ASPECTOS NARRATIVOS DA REPRESENTAÇÃO DA...

13
ASPECTOS NARRATIVOS DA REPRESENTAÇÃO DA ARQUITETURA EM LIVROS CONTEMPORÂNEOS Gabriel Girnos Elias de Souza UFRRJ, Departamento de Arquitetura e Urbanismo [email protected] Resumo Este artigo discute a apresentação visual de projetos de arquitetura em livros a partir do conceito de narrativa. Fruto de uma pesquisa de doutorado em andamento, essa reflexão é motivada pela emergência contemporânea de certos livros de escritórios de arquitetura internacionais nos quais os autores exploram o design e a linguagem gráfica na expressão de seu discurso projetual. Para pensar os aspectos do aparato narrativo relevantes para a arquitetura, faz-se uso de conceitos e questões colocados por estudiosos como Paul Ricoeur, Peter Brooks e Jerome Bruner, destacando especialmente a noção de enredo e de verossimilhança. O texto então examina os aspectos mais narrativos do discurso projetual: a apresentação da arquitetura como produto de atividades e acontecimentos, a representação da experiência temporal dos espaços e o encadeamento das informações projetuais. Por fim, é examinada a apresentação da Villa Dall’Ava no livro S,M,L,XL de Rem Koolhaas, escolhida para o estudo por ser um caso ao mesmo tempo expressivo e inusitado de uso de narratividade na representação de arquitetura. Palavras-chave: arquitetura; apresentação de projetos; narrativa; design de livros. Abstract This paper discusses visual presentations of architecture projects in books in the light of the concept of narrative. Product of an ongoing P.H.D. thesis research, this reflection is motivated by the contemporary emergence of some books from international architecture studios, in which its authors explore design and graphic language to express their project discourse. In order to think about aspects of the narrative apparatus that are relevant for architecture, the text uses concepts and questions posed by scholars like Paul Ricoeur, Peter Brooks and Jerome Bruner, particularly stressing the notions of plot and verisimilitude. This paper then examines what would be the most narrative aspects of project discourse: the representation of architecture as a product of activities and events, the representation of the temporal experience of space and the sequencing of design information. At last, it analyses the Villa Dall’Ava presentation in Rem Koolhaa’s S,M,L,XL, chosen as a case for study for being both an expressive and an inusual use of narrative in the representation of architecture. Keywords: architecture; project presentation; narrative; book design.

Transcript of ASPECTOS NARRATIVOS DA REPRESENTAÇÃO DA...

Page 1: ASPECTOS NARRATIVOS DA REPRESENTAÇÃO DA …wright.ava.ufsc.br/~grupohipermidia/graphica2013/trabalhos/ASPECTOS... · Em ambos os tipos de relato, o processo de representação (mímesis)

ASPECTOS NARRATIVOS DA REPRESENTAÇÃO DA

ARQUITETURA EM LIVROS CONTEMPORÂNEOS

Gabriel Girnos Elias de Souza UFRRJ, Departamento de Arquitetura e Urbanismo

[email protected]

Resumo

Este artigo discute a apresentação visual de projetos de arquitetura em livros a partir do conceito de narrativa. Fruto de uma pesquisa de doutorado em andamento, essa reflexão é motivada pela emergência contemporânea de certos livros de escritórios de arquitetura internacionais nos quais os autores exploram o design e a linguagem gráfica na expressão de seu discurso projetual. Para pensar os aspectos do aparato narrativo relevantes para a arquitetura, faz-se uso de conceitos e questões colocados por estudiosos como Paul Ricoeur, Peter Brooks e Jerome Bruner, destacando especialmente a noção de enredo e de verossimilhança. O texto então examina os aspectos mais narrativos do discurso projetual: a apresentação da arquitetura como produto de atividades e acontecimentos, a representação da experiência temporal dos espaços e o encadeamento das informações projetuais. Por fim, é examinada a apresentação da Villa Dall’Ava no livro S,M,L,XL de Rem Koolhaas, escolhida para o

estudo por ser um caso ao mesmo tempo expressivo e inusitado de uso de narratividade na representação de arquitetura. Palavras-chave: arquitetura; apresentação de projetos; narrativa; design de livros.

Abstract

This paper discusses visual presentations of architecture projects in books in the light of the concept of narrative. Product of an ongoing P.H.D. thesis research, this reflection is motivated by the contemporary emergence of some books from international architecture studios, in which its authors explore design and graphic language to express their project discourse. In order to think about aspects of the narrative apparatus that are relevant for architecture, the text uses concepts and questions posed by scholars like Paul Ricoeur, Peter Brooks and Jerome Bruner, particularly stressing the notions of plot and verisimilitude. This paper then examines what would be the most narrative aspects of project discourse: the representation of architecture as a product of activities and events, the representation of the temporal experience of space and the sequencing of design information. At last, it analyses the Villa Dall’Ava presentation in Rem Koolhaa’s S,M,L,XL, chosen as a case for study for being both an

expressive and an inusual use of narrative in the representation of architecture. Keywords: architecture; project presentation; narrative; book design.

Page 2: ASPECTOS NARRATIVOS DA REPRESENTAÇÃO DA …wright.ava.ufsc.br/~grupohipermidia/graphica2013/trabalhos/ASPECTOS... · Em ambos os tipos de relato, o processo de representação (mímesis)

1 Introdução

Livros sobre arquitetura caracteristicamente contêm apresentações de projetos,

sejam estes de edifícios realizados ou não. Tais apresentações costumam empregar

conteúdos textuais e pictóricos de tipos variados — os quais são dispostos em

diferentes níveis de interação dependendo do estilo da publicação, obra e arquiteto em

questão. No caso específico de livros produzidos pelos próprios arquitetos e estúdios

de arquitetura para divulgação e promoção de sua obra entre o público em geral, a

forma de apresentar projetos torna-se retoricamente carregada por natureza: eles

necessitam construir tanto inteligibilidade quanto, principalmente, persuasão acerca do

que é apresentado.

Desde a década de noventa, alguns expoentes da profissão produziram livros em

que exploram mais intensamente o design e a linguagem gráfica ao expor seus

projetos, tirando proveito das possibilidades expressivas e cognitivas da escrita, do

encadeamento de imagens e da própria mídia livro. Pode-se citar entre esses

“portfolios-manifesto” volumes como S,M,L,XL (1995) e Content (2003), de Rem

Koolhaas e OMA; FARMAX (1999) e KM3 (2006), do grupo MVRDV; Move (1999), do

UN Studio; Agenda (2010), do JDS Architets; e Yes is More do grupo BIG (2010). Com

frequência, tais livros apresentaram ênfases em experimentos de narrativização —

seja em aspectos mais “literários” da escrita, seja na exibição de processos de

concepção projetual, seja no anedotário dos episódios cotidianos da profissão. Essa

tendência já foi apontada por autores norte-americanos interessados nas novas

relações entre a prática e o discurso da arquitetura e suas mídias de difusão pública,

como Charles Jencks (2002) Christine Boyer (2006) e Kester Rattenbury (2004); no

entanto, as estratégias de representação e retórica dessas publicações de “auto-

apresentação” ainda não foram analisadas a fundo, e são o assunto da pesquisa de

doutorado que originou o presente texto (em andamento na pós-graduação em Design

da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro).

Neste artigo, pretende-se refletir sobre as aplicações do conceito de narrativa no

estudo das apresentações de projetos de arquitetura, visando principalmente esses

livros recentes. Para tanto, serão tomados como base conceitos e questões colocadas

por Peter Brooks (oriundo da teoria e crítica literária), Paul Ricoeur (filosofia e

hermenêutica) e Jerome Bruner (psicologia cognitiva). Como exemplo para estudo,

será destacada a apresentação da Villa Dall’Ava em S,M,L,XL: um caso ao mesmo

tempo expressivo e inusitado de uso de narratividade na representação de arquitetura.

Page 3: ASPECTOS NARRATIVOS DA REPRESENTAÇÃO DA …wright.ava.ufsc.br/~grupohipermidia/graphica2013/trabalhos/ASPECTOS... · Em ambos os tipos de relato, o processo de representação (mímesis)

2 Inteligibilidade, verossimilhança, significado

Que luzes a ideia de “narrativa” pode jogar sobre livros e apresentações de

arquitetura? Ao caracterizar a estrutura e natureza do discurso narrativo, tanto Ricoeur

como Brooks conferem centralidade à ideia de enredo. Mythos no pensamento

aristotélico e plot na língua inglesa, o enredo é “arranjo configurante” que transforma

uma sucessão de acontecimentos numa totalidade significante, permitindo que uma

história possa ser acompanhada (RICOEUR, 2012, p.117). Ao pensar a relevância

dessa noção para a arquitetura, por sua vez, é interessante ressaltar a pluralidade de

significados do termo “plot” citados por Brooks (1992, p.10):

- pequeno pedaço de terra, em geral usado para propósito específico;

- uma planta baixa, como para uma edificação; uma tabela; um diagrama;

- série de eventos que formam o delineamento de uma narrativa;

- plano secreto para um propósito hostil ou ilegal; esquema.

Curiosamente, os dois primeiros significados relacionam-se até mais ao campo da

arquitetura que ao da literatura; a convergência entre “território”, “planta”, “diagrama”,

“enredo” e “ardil”, por outro lado, é particularmente fortuita para se compreender o jogo

retórico envolvido nos discursos de arquitetos sobre seus próprios projetos.

Como arte de “fazer surgir o inteligível do acidental” (RICOEUR, 2012 p.74), a

narrativa é, de uma forma geral, uma forma eficiente de construção de inteligibilidade

— algo precioso para projetos de arquitetura, que em geral são discursos cuja

complexidade e meios de linguagem costumam estar fora da experiência do público

não-especializado ao qual ela se destina. Fazer-se inteligível, de certa foram, é investir

na produção de um dos componentes mais básicos do prazer de uma leitura, segundo

Ricoeur (p.87): o prazer da compreensão, de aprender e reconhecer. Mas há um

aspecto mais especificamente narrativo e, talvez, até mais importante para o discurso

projetual: a construção de verossimilhança. J. Bruner (1986, p.11-12) propõe uma

distinção fundamental entre argumentação e narração nos seguintes termos: a

argumentação tenderia a buscar a condição de “verdade” de um enunciado, voltada

para uma compreensão conceptual; a narração se voltaria à condição de

verossimilhança de uma história (real ou fictícia), ou seja: as condições para que esta

seja convincente enquanto uma realidade vivenciável.

Seja mais utópico e provocativo ou tenha real ambição de concretização, um

projeto geralmente tem como referência um horizonte de realização no mundo

concreto. Para isso, contudo, precisa constituir uma versão “ficcional” da realidade

empírica na qual o espaço projetado efetivamente exista. O discurso construído em

torno de um projeto, então, é sempre uma “ficção propositiva”: um “faz de conta” que

Page 4: ASPECTOS NARRATIVOS DA REPRESENTAÇÃO DA …wright.ava.ufsc.br/~grupohipermidia/graphica2013/trabalhos/ASPECTOS... · Em ambos os tipos de relato, o processo de representação (mímesis)

tem como fim uma hipotética tomada de decisão. Sua disposição final é, de certa

forma, ética: ser o melhor a se fazer, ser digno ou não da concretização física. Nesse

sentido é que a verossimilhança torna-se valor de primeira ordem para uma

apresentação projetual: tornar uma proposta narrativamente verossímil contribui para

fazê-la mais justificável — uma preocupação de primeira importância para a profissão

da arquitetura, frequentemente assombrada pela acusação de arbitrariedade e

hermetismo.

Mas há ainda um último aspecto: como salienta Brooks (1992, p.56), a narrativa

está condenada a significar algo diferente daquilo que diz diretamente. O que guia a

leitura da narrativa é a “antecipação da retrospectiva”: supõe-se que o que está para

ser lido reestruturará os “significados provisórios” do que já foi lido (idem, p.23).

Segundo o autor, o “modo narrativo” de raciocínio coloca o expectador na posição de

ler os incidentes como “promessas e anunciações” de coerência final, de um

significado geral. Nesse sentido, apresentações de projeto com um “enredo”

especialmente bem construído podem conduzir-se de maneira a posicionar o

projeto/obra tanto como produto coerente de uma cadeia de causalidade quanto como

aquilo que confere um sentido maior a essa mesma cadeia. A narrativa, nesse sentido,

é um eficiente dispositivo para se agregar e articular significados e valores.

3 Aspectos narrativos de apresentações projetuais.

Há pelo menos três aspectos básicos das apresentações projetuais em que a noção

de narratividade pode ser operativa para entender a representação e a construção de

discursos: a caracterização da arquitetura como fruto de uma atividade; a

representação da experiência temporal do espaço arquitetônico; e o encadeamento

das informações necessárias à descrição do projeto e/ou obra.

A caracterização da arquitetura como produto de uma atividade é o aspecto

mais literalmente narrativo de uma representação. É relativamente comum ver-se, em

apresentações e relatos de projeto, a descrição de um processo criativo: sequências

mostrando a evolução temporal do pensamento do(s) projetista(s), as análises da

situação e condicionante envolvidos. O “ato arquitetônico”, assim, é relatado como

fruto de um processo de elaboração. Mas também há muitos exemplos de relatos

sobre o desenvolvimento do projeto ou obra em seus caracteres “externos”:

negociações com clientes, problemas legais, técnicos ou sociais envolvidos,

determinantes novos e acidentes de toda espécie. O “ato arquitetônico”, então,

aparece como uma empreitada que toma lugar numa cadeia de ações e

acontecimentos, sujeita a contratempos e obstáculos, que ruma para uma conclusão

Page 5: ASPECTOS NARRATIVOS DA REPRESENTAÇÃO DA …wright.ava.ufsc.br/~grupohipermidia/graphica2013/trabalhos/ASPECTOS... · Em ambos os tipos de relato, o processo de representação (mímesis)

(a resolução de um problema de projeto, a entrega deste aos clientes ou aos

concursos, a construção da edificação, etc.).

A exposição tanto do aspecto “interno” de elaboração quanto o “externo” de

negociação e viabilização, por sua vez, consiste necessariamente na construção de

“histórias”: sucessões em uma progressão temporal unidas por relações de

causalidade, que formam um todo final. Em ambos os tipos de relato, o processo de

representação (mímesis) supõe um enredo (mythos): um agenciamento de fatos que

confira nexo causal ao que é apresentado e constitua sua inteligibilidade como uma

totalidade dotada de início, meio e fim (RICOEUR, 20012, p.113); sem tal

agenciamento, o relato se perde na pura sucessão de episódios desarticulados.

A representação da experiência temporal do espaço arquitetônico, por sua

vez, surge do próprio fato de que os objetos arquitetônicos — edificações, paisagens e

cidades — são espaços ocupados e percorridos. Como supõem exterioridades e

interioridades que necessariamente influem na atividade e no olhar humanos, sua

compreensão passa necessariamente por, em alguma medida, imaginar-se diante,

dentro e ao longo destes, desempenhando ações e papéis. Para colocar o receptor

“dentro” do que está sendo descrito numa apresentação projetual, costuma-se

empregar descrições textuais ou imagens (sejam desenhos ou fotografias) elaboradas

na perspectiva de um transeunte hipotético a ocupar e/ou transitar pelos espaços.

Ao conceber uma edificação, um arquiteto dispõe um complexo de sequências

possíveis de espaços, experiências e situações aos seus usuários, pelas quais se

pode ir e vir. Em certas obras de arquitetura, essa experiência do movimento e das

sequências possíveis é conscientemente explorada como elemento fundamental e

simbólico na concepção da configuração arquitetônica; é tratada, digamos, como uma

“narrativa”. Em casos assim, a inteligibilidade da proposta projetual demanda um

esforço de representação da experiência temporal do espaço — que, em meios

gráficos como o livro, se dá através da justaposição de imagens estáticas, ou pela

descrição verbal do que um observador hipotético veria em cada passo do caminho

ou, ainda, por interações desses dois elementos.

Em todas essas opções, obviamente, faz-se presente o aspecto essencialmente

seletivo da narração; nunca se mostra tudo (nem é possível mostrar), mas sim uma

seleção de momentos-chave a serem retratados para construir a impressão e o

sentido do trajeto (narrativa); essa seleção, por sua vez, pressupõe que tal sentido já

esteja previsto a priori pelo expositor, ou seja: pressupõe uma espécie de “enredo”.

Nesse aspecto, é interessante lembrar que a representação de um trajeto em uma

edificação via sequência de imagens assemelha-se, de certa forma, a uma espécie de

Page 6: ASPECTOS NARRATIVOS DA REPRESENTAÇÃO DA …wright.ava.ufsc.br/~grupohipermidia/graphica2013/trabalhos/ASPECTOS... · Em ambos os tipos de relato, o processo de representação (mímesis)

“interpretação” (no sentido teatral de execução, “performance”) de um roteiro já

previsto na organização espacial da edificação — ou seja, em sua planta ou “plot”.

Por último, há o encadeamento de informações para descrição do projeto e/ou

obra: como a configuração formal e funcional de um objeto ou “ato” arquitetônico é por

natureza algo complexo tanto em sua concepção quanto em sua fisicalidade, sua

exposição geralmente demanda múltiplas representações documentais (textos,

diagramas, desenhos técnicos, perspectivas, fotografias). Estes, por sua vez, só

poderão captar e comunicar facetas suas: a compreensão do “objeto completo” a partir

das representações parciais é necessariamente um trabalho conceitual de montagem

que ocorre na mente do expectador/leitor na ida e volta entre essas informações.

Essas várias representações e verbais e visuais, por sua vez, terão de ser fatalmente

expostas e vistas em alguma sequência. Nesse ponto, a “montagem” mental pode ser

influenciada pela estrutura da apresentação adotada: em que ordem determinados

elementos são apresentados e debatidos, em que ordem os aspectos parciais são

relacionados entre si e com a totalidade do projeto, etc. Poder-se-ia falar, assim, da

possibilidade de se explorar narrativamente a exposição de informações para construir

um determinado sentido, através de uma organização análoga a um plot.

Pode-se objetar aqui, entretanto, que essa estruturação de informações estaria

mais próxima da descrição e da argumentação do que da narrativa. Conforme assinala

Brooks (1992, p. 20-21), narrativas dependem de “significados postergados”,

parcialmente entrevistos; já argumentações, embora possam conter em si uma

narrativa, geralmente procuram suprimir a força desta em favor de uma “estrutura

atemporal de compreensão”. Dos três aspectos elencados aqui, portanto, este é

provavelmente o mais distante da narrativa propriamente dita, uma vez que se destina

à “montagem” mental não de uma cadeia de acontecimentos, mas de uma

configuração espacial.

Contudo, mesmo não sendo primariamente temporal, pode-se dizer que, como as

narrativas, a apresentação de projetos depende fundamentalmente de uma noção de

totalidade para que a leitura das peças gráficas e textuais que a compõe; é na

expectativa dessa totalidade que se compõe a compreensão do projeto, que é ao

mesmo tempo projetiva e retrospectiva — ou seja, sempre revendo o já conhecido e

sempre na expectativa da informação porvir. Obviamente, essa “temporalidade” não é

a do tempo diegético, “interno”, de uma estória real ou ficcional; estaria mais próxima

do “pseudo-tempo” referido por Brooks (1992, p.23): a temporalidade que a

espacialidade da própria mídia de representação “empresta” à recepção de seu

conteúdo.

Page 7: ASPECTOS NARRATIVOS DA REPRESENTAÇÃO DA …wright.ava.ufsc.br/~grupohipermidia/graphica2013/trabalhos/ASPECTOS... · Em ambos os tipos de relato, o processo de representação (mímesis)

Contudo, há exemplos de arquitetos que exploram o encadeamento das

informações de forma mais diretamente narrativa, imbricando essa atividade descritiva

e notacional aos outros dois aspectos mais temporais já elencados: a “história” do

projeto/edifício e a representação do trânsito e vivência de seu interior.

4 Um caso: a apresentação da Villa Dall’Ava em S,M,L,XL.

Dedicado às obras do Office for Metropolitan Architecture (OMA), o livro S,M,L,XL é o

pioneiro e talvez mais célebre dos “portfolios-manifesto” de escritórios de arquitetura

surgidos desde os anos noventa. Escrito pelo arquiteto Rem Koolhaas e projetado pelo

designer Bruce Mau (cujo peso na concepção do livro lhe valeu o reconhecimento de

coautoria), este livro de ênfase marcadamente narrativa é também um dois mais

enfáticos exemplos de exploração da mídia livro e do encadeamento de informações

gráficas na potencialização expressiva e semântica de apresentações de projeto e do

discurso profissional dos arquitetos envolvidos. Num espaço de 62 páginas está o

capítulo “Obstacles”, dedicado à Villa Dall’Ava: uma residência unifamiliar de dois

quartos, situada num bairro afastado de Paris. Tratava-se de um projeto já

razoavelmente bem conhecido antes do lançamento de S,M,L,XL, e especialmente

relevante à carreira de OMA no tema da habitação. Acompanharemos aqui como a

leitura das informações sobre essa edificação e projeto foi encadeada pelos autores

do livro.

Começando em uma página-dupla (como todos os capítulos de S,M,L,XL) a

“abertura” de Obstacles apresenta a metade esquerda inteiramente ocupada por uma

única imagem e a direita só com palavras em fundo preto (figura 1, à esquerda). Essa

página-dupla dividida, por sua vez, exibe uma característica específica deste capítulo:

texto e imagens fotográficas do edifício ficam completamente separados, duas

modalidades autônomas de discurso: sem sobreposição visual, sem relação de

ilustração das palavras pelas figuras e sem comentário das figuras pelas palavras

(essa separação, é bom frisar, não é a regra desse livro; algumas apresentações têm

maior interação e hibridismo entre palavras e imagens).

Page 8: ASPECTOS NARRATIVOS DA REPRESENTAÇÃO DA …wright.ava.ufsc.br/~grupohipermidia/graphica2013/trabalhos/ASPECTOS... · Em ambos os tipos de relato, o processo de representação (mímesis)

Figura 1: À esquerda, a “abertura” da apresentação, com o início da narrativa escrita (páginas 132-133); à direita, a retomada e arremate dessa narrativa (páginas 174-175).

Em um ponto de observação elevado, a foto da primeira página mostra o sítio da

casa com a silhueta da mesma “recortada” em branco, de forma a sugeri-la sem

mostrá-la. Após esse pequeno momento de “mistério” visual, o texto escrito do capítulo

é apresentado quase por inteiro, sem interrupções “visuais”. Em uma fonte sem-serifa

de cor branca sobre páginas pretas, as palavras correm sem o acompanhamento de

imagem alguma. Neste espaço preto puramente tipográfico, o texto se desenvolve em

pequenos trechos de poucas linhas, cada um com um título centralizado de tipografia

idêntica ao corpo do texto. Essas breves frases, por sua vez, não se destinam a

descrever e explicar a residência e seu projeto — como seria comum — mas a narrar

em “lampejos” os acontecimentos e situações ligados a sua elaboração: a paixão dos

clientes por arquitetura e suas exigências, a situação de entorno, os principais

problemas projetuais e questões técnicas, os problemas legais e de mão de obra, os

muitos atrasos e revisões e as transformações que o tempo trouxe ao projeto e à vida

pessoal dos envolvidos (clientes e arquitetos) — enfim, os principais “obstáculos” do

que Koolhaas descreveu em sua peculiar ironia como “empreitada mitológica” (p.133),

e como estes afetaram o resultado final. Tudo sem entrar em detalhes sobre o projeto:

de maneira análoga à foto da primeira página, que só mostra o que está em volta da

casa, o texto delineia a casa “em negativo”, mostrando apenas acontecimentos que a

envolvem e não o objeto em si.

Após o término dessa narrativa aforística de meras três páginas, o objeto em si é

mostrado “silenciosamente”: inicia-se uma longa sequência de fotografias da

residência construída, que se estende por 38 páginas contínuas. Com a maioria das

imagens ocupando individualmente páginas-duplas, essa sequência tem uma

inspiração declaradamente “cinemática”, quase como a capturar instantâneos de um

percurso exploratório pela casa1. Contudo, apesar da evidente conexão na escolha da

sucessão, não há preocupação em simular perfeitamente um percurso literalmente

realizado: há fotografias noturnas e diurnas, coloridas e em preto e branco; nesse

sentido, como na arte do cinema, a sequência de imagens revela-se claramente em

sua condição de montagem: não são fragmentos extraídos de um percurso “factual”, e

sim a construção de um percurso “ficcional” — e da arquitetura que ele desvela — a

partir de fragmentos diferentes.

1 A intenção “cinemática” de S,M,L,XL é declarada pelo próprio designer Bruce Mau em seu livro Life Style

(2000, p.338). Nesse livro, Mau ele também expõe a influência marcante do cinema como mídia estruturadora de sua percepção.

Page 9: ASPECTOS NARRATIVOS DA REPRESENTAÇÃO DA …wright.ava.ufsc.br/~grupohipermidia/graphica2013/trabalhos/ASPECTOS... · Em ambos os tipos de relato, o processo de representação (mímesis)

As primeiras sete páginas-duplas são do exterior da casa; depois se percorre seu

interior, subindo-se de um andar a outro. As fotos são cuidadosamente feitas para

capturar a casa habitada; ainda que a arquitetura seja evidentemente o assunto

principal, há sempre sinais e vestígios de uso humano, quando não a própria presença

humana — geralmente pequena, ou borrada, ou como vulto, ou refletida nas

superfícies de vidro, ou colocada perifericamente na composição. Além disso,

enfatizam-se sutilmente ora vistas, ora o efeito da luz, ora os materiais, ora o espaço

externo.

Figura 2: A representação “cinemática” do trajeto pela Villa Dall’Ava (páginas duplas 136-137; 138-139; 140-141; 142-143; 162-163; e 166-1667)

A última foto do percurso (ver figura 1), assim como a primeira, é uma vista

externa de uma altura superior; só que, enquanto a primeira mostra a frente e enfatiza

a casa em seu terreno, a última apresenta a casa por trás e sintetiza sua locação —

podendo-se ver, na paisagem ao fundo, a Torre Eiffel alinhada com o eixo longitudinal

da casa. Não por acaso: juntamente com a piscina suspensa e as faces envidraçadas,

Page 10: ASPECTOS NARRATIVOS DA REPRESENTAÇÃO DA …wright.ava.ufsc.br/~grupohipermidia/graphica2013/trabalhos/ASPECTOS... · Em ambos os tipos de relato, o processo de representação (mímesis)

a possibilidade de avistar a torre a partir da cobertura apareceu no texto como uma

das exigências expressas do cliente; ao condensar a piscina, a transparência da casa

e a vista parta a torre, a imagem tem uma conotação de “missão cumprida”. E,

coerentemente, esta última foto divide a página dupla com outra página preta, em que

a “voz” do narrador é brevemente retomada com um irônico “foram felizes para

sempre”.

Depois desse comentário aparentemente “final”, começa uma nova sequência de

imagens, agora desenhos técnicos da casa, na tradicional ordem sequencial de

plantas por pavimento, depois cortes, depois fachadas. Estas, entretanto, não são

peças gráficas feitas especialmente para o livro; na verdade, não são nem mesmo

peças com o desenho final do projeto. Os autores optaram por reproduzir plantas,

cortes e fachadas de fases não-definitivas — com certos elementos diferentes dos

vistos na casa final — comentadas e rabiscadas à mão com tinta vermelha, no que

seriam marcas do próprio diálogo projetual entre arquitetos e destes com os clientes

(ver a figura 3). Após texto “puro” primeiro e imagem “silenciosa” em segundo, essa

terceira sequência é um conjunto mais híbrido; por um lado, desenhos técnicos

tendem a combinar elementos pictóricos e verbais (números, indicação de materiais,

etc.) numa aparência e modalidade gráfica semelhante (linha preta sobre fundo

branco); por outro, os comentários e desenhos feitos à mão em tinta vermelha sobre

as plantas também parecem formar um conjunto coerente em sua gestualidade, e

emprestam certa vida e voz a essas imagens normalmente estáticas. Peças

originalmente feitas para a compreensão geométrica da edificação tornam-se, assim,

um testemunho documental do longo e laborioso processo de projeto sugerido pelo

texto. Após a sequência de desenhos, o capítulo termina com uma única imagem

ocupando uma página-dupla: uma foto da construção da casa, outro testemunho de

seu processo de concretização.

Figura 3: Desenhos técnicos comentados, rasurados e complementados à mão. Respectivamente, plantas (páginas 178-179) e cortes (184-185).

Page 11: ASPECTOS NARRATIVOS DA REPRESENTAÇÃO DA …wright.ava.ufsc.br/~grupohipermidia/graphica2013/trabalhos/ASPECTOS... · Em ambos os tipos de relato, o processo de representação (mímesis)

Uma vez concluída a apresentação, cabe ressaltar a disjunção desse conjunto de

representações: a edificação mostrada nas fotos não é exatamente aquela

representada em desenhos — e o texto, por sua vez, não fornece descrições

propriamente ditas. O leitor efetivamente interessado em compreender a configuração

da casa precisa deduzi-la a partir dos desenhos, correções e anotações feitas nestes

(e elas não são de fácil legibilidade), em cruzamento com o que viu na longa

sequência de fotos.

Embora tal processo seja virtualmente possível, a questão em jogo parece ser

outra: os autores do livro parecem menos interessados na intelecção eficiente e

completa do “objeto casa” do que em fornecer, entremeada aos meios de

representação, uma amostra da prática intelectual envolvida em sua elaboração: este,

aparentemente, é o real objeto — e o “sentido” — dessa apresentação.

Não se trata, contudo, de uma tentativa de explicar e sistematizar um determinado

“processo projetual”. O próprio “caso” dessa casa, afinal, é narrado no texto menos

como a resolução engenhosa de um problema (um padrão comum em explicações

projetuais) do que como um longo desenvolvimento em contato contínuo com

contingências múltiplas. Assim como o “tour” cinemático das fotos oferece mais

impressões do que explicações da casa, os desenhos técnicos aqui parecem destinar-

se a provocar menos a intelecção do que uma sensação ou impressão a respeito da

prática dialógica que gerou aquele produto. Uma comparação pode ser traçada: assim

como croquis de arquitetos são tradicionalmente utilizados em publicações como

tentativas de conjurar a presença da “mão do autor” — capturar algo do gesto,

concepção pessoal ou personalidade — os comentários dos desenhos técnicos e o

tom confessional do texto e parecem querer capturar e oferecer a “presença” da

prática arquitetônica envolvida. Em ambas as situações, em que pesem suas

diferenças, a “mão” do arquiteto é menos algo a ser decifrado que uma presença a ser

manifestada.

5 Conclusão

O caso de apresentação acima descrito condensa e explora expressivamente

todos os três aspectos aqui destacados — a arquitetura como produto de uma série de

ações e acontecimentos, a representação da experiência temporal e o encadeamento

de informações. Pode-se ver também a presença de diversos elementos relacionados

à narratividade, como a criação de expectativa, a implicação de causalidade, a seleção

de momentos-chave, a “temporalidade” da própria leitura e a noção de totalidade.

Conforme já foi dito, todo “ato arquitetônico”, seja edificação ou apenas um

projeto, possui certos aspectos mais estreitamente narrativos ou narrativizáveis. Mas

Page 12: ASPECTOS NARRATIVOS DA REPRESENTAÇÃO DA …wright.ava.ufsc.br/~grupohipermidia/graphica2013/trabalhos/ASPECTOS... · Em ambos os tipos de relato, o processo de representação (mímesis)

ele não necessita destacar esses aspectos, e nem ser apresentado de maneira

propriamente narrativa, temporalizada, para construir sua compreensão mais básica.

Na verdade, ainda hoje é mais comum que apresentações de arquitetura centrem-se

na descrição de seu objeto e numa argumentação sobre a validade de suas

características, apresentando-o mais como um diálogo de teses e antíteses,

problemas e soluções. Incluir narrativas no discurso sobre um projeto — ou conferir

caráter mais narrativo mesmo a sua descrição ou à estrutura de apresentação como

um todo — é certamente uma opção retórica, com variadas implicações.

O exemplo destacado aqui, por sua vez, não está preocupado em facilitar essa

inteligibilidade, mas em expandir os significados e impressões do projeto e edificação.

Tendo isso em vista, pode-se perguntar se o uso da narratividade não pode ser uma

exploração, mais ou menos consciente dependendo do caso, de um tipo de

encadeamento racional que deixa o leitor predisposto a abstrair um sentido geral para

além do que está estritamente escrito ou retratado. Não seria esse um recurso

fortemente persuasivo? Talvez; mas, mais do que da qualidade de um projeto em

particular, ele pode ser persuasivo da engenhosidade do produtor do discurso, o

arquiteto; o uso criativo da linguagem, afinal, ajuda a construir o ethos, a imagem

daquele que enuncia. E esse, afinal, seria provavelmente um dos objetivos centrais

desses livros contemporâneos de auto-apresentação: usar a engenhosidade de

construção das “ficções” para atestar o mérito habilidade criativa de seu autor.

Referências Bibliográficas

BOYER, C e HAUPTMANN, D. The big books and sundry cyber-matters: an Interview with M. Christine Boyer. In BEKKERING, H. e HAUPTMANN, D. (Eds.). The architecture annual 2004-2005, Delft University of Technology. Rotterdam: 010 Publishers, 2006, pp. 108-111.

BROOKS, P. Reading for the plot. Cambridge: Harvard University Press, 1992.

BRUNER, J. Actual minds, possible worlds. Cambridge: Harvard University Press, 1986

JENCKS, C. Post-Modernism and the revenge of the book. In RATTENBURY, K (org.). This is Not Architecture: Media Constructions. Londres: Routledge, 2002, pp. 174-

197.

KOOLHAAS, R., MAU, B. S,M,L,XL (Small, Medium, Large, Extra-Large). New York:

Monacceli Press, 1995.

MAU, Bruce. Life Style. London: Phaidon Press Limited. 2000.

Page 13: ASPECTOS NARRATIVOS DA REPRESENTAÇÃO DA …wright.ava.ufsc.br/~grupohipermidia/graphica2013/trabalhos/ASPECTOS... · Em ambos os tipos de relato, o processo de representação (mímesis)

RATTENBURY, K. Architecture Books. Icon Magazine, nº 015 , September 2004.

URL: http://www.iconeye.com/read-previous-issues/icon-015-%7C-september-2004/architecture-books-%7C-icon-015-%7C-september-2004. Acesso em 12/09/2011.

RICOEUR, P. Tempo e Narrativa (livro 1). São Paulo: Martins Fontes, 2012.