas ordinariamente a cada 05 (cinco) anos e têm por objetivo restabelecer o equilíbrio

econômico-financeiro da concessão. As revisões também podem ser solicitadas extraordinariamente pelas

Concessionárias sempre que algum evento provoque significativo desequilíbrio financeiro na concessão. Nesse caso, o

Contrato de Concessão deve ser revisto e auditado para assegurar a justa remuneração. O objetivo é manter intacto o

equilíbrio entre a prestação do serviço e a remuneração. 3 Conforme Resolução 456/2000 da ANEEL.

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desemprego, elevação dos índices de criminalidade, inércia na ação policial, falta de agilidade da

justiça, cultura da impunidade e percepção generalizada da população de que o furto/fraude de

energia elétrica não é crime (cultura da fraude).

Essa cultura, que existe em relação ao furto/fraude de energia elétrica, resulta do pouco

conhecimento que a sociedade tem acerca dos prejuízos decorrentes dessas práticas, como:

I- Risco de acidentes. Uma vez que, na maioria das vezes, o fraudador não possui

conhecimento técnico e nem tampouco obedece aos procedimentos de segurança.

II- Evasão de tributos, tais como: ICMS, COFINS, PIS, IRPJ, CSSL. O que acentua a

falta de recursos para aplicação em educação, saúde, segurança pública, transporte, etc. A título de

exemplo, durante o ano de 2006, somente no Estado do Maranhão, a União deixou de arrecadar R$

58.829.708,95 (cinqüenta e oito milhões, oitocentos e vinte e nove mil, setecentos e oito reais e

noventa e cinco centavos); em 2007 esses valores foram de R$ 63.321.835,57 (sessenta e três

milhões, trezentos e vinte e um mil, oitocentos e trinta e cinco reais e cinqüenta e sete centavos)4;

III- Concorrência desleal no mercado, na medida em que o fraudador pode vender seu

produto mais barato;

IV- Elevação da tarifa, provocada pelo descompromisso do fraudador com a

conservação e uso racional da energia elétrica, o que implica em perda de competitividade

econômica do Estado, uma vez que os grandes empreendimentos migram para os locais onde seus

insumos sejam mias baratos;

V- Redução do faturamento das concessionárias, e conseqüentemente da arrecadação; o

que implica em diminuição de recursos a serem investidos na manutenção e melhoria do parque

elétrico.

VI- Comprometimento dos indicadores de continuidade5 das concessionárias,

considerando que as ligações clandestinas, pela sua precariedade, provocam interrupções no

fornecimento de energia elétrica;

VII- Comprometimento do resultado das concessionárias de energia elétrica.

Diante dessa realidade, faz-se necessário o desenvolvimento de ações de combate ao

furto/fraude de energia, tais como: desenvolvimento de novas tecnologias de combate às perdas;

desenvolvimento de ações de inteligência no combate ao furto/fraude de energia, através do

diagnóstico das perdas e de melhores estratégias de detecção e combate; troca das melhores práticas

de combate entre as empresas, buscando sempre constantes inovações; elaboração de campanhas

4 Dados estipulados em estudo realizado pela Gerência de Recuperação de Energia da Companhia Energética do

Maranhão - CEMAR, no ano de 2008. 5 Parâmetros que representam o desempenho de um sistema elétrico. São utilizados para mensuração da continuidade

apurada e análise comparativa com os padrões estabelecidos através dos índices indicados pela ANEEL.

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educativas de prevenção; desenvolvimento de programas de eficiência para comunidades de baixa

renda; ação em conjunto com a Polícia; ação em conjunto com o Judiciário; entre outras.

Nesse diapasão, podemos dividir as ações de combate ao furto/fraude de energia elétrica

em três grupos:

I- Solução social;

II- Solução técnica; e

III- Solução legal.

Em face de tudo o que foi acima exposto, este trabalho busca abordar os aspectos

jurídicos da fraude de energia elétrica, desde as soluções propostas para sua erradicação, sobretudo

as soluções legais, passando por sua “descoberta”, através das inspeções/fiscalizações, até sua

resolução no âmbito do judiciário, envolvendo ainda questões ainda não pacíficas sobre o tema.

1.1 Conceitos

Para uma melhor compreensão do presente trabalho faz-se mister elencarmos alguns

conceitos que são de fundamental importância para o tema em apreço.

Perdas não técnicas - São aquelas que ocorrem no repasse aos usuários.

Furto de energia elétrica - Ocorre o furto de energia elétrica quando há conexões

clandestinas, auto-reconexões (ligado direto - LD) e desvios antes da medição6.

Fraude de energia elétrica - A fraude de energia elétrica é caracterizada pela

manipulação dos equipamentos de medição, alterando o valor correto da sua precisão para valores

inferiores aos reais7.

Inspeção - Chama-se inspeção a vistoria técnica realizada no padrão de entrada8 da

unidade consumidora visando detectar a precisão e possíveis defeitos dos equipamentos de

medição, detectar fraudes e/ou desvios de energia e verificar erros de ligação.

Consumo não registrado - Consumo que não foi faturado e, conseqüentemente, não foi

pago, em razão de ter sido camuflado pelo consumidor.

Tarifa - Preço público pago pelo usuário pela prestação do serviço. É fixada pelo valor

da proposta vencedora da licitação e preservada pelas regras de revisão, previstas na lei, no edital e

no contrato, que garantem o equilíbrio econômico-financeiro9 da concessionária. As tarifas poderão

6 Tipificados no artigo 155, III do Código Penal.

7 Cumpre ressaltar que a fraude de energia elétrica também é um tipo de furto de energia.

8 Conjunto de instalações composto por caixa de medição, sistema de aterramento, condutores e outros acessórios. O

mesmo deve obedecer a normas técnicas e de segurança. 9 É o direito à equivalência entre vantagens e encargos estabelecidos entre o Poder Concedente e a Concessionária,

assegurando-se uma justa remuneração pela atividade desenvolvida. Trata-se de garantia dada pelo Poder Concedente

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ser diferenciadas em função das características técnicas e dos custos específicos provenientes do

atendimento aos distintos segmentos de usuários, sendo os critérios de preços correspondentes aos

serviços prestados supervisionados e normatizados pela ANEEL. A concessão de qualquer

benefício tarifário poderá ser atribuída a uma classe ou coletividade de usuários dos serviços,

vedado, sob qualquer pretexto, o benefício singular. Matéria contida nos artigos 9° e 13 da lei

8.987/95 e parágrafo único do artigo 35 da lei 9.074/95.

Unidade consumidora - Conjunto de instalações e equipamentos elétricos caracterizado

pelo recebimento de energia elétrica em um só ponto de entrega, com medição individualizada e

correspondente a um único consumidor.

2 DISPOSIÇÕES CONSTITUCIONAIS

A princípio, realce salientarmos algumas disposições constitucionais que dizem respeito

à competência para a exploração dos serviços de energia elétrica e a possibilidade de sua atribuição

a terceiros, mediante concessão.

A atividade econômica do Estado, só é admitida excepcionalmente, conforme art. 173

da Constituição Federal, reservando-se o exercício estatal para os imperativos da segurança

nacional ou de relevante interesse coletivo, quando a administração atua diretamente, por

reconhecer a essencialidade e necessidade para a coletividade e para o próprio Estado.

Nesse contexto, dispõe o art. 20, inciso VIII da nossa Carta Magna, que os potenciais de

energia hidráulica são bens da União. Logo em seguida, autoriza a delegação de serviços. É o que

dispõe o art. 21, inciso XII, alínea “b” da Constituição Federal. In verbis:

Art. 21 - Compete à União:

XII - explorar diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão:

b) os serviços e instalações de energia elétrica e o aproveitamento energético dos cursos de

água, em articulação com os Estados onde se situam os potenciais hidroenergéticos.

Cumpre observarmos que a exploração da energia elétrica envolve não apenas a sua

produção, como também sua distribuição. Com a desverticalização10

, os serviços de energia elétrica

foram divididos em três atividades distintas: geração, transmissão e distribuição, todas como

atividades independentes e, por determinação legal, impedidas de serem prestadas pela mesma

de que a concessão não sofrerá, por algum evento, o desequilíbrio na equação econômico-financeira, a ponto de ter a

concessão abalada. Os reajustes tarifários oferecem à concessionária a perspectiva de que, no período entre as revisões

tarifárias, o seu equilíbrio econômico-financeiro não sofrerá corrosão por processo inflacionário. 10

Conceito desenvolvido pelo RESEB (Projeto de Reestruturação do Setor Elétrico Brasileiro), em prática pelo Órgão

Regulador ANEEL. Rege a matéria o §5° do artigo 4°, da Lei 9.074/95, modificado pelo artigo 8° da Medida

Provisória 144, de 10 de dezembro de 2003.

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pessoa jurídica. Dessa forma, podemos concluir que a distribuição da energia elétrica é serviço

delegado pela União mediante concessão.

Ainda sobre as concessionárias de serviços públicos e suas características, assim

estabelece o artigo 175 da Constituição Federal. In verbis:

Art. 175 - Incube ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de

concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.

Parágrafo único: A lei disporá sobre:

I- o regime das empresas concessionárias e permissionárias de serviços públicos, o caráter

especial de seu contrato e da sua prorrogação, bem como as condições de caducidade,

fiscalização e rescisão da concessão ou permissão;

II- os direitos dos usuários;

III- política tarifária;

IV- a obrigação de manter o serviço adequado.

Conforme podemos deduzir do citado artigo, lei infraconstitucional irá dispor sobre o

regime das empresas concessionárias e permissionárias de serviços públicos, caráter especial de seu

contrato, condições de caducidade e fiscalização, direitos dos usuários, política tarifária, entre

outros. É o que veremos mais adiante.

2.1 Princípios Constitucionais x Fraude de Energia

Sabemos que muitos são os princípios insculpidos em nossa Constituição Federal de

1988, todavia destacaremos aqui apenas os que mais apresentam relevância para o tema em estudo.

I- Princípio do acesso à justiça - art. 5°, inciso XXXV da Constituição Federal. Dispõe

que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.

De um modo geral, poucos comentários temos a tecer sobre o referido princípio. Além

de auto-explicativo, não há grandes controvérsias envolvendo o tema. Sempre que o consumidor de

energia elétrica busca a Justiça por considerar que seu direito foi lesionado ou ameaçado, ainda que

seja comprovadamente um “fraudador” terá o acesso à justiça garantido.

II- Princípio da ampla defesa e do contraditório - art. 5ª, inciso LV da Constituição

Federal. Estabelece que aos litigantes em processo judicial ou administrativo serão assegurados o

contraditório e a ampla defesa.

Nesse sentido, a ANEEL - Agência Nacional de Energia Elétrica, delegatária da União

na competência normativa técnica sobre o setor de energia elétrica, regulou o uso das inspeções

pelas Concessionárias de Energia Elétrica, reconhecendo-lhes o direito de combater a maléfica

prática de fraude, mas impondo-lhes uma série critérios a serem observados para a validade da

inspeção.

A inspeção realizada pela concessionária permite ao consumidor a ampla defesa e o

contraditório. Destacaremos aqui alguns exemplos práticos, disponibilizados ao consumidor durante

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o procedimento das fiscalizações e na formatação dos processos administrativos de consumo não

registrado.

Durante a inspeção, o consumidor poderá solicitar o acompanhamento de um técnico

em eletricidade particular. Dessa maneira, o mesmo terá o respaldo de um técnico com

conhecimentos específicos em energia elétrica, que irá acompanhar os inspetores da concessionária

na realização da fiscalização. Apesar de não ser este um procedimento necessário, uma vez que os

inspetores da concessionária realizarão todos os procedimentos conforme determina a ANEEL,

independente do acompanhamento ou não, de um técnico particular, representa mais uma garantia

para o consumidor.

Após a formatação do processo administrativo de consumo não registrado - CNR, o

consumidor é informado acerca da existência do referido processo, dessa forma, o mesmo tem a

possibilidade de apresentar defesa administrativa (recurso) junto à concessionária, além de ainda

poder recorrer à própria ANEEL, conforme artigo 78, parágrafos 1º, 2º e 3º da Resolução 456 da

ANEEL.

Ainda nesse sentido, caso não concorde com aferição realizada pela concessionária em

seu medidor, poderá solicitar aferição11

em Órgão Metrológico Oficial. É o que dispõe o §3º, do

artigo 38 da Resolução 456 da ANEEL, in verbis:

Art. 38- O consumidor poderá exigir a aferição dos medidores, a qualquer tempo, sendo que

as eventuais variações não poderão exceder os limites percentuais admissíveis.

(...)

§3º- Persistindo dúvida o consumidor poderá, no prazo de 10 (dez) dias, contados a partir

do recebimento da comunicação do resultado, solicitar a aferição do medidor por órgão

metrológico oficial, devendo ser observado o seguinte:

I- quando não for possível a aferição no local da unidade consumidora, a concessionária

deverá acondicionar o medidor em invólucro específico, a ser lacrado no ato de retirada, e

encaminhá-lo ao órgão competente, mediante entrega de comprovante desse procedimento

ao consumidor;

II- os custos de frete e de aferição devem ser previamente informados ao consumidor; e

III- quando os limites de variação tiverem sido excedidos os custos serão assumidos pela

concessionária, e, caso contrário, pelo consumidor.

Em síntese, o contraditório é constituído por dois elementos: informação e reação. Sua

configuração é que permite a ampla defesa. Dessa forma, atendidas as premissas estabelecidas pela

regulação, não há que se falar que os procedimentos de inspeção realizados pelas concessionárias

são unilaterais.

Os direitos e garantias individuais são limitadores da atuação administrativa, uma vez

que são automaticamente inconstitucionais todos os atos que atentem contra qualquer princípio

previsto no art. 5° da Constituição Federal. Conclui-se, portanto, que o combate à fraude de energia

não pode implicar em ofensa aos princípios do acesso à justiça e da ampla defesa e do contraditório,

11

Procedimento técnico realizado com a finalidade de verificar a precisão do equipamento de medição de energia

elétrica, observando se o mesmo está em conformidade com os padrões definidos pela ANEEL.

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assegurados constitucionalmente. Em sentido contrário, não pode o consumidor socorrer-se destes

princípios para agir de forma não compatível com a adequada utilização do serviço.

2.2 Da Inviolabilidade do Domicílio

Exposta no artigo 5°, inciso XI da Constituição Federal, informa que a casa é asilo

inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em

caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação

judicial.

A referida garantia constitucional traz à baila alguns questionamentos quando

analisamos os procedimentos realizados durante as fiscalizações promovidas pelas concessionárias

de energia elétrica nas unidades consumidoras. Em uma primeira análise, parece haver notória

violação ao referido direito fundamental, quando da realização das inspeções, todavia, para que

possamos melhor compreender as dúvidas que comumente são apresentadas, faz-se mister detalhar

o funcionamento das mesmas.

Após a seleção dos alvos, que, em síntese, podem ser aleatórios, automáticos ou

determinados por um sistema de inteligência, os inspetores da concessionária se deslocam até a

unidade consumidora12

e lá realizam uma vistoria técnica no padrão de entrada, visando detectar a

precisão e possíveis defeitos dos equipamentos de medição, fraudes e/ou desvios de energia e

verificar erros de ligação. Não obstante a vistoria realizada no padrão de entrada, após a autorização

do consumidor mediante assinatura na ficha de inspeção técnica, os inspetores podem ainda fazer

verificações internas no imóvel, visando detectar possíveis problemas nas instalações internas e/ou

desvios embutidos13

.

Nesse diapasão, o artigo 37 da Resolução 456 da ANEEL informa que o consumidor

deve assegurar o livre acesso dos inspetores aos locais em que os equipamentos de medição estejam

instalados. In verbis:

Art. 37- A verificação periódica dos medidores de energia elétrica instalados na unidade

consumidora deverá ser efetuada segundo critérios estabelecidos na legislação metrológica,

devendo o consumidor assegurar o livre acesso dos inspetores credenciados aos locais em

que os equipamentos estejam instalados.

Dessa forma, quando a vistoria está sendo realizada no padrão de entrada, não há que se

falar em violação do direito fundamental da inviolabilidade do domicílio, posto que expressamente

12

Unidade consumidora é o conjunto de instalações e equipamentos elétricos caracterizado pelo recebimento de energia

elétrica em um só ponto de entrega, com medição individualizada e correspondente a um único consumidor. 13

Desvios embutidos são aqueles não facilmente detectáveis, instalados antes da medição. São cabos que normalmente

se encontram incrustados em paredes, teto ou solo. Os mesmos criam caminhos mais curtos para a passagem da

energia elétrica, que desvia de seu percurso normal; dessa forma a mesma será consumida, mas não será efetivamente

registrada pelos equipamentos de medição.

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autorizado por legislação normativa do setor. Importante ressaltar que para chegar a essa conclusão

foi considerado que os equipamentos de medição (padrão de entrada) estejam instalados na área

externa da residência (externalização da medição), o que é recomendado pela ANEEL e que

veremos com maior detalhe mais adiante.

Por outro lado, o próprio dispositivo constitucional ressalva que ninguém poderá

adentrar o domicílio do indivíduo, se, e somente se, não houver o consentimento do mesmo.

Conforme anteriormente visto, os inspetores somente realizam verificações internas, quando há

expressa autorização do consumidor.

Conclui-se, portanto, que apesar de alguns poucos questionamento no sentido de colocar

em xeque a atuação dos inspetores das concessionárias durante a realização das fiscalizações, desde

que respeitado o direito de inviolabilidade do lar, não há qualquer irregularidade nas mesmas.

3 IMPLICAÇÕES NO DIREITO ADMINISTRATIVO

Inicialmente, faremos algumas considerações sobre serviços públicos, serviços de

utilidade pública, e sua possibilidade de delegação. Segundo a tradicional doutrina, serviços

públicos, propriamente ditos, são os que a Administração presta diretamente à comunidade, por

reconhecer a sua essencialidade e necessidade para a sobrevivência do grupo social, e do próprio

Estado. Serviços de utilidade pública são os que a Administração, reconhecendo a sua conveniência

para os membros da coletividade, presta-os diretamente ou aquiesce que sejam prestados por

terceiros, podendo ainda se dividir em serviços uti singuli e uti universi. Os primeiros são aqueles

prestados a usuários determinados, onde é possível dimensionar quem são os indivíduos que

recebem os serviços e cada prestação, são os que têm por finalidade a satisfação individual e direta

das necessidades dos cidadãos. Os segundos são aqueles onde não há possibilidade de

individualização dos seus beneficiários, são os serviços públicos com caráter de generalidade. Os

mesmos são prestados à coletividade, mas usufruídos apenas indiretamente pelos indivíduos. Dessa

forma, em decorrência de sua própria natureza, os serviços uti universi são impassíveis de serem

delegados.

Nesse sentido, podemos concluir que a distribuição de energia elétrica é serviço de

utilidade pública uti singuli delegado pela União mediante concessão. Neste sentido, cumpre

salientarmos algumas características das concessões.

Segundo doutrina majoritária, a concessão corresponde ao contrato administrativo pelo

qual poder público concedente confere ao concessionário (particular ou outro ente público) os

poderes e deveres que legalmente lhe cabem, para que estes os exerçam em seu lugar, como a

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execução remunerada de serviço público, devendo fazê-lo pelo prazo e nas condições

regulamentares e contratuais.

A concessão de serviço público, em sua forma tradicional, é disciplinada pela lei

8.987/95 (lei de concessões) e sua remuneração básica, decorre de tarifa paga pelo usuário. Sua

natureza jurídica é de contrato administrativo, sujeito a regime jurídico de direito público. Diante

disso, e em decorrência da própria natureza jurídica das concessões, as concessionárias possuem

prerrogativas e sujeições próprias do poder público, concernentes à finalidade, procedimento,

forma, cláusulas exorbitantes, mutabilidade, etc.. Nesse sentido, possuem normas próprias,

adequadas à situação específica, buscando sempre o equilíbrio dos contratos (art. 37, inciso XXI da

Constituição Federal c/c arts. 5º e 29, inciso V da Lei 8.987/95). Cumpre observar que as

prerrogativas da concessionária sub-rogam nas prerrogativas da Administração.

Sob esta perspectiva, os atos da concessionária possuem presunção de legitimidade juris

tantum (presunção relativa), uma vez que emanados de um ente que, embora não pertença à

administração, está sob seu comando direto. A idoneidade é característica indispensável do

prestador dos serviços públicos. Além disso, o fato da atividade está sendo exercida por um

particular não a desvirtua de seu caráter público/administrativo, uma vez que está sendo regulada

pela própria Administração, que continua como titular da atividade, pois o poder concedente só

transfere ao concessionário a execução do serviço, continuando titular do mesmo. Corroborando

esse entendimento, temos as jurisprudências que seguem abaixo:

Apelação Cível n° 012.030.129.048

Apelante: Espírito Santo Centrais Elétricas S/A

Apelados: Delson Luiz Barcelos e outra

Relator: Arnaldo Santos Sousa

Tribunal de Justiça do Espírito Santo

PROCESSO CIVIL. APELAÇÃO CÍVEL. ENERGIA ELÉTRICA.

FISCALIZAÇÃO. INDÍCIOS DE FRAUDE. PRESUNÇÃO DE LEGITIMIDADE

DO ATO ADMINISTRATIVO. DANO MORAL NÃO CARACTERIZADO.

SENTENÇA REFORMADA. RECURSO PROVIDO.

1. A atuação regular da concessionária/recorrente no sentido de fiscalizar e notificar

possíveis indícios de fraude no consumo de energia não caracteriza dano moral, já que tal

atividade encontra respaldo na lei.

2. Uma vez que não constam dos autos provas efetivas das irregularidades alegadas pelos

autores/recorridos, não há como desqualificar a presunção de legitimidade que reveste o ato

administrativo.

3. Recurso conhecido e provido para reformar a sentença atacada, julgando improcedente o

pedido constante da exordial e invertendo os ônus das sucumbências.

Conclusão: À unanimidade, dar provimento ao recurso, nos termos do voto do relator.

Apelação com Revisão n° 1171319009

Relator: Des. Fábio Rogério Bojo Pellegrino

31ª Câmara de Direito Privado

Tribunal de Justiça de São Paulo

Pub. DJ em: 14/08/2008

ENERGIA ELÉTRICA - SERVIÇO PÚBLICO DELEGADO - CONCESSIONÁRIA

DE SERVIÇO PÚBLICO - AUTUAÇÃO ADMINISTRATIVA- PODER DE

POLÍCIA - PRESUNÇÃO DE LEGALIDADE E LEGITIMIDADE

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ADMINISTRATIVAS - INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA DO CÓDIGO DE

DEFESA DO CONSUMIDOR - INAPLICABILIDADE - PERICÍA JUDICIAL,

ADEMAIS, QUE COMPROVA FRAUDE

1. Os atos fiscalizatórios de concessionária de serviço público delegado gozam de

presunção de legalidade e legitimidade administrativas. Tal presunção afasta a inversão do

ônus da prova do Código de Defesa do Consumidor, por falta de verossimilhança.

2. A presunção de legalidade e regularidade das autuações administrativas no exercício do

serviço público delegado à concessionária apenas é afastada com prova inequívoca, a cargo

do autuado, de abuso de poder ou irregularidade da concessionária, até porque ao autuado é

atribuída a prática de ilícito com lesão a interesse da coletividade.

3. Prova pericial judicial reforçou a presunção, tornando-a certeza, na medida em que

comprovou a adulteração do medidor de energia, na forma do já constatado

administrativamente pela concessionária.

Não obstante essas prerrogativas, a concessionária possui algumas limitações, tais

como: preço, condições de prestação, sujeição à fiscalização do Poder Concedente, sujeição a

sanções e alteração unilateral dos contratos. Nesse sentido, cumpre observar que a ANEEL -

Agência Nacional de Energia Elétrica é o ente competente para fiscalizar as concessionárias de

energia elétrica de todo o território nacional.

3.1 Relação Jurídica Concessionária x Concedente

Trata-se de relação regida por um contrato administrativo, que goza de prerrogativas e

sujeições (limitações), possuindo previsão expressa do direito de fiscalizar e aplicar sanções,

sempre após aviso prévio. Nesse contexto, torna-se interessante a discussão acerca da prerrogativa

do particular de exercer o poder de polícia visando à defesa do patrimônio concedido.

Segundo a tradicional doutrina, o poder de polícia é a atividade da Administração

consistente em limitar o exercício dos direitos individuais em benefício do interesse público, dessa

forma, pressupõe o uso da autoridade estatal para impedir ações anti-sociais e garantir a

manutenção do interesse coletivo.

Segundo Mello14

:

A atividade conhecida entre nós como polícia administrativa - hoje estudada,

preferentemente sob a designação de “Limitações Administrativas à Liberdade e à

Propriedade” - corresponde à ação administrativa de efetuar os condicionamentos

legalmente previstos ao exercício da liberdade e da propriedade das pessoas, a fim de

compatibilizá-lo com o bem estar social. Compreende-se, então, no bojo de tal atividade, a

prática de atos preventivos (como autorizações, licenças), fiscalizadores (como inspeções,

vistorias, exames) e repressivos (multas, embargos, interdição de atividade, apreensões).

O Art. 31 das leis das concessões (lei 8.987/95) informa que é encargo da

concessionária cumprir e fazer cumprir as normas do serviço e cláusulas contratuais da concessão,

bem como zelar pela integridade dos bens vinculados à prestação do serviço e segurá-los

14

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Serviço Público e Poder de Polícia: Concessão e Delegação. In: Revista

Trimestral de Direito Público, n° 20. São Paulo: Malheiros, 1997. p. 23.

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adequadamente. Dessa forma, não seria possível a execução dos serviços concedidos se não

houvesse a possibilidade fática da concessionária de zelar pelos bens que lhe foram delegados.

Conclui-se, portanto, que os atos de poder de polícia que podem ser exercidos pelo

particular delegatário de serviço público devem estar legalmente autorizados e necessariamente

vincular-se ao serviço que lhe foi concedido, sob pena de evidente inconstitucionalidade.

Em contrapartida, são responsabilidades que o Poder Concedente tem perante suas

Concessionárias, objetivando a adequação dos serviços concedidos: regulamentar o serviço

concedido e fiscalizar permanentemente sua prestação; aplicar as penalidades cabíveis; intervir na

prestação dos serviços; extinguir as concessões; homologar reajustes e proceder à revisão tarifária;

cumprir e fazer cumprir as disposições regulamentares do serviço e as cláusulas contratuais da

concessão; zelar pela boa qualidade do serviço; receber, apurar e solucionar reclamações e queixas

dos usuários; estimular o atendimento da qualidade e produtividade; preservar e conservar o meio

ambiente; incentivar a competitividade e estimular a formação de associações de usuários para

defesa dos interesses relativos aos serviços. Tudo conforme disposição do artigo 29 da lei 8.987/95.

Em face do que foi acima exposto, podemos concluir que ao poder concedente cabe

legislar e fiscalizar a concessão, aplicando, quando necessário, as penalidades em que a delegatária

incorrer. Por equivalência, à Concessionária cabe a prestação do serviço adequado e a estreita

observância à regulação do setor.

3.2 Relação Jurídica Concessionária x Usuário

O contrato que rege a relação jurídica entre concessionária e usuário não goza de

prerrogativas que lhe revista a condição de instrumento administrativo. Tal contrato é regido pelo

direito privado, uma vez que se trata de uma relação especial de venda de energia. Dessa forma,

algumas características são peculiares a este contrato: embora de adesão, é também sinalagmático,

uma vez que impõe obrigações recíprocas.

A concessionária deve prestar um serviço adequado, disponibilizar informações aos

usuários e responsabilizar-se por possíveis danos causados, por sua vez, aos usuários dos serviços

públicos delegados cumpre a utilização adequada dos serviços, o pagamento da contraprestação

tarifária, bem como a repressão ao uso irregular. Também deve o usuário ser responsabilizado civil

e penalmente pela utilização indevida da energia elétrica.

No que tange aos deveres dos usuários, a lei de concessões públicas acabou por

incumbir os usuários no dever de cooperar com a fiscalização da atividade concedida, impondo-lhe

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obrigações como a de observância às normas do poder concedente e a de contribuir para a

preservação dos bens delegados. É o que dispõe o art. 7° da lei de concessões, in verbis:

Art. 7°- Sem prejuízo do disposto na Lei n° 8.078, de 11 de setembro de 1990, são direitos

e obrigações dos usuários:

(...)

IV- levar ao conhecimento do poder público e da concessionária as irregularidades de que

tenham conhecimento, referentes ao serviço prestado;

VI- contribuir para a permanência das boas condições dos bens públicos através dos quais

lhes são prestados os serviços.

É bem interessante quando a própria lei de concessões estabelece como uma das

obrigações do usuário cientificar o poder público e a concessionária, de irregularidades que tenha

conhecimento. Quando estamos lidando com consumidores que fraudam ou furtam energia elétrica,

é mais comum observamos no cotidiano a indiferença dos demais usuários. Estes costumam

considerar que o problema do furto/fraude de energia é única e exclusivamente das concessionárias,

sobretudo porque não têm conhecimento dos diversos prejuízos decorrentes dessas práticas.

Acharmos, enquanto consumidores, que nada temos a ver com o vizinho que furta ou frauda a

energia elétrica, é pensamento demasiadamente individualista, uma vez que, se o fraudador não

paga pelo que consome, alguém paga. E esse alguém somos nós: eu, você e toda a coletividade.

Ainda sobre o dever dos usuários, assim estabelece o artigo 3° da Resolução 456 da

ANEEL, in verbis:

Art. 3°- Efetivado o pedido de fornecimento à concessionária, esta cientificará ao

interessado quanto à:

I- obrigatoriedade de:

(...)

b) instalação, pelo interessado, quando exigido pela concessionária, em locais apropriados

de livre e fácil acesso, de caixas, quadros, painéis ou cubículos destinados à instalação de

medidores, transformadores de medição e outros aparelhos da concessionária, necessários à

medição de consumos de energia elétrica e de demandas de potência, quando houver, e à

proteção destas instalações.

(...)

Conclui-se, portanto, que é dever do consumidor de energia elétrica proteger as

instalações (padrão de entrada) constantes em sua unidade consumidora, bem como manter as

mesmas em locais apropriados e de livre e fácil acesso.

Cumpre observar que a preferência por locais de livre e fácil acesso, também

denominada de externalização da medição15

, faz parte de uma série de medidas adotadas com a

finalidade de facilitar o processo de leitura e faturamento dos consumidores, além de possibilitar

uma melhor fiscalização dos aparelhos de medição.

4 ASPECTOS REGULATÓRIOS

15

Vide Resolução 258/2003 ANEEL que trata especificamente do assunto.

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O serviço de fornecimento de energia elétrica é regulamentado por algumas leis e

resoluções, que, conforme anteriormente visto, irão dispor sobre o regime das empresas

concessionárias de serviços públicos, caráter especial de seu contrato, condições de caducidade e

fiscalização, direitos dos usuários, política tarifária, entre outros.

Nesse sentido, é importante destacar que as agências reguladoras são instituições criadas

por lei, normalmente sob a forma de autarquia em regime especial, que têm como objetivo regular e

fiscalizar serviços concedidos pelo Poder Público, visando sempre à defesa dos interesses do

consumidor para que receba serviços adequados, eficazes e com preço justo.

Destacaremos aqui os dispositivos legais que são de maior relevância para o presente

estudo.

4.1 Lei de Concessões - Lei 8.987/1995

A lei 8.987/95, que regulou o artigo 175 da Constituição Federal, trouxe em suas

disposições um conjunto de preceitos que devem ser respeitados pelo particular executor do serviço

público. A principal premissa estabelecida na lei de concessões é o conceito de que toda concessão

ou permissão pressupõe a prestação de serviço adequado, em conformidade com o que rege o art.

6°, in verbis:

Art. 6°- Toda concessão ou permissão pressupõe a prestação de serviço adequado ao pleno

atendimento dos usuários, conforme estabelecido nesta Lei, nas normas pertinentes e no

respectivo contrato.

§1°- Serviço adequado é o que satisfaz as condições de regularidade, continuidade,

eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade das

tarifas.

§2°- A atualidade compreende a modernidade das técnicas, do equipamento e das

instalações e a sua conservação, bem como a melhoria e expansão do serviço.

(...)

Cumpre observar que o citado dispositivo encontra-se em perfeita harmonia com o

Código de Defesa do Consumidor, o que nos leva a crer que, quando da redação do mesmo, tenha o

legislador se voltado quase que exclusivamente ao consumidor. Não obstante isso, eles são de

grande importância para o presente estudo, uma vez que revelam alguns dos limites a que está

submetido o ente privado delegatário do serviço público: segurança, generalidade, cortesia,

eficiência, etc.. Nesse sentido, será ilegal qualquer ato praticado pelo concessionário que não se

coadune com as condições de prestação de serviço adequado ao pleno atendimento dos usuários.

De modo contrário, cabe ao usuário respeitar as normas do poder concedente e

contribuir para a permanência das boas condições dos bens públicos através dos quais lhes são

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prestados os serviços, obrigações que, conforme anteriormente visto, lhe foram impostas também

pela Lei 8.987/95, em seu artigo 7°.

Ainda nesse contexto, vale à pena ressaltar que a modicidade tarifária é que enseja a

efetiva possibilidade de acesso e utilização do serviço público de energia elétrica pela população,

concorrendo para a universalização do serviço público de energia elétrica.

4.2 Resolução 456/2000 ANEEL

A ANEEL - Agência Nacional de Energia Elétrica tem natureza jurídica de autarquia

sob regime especial, vinculada ao Ministério de Minas e Energia, criada pela lei 9.427 de 26 de

dezembro de 1996, que tem, entre outras, as atribuições de regular e fiscalizar a geração,

transmissão, distribuição e a comercialização de energia elétrica, defendendo o interesse do

consumidor; mediar os conflitos de interesses entre os agentes do setor elétrico e entre estes e os

consumidores; conceder, permitir e autorizar instalações e serviços de energia; garantir tarifas

adequadas e justas; zelar pela qualidade dos serviços; adequar os investimentos necessários ao

setor; assegurar a universalização dos serviços. A ANEEL substituiu o Departamento Nacional de

Águas e Energia Elétrica - DNAEE, extinto pela lei 9.427/96.

A lei 9.427/96, que instituiu a Agência Nacional de Energia Elétrica - ANEEL, em seu

artigo 2º assim estabeleceu:

Art. 2º - A Agência Nacional de Energia Elétrica - ANEEL, tem por finalidade regular e

fiscalizar a produção, transmissão, distribuição e comercialização de energia elétrica, em

conformidade com as políticas e diretrizes do Governo Federal.

Aí está fixada a competência da ANEEL, como único órgão governamental com

atribuições para definir as condições gerais de fornecimento de energia elétrica. Diante dessa

missão, a ANEEL editou algumas Resoluções com a finalidade de regulamentar o setor elétrico,

dentre elas, a que mais se destaca é a Resolução 456 de 29 de novembro de 2000.

Nesse sentido, destacaremos aqui os artigos da Resolução 456/2000 que representam

maior relevância para o presente estudo e que ainda não foram comentados neste trabalho.

Assim dispõe o artigo 36, in verbis:

Art. 36- Os lacres instalados nos medidores, caixas e cubículos, somente poderão ser

rompidos por representante legal da concessionária.

Parágrafo único. Constatado o rompimento ou violação de selos e/ou lacres instalados pela

concessionária, com alterações nas características da instalação de entrada de energia

originariamente aprovadas, mesmo não provocando redução no faturamento, poderá ser

cobrado o custo administrativo adicional correspondente a 10% (dez por cento) do valor

líquido da primeira fatura emitida após a constatação da irregularidade.

Extrai-se do citado dispositivo legal, que somente a concessionária está autorizada a

violar os lacres constantes nos medidores, quando o particular assim o faz, age de forma não

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compatível com a adequada utilização do serviço, uma vez que deixa de observar determinações

expressas na legislação competente. Nesse sentido, podemos caracterizar essa inobservância por

parte do consumidor como procedimento irregular (de um modo geral, são procedimentos

irregulares todos aqueles realizados em descumprimento de norma relativa ao setor). Cumpre

observar que as obrigações pertinentes ao consumidor previstas na Resolução 456/2000 da ANEEL

são transpostas ao contrato de adesão enviado ao usuário16

.

Quando os lacres dos medidores, caixas e cubículos são rompidos por pessoa que não

seja representante legal da concessionária, ainda que este procedimento não provoque redução no

faturamento do consumidor, a concessionária esta autorizada a cobrar custo administrativo adicional

na fatura emitida após a constatação da irregularidade. Não obstante isso, se o citado procedimento

irregular ocasionar redução no faturamento, será gerado um processo administrativo de consumo

não registrado.

Aduz o artigo 72, in verbis:

Art. 72 - Constatada a ocorrência de qualquer procedimento irregular cuja responsabilidade

não lhe seja atribuível e que tenha provocado faturamento inferior ao correto, ou no caso de

não ter havido qualquer faturamento, a concessionária adotará as seguintes providências:

I- emitir o “Termo de Ocorrência de Irregularidade”, em formulário próprio, contemplando

as informações necessárias ao registro da irregularidade, tais como:

a) identificação completa do consumidor;

b) endereço da unidade consumidora;

c) código de identificação da unidade consumidora;

d) atividade desenvolvida;

e) tipo e tensão de fornecimento;

f) tipo de medição;

g) identificação e leitura(s) do(s) medidor(es) e demais equipamentos auxiliares de

medição;

h) selos e/ou lacres encontrados e deixados;

i) descrição detalhada do tipo de irregularidade;

j) relação da carga instalada;

l) identificação e assinatura do inspetor da concessionária; e

m) outras informações julgadas necessárias;

II- solicitar os serviços de perícia técnica do órgão competente vinculado à segurança

pública e/ou do órgão metrológico oficial, este quando se fizer necessária a verificação do

medidor e/ou demais equipamentos de medição;

III- implementar outros procedimentos necessários à fiel caracterização da irregularidade;

IV- proceder à revisão do faturamento com base nas diferenças entre os valores

efetivamente faturados e os apurados por meio de um dos critérios descritos nas alíneas

abaixo, sem prejuízo do disposto nos arts. 73, 74 e 90:

(...)

§ 2º Comprovado, pela concessionária ou consumidor, na forma do art. 78 e seus

parágrafos, que o início da irregularidade ocorreu em período não atribuível ao atual

responsável, a este somente serão faturadas as diferenças apuradas no período sob

responsabilidade do mesmo, sem aplicação do disposto nos arts. 73, 74 e 90, exceto nos

casos de sucessão comercial.

§ 3º Cópia do termo referido no inciso I deverá ser entregue ao consumidor no ato da sua

emissão, preferencialmente mediante recibo do mesmo, ou, enviada pelo serviço postal com

aviso de recebimento (AR).

§ 4º No caso referido no inciso II, quando não for possível a verificação no local da unidade

consumidora, a concessionária deverá acondicionar o medidor e/ou demais equipamentos

16

Nos postos de atendimento da CEMAR, se encontra disponível ao consumidor, a Resolução 4456/2000 da ANEEL.

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de medição em invólucro específico, a ser lacrado no ato da retirada, e encaminhar ao órgão

responsável pela perícia.

O retrotranscrito dispositivo estabelece os critérios e requisitos que devem ser

obedecidos pelas concessionárias para a validade das inspeções, além de critérios que devem ser

observados durante a revisão do faturamento, para o cálculo do consumo não registrado17

. Daí a

extensão do artigo.

Cumpre destacarmos o inciso III do citado artigo. Como exemplo prático de outros

procedimentos adotados pelas concessionárias visando à fiel caracterização da irregularidade, temos

a utilização de fotografias das irregularidades18

. Durante a inspeção técnica, ao ser constatado

algum procedimento irregular, este é registrado através de fotografias, o que contribui para

comprovação material do ilícito. Estas fotografias irão compor o processo administrativo e mais

adiante, conforme seja o caso, servir como prova em processo judicial.

Outro aspecto importante para destacarmos no presente estudo é referente à

denominação que comumente é dada à cobrança de consumo não registrado, qual seja multa.

Conforme estabelece o artigo 73 da resolução 456/2000, apenas um percentual de no máximo 30%

poderia assim ser classificado. Uma vez que, como conceitua o próprio dispositivo legal, o mesmo é

referente a custo administrativo19

.

Art. 73- Nos casos de revisão do faturamento, motivada por uma das hipóteses previstas no

artigo anterior, a concessionária poderá cobrar o custo administrativo adicional

correspondente a, no máximo, 30 % (trinta por cento) do valor líquido da fatura relativa à

diferença entre os valores apurados e os efetivamente faturados.

Ainda sobre a cobrança de consumo não registrado realizada pelas concessionárias,

cumpre destacarmos o período de cobrança retroativa. O mesmo poderá ser de, no máximo, cinco

anos, conforme Ofício n° 502/2004 - DR/ANEEL (Ref. fls. 19 do Parecer nº 158/2004 -

PF/ANEEL), que informa que nas “Condições Gerais de Fornecimento de Energia Elétrica”

constam rotinas, critérios e providências, no âmbito administrativo, conforme art. 72 da Resolução

456 de 2000, para a análise e caracterização “da ocorrência de qualquer procedimento irregular cuja

responsabilidade não lhe seja atribuível”, ou seja, procedimento do consumidor (ação), mediante

fraude, artifício, ardil (irregular), que tenha provocado (dano) e conseqüentemente faturamento

inferior ao correto; ou não ter havido qualquer faturamento. Neste caso, o prazo máximo de

cobrança retroativa será limitado a 05 (cinco) anos.

17

Vide anexo contendo exemplo de alguns documentos que compõem os processos administrativos de CNR das

concessionárias de energia elétrica. Anexo A: Modelo de documentos utilizados pela CEMAR. 18

Vide anexo contendo exemplo de Processo de CNR. Anexo B: Modelo de Processo de CNR utilizado pela LIGHT. 19

Segundo a procuradoria jurídica da ANEEL, a natureza jurídica do custo administrativo é de cláusula penal, por

trata-se de descumprimento das obrigações contratualmente assumidas pelo consumidor. No Judiciário, prevalece o

entendimento de que o custo administrativo é multa e, por isso, necessita obedecer ao princípio do contraditório e

ampla defesa.

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O referido ofício é aplicado em analogia com o estipulado no artigo 76, inciso II da

Resolução 456, que determina prazo prescricional de cinco anos conforme estabelecido no artigo 27

da lei 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor). Esse limitante também é utilizado em

consonância com o Código Civil Brasileiro, que ao tratar da prescrição, limita em 05 anos o período

de cobrança.

Nesse sentido, recentemente a ANEEL sumulou o entendimento de que sempre que não

for possível determinar o momento exato em que começou a irregularidade, o período de cobrança

deve se limitar a seis meses.20

5 IMPLICAÇÕES PENAIS

Em conformidade com o Código Penal Brasileiro temos como qualificar duas formas de

“subtração” de energia: furto simples e furto qualificado, também chamado de furto mediante

fraude. Incorre no delito todo aquele que subtrair para si ou para outrem coisa alheia móvel,

equiparando-se a energia elétrica a essa condição.

O furto simples está previsto no art. 155, §3° do código Penal e ocorre quando há

ausência de contrato e conexão direta. Tomemos com exemplo quando é detectada uma ligação

direta sem passar pelo medidor de energia, a qual pode ser visualizada sem dificuldades.

O furto qualificado ou furto mediante fraude está previsto no art. 155, §3° c/c §4°,

inciso II do Código Penal. Na prática, ele ocorre quando há uma infração contratual, quando o

usuário “frauda” a concessionária. Utilizemos como exemplo quando é detectado um desvio

embutido na parede, que não pode ser detectado com facilidade, sendo necessários exames

detalhados por parte dos inspetores.

Nesse contexto, cumpre observar que o furto/fraude de energia elétrica, não é apenas

um delito penal, constitui também uma infração contratual e afronta os deveres impostos ao usuário,

uma vez que implica na utilização inadequada do serviço e na falta de pagamento da

contraprestação devida por ele. O indivíduo que furta energia elétrica não está lesando apenas a

concessionária, ele está prejudicando toda a sociedade.

Corroborando esse entendimento, temos as seguintes jurisprudências do Tribunal de

Justiça do Estado de Minas Gerais:

Apelação Criminal nº 1.0132.05.000694-0/001

Apelante: Roque Nunes

Apelado: Ministério Público do Estado de Minas Gerais

Relator: Des. Eduardo Brum

20

Súmula 09/2009 da ANEEL. Publicada no D.O. em 30.04.2009.

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APELAÇÃO CRIMINAL. FURTO DE ENERGIA ELÉTRICA. CRIME

CONFIGURADO. CONDENAÇÃO MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO.

O furto consiste na subtração de coisa móvel para si ou para outrem, com o fim de

apoderar-se dela de modo definitivo. Toda energia economicamente utilizável e suscetível

de incidir no poder de disposição material e exclusiva de um indivíduo pode ser incluída,

mesmo do ponto de vista técnico, entre as coisas móveis.

(...) Uma vez comprovada a alteração do relógio-medidor e a subtração, mostram-se

despiciendas as comparações feitas pelo apelante referentes ao consumo de energia antes e

depois da denúncia.

(...) Vistos etc., acorda, em Turma, a 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado

de Minas Gerais, incorporando neste o relatório de fls., na conformidade da ata dos

julgamentos e das notas taquigráficas, em negar provimento, à unanimidade.

Apelação Criminal nº 1.0223.04.153468-4/001

Apelante: Henrique Viana de Araújo

Apelado: Ministério Público do Estado de Minas Gerais

Relator: Des. Eli Lucas de Mendonça

PROCESSO PENAL. FURTO DE ENERGIA. AUTORIA E MATERIALIDADE

COMPROVADAS. CONDENAÇÃO MANTIDA.

O consumo de energia elétrica desviada do medidor é subtração tipificada como ilícito

penal nos termos do § 3º do art. 155 do CP.

(...) Ao que se vê, o apelante praticou o crime descrito no § 3º do art. 155 do CP. Isto

porque consumiu energia elétrica sem registro no medidor, em prejuízo da companhia

energética. Assim procedendo, subtraiu a energia fornecida pela concessionária em proveito

próprio e em prejuízo para a CEMIG.

Tal conclusão se extrai da prova técnica, indispensável para o reconhecimento do delito de

furto de energia elétrica - art. 155, § 3º, do CP, f. 10/11, que constatou ausência dos

selos/lacres externos da tampa da caixa, bem como a adulteração dos selos/lacres de

aferição do aparelho medidor de KWh.

Ainda que assim não fosse, in casu, a prova pericial estaria suficientemente suprida pela

prova oral colhida, especialmente as declarações do funcionário da CEMIG.

(...) Vistos etc., acorda, em Turma, a 4ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado

de Minas Gerais, na conformidade da ata dos julgamentos e das notas taquigráficas, em

rejeitar preliminar e dar provimento parcial.

Apelação Criminal nº 1.0290.99.004701-8/001

Apelante: José Miguel

Apelado: Ministério Público do Estado de Minas Gerais

Relator: Desª. Beatriz Pinheiro Caires

APELAÇÃO CRIMINAL. FURTO DE ENERGIA ELÉTRICA ("GATO").

AUTORIA E MATERIALIDADE COMPROVADAS. CONFISSÃO.

(...) O consumo de energia elétrica desviada do medidor é subtração tipificada como ilícito

penal, nos termos do § 3º do art. 155, do CP.

(...) Vistos etc., acorda, em Turma, a 2ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado

de Minas Gerais, incorporando neste o relatório de fls., na conformidade da ata dos

julgamentos e das notas taquigráficas, à unanimidade de votos, em negar provimento.

Diante de tais fatos, policiais de alguns estados já estão recebendo treinamento contra o

furto de energia. O curso de capacitação integra o Programa Nacional de Combate ao Furto de

Energia Elétrica, desenvolvido pela ANEEL. O Rio de Janeiro foi o primeiro Estado a participar do

Programa e terá o treinamento ministrado pelo Instituto de Segurança Pública do Estado e pela

Secretaria de Energia, Indústria Naval e Petróleo, em convênio com a ANEEL e as concessionárias

Light e Ampla, que operam no Estado. Esperamos que em breve, policiais de todos os Estados do

território nacional possam contar com esse treinamento, o que garantiria uma melhor estrutura na

fiscalização e combate ao furto/fraude de energia elétrica.

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5.1 Delegacia de Defesa dos Serviços Delegados - DDSD

Criada em 06.02.2002 no Estado do Rio de Janeiro, a Delegacia de Defesa dos Serviços

Delegados tem como objetivo planejar ações contra adulteração de combustíveis e fraudes de

energia e de telecomunicações.

A Delegacia é pioneira no país e os profissionais trabalham em conjunto com

laboratórios técnicos e órgãos fiscalizadores. Apesar da criação da especializada, as Delegacias

Distritais continuam com a competência concorrente para atuar e proceder nos casos de registros de

furto ou fraude de energia.

Esperamos que a criação de Delegacias como essa seja disseminada por todo o país, o

que possibilitará uma melhor fiscalização e conseqüente melhora dos serviços prestados ao

consumidor.

5.2 Departamento de Investigações Sobre o Crime Organizado - DEIC

Situado no Estado de São Paulo, o Departamento possui uma Delegacia especializada

em investigar e combater crimes contra o patrimônio; trata-se da Terceira Delegacia da Divisão de

Investigações sobre Crimes Contra o Patrimônio.

Dentre suas atribuições podemos pontuar o combate ao furto de fios elétricos; combate

ao furto de energia e outros que tenham como vítimas empresas concessionárias de serviço público;

combate a outras fraudes relacionadas à prestação de serviços públicos concedidos.

Sua estrutura é formada por delegados, escrivães e investigadores de polícia, com apoio

policial do GARRA, helicópteros da Polícia Civil, Distritos Policiais, Polícia Militar e demais

unidades da Divisão de Investigações sobre Crimes contra o Patrimônio.

O Departamento possui uma metodologia de trabalho que busca inserir as empresas

vítimas no processo de combate aos ilícitos, criando, junto com as mesmas, um grupo estável de

combate às irregularidades. Procura, ainda, inserir outros órgãos públicos no processo, além de

direcionar esforços para os ilícitos que causam maior impacto social e oferecer treinamentos

específicos de policiais especializados junto às empresas afetadas.

O ideal seria a existência do DEIC, especializado no combate a crimes contra o

patrimônio, sobretudo no combate ao furto/fraude de energia elétrica, em cada um dos estados

brasileiros, todavia apenas o Estado de São Paulo trabalha com essa estrutura. Nesse sentido,

cumpre ressaltar que em decorrência da política de organização judiciária e policial ser feita em

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nível estadual, de forma que cada Estado possui autonomia para organizar sua estrutura judiciária e

investigativa, podemos encontrar em outros estados brasileiros órgãos com a sigla DEIC, tais como

Rio Grande do Sul e Maranhão, todavia estes não possuem as mesmas atribuições e composição do

Departamento de São Paulo.

6 CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR - CDC

Criado em 1990, o Código de Defesa do Consumidor surgiu, basicamente, da

necessidade de obtenção de igualdade entre aqueles que eram naturalmente desiguais: consumidor e

fornecedor.

Com a Constituição Federal de 1988, que incluiu a defesa do consumidor no plano da

política constitucional, aparecendo no texto maior, entre os direitos e garantias fundamentais (art.

5°, inciso XXXII da Constituição Federal), ficou evidente a preocupação do legislador constituinte

com as atuais relações de consumo e com a necessidade de tutelar o hipossuficiente (mais fraco).

Sendo um dispositivo recheado de valores constitucionais, o Código de Defesa do

Consumidor é considerado uma das leis mais democráticas editadas até os dias atuais no

ordenamento jurídico brasileiro. A imperatividade de suas normas tem por escopo proteger o

consumidor, na tentativa de alcançar uma realidade social mais justa, em conformidade com o

princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, uma das vigas mestras do Código de

Defesa do Consumidor.

Nesse contexto, passaremos a analisar as relações e implicações do Código de Defesa

do Consumidor e a fraude de energia elétrica, sobretudo no que diz respeito aos direitos e deveres

do consumidor de energia.

Inicialmente cumpre-nos ressaltar que o codex consumerista somente se aplica àqueles

que se enquadram no artigo 2º do referido dispositivo legal. Dessa forma, apenas as pessoas físicas

ou jurídicas que adquirem ou utilizam produtos ou serviços como destinatários finais estarão

amparadas pelo Código de Defesa do Consumidor. É importante observarmos que o conceito de

consumidor21

adotado pelo Código foi exclusivamente de caráter econômico, ou seja, levando-se

em consideração tão-somente o personagem que no mercado de consumo adquire bens ou então

contrata a prestação de serviços, como destinatário final, pressupondo-se que assim age com vistas

21

Segundo disposição da ANEEL, em seu artigo 2º, inciso III, consumidor é toda pessoa física ou jurídica, ou

comunhão de fato ou de direito, legalmente representada, que solicitar a concessionária o fornecimento de energia

elétrica e assumir a responsabilidade pelo pagamento das faturas e pelas demais obrigações fixadas em normas e

regulamentos da ANEEL, assim vinculando-se aos contratos de fornecimento, de uso e de conexão ou de adesão,

conforme cada caso.

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ao atendimento de uma necessidade própria e não para o desenvolvimento de outra atividade

negocial.

Em face do acima exposto, podemos concluir que o Código de Defesa do Consumidor

se aplica às relações de consumo existentes entre concessionárias de energia elétrica e usuário.

Feitos os esclarecimentos acima, passaremos a analisar algumas responsabilidades

imputadas ao usuário de energia elétrica. Não obstante as garantias que lhe são asseguradas pelo

CDC, o consumidor deverá cumprir com os seus deveres, sob pena de não mais fazer jus a essas

benesses, uma vez que, conforme anteriormente visto, o contrato que rege a relação jurídica entre

concessionária e usuário é gerido pelo direito privado e impõe obrigações recíprocas. Nesse sentido,

a própria Resolução 456/2000 trouxe em seus artigos algumas responsabilidades do consumidor.

Destacaremos aqui algumas delas. Artigos 104 e 105, in verbis:

Art. 104- O consumidor será responsável por danos causados aos equipamentos de medição

ou ao sistema elétrico da concessionária, decorrentes de qualquer procedimento irregular ou

de deficiência técnica das instalações elétricas internas da unidade consumidora.

Art. 105- O consumidor será responsável, na qualidade de depositário a título gratuito, pela

custódia dos equipamentos de medição da concessionária quando instalados no interior da

unidade consumidora, ou, se por solicitação formal do consumidor, os equipamentos forem

instalados em área exterior da mesma.

Parágrafo único. Não se aplicam as disposições pertinentes ao depositário no caso de furto

ou danos provocados por terceiros, relativamente aos equipamentos de medição, exceto

quando, da violação de lacres ou de danos nos equipamentos, decorrerem registros

inferiores aos corretos.

Como podemos facilmente concluir dos artigos retro transcritos, qualquer procedimento

irregular que provoque danos aos equipamentos de medição, terá a responsabilidade imputada ao

consumidor, por isso mesmo, o consumidor é responsável por tais equipamentos, devendo zelar

pelo seu bom funcionamento. É importante ressaltar o parágrafo único do artigo 105, que isenta da

responsabilidade do consumidor danos ou furtos provocados por terceiros, salvo quando tais atos

beneficiam o consumidor fazendo com que sejam registrados consumos inferiores aos de fato

utilizados. Essa ressalva deixa claro que, muito mais do que punir o consumidor por sua conduta

inadequada, a cobrança de consumos não registrados é tão somente a recuperação de valores

referentes à kW que foram consumidos sem a devida contraprestação financeira. Ainda que o

consumidor não tenha tido uma responsabilidade direta no incorreto registro do consumo, foi

beneficiado por tal ato. Nestes casos, não deverá ocorrer cobrança de custo administrativo.

Ainda no campo das responsabilidades do consumidor, cumpre destacarmos o dever que

tem o usuário com o uso racional da energia elétrica. Tema em grande destaque não apenas no

contexto nacional, como também mundial, a conservação da energia preocupa gestores públicos e

ambientalistas. É sabido que já se iniciou uma grande busca por fontes alternativas de energia, tais

como a eólica e a solar, uma vez que as tradicionais fontes estão cada vez mais escassas e os

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potenciais hidroelétricos estão diminuindo com o passar dos anos. Nesse diapasão, quando estamos

tratando de usuários que se utilizam de artifícios para não pagarem o que efetivamente consomem,

facilmente podemos concluir que os mesmos não terão compromisso com a conservação e uso

racional dessa energia, uma vez que não pagam por ela.

Não obstante as responsabilidades imputadas ao consumidor, a Resolução 456/2000

também trouxe alguns deveres para as concessionárias. Artigo 95, in verbis:

Art. 95- A concessionária é responsável pela prestação de serviço adequado a todos os

consumidores, satisfazendo as condições de regularidade, generalidade, continuidade,

eficiência, segurança, atualidade, modicidade das tarifas e cortesia no atendimento, assim

como prestando informações para a defesa de interesses individuais e coletivos.

Tal dispositivo resume com objetividade as responsabilidades da concessionária,

estando em perfeita harmonia com a lei de concessões e com o próprio Código de Defesa do

Consumidor.

6.1 Princípio da Boa-Fé Objetiva

O princípio da boa-fé é um dever de comportar-se lealmente em todas as fases do

negócio jurídico, ou seja, tanto nas preliminares quanto na formação e execução deste. Os

doutrinadores, ao tratarem da boa-fé, afirmam que esta se divide em objetiva e subjetiva; esta diz

respeito a dados psicológicos, leva em conta a intenção do agente; enquanto aquela se relaciona

com elementos externos, isto é, um dever de agir de acordo com as normas expressas. Essa boa-fé

objetiva decorre também dos princípios gerais do Direito.

Cumpre observar que a boa-fé envolve o direito, abrangendo-o, traçando-lhe limites ou,

então, impondo o dever-direito de se exercitar as pretensões e as prestações segundo os ditames

desta. Por esse princípio, as cláusulas devem ser interpretadas segundo as normas da dinâmica do

direito, de acordo com o que é usual e compatível com a época, com as circunstâncias e com o bom

senso.

No sistema brasileiro das relações de consumo, houve opção explícita do legislador pelo

primado da boa-fé. Com a menção expressa do artigo 4º, inciso III do CDC à boa-fé e equilíbrio nas

relações entre consumidores e fornecedores, como princípio básico das relações de consumo, além

da proibição das cláusulas que sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade (artigo 51, IV do

CDC), as relações de consumo estão informada pelo princípio geral da boa-fé, que deve reger toda e

qualquer espécie de relação de consumo.

O dever de atuar com boa-fé se dirige em primeiro lugar ao devedor, com o mandado de

cumprir sua obrigação, atendo-se não só à letra, mas também ao sentido da relação obrigacional

correspondente e na forma que o credor possa razoavelmente esperar. Em segundo lugar, dirige-se

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ao credor, com o mandado de exercer o direito que lhe corresponde, atuando segundo a confiança

depositada pela outra parte. Por último, dirige-se de forma dinâmica a todos os participantes da

relação jurídica em questão, para que conduzam com uma consciência proba.

É importante ressaltar que para uma aplicação justa de normas e cláusulas contratuais

deve-se observar a conduta do agente, a qual deve estar em consonância com o princípio da boa-fé

objetiva que exige um comportamento de bom cidadão, razoavelmente diligente, que deve agir com

consciência, probidade e honestidade.

Prevalece na doutrina que o princípio da boa-fé objetiva possui como pressuposto a

fidelidade de cada um dos contratantes à palavra dada, de modo a não corromper ou abusar da

confiança nele depositada pela outra parte, já que esta forma a base necessária de todas as relações

humanas e jurídicas.

Deste modo, conclui-se que aos consumidores que fraudam a energia elétrica não

socorre o princípio da boa-fé objetiva. Estes não mantiveram fidelidade à palavra dada,

corrompendo a confiança neles depositada pelos fornecedores de energia elétrica.

6.2 Suspensão do Fornecimento de Energia Elétrica Decorrente de Furto/Fraude de Energia x

Continuidade do Serviço Público

Quando analisamos o Código de Defesa do Consumidor em sintonia com o estudo que

estamos desenvolvendo, um dos artigos do CDC que mais geram interpretações controversas é o

artigo 22, que trata da continuidade do serviço público. In verbis:

Art. 22 - Os órgãos públicos, por si ou por suas empresas, concessionárias, permissionárias

ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços

adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos.

Parágrafo único - Nos casos de descumprimento, total ou parcial, das obrigações referidas

neste artigo, serão as pessoas jurídicas compelidas a cumpri-las e a reparar os danos

causados, na forma prevista neste Código.

Para que melhor possamos compreender as divergências existentes com relação ao

tema, teceremos alguns comentários referentes à continuidade dos serviços públicos.

A primeira dúvida a ser desfeita diz respeito ao conceito de essencialidade. É sempre

muito complicado investigar a natureza do serviço público, para tentar caracterizar, neste ou

naquele, o traço da sua essencialidade. Com efeito, já vimos anteriormente que a distribuição de

energia elétrica é serviço de utilidade pública uti singuli. Não obstante isso cumpre observar que o

mesmo passa por uma gradação de essencialidade, o que torna mais razoável sustentar a imanência

do requisito da essencialidade em todos os serviços prestados pelo poder público, diretamente ou

mediante concessão.

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Partindo do suposto de que o serviço de fornecimento de energia elétrica é essencial,

resta discorrer sobre a exigência legal da sua continuidade. Essa exigência, contida no artigo 22,

deve ser entendida no sentido de que não podem deixar de ser ofertados a todos os usuários, vale

dizer, prestados no interesse coletivo. Ao revés, quando estiverem em causa interesses individuais,

de determinado usuário, a oferta de serviço pode sofrer solução de continuidade, se não forem

observadas as normas administrativas que regem a espécie.

Nesse sentido, a lei de concessões (lei 8.987/95), em seu artigo 3°, não caracteriza como

descontinuidade do serviço público a sua suspensão ocasionada por inadimplemento do

consumidor, ressalvado o interesse da coletividade. In verbis:

§ 3o Não se caracteriza como descontinuidade do serviço a sua interrupção em situação de

emergência ou após prévio aviso, quando:

I - motivada por razões de ordem técnica ou de segurança das instalações; e,

II - por inadimplemento do usuário, considerado o interesse da coletividade.

Apesar da existência de um ou outro posicionamento doutrinário que defende que em

obediência ao princípio da continuidade dos serviços públicos, a concessionária de energia elétrica

estaria impedida de promover a suspensão do fornecimento de consumidores inadimplentes,

pacifica-se na doutrina o entendimento de que a gratuidade não se presume e que as concessionárias

de serviço público não podem ser compelidas a prestar serviços ininterruptos se o usuário deixa de

satisfazer suas obrigações relativas ao pagamento. Do contrário, seria admitir, de um lado, o

enriquecimento sem causa do usuário e, de outro, o desvio de recursos públicos por mera

inatividade da concessionária.

Ainda nesse sentido, quando se analisa a ausência de pagamento pelo fato do

consumidor haver fraudado, além da patente irregularidade, resta configurado verdadeiro

locupletamento ilícito do faltoso em desfavor dos demais usuários.

Se a concessionária está vinculada pelo dever de fornecer o serviço nos termos do

disposto no artigo 22 do CDC, impõe-se que o usuário do serviço prestado efetivamente contribua

para a permanência das boas condições dos bens através dos quais lhe são prestados os serviços

(artigo 7°, inciso VI da Lei 8.987/95).

Corroborando esse entendimento, temos os seguintes posicionamentos jurisprudenciais:

Apelação nº 035.04.0043883

Relator: Des. Rômulo Taddei

Terceira Câmara Cível

Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo

PROCESSO CIVIL. DOCUMENTO NOVO. AÇÃO ANULATÓRIA.

CONSTATAÇÃO DE OCORRÊNCIA DE VIOLAÇÃO A MEDIDOR DE ENERGIA

ELÉTRICA. QUEDA ABRUPTA DO CONSUMO. ELEVAÇÃO APÓS A

SUBSTITUIÇÃO DO MEDIDOR. IRREGULARIDADE CONFIGURADA.

CANCELAMENTO DO DÉBITO. IMPOSSIBILIDADE DO PEDIDO. RECURSO A

QUE SE DÁ PROVIMENTO PARCIAL. SENTENÇA PARCIALMENTE

REFORMADA.

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1. É admitida a apresentação de prova documental na fase recursal, desde que não

caracterizada a má-fé e observado o contraditório.

2. De acordo com o art. 397, do CPC são documentos novos aqueles “destinados a fazer

prova de fatos ocorridos depois de articulados, ou para contrapô-los aos que foram

produzidos nos autos.”

3. Constatada a ocorrência de violação do medidor de energia elétrica, corroborada pela

queda abrupta de consumo em determinado período e a conseqüente elevação após a

substituição do medidor, não se pode dar guarida à pretensão de cancelamento do débito,

proveniente do consumo irregular de energia.

4. O desvio de energia elétrica, seguido do inadimplemento do consumo apurado

constituem atos lesivos à sociedade e ao bem comum, que deve ser repudiados pelo

judiciário, pena de encorajar-lhe o ilícito e o conseqüente comprometimento dos serviços

públicos.

5. Recurso a que se dá provimento parcial, para reformar em parte a sentença recorrida.

Apelação Cível nº 338597

Relator: Des. Jayro dos Santos Ferreira

Nona Câmara Cível

Tribunal de Justiça Do Estado do rio de Janeiro

O medidor fraudado decorre de iniciativa do consumidor, que, talvez, sufocado pelo preço

da energia elétrica, pensa, como tábua de salvação, em recorrer a esse meio incorreto, para

poder continuar a utilizar-se dessa fonte, que, hoje, é necessária a própria vida.

(...) Na hipótese de fraude comprovada, pode o consumidor ser compelido a pagar a

diferença, apurada em perícia técnica competente, durante o período provável de ilicitude.

(...) É preciso que do julgador sejam afastados quaisquer preconceitos, quer contra o

fornecedor, quer contra o consumidor.22

Nesse contexto, são relevantes os comentários de Fábio Amorim da Rocha quando

esclarece que razões de ordem técnica e de segurança, casos fortuitos e de força maior, que são

excludentes clássicas da responsabilidade, podem justificar a interrupção do serviço do mesmo

modo que a falta do pagamento da remuneração do usuário autoriza a suspensão da entrega da

energia elétrica, porque afrontaria a qualquer mente civilizada a idéia de que quem compra e não

paga possa ter direito a continuar recebendo a mercadoria adquirida. Não seria crível, que uma lei

garantisse mesmo aos que continuam eternamente inadimplentes, um serviço gratuito. Se assim

fosse, melhor seria usufruir do serviço sem efetuar o pagamento, posto que o artigo 22 do Código

de Defesa do Consumidor garantiria a continuidade.

O que precisamos compreender é que a continuidade prevista no Código de Defesa do

Consumidor deve ser entendida como garantia de fruição do serviço pela coletividade, sendo esta

entendida como a sociedade beneficiária da energia. Dessa forma, a continuidade não pode ser

avaliada individualmente, uma vez que a suspensão do fornecimento de usuários específicos em

nada afeta a continuidade do fornecimento de energia aos demais consumidores que honraram com

sua contraprestação contratual. Nesse sentido, a coletividade, a sociedade beneficiária, em nada foi

atingida.

22

Fonte: www.networkeventos.com.br/download/palestras

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Em seu artigo 90, inciso I, a Resolução 456/2000 da ANEEL autoriza a suspensão do

fornecimento de energia elétrica quando verificada a ocorrência de procedimentos irregulares. In

verbis:

Art. 90- A concessionária poderá suspender o fornecimento, de imediato, quando verificar a

ocorrência de qualquer das seguintes situações:

I - utilização de procedimentos irregulares referidos no art. 72;

As normas descritas acima demonstram claramente que é possível à concessionária, a

prática de atos repressivos, nos quais o direito de fruição dos serviços pelo usuário pode ser tolhido

em prol do combate à prática de irregularidades. Nesse sentido, assim se posicionou o Superior

Tribunal de Justiça:

Recurso Especial nº 806.985 - RS (2006/0002443-0)

Recorrente: AES Sul Distribuidora Gaúcha de Energia S/A

Recorrido: Marlene Flores da Silva

Relator: Ministro Herman Benjamin

ADMINISTRATIVO. SUSPENSÃO DO FORNECIMENTO DE ENERGIA

ELÉTRICA. INADIMPLEMENTO. POSSIBILIDADE. IRREGULARIDADES NO

MEDIDOR. FATURAMENTO DAS DIFERENÇAS.

1. O Superior Tribunal de Justiça já se posicionou no sentido de que é lícito à

concessionária interromper o fornecimento de energia elétrica se, após aviso prévio, o

consumidor permanecer inadimplente no pagamento da respectiva conta (Lei n. 8.987⁄95,

art. 6º, § 3º, II). Precedentes.

2. O disposto no art. 6º, § 3º, II, da Lei n. 8.987⁄95, ao explicitar que, na hipótese de

inadimplemento do usuário, a interrupção do fornecimento de energia não caracteriza

descontinuidade do serviço, afasta qualquer possibilidade de aplicação dos preceitos ínsitos

nos arts. 22 e 42 da Lei n. 8.078⁄90 (Código de Defesa do Consumidor).

3. O fato de o caso dos autos tratar de débitos apurados unilateralmente pela empresa

concessionária ante suposta fraude em medidor de energia elétrica e em virtude de valores

decorrentes de diferenças de consumo não modifica as conclusões acima indicadas.

Evidentemente que o consumidor que frauda medidor tem intenção de que o real consumo

de energia por ele realizado seja camuflado, normalmente com o fim de pagar menos do

que seria efetivamente devido. Portanto, não há dúvida quanto à existência de energia

consumida que não fora quitada. Seria um contra-senso o entendimento de que é permitida

a suspensão de energia por consumo ordinário não-pago, e de que não é permitida na

hipótese de consumo que não foi pago em razão de ter sido camuflado pelo consumidor.

4. Recurso especial provido.

Por fim, cumpre observar que a jurisprudência supracitada veio para ratificar o

entendimento já difundido entre os poucos doutrinadores que trabalham o tema, e mais, tornou uma

realidade prática o disposto no parágrafo único do artigo 95 da Resolução 456/2000 da ANEEL que

dispõe que não se caracteriza como descontinuidade do serviço a suspensão do fornecimento

efetuada nos termos dos artigos 90 e 91 da Resolução, tendo em vista a prevalência do interesse da

coletividade.

7 CONCLUSÃO

Em face dos diversos entendimentos legais, doutrinários e jurisprudenciais transcritos,

fica demonstrada a legalidade dos procedimentos de inspeções realizados nas unidades

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consumidoras, quando atendidos os normativos regulatórios. Também fica evidenciado que o

Judiciário pode contribuir de forma significativa para o combate à fraude de energia elétrica.

Nesse sentido, esperamos que a criação de Delegacias Especializadas no combate ao

furto/fraude de energia, a exemplo do que já ocorre em alguns poucos estados brasileiros, se torne

uma realidade em todo o território nacional, uma vez que tal estrutura auxiliaria o trabalho das

concessionárias e melhoraria a qualidade do serviço prestado ao consumidor.

Assim sendo, e considerando que a redução das perdas interessa a todas as

concessionárias, a própria ANEEL e a sociedade como um todo, uma vez que, não obstante o dever

e a necessidade de cada um para com a conservação da energia, os prejuízos decorrentes do não

recebimento da energia elétrica fornecida contribuem para dificultar que as concessionárias

atendam satisfatoriamente seus consumidores, entendemos que essa matéria deve ser amplamente

difundida.

Cumpre ressaltar a plena legitimidade e juridicidade do poder-dever conferido às

concessionárias de serviço público de energia elétrica para suspender o fornecimento na hipótese de

prática de infrações previstas na legislação especial. Nesse sentido, não é detento de direito líquido

e certo a receber continuadamente o serviço de energia elétrica, o consumidor que possui dívidas

decorrentes de faturas de consumo não registrado (consumo que não foi pago em razão de ter sido

camuflado pelo consumidor), transgredindo assim, a norma que disciplina a prestação do serviço.

De outro lado, reafirmamos que todo e qualquer procedimento realizado pelas

concessionárias deve ser com estrita observância do direito positivo e dos direitos e garantias

fundamentais, constitucionalmente asseguradas. O consumidor, até mesmo por ser a parte

hipossuficiente da relação, deve ser respeitado e ter seus direitos e prerrogativas obedecidos.

Por mais que ainda subsistam questões controversas envolvendo o presente tema,

doutrina e jurisprudência têm evoluído significativamente, o que nos leva a acreditar que se trata

apenas de uma questão de tempo para que as idéias e posicionamentos levantados neste trabalho

sejam largamente disseminados, tornando algumas discussões pacíficas.

ASPECTS JURIDICALS OF THE ELECTRIC POWER’S FRAUD

Érika Wilza Brito de Assis23

ABSTRACT

23

Concluding of the course of bachelor of in right of the CEUT. Group 2009.2. Work presented for the attainment of

the heading of Bachelor in Law.

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The evasion of taxes, the impairment of the result and indicators of the concessionaire,

the impact on the tariff, it causes the loss of electric power is a national concern. The present article

seeks to approach the various juridical aspects involving the electric power’s fraud, since the forms

of combat, by its resolution within the judiciary, through controversial issues involving the subject.

Will also scored the correlations between the various branches of law and subject of study. Raise

this debate to ensure that the matter is distributed in the legal environment is also a master of the

beams of this study. The research is carried out mainly by analysis of legislation and jurisprudence,

with little support in existing doctrine on the subject.

KEY WORDS: Concession. Power’s Fraud. Irregularity

REFERÊNCIAS

ABRADEE, Dados disponíveis no site www.abradee.org.br

ANEEL - Agência Nacional de Energia Elétrica. Resolução 456 - Condições Gerais de

Fornecimento de Energia Elétrica. 2000.

BARRETO, Eduardo José Fagundes. Abordagem Jurídica e Econômica da Universalização dos

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DANTAS, Pedro Roberto Paiva. Avaliação de Perdas de Energia Elétrica Não-Técnicas

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DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 20ª Edição, São Paulo: Atlas, 2007.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Serviço Público e Poder de Polícia: Concessão e

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ALMEIDA, Marcos Antônio Souza de. Metodologia de Identificação de Perdas Não-Técnicas

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da Indústria de Energia. Salvador: Setembro, 2006. 107p.

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GOMES, Darcílio Augusto. Para Conhecer o Setor Elétrico Brasileiro - Glossário Técnico

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NASCIMENTO, Armando de Souza. Possibilidade de Suspensão de Fornecimento de Energia

Elétrica por Fatura de Consumo Não Registrado, Artigo apresentado à Faculdade Getúlio

Vargas - FGV, como requisito para a obtenção do grau de MBA em Gestão de Negócios de Energia

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ANEXO A: Modelo de Documentos do Processo Administrativo de CNR - CEMAR

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ANEXO B: Modelo de Processo de CNR - LIGHT

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