Atenção Psicológica em Situações Extremas: compreendo a experiência de psicólogos

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Tese de doutorado sobre a atuação de psicólogos em desastres, emergências, conflitos armados, epidemias etc.

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    TICIANA PAIVA DE VASCONCELOS

    ATENO PSICOLGICA EM SITUAES

    EXTREMAS: COMPREENDENDO A

    EXPERINCIA DE PSICLOGOS

    PUC-CAMPINAS2015

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    TICIANA PAIVA DE VASCONCELOS

    ATENO PSICOLGICA EM SITUAES

    EXTREMAS: COMPREENDENDO AEXPERINCIA DE PSICLOGOS

    Tese apresentada ao Programa de Ps-

    Graduao Stricto Sensu em Psicologia

    do Centro de Cincias da Vida PUC-

    Campinas, como requisito para obteno

    do ttulo de Doutor em Psicologia como

    Profisso e Cincia.

    Orientadora: Profa. Dra. Vera Engler

    Cury

    PUC-CAMPINAS2015

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    Ficha CatalogrficaElaborada pelo Sistema de Bibliotecas e

    Informao - SBI - PUC-Campinas

    t150.23 Vasconcelos, Ticiana Paiva de.V331a Ateno psicolgica em situaes extremas: compreendendo aexperincia de psiclogos/ Ticiana Paiva de Vasconcelos. - Campinas:PUC-Campinas, 2014.

    150p.

    Orientadora: Vera Engler Cury.Tese (doutorado) - Pontifcia Universidade Catlica

    de Campinas, Centro de Cincias da Vida, Ps-Graduao emPsicologia.

    Inclui bibliografia.

    1.Psiclogos. 2.Psicologos tica profissional. 3. Calamidadespblicas. 4. Psicologia - Metodologia. I. Cury, Vera Engler. II. PontifciaUniversidade Catlica de Campinas. Centro de Cincias da Vida.

    Ps-Graduao em Psicologia. III. Ttulo.

    22ed. CDD t150.23

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    AGRADECIMENTOS

    minha me e irm pelo apoio incondicional.

    Profa. Vera E. Cury pela dedicao to fundamental minha formao.

    s amigas Shirley Arajo, Karoline Pereira e Gisella Mouta-Fadda pelosmomentos partilhados que fomentam o que eu sou.

    Aos membros do Grupo de Pesquisa pelas interlocues preciosas.

    Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior (CAPES),

    cujo financiamento permitiu a dedicao integral ao curso de doutorado.

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    RESUMO

    Vasconcelos, Ticiana Paiva de. Ateno psicolgica em situaes extremas:compreendendo a experincia de psiclogos. 2015. 148 p. Tese (Doutorado emPsicologia) - Pontifcia Universidade Catlica de Campinas, Centro de Cincias daVida, Programa de Ps-Graduao em Psicologia, Campinas, 2015.

    Esta pesquisa objetivou compreender e interpretar a experincia de psiclogos que

    atuaram em diversos contextos considerados como situaes extremas, incluindo asdenominadas abruptas - desastres ambientais e acidentes areos - e as crnicas -conflitos armados, ps-guerras e epidemias. Caracterizou-se como pesquisaexploratria de inspirao fenomenolgica. Foram realizados encontros individuaiscom nove psiclogos no perodo de abril a setembro de 2013. Como estratgia paraa anlise dos encontros foram elaboradas narrativas que desvelaram os significadosda experincia dos participantes a partir da compreenso da pesquisadora. Umanarrativa-sntese emergiu do conjunto de narrativas individuais apontandoelementos de natureza interpretativa em relao ao fenmeno estudado: (1) dianteda exposio a constantes ameaas sua prpria integridade fsica e psicolgica,conviver com o risco torna-se parte inerente a este tipo de prtica profissional; (2)pertencer a uma organizao que gerencia as aes da equipe possibilita estruturara interveno e tambm oferece apoio e cuidado aos profissionais; (3) a atenopsicolgica desenvolve-se em sintonia com as especificidades e demandas dasituao, constituindo-se a partir de atitudes de empatia e aceitao s pessoas,assim como de autenticidade em relao a si prprio; (4) os psiclogos revelaramsentimentos de autorrealizao em decorrncia da participao em situaesextremas e anseio por permanecer em estado de prontido para entrar em ao; (5)atuar em situaes extremas constitui campo frtil e peculiar de aprendizagem.Esses resultados desvelaram o sentido da prtica psicolgica em situaesextremas como um gesto humano de lanar-se em direo ao outro tendo comomisso o cuidar e possibilitando a emergncia do acontecer clnico.

    Palavras-chave: Ateno psicolgica em situaes extremas. Preveno einterveno psicolgica. Fenomenologia. Desastre. Narrativa.

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    ABSTRACT

    Vasconcelos, Ticiana Paiva de. Psychological care in extreme situations:understanding the psychologists experience. 2015. 148 p. Thesis (Doctoral inPsychology) - Pontifcia Universidade Catlica de Campinas, Centro de Cincias daVida, Programa de Ps-Graduao em Psicologia, Campinas, 2015.

    This research aimed to apprehend and interpret the experience of psychologists whohave worked in several contexts considered extreme situations, including those

    designated as abrupt environmental disasters and plane crashes and as chronic armed conflicts, post-war and epidemics. The investigation was characterized asan exploratory qualitative research of phenomenological inspiration. Individualencounters with nine psychologists occurred from April to September of 2013. As astrategy for the analysis of these encounters, narratives were elaborated, unveilingthe meanings of the participants experience based on the researchers impressions.

    A narrative-synthesis emerged from all the individual narratives pointing tointerpretative elements related to the studied phenomenon: (1) being exposed toconstant threats to the their physical and psychological integrity and living with risksbecomes an inherent part of this professional practice; (2) belonging to anorganization that manages the teams actions allows a certain structure for theirinterventions and also offers support and care to the professionals; (3) psychologicalcare develops in harmony with the specificities and demands of the situation,developing from attitudes of empathy and acceptance, as well as from theauthenticity of the psychologist himself; (4) psychologists revealed feelings of self-realization as a result of participating in extreme situations, and a desire to remain ina state of readiness for action. (5) working in extreme situations is a fertile andpeculiar opportunity of learning. These results revealed the meaning of thepsychological practice in extreme situations as a human gesture of casting oneself inthe direction of others as a mission to care for and facilitate the clinical situation

    Keywords: Psychological care in extreme situations. Prevention and psychologicalintervention. Phenomenology. Disaster. Narrative.

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    RESUMEN

    Vasconcelos, Ticiana Paiva de. Atencin psicolgica en situaciones extremas:comprendiendo la experiencia de psiclogos. 2015. 148 p. Tesis (Doctorado enPsicologa) - Pontifcia Universidade Catlica de Campinas, Centro de Cincias daVida, Programa de Ps-Graduao em Psicologia, Campinas, 2015.

    La investigacin tuvo como objetivo aprehender y interpretar la experiencia depsiclogos que actuaron en diversos contextos considerados como situacionesextremas, incluyendo a las denominadas abruptas desastres ambientales yaccidentes areos y las crnicas conflictos armados, postguerras y epidemias.La investigacin se caracteriz como investigacin cualitativa exploratoria de

    inspiracin fenomenolgica. Se realizaron encuentros individuales con nuevepsiclogos en el perodo de abril a septiembre de 2013. Como estrategia para elanlisis de los encuentros, se elaboraron narrativas que revelaron elementos de laexperiencia de los participantes a partir de las impresiones de la investigadora. Unanarrativa-sntesis emergi del conjunto de narrativas individuales apuntandoelementos de naturaleza interpretativa en relacin con el fenmeno estudiado: (1)ante la exposicin a constantes amenazas a su propia integridad fsica y psicolgica,convivir con el riesgo se torna parte inherente a ese tipo de prctica profesional; (2)pertenecer a una organizacin que gerencia las acciones del equipo posibilitaestructurar la intervencin y tambin ofrece apoyo y cuidado a los profesionales; (3)la atencin psicolgica se desarrolla en sintona con las especificidades y demandasde la situacin, constituyndose a partir de actitudes de empata y aceptacin de las

    personas, as como de autenticidad en relacin en el prprio psiclogo; (4) lospsiclogos revelaron sentimientos de autorrealizacin como consecuencia de laparticipacin de situaciones extremas y anhelo por permanecer en estado deprontitud para entrar en accin; (5) actuar en situaciones extremas constituye uncampo fertil y peculiar de aprendizaje. Estos resultados dieron a conocer el sentidode la prctica psicolgica en situaciones extremas, como un gesto humano de lanzaruno hacia el otro, con la misin de cuidar y propiciando el surgimiento de acontecerclnico.

    Palabras clave: Atencin psicolgica en situaciones extremas. Prevencin eintervencin psicolgica. Fenomenologa. Desastres. Narrativa.

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    SUMRIO

    APRESENTAO .........................................................................................10

    CAPTULO 1 - Atuao do psiclogo em situaes de desastre: estado daarte ................................................................................................................ 14

    CAPTULO 2 Do aconselhamento psicolgico s intervenes em

    desastres: desafios da ateno psicolgica ..................................................29

    CAPTULO 3 O caminho metodolgico da pesquisa ..................................39

    3.1 As narrativas como estratgia para apreender os significados da

    experincia .....................................................................................................44

    3.2 Aproximao da pesquisadora com o campo de pesquisa ...........473.3 Os participantes da pesquisa ........................................................48

    3.4 Compondo as narrativas ...............................................................51

    CAPTULO 4 As narrativas dos encontros e a narrativa-sntese ................53

    4.1 As narrativas dos encontros .........................................................53

    Um pouco de humanidade - Encontro com Lino ......................53

    Trilho do trem - Encontro com Aurlio ......................................59

    Soco na alma - Encontro com Janete ......................................63

    Tudo errado - Encontro com Bento ..........................................71

    Limites borrados - Encontro com Sofia ....................................76

    No preparo da festa - Encontro com Iara .................................79

    O desastre fascina - Encontro com Lourdes ............................86

    Nos limites do inesperado - Encontro com Elvira .....................91

    A encarcerada - Encontro com Clarice ....................................97

    4. 2 A narrativa-sntese .....................................................................105

    CAPTULO 5 - Desdobrando significados da experincia dos psiclogos

    participantes e apontando um sentido .........................................................111

    CONSIDERAES FINAIS .........................................................................125

    REFERNCIAS ...........................................................................................128

    ANEXOS ......................................................................................................143

    Anexo 1 Parecer de Aprovao do Comit de tica em Pesquisa

    ......................................................................................................................144

    Anexo 2 Modelo do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido......................................................................................................................147

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    APRESENTAO

    Nesta tese, objetivamos compreender a experincia de psiclogos que

    atuaram em situaes extremas, tais como desastres ambientais, acidentes

    areos, conflitos armados e epidemias.

    A indagao principal que norteou a pesquisa constituiu-se ao longo

    dos anos da prtica profissional exercida pela pesquisadora. Desde os

    estgios curriculares do curso de graduao em psicologia participou da

    implementao do servio de planto psicolgico 1 , cuja demanda

    emergencial suscitou reflexes acerca dos limites e possibilidades da prtica

    psicolgica ao ser exercida em contextos clnicos no tradicionais.

    Os desafios enfrentados poca suscitaram questionamentos acerca

    dos elementos necessrios para uma interveno efetiva em relao s

    demandas de sofrimento que ao psiclogo se apresentam. Diante de tal

    problemtica, empreendeu-se uma dissertao de mestrado2sobre a atitude

    do estagirio-plantonista numa clnica-escola de psicologia.

    O crescente interesse da pesquisadora sobre as potencialidades da

    ateno psicolgica em enquadres diferenciados culminou na presente

    pesquisa. O desenvolvimento de novas propostas clnicas apropriadas

    prtica psicolgica em diferentes contextos constitui-se em ponto de

    convergncia para as investigaes desenvolvidas pelo Grupo de Pesquisa

    do Programa de Ps-Graduao em Psicologia da PUC-Campinas,

    denominado Ateno Psicolgica Clnica em Instituies: preveno e

    interveno. Dessa forma, novos e diferentes contextos desafiam os

    pesquisadores a encontrarem respostas para o desenvolvimento de prticas

    psicolgicas diferenciadas e eficazes.

    1 No captulo 2, ser melhor explicitado a modalidade clnica plantopsicolgico.2Defendida em 2009 sob o ttulo A atitude clnica no planto psicolgico:composio da fotografia experiencial do terapeuta-sherpa (Vasconcelos,2009).

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    A interveno em desastres no uma situao indita para os

    psiclogos. Embora ocorra a participao efetiva de profissionais da

    psicologia nos cenrios de desastre desde a dcada de 1980, as

    intervenes demandam aprofundada e constante investigao a fim de

    descortinar as aes e os desafios enfrentados, conforme apontam diversos

    autores da rea (Saakvitne, 2006; Silva et al., 2013; Figueira, 2004; Ruz,

    2003; Krum, 2007).

    Os primeiros esforos para uma apropriao em relao a contextos

    emergenciais veio da sociologia, que aps a Segunda Guerra Mundial, com o

    advento da Guerra Fria, comeou a investigar como as comunidades norte-

    americanas reagiriam a ataques inimigos (Quarantelli, 2005). J na cincia

    psicolgica, uma das investigaes foi conduzida em 1944 por Lindemann,

    que realizou uma avaliao sistemtica das respostas psicolgicas dos

    sobreviventes e de seus familiares no incndio do Clube Noturno Coconut

    Grove, em Boston, EUA (Narayanan et al., 1987), o que ficou consagrado

    como primeiro estudo sobre uma interveno psicolgica no contexto ps-

    desastre.

    No Brasil, os psiclogos vm sendo convocados a ir a campo para

    acolher demandas das vtimas e do amplo lastro de pessoas envolvidas. O

    aumento da preocupao em promover uma resposta adequada aos

    desastres foi corroborada pelos recentes episdios de inundaes e

    deslizamentos de terra em 2008, em Santa Catarina, e em 2011, no Rio de

    Janeiro. De forma igualmente trgica, ocorreu em 2013 o incndio na boate

    Kiss, em Santa Maria, no Rio Grande do Sul. Tais eventos tiveram impacto

    no somente devido aos milhares de mortos, feridos e desabrigados, mas

    tambm pelos sentimentos de vulnerabilidade e incerteza provocados napopulao.

    Portanto, o perodo atual caracteriza-se por uma demanda explcita e

    implcita por servios psicolgicos, seja comunidade afetada, seja s

    prprias equipes de socorro, fato este que, segundo alguns autores,

    continuar aumentando em mdio prazo (Alves et al., 2012; Vogel & Vera-

    Villaroel, 2010). Nesse cenrio, emerge a necessidade de indicadores que

    norteiem a atuao do psiclogo e colaborem para a sedimentao ecompreenso da ateno psicolgica.

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    No h at o momento estudos que considerem de maneira especfica

    a experincia vivida por psiclogos que atuaram diretamente nessas

    situaes. Conforme afirma Kling (2002), em um desastre a tragdia tem

    contornos muito maiores do que se pode vivenciar na vida cotidiana, at

    mesmo para um profissional da psicologia (p. 211). Justifica-se, portanto, a

    necessidade de maior compreenso e de submeter a prtica consistente

    investigao cientfica (Alves et al., 2012).

    Assim, nesta pesquisa a inteno foi investigar a experincia de

    psiclogos que se disponibilizam a estar em contextos margeados por

    perdas, adversidades e desestruturao.

    Diante da incipincia de estudos na rea at o momento,

    desenvolvemos, no Captulo 1, uma investigao que apresenta o estado da

    arte em relao atuao de psiclogos em desastres de um modo geral. Ao

    analisarmos a produo cientfica internacional, foi possvel delinear um

    panorama de discusses relevantes de forma a elucidar os principais marcos

    referenciais da rea, assim como as principais diretrizes norteadoras.

    No Captulo 2, apresentamos um breve histrico da constituio do

    aconselhamento psicolgico diante dos desafios impostos psicologia com o

    fim da Segunda Guerra Mundial. Discutimos tambm a ateno psicolgica e

    sua aplicabilidade no caso do planto psicolgico, finalizando com a

    interveno psicolgica contextualizada na tragdia do Furaco Katrina, nos

    Estados Unidos.

    No Captulo 3, caracterizamos, inicialmente, os estudos de natureza

    fenomenolgica e em seguida descrevemos o processo ao longo do qual se

    efetivou esta pesquisa em seus aspectos metodolgicos e formais, ou seja,

    os passos trilhados pela pesquisadora, incluindo a maneira como foramconstrudas as narrativas at culminar na narrativa sntese.

    No Captulo 4, apresentamos as narrativas elaboradas aps cada

    encontro com os participantes e a narrativa sntese que possibilitou uma

    apreenso interpretativa mais ampla do fenmeno estudado.

    Por fim, no Captulo 5 desenvolvemos uma reflexo sobre a

    experincia desvelada a partir dos encontros com os psiclogos ao ser

    problematizada luz da anlise de seus elementos significativos, propiciandodilogos promissores com outros autores e apontando a necessidade de

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    novos estudos que venham contribuir para o desenvolvimento cientfico da

    psicologia como prtica e como profisso.

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    CAPTULO 1: Atuao do psiclogo em situaes de

    desastre: estado da arte3

    RESUMO

    O presente artigo objetiva analisar a produo cientfica internacional

    publicada no perodo entre 2003 e 2013 sobre a atuao de psiclogos em

    desastres. A denominao desastre adotada para designar situaes

    extremas que causam dano ou prejuzo vida humana. Os psiclogos tm

    integrado de forma cativa equipes de socorro em muitos pases. Aps anlise

    da produo bibliogrfica disponvel em bases de dados internacionais, foram

    selecionados 97 artigos. A partir dessas publicaes foi possvel delinear um

    panorama das discusses relevantes, de forma a elucidar os principais

    marcos referenciais da rea. Quanto interveno psicolgica, apontamos a

    crescente consolidao de diretrizes norteadoras postuladas porespecialistas, sistematizadas nas perspectivas asitica, europeia e norte-

    americana. Contudo constatamos controvrsia entre os autores, revelando a

    necessidade de novos estudos a fim de que sejam construdos norteadores

    tericos e metodolgicos pertinentes prtica.

    Palavras-chave: Preveno e interveno psicolgica; Atuao do psiclogo;

    Desastre; Ateno psicolgica; Sade mental.

    The role of psychologist in disaster situations: state of the art

    ABSTRACT

    This article aims to analyze the international scientific literature published

    between 2003 and 2013 on the role of the psychologists in disasters. We

    3Artigo submetido a revista Arquivos Brasileiros de Psicologia"

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    adopt the term disaster to designate extreme situations that cause injuries or

    damage to human life. Psychologists have been integrating captively help

    teams in many countries. After analysis of bibliographic production available

    in international databases, we selected 97 articles. Based on these

    publications, it was possible to outline an overview of relevant discussions in

    order to explain the main landmarks of the area. As for psychological

    intervention, we point out a growing consolidation of guidelines postulated by

    specialists, systematized in Asian, European and North American

    perspectives. However, we verify controversy among the authors, revealing

    the need for further studies in order to build new theoretical and

    methodological directions pertinent to the practice.

    Keywords: Prevention and psychological intervention; Performance of the

    psychologist; Disaster; Psychological attention; Mental health.

    Actuacin del psiclogo en situaciones de desastre: estado del arte

    RESUMEN

    Este artculo tiene como objetivo analizar la literatura cientfica internacional

    publicada entre 2003 y 2013 sobre el papel de los psiclogos ante el

    desastre. El trmino desastre se adopta para describir situaciones extremas

    que causan lesiones o daos a la vida humana. Los psiclogos han integrado

    los equipos de rescate en varios pases. Tras el anlisis de la produccin

    bibliogrfica disponible en bases de datos internacionales, se seleccionaron

    97 artculos. A partir de estas publicaciones fue posible esbozar un panorama

    de las discusiones pertinentes con el fin de elucidar los principales marcos

    referenciales del rea. En cuanto a la intervencin psicolgica, se seal la

    creciente consolidacin de principios orientativos postulados por expertos,

    sistematizados en las perspectivas asiticas, europeas y norteamericanas.

    Constatamos controversia entre los autores, revelando la necesidad de

    nuevos estudios para construir ejes tericos y metodolgicos pertinentes a la

    prctica.

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    Palavras clave: Prevencin e intervencin psicolgica; Actuacin del

    psiclogo; Desastre; Atencin psicolgica; Salud mental.

    Introduo

    O presente artigo decorre de um levantamento realizado para subsidiar

    pesquisa de doutorado e tem por objetivo analisar o panorama da produo

    cientfica internacional no campo da Psicologia no perodo de 2003 a 2013

    acerca da atuao do psiclogo em situaes de desastre.A denominao desastre atribuda a uma situao extrema que

    causa dano ou prejuzo vida humana (Alves, Lacerda, & Legal, 2008). um

    acontecimento que pode englobar uma diversidade de fenmenos com

    caractersticas e implicaes distintas. Segundo Bowman e Roysircar (2011),

    a definio de desastre perpassa os seguintes elementos: so situaes

    potencialmente traumticas, experimentadas coletivamente com incio

    inesperado e delimitadas no tempo, embora as consequncias possam ser

    sentidas em longo prazo (Yutrzenka & Naifeh, 2008).

    Intervenes em desastres no uma situao indita para os

    psiclogos. O campo teve desenvolvimento a partir de ocorrncias entre as

    dcadas de 1980 e 1990 (Everly, Hamilton, Triska, & Ellers, 2008), contudo

    com aes espordicas.

    Desde a ltima dcada, psiclogos tm ocupado de forma cativa as

    equipes de resposta ps-desastre, entretanto as sistematizaes das aes

    so reduzidas. Artigos nacionais e latino-americanos (Alves et al., 2008;

    Marn & Lpez-Lpez, 2010) apontam a escassez de produes cientficas

    regionais em relao temtica, compreendendo a rea em ascendente

    crescimento, mas incipiente em discusses tericas.

    Para ilustrar, trazemos os resultados da pesquisa de Marn e Lpez-

    Lpez (2010), que empreenderam reviso em artigos publicados dentre os

    anos de 2005 e 2010 sobre o trabalho de psiclogos no perodo ps-desastre

    em diversas ocorrncias na Amrica Latina. Referem esses autores somente

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    trs artigos, ao passo que, no mesmo perodo, registraram 112 desastres

    com a efetiva participao de psiclogos em todas as equipes.

    A falta de sistematizao das experincias contribui para que o

    conhecimento cientfico no evolua, embora a participao dos psiclogos

    venha aumentando, fato que compromete a possibilidade de planejamento e

    de refinamento das propostas de interveno que certamente levariam

    intervenes mais efetivas.

    Metodologia

    Utilizamos como referncia o banco de dados virtual do Portal de

    Peridicos Capes/Mec, que possui mais de 130 bases referenciais e 33 mil

    ttulos com texto completo no acervo (Capes, 2013), agregando de forma

    abrangente a produo internacional. Buscamos analisar qualitativamente o

    contedo das produes cientficas selecionadas sobre o tema.

    Para a pesquisa bibliogrfica, realizada em janeiro de 2013,

    empregamos como palavras-chave disaster e psychology, abrangendo

    publicaes de 2003 a 2013. Consideramos artigos originais revisados por

    pares nos idiomas portugus, ingls e espanhol. A busca, empreendida pelas

    ferramentas do Portal, contemplou editoras renomadas, como MEDLINE,

    OneFile, SciVerse Science Direct (Elsevier), Sage Publications, dentre outras.

    Como resultado do procedimento acima descrito, selecionamos

    inicialmente 261 artigos. As publicaes nas diversas bases referenciais

    assim se distriburam: Scopus (Elsevier), 172 artigos; MEDLINE, 143 artigos;

    OneFile, 122 artigos; SciVerse Science Direct (Elsevier), 34 artigos; Wiley

    Online Library, 24 artigos; Sage Publications,16 artigos; PsyARTICLES

    (American Psychological Association), 12 artigos.A leitura inicial desses artigos visou a uma apropriao dos conceitos e

    denominaes desenvolvidos na literatura especializada. Foram excludos os

    textos que se repetiam em mais de uma base, os indisponveis para leitura e

    os que no discutiam diretamente a interveno psicolgica na situao de

    desastre. Constatamos a existncia de inmeros estudos que contemplam

    dados sobre: fatores de risco na populao atingida; desafios mais amplos da

    equipe de reconstruo das reas; e interveno de outras profisses, comoa enfermagem e a psiquiatria.

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    Ao final do processo de triagem, selecionamos 97 artigos com relao

    direta ao tema. Observamos um maior nmero de publicaes entre os anos

    de 2010 e 2013 (43 artigos) e nfase nas subreas Disaster Planning,

    Disaster Victimse Trauma(Psychology).

    Em relao aos artigos selecionados foi efetivada uma anlise sobre

    as temticas recorrentes, as principais categorias conceituais e o tipo de

    discusso adotado pelos autores.

    Resultados

    A literatura investigada descortina a atuao das equipes de sade

    mental nos grandes desastres recentes da histria, como no Furaco Katrina

    (Edmonson, Mills, & Park, 2010; Akin-Little & Little, 2008; Levy, 2008; Chan &

    Rhodes, 2013; Gil-Rivas & Kilmer, 2013), no tsunami da sia (Chakrabhand,

    Panyayong, & Sirivech, 2006; Chandra, Pandav, Ofrin, Salunke, Bhugra,

    2006; Mahoney, Chandra, Gambheera, De Silva, & Suveendran, 2006;

    Sundram et al., 2008), e no ataque terrorista s torres do World Trade Center,

    comumente referido como 9/11 (Watson, Brymer, & Bonanno, 2011; Gill &

    Gershon, 2010). Todavia, constatamos nos ltimos anos a tendncia para

    estruturao de protocolos e recomendaes a fim de nortear as aes dos

    psiclogos, tutelada por diversas organizaes. Diante disso, os resultados

    sero divididos em duas partes.

    Na primeira sero priorizadas temticas e discusses presentes nos

    artigos, assim como os marcos referenciais de desenvolvimento da rea. Na

    segunda parte discutiremos diferentes estratgias da atuao do psiclogo,

    sistematizadas por trs perspectivas: europeia (TENTS Project), norte-

    americana (NVOAD) e asitica (Everly et al., 2008; Bisson et al., 2010;Witteveen et al., 2012; Sundram et al., 2008).

    Temticas e marcos referenciais

    No contexto asitico, diversos estudos foram postulados a partir do

    tsunami de 2004 (Chakrabhand et al., 2006; Chandra et al., 2006; Sundram et

    al., 2008). A devastao provocada impulsionou o desenvolvimento de

    reflexes sobre formas de interveno e sistematizao do conhecimentopsicolgico em relao atuao em situaes extremas naquela regio.

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    Diversos artigos discutem as aes desenvolvidas nas regies

    atingidas na sia, contudo os especialistas ainda se questionam acerca do

    impacto da tragdia de triplos catastrficos (Parhan, 2011; Shindo,

    Kitamura, Tachibana, Honma, & Someya, 2012), como a que ocorreu no

    Japo em 2011 terremoto seguido de tsunamie de acidente nuclear (para

    estudos sobre a incidncia de suicdios no perodo, ver Matsubayashi,

    Sawada e Ueda, 2013).

    Portanto, o primeiro marco definidor para a rea da Psicologia em

    situaes extremas foi desenvolvido em decorrncia do ataque s Torres

    Gmeas, nos Estados Unidos em 11 de Setembro de 2001. A ousadia da

    ao terrorista contra o complexo empresarial do World Trade Center,

    seguida de mais dois ataques em outras cidades, deixou o mundo perplexo

    dada a visibilidade e importncia daquele pas, bem como pelo fato de que o

    evento foi televisionado e veiculado em tempo real de forma ampla.

    Os estudiosos (McGuiness et al., 2008; Watson et al., 2011) apontam

    que, como consequncia naquele evento, a presena do psiclogo nas

    equipes de sade mental tornou-se uma fora prioritria, e no facultativa. A

    ateno foi galvanizada tanto para as formas como as pessoas reagem ao

    desastre quanto para a necessidade de respostas eficazes para reduzir o

    impacto psicolgico.

    Estudos (Neria, DiGrande, & Adams, 2011; Norris, Stevens,

    Pfefferbaum, Wyche, & Pfefferbaum, 2008) apontam que seguramente os

    fatores que influenciam a incidncia de problemas psicolgicos graves e

    persistentes esto ligados gravidade da exposio ao evento e

    permanncia de adversidades no perodo ps-desastre. No entanto, estudos

    decorrentes do 9/11 concluram evidncias que sugerem que os danospsicolgicos sofridos pela populao no podem ser explicados

    simplesmente pela proximidade ou exposio aos ataques (para estudo

    longitudinal, ver Silver et al., 2004). Destarte, os autores trazem investigaes

    sobre os efeitos de uma exposio indireta ao desastre, quando afetam

    aqueles que apenas assistiram aos ataques ao vivo pela televiso, e a

    influncia de inmeros outros fatores de risco sobre a sade mental das

    pessoas.A este respeito, cabe registrar a ascenso de pesquisas nos ltimos

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    anos, tanto em estudos europeus quanto norte-americanos, que versam

    sobre intervenes psicolgicas em situaes de ameaa terrorista (Stevens

    et al., 2011; Lacy & Benedek, 2003; Silver et al., 2004), de violncia em

    massa (Hobfoll & Kruczet, 2007) e de bioterrorismo (Compton, Kotwicki,

    Kaslow, Reissman, & Wetterhall, 2005).

    O segundo marco representativo cientfico e evoluiu a partir da

    grande incidncia de estudos decorrentes do Furaco Katrina. O Katrina foi

    considerado um dos mais devastadores desastres naturais na histria dos

    Estados Unidos, tendo causado quase duas mil mortes e deixado mais de

    650 mil moradores desabrigados (Lowe, Chan, & Rhodes, 2010). Ao longo

    deste levantamento, observamos que a grande maioria dos artigos versava

    sobre os desafios dos profissionais de sade mental que, motivados pela

    necessidade urgente de atuao nas equipes de socorro, se dirigiram a Nova

    Orleans (Jacobs, Leach, & Gerstein, 2011; Watson et al., 2011; Gill &

    Gershon, 2010; Akin-Little & Little, 2008; Edmonson et al., 2010; Levy, 2008).

    Diversas temticas so contempladas pelos estudos ps-Katrina,

    como, por exemplo, os que priorizam os cuidados aos segmentos mais

    vulnerveis da populao: crianas (Gil-Rivas & Kilmer, 2013), mulheres

    (Lowe et al., 2010) e idosos (Murray, 2010; Vigil & Geary, 2008; Sawrey,

    Waldegrave, Tamasese, & Bush, 2011). Estes estudos, apoiados em anlises

    quantitativas, identificam alteraes comportamentais na populao afetada

    (Sudaryo et al., 2012; Dombroski, Fischhoff, & Fischbeck, 2006) e explicitam

    a diversidade de respostas emocionais, relacionando-as incidncia de

    transtornos, bem como de fatores de enfrentamento e resilincia (para

    revises ver Bonanno, Brewin, Kaniasty, & La Greca, 2010).

    Fatores que influenciam o funcionamento da sade mental de crianase adolescentes incluem primordialmente a estruturao familiar, a resposta

    dos pais ao desastre, a religio, a influncia dos colegas de escola, se foram

    evacuadas ou deslocadas, a separao em relao ao cuidador principal, o

    grau e quantidade de perdas, frequncia de exposio ao trauma, se houve

    cobertura contnua da mdia, dentre outros (Goenjian et al., 2005; Eisenberg

    & Silver, 2011).

    Grande parte da literatura atual centra-se na patologia e em como aexposio ao desastre aumenta as chances de desenvolvimento de

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    transtorno de estresse ps-traumtico (TEPT), bem como facilita o

    ressurgimento de transtornos do humor presentes antes do desastre

    (Mitchell, Stewart, Griffin, & Loba, 2004). Constatou-se menor incidncia de

    estudos a cerca dos mecanismos de enfrentamento e de resilincia (Bonanno

    et al., 2010; Norris et al., 2008) da populao afetada.

    O impacto emocional em alguns casos de desastre pode ser

    amenizado por atributos positivos dos sobreviventes (Bonanno et al., 2010;

    Norris et al., 2008). H pessoas que possuem uma viso otimista que as leva

    a aceitar, geralmente por meio de crenas, os eventos com resignao. Alm

    disso, estar envolvido em situaes de apoio ps-desastre e fazer parte de

    comunidades espirituais faz com que as vtimas desenvolvam empatia maior

    por outros sobreviventes.

    Embora mais investigaes neste domnio sejam necessrias, as

    pesquisas em geral confirmam que a maioria dos sobreviventes normalmente

    no ir requerer uma interveno psicoterpica tradicional. H fatores de

    resilincia descritos na literatura, tais como personalidade, slido apoio social

    e fatores biolgicos (Bonanno et al., 2010; Hobfoll et al., 2007) que

    possibilitam s pessoas lidar de forma eficaz com as consequncias do

    desastres (Bonanno, Westphal, & Mancini, 2011).

    Nessa seara, atualmente discute-se o chamado crescimento ps-

    traumtico, como denominado por Bowman e Roysircar (2011) e Hoffman e

    Kruczek (2011). Os especialistas perceberam que muitas vezes ocorre uma

    mudana positiva e transformativa na vida das pessoas aps o desastre, para

    alm da adaptao adversidade. Em geral, a literatura sugere que as

    mudanas enquadradas como crescimento ps-traumtico tendem a se

    correlacionar com as seguintes caractersticas: maior sensao de forapessoal; perspectiva diferente sobre relacionamentos; mudana na filosofia

    de vida, como um maior apreo por ela; e crescimento espiritual (Kashdan &

    Kane, 2011).

    Diretrizes para a interveno psicolgica

    Nos ltimos anos da dcada de 2000, constatamos na literatura nfase

    na estruturao de protocolos e recomendaes para nortear as aes dospsiclogos. Os estudiosos tm se debruado a traar diretrizes que norteiem

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    a prtica do psiclogo diante dos desafios que emergem nas diversas fases

    do desastre. A seguir, elucidaremos as trs nfases mais representativas

    apreendidas nos artigos selecionados .

    Perspectiva Norte-Americana (NVOAD)

    A organizao norte-americana NVOAD (National Voluntary

    Organizations Active in Disaster) inclui 40 organizaes sem fins lucrativos,

    presentes em 52 estados da unio, e tem por objetivo melhorar a qualidade

    de resposta a desastres no Pas. A NVOAD atuou na grande maioria dos

    desastres nos ltimos 25 anos, acumulando grande reconhecimento e

    experincia.

    Aps o socorro prestado ao ataque terrorista no 9/11, os profissionais

    de sade mental solicitaram mais orientaes para sua atuao em situaes

    como aquela. Convocou-se em 2004 a Sub Comisso de Interveno

    Psicolgica Imediata (IPI), reunindo representantes das quatro principais

    organizaes prestadoras de cuidado em sade mental Cruz Vermelha,

    Exrcito da Salvao, International Stress Critical Incident Foundation(ISCIF)

    e National Organization for Victim Assistance (NOVA) bem como outras

    organizaes que integram a NVOAD. O processo, que durou 18 meses,

    potencializou a discusso e a comparao entre estudos acadmicos e

    recomendaes de rgos governamentais com a variedade de experincias

    adquiridas no atendimento no perodo ps-desastre. Ao final, elaborou-se um

    documento de recomendaes e, embora cada membro pertencente

    subcomisso fornecesse servios de forma independente, concluiu-se que a

    base para o trabalho poderia ser sintetizada em alguns pontos principais

    (Everly et al., 2008).Recomendam-se privilegiar a prtica de Interveno Psicolgica

    Imediata (IPI). A IPI considerada como um conjunto de intervenes

    psicolgicas destinadas a mitigar o sofrimento logo aps o impacto do

    desastre, atentando-se para no interferir nos processos naturais de

    recuperao. No se prope a ser uma modalidade de psicoterapia nem uma

    forma substitutiva. Convencionou-se que enquanto houver a necessidade de

    cuidados fsicos s vtimas h potencialmente necessidade de atenopsicolgica.

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    Esse constitui um sistema projetado a atender ao conjunto de

    demandas advindas das pessoas afetadas. Autores (Everly et al., 2008)

    enumeram aes pertinentes a qualquer situao extrema, compreendida

    como um continuum de ateno psicolgica que inclui: treinamento pr-

    incidente; avaliao e triagem psicolgica; interveno em grandes e

    pequenos grupos; primeiros socorros psicolgicos; informao e facilitao

    de acesso aos nveis adequados de atendimento; avaliao e cuidados

    espirituais; autocuidado e cuidado familiar, incluindo segurana e proteo;

    avaliao e treinamento ps-incidente.

    Perspectiva Europeia (TENTS Project)

    Nos ltimos anos, estudiosos europeus reunidos em torno do TENTS

    Project (The European Network for Traumatic Stress) empreenderam uma

    reviso ampla baseada em evidncias cientficas, cujo objetivo foi

    desenvolver diretrizes consensuais para a interveno em sade mental e

    assim chancelar o que tem sido chamado de ateno psicossocial em

    desastres e grandes incidentes. O projeto envolveu 106 profissionais e

    especialistas de 25 pases europeus, e os resultados foram publicados em

    um artigo cientfico (Bisson et al., 2010).

    Essencialmente, o TENTS Project recomenda que a interveno

    psicolgica imediata, logo aps o impacto, no indicada, devendo-se

    privilegiar o diagnstico e a avaliao psiquitrica; a teoria cognitiva-

    comportamental deve ser utilizada como interveno da primeira linha para

    transtorno de estresse ps-traumtico (TSPT) agudo, bem como a

    Abordagem Focada no Trauma e EMDR (Eye Movement Desensitization and

    Reprocessing) para TSPT crnico (Bisson et al., 2010).Observamos que o protocolo TENTS preconiza estratgias para a

    interveno psicolgica que esto sendo paulatinamente adotadas por

    diversas organizaes. A fim de verificar a pertinncia de tais recomendaes

    na prtica, investigadores (Brake & Dckers, 2013) desenvolveram uma

    pesquisa com 286 representantes de organizaes envolvidas na prestao

    de servios de natureza psicossocial a desastres em 33 diferentes pases da

    Europa.

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    A pesquisa abordou o planejamento e a interveno no desastre,

    mtodos de triagem e diagnstico e outros aspectos implementados pelas

    organizaes em situaes as mais diversas (guerras, desastres naturais,

    terrorismo, violncia, etc.). Este foi o primeiro estudo que se props a

    investigar a oferta e implementao de servios psicolgicos ps-desastre,

    relatados por diversas organizaes, com distintos histricos e origens

    culturais.

    Os resultados convergem para uma variedade de atividades, mtodos

    e abordagens utilizadas, revelando inconsistncia no planejamento,

    coordenao e aplicao das diretrizes propostas (Brake & Dckers, 2013).

    Embora as diretrizes recomendem a triagem e o diagnstico para avaliar, em

    particular, grupos mais vulnerveis, os dados levantados sugerem que tal

    prtica tem baixa adeso entre os profissionais. H ainda a incidncia de

    prticas no recomendadas, como o debriefing psicolgico. Os psiclogos

    entrevistados utilizam as intervenes breves de apoio, fornecendo

    informaes s vtimas, aconselhamento aos demais profissionais, bem como

    revelaram a necessidade da implementao da IPI.

    O artigo conclui apontando algumas solues para diminuir tal

    disparidade de estratgias, como investir na formao de psiclogos e adotar

    medidas que ajudem a coibir prticas no recomendadas. As discusses

    geradas pela pesquisa de Brake e Dckers (2013) refletem a necessidade de

    maior compreenso sobre o que est sendo efetivamente implementado e os

    motivos pelos quais, mesmo conhecendo as recomendaes do protocolo, os

    psiclogos no as aplicam integralmente.

    Perspectiva AsiticaDiferentemente das diretrizes anteriores, os especialistas asiticos no

    elaboraram um conjunto de recomendaes subsidiadas por organizaes ou

    projetos. No entanto, vasta literatura foi produzida em decorrncia dos

    frequentes desastres naturais que ocorreram na regio e principalmente aps

    o tsunami de 2004, que devastou 6 pases da regio Sudeste da sia

    simultaneamente.

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    Assim, sero apresentados pontos importantes elaborados por

    diversos autores de forma a permitir uma viso ampla da interveno em

    sade mental desenvolvida no contexto dos pases asiticos.

    A chamada resposta psicossocial a desastres possui uma diretriz

    multidisciplinar, holstica e integrativa, baseada em princpios de preveno,

    preparao e mitigao (Sumbram et al., 2008). composta por intervenes

    psicoeducativas, interveno em crise, primeiros socorros psicolgicos,

    estratgias cognitivo-comportamentais, manejos ritualsticos de cura

    tradicional, trabalho em grupo e em famlia, mtodos expressivos e

    abordagens de trabalho em rede e em comunidade.

    Nas pesquisas desenvolvidas por Chandra et al. (2006), Mahoney et

    al. (2006), Chakrabhand et al. (2006), Sundram et al. (2008) destacam-se

    dois pontos consensuais em relao a estratgias para aes aps a

    ocorrncia de um desastre de grande proporo. O primeiro seria a

    necessidade de aes imediatas e rpidas de cunho social, objetivando o

    retorno normalizao. O fornecimento de informaes, habitao

    temporria e segura e a reabertura de escolas e outros servios essenciais

    devem ser possibilitados para se encorajar um retorno s atividades

    cotidianas. Os recursos de enfrentamento que devem ser avaliados incluem

    mtodos para lidar com situaes extremas e investimento em redes de

    apoio, ou seja, famlia, amigos e comunidade. Foi comprovado que, em se

    observando os pontos citados, reduzem-se drasticamente as consequncias

    danosas sade mental dos sobreviventes. Nesta fase, os pesquisadores

    asiticos recomendam expressamente evitar o diagnstico psiquitrico (Rao,

    2006; Chakrabhand et al., 2006; Math et al., 2008).

    O segundo ponto a ser observado a importncia dada prestaorpida de servios psicolgicos (Chakrabhand et al., 2006; Sundram et al.,

    2008). Os estudiosos (Chandra et al., 2006) recomendam que, ao se oferecer

    suporte psicolgico, primordial que a interveno promova um apoio

    acurado e culturalmente sensvel. Isso implica a necessidade de profissionais

    devidamente treinados que entendam a cultura local, expresses idiomticas

    e as maneiras aceitveis de enfrentamento da dor.

    Em artigo de referncia, que reuniu 14 estudiosos (Sundram et al.,2008), foram apresentados diversos tipos de interveno psicossocial

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    desenvolvidos em nove pases asiticos quando confrontados com grandes

    desastres naturais. A partir deles, desenvolveram-se alguns princpios gerais

    para a interveno, resumidos a seguir.

    imprescindvel, primeiro, empreender a avaliao da dimenso do

    desastre em relao aos sistemas de servios existentes e dos recursos

    recebidos, ou seja, contabilizar o nmero de bitos e desaparecidos, nmero

    de famlias desabrigadas e de crianas rfs, assim como o nmero de

    profissionais disponveis e os recursos nacionais e internacionais destinados.

    Concomitante a esta fase de avaliao e de planejamento, sistemas de

    suporte e redes comunitrias culturalmente relevantes precisam ser

    acionadas. Os autores pesquisados (Sundram et al., 2008) apontam que para

    fomentar a resilincia pessoal e a autonomia da comunidade em recuperao

    aps o desastre, importante promover atividade de grupos comunitrios,

    reunies de famlia e prticas culturais e religiosas para enfrentar a morte e a

    dor. Nas ltimas experincias de desastres, foram organizados funerais e

    rituais como forma de oferecer suporte ao luto. Por exemplo, depois do

    tsunami, as escolas afetadas foram encorajadas a realizar cerimnias

    regulares para relembrar os que morreram. Nos locais de enterro em massa,

    foram montados memoriais onde a populao passou a celebrar rituais

    religiosos, reunies e encontros (Somasundaram, 2007). Tais aes serviram

    para que as comunidades afetadas pudessem elaborar as experincias

    vividas, bem como o reestabelecimento de relaes sociais e de

    planejamento para o futuro.

    Por fim, recomendam-se o treinamento e formao especfica de

    agentes comunitrios, profissionais de sade, professores, lderes religiosos,

    curandeiros tradicionais e lderes comunitrios, que dissemine habilidades nadeteco de respostas emocionais normais para as perdas associadas ao

    desastre, assim como em relao s demandas especficas que necessitem

    de interveno psicolgica. O treinamento deve ser feito por especialistas em

    sade mental. Na prtica, ocorreram visitas de agentes treinados s famlias

    afetadas durante as quais se oferecia suporte a problemas simples a partir de

    uma variedade de intervenes psicossociais, e os casos mais difceis eram

    remetidos clnica de sade mental local.

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    Consideraes finais

    O panorama apresentado neste artigo objetivou sistematizar estudos

    desenvolvidos nos ltimos dez anos sobre as intervenes psicolgicas em

    desastres naturais e em situaes direta ou indiretamente provocadas pela

    ao humana. Constatamos grande nmero de pesquisas sendo

    desenvolvidas, acompanhando o crescimento da presena do psiclogo nas

    equipes de interveno ps-desastre.

    A anlise da literatura internacional possibilitou uma compreenso

    ampla sobre o processo de constituio dessa temtica ainda incipiente no

    Brasil e em outros pases latino-americanos, como afirmam os estudiosos

    locais (Alves et al., 2008; Figueira, 2004; Franco, 2005; Marn & Lpez-

    Lpez, 2010).

    Foram apresentamos os marcos de referncia que parecem ter

    impulsionado a atual conjuntura da rea. O primeiro deles diz respeito a um

    aumento na visibilidade dos servios psicolgicos, a partir das aes

    terroristas ao World Trade Center (EUA), que galvanizaram a ateno pblica

    para a importncia das equipes de sade mental. Desde ento, a presena

    do psiclogo tem sido cativa nas ocorrncias extremas, a fim de reduzir os

    efeitos danosos da exposio das pessoas ao desastre, direta ou

    indiretamente.

    Em seguida, constatamos a existncia de uma quantidade relevante

    de artigos decorrentes do Furaco Katrina, ocorrido em 2005 no Sul dos

    Estados Unidos. Os especialistas chamados a atuar naquele desastre

    desenvolveram diversos estudos sobre as respostas emocionais da

    populao mais vulnervel e sobre caractersticas da interveno s vtimas

    naquele contexto. Em sua maioria, h estudos quantitativos que discutem aincidncia do transtorno de estresse ps-traumtico, bem como de outros

    transtornos, como os de humor. Em menor quantidade, mas despontando

    como pertinente discusso dos ltimos anos, surgem estudos sobre os

    mecanismos de enfrentamento, a resilincia e o crescimento ps-traumtico

    da populao vitimada.

    Na segunda parte deste artigo foram explicitadas as diretrizes

    postuladas a partir de diferentes perspectivas, em especial aquelas propostaspor profissionais da Europa, da sia e dos Estados Unidos, que deram

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    origem a recomendaes norteadoras das intervenes psicolgicas em

    diferentes contextos.

    As recomendaes norte-americanas (Everly et al., 2008) priorizam a

    relevncia de uma Interveno Psicolgica Imediata (IPI), caracterizada por

    um conjunto de aes de ateno psicolgica, desde a preparao pr-

    incidente at a psicoterapia ps-incidente, quando necessrio.

    A perspectiva asitica aproxima-se da norte-americana quando

    encoraja um conjunto de aes para a imediata prestao de servios

    psicolgicos populao. Contudo, devido ao fato de que tais diretrizes

    foram desenvolvidas a partir dos ltimos grandes desastres naturais

    ocorridos naqueles pases, observamos que h nfase em aes

    culturalmente sensveis, que respeitem os elementos singulares de cada

    comunidade. Para tanto, os especialistas estimulam a utilizao de sistemas

    de suporte e redes comunitrias locais que promovam a autonomia e a

    resilincia das pessoas afetadas.

    Por outro lado, o protocolo europeu (TENTS Project) enfatiza a

    avaliao psicolgica e a triagem como aes privilegiadas, no sendo

    recomendados outros tipos de interveno logo aps o impacto (Bisson et al.,

    2010). Com base na pesquisa de Brake e Dckers (2013), que demonstrou

    que tais recomendaes possuem baixa adeso, podemos refletir sobre a

    necessidade de maior compreenso sobre o que est sendo efetivamente

    implementado e os motivos pelos quais, mesmo conhecendo as

    recomendaes protocolares, os psiclogos no se limitam prtica

    diagnstica, privilegiando outros tipos de interveno.

    Conclumos que, a despeito da existncia de um nmero significativo

    de estudos que abordam esta temtica, faz-se necessria a compreensodas atuaes dos psiclogos que integram equipes de socorro e

    recuperao, levando-se em conta as aes implementadas em cada fase do

    desastre e como elas podem se adequar especificidade cultural de cada

    populao vitimada. H ainda a necessidade de futuras pesquisas que

    avancem na construo de estratgias metodolgicas que prepararem o

    psiclogo para atuar nessas situaes. Somente dessa forma ser possvel

    subsidiar programas de interveno psicolgica mais flexveis e consonantescom a populao afetada.

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    CAPTULO 2: Do aconselhamento psicolgico s

    intervenes em desastres: desafios da ateno psicolgica

    Os desafios impostos psicologia como cincia e profisso

    descortinam um processo complexo pautado pela busca de respostas

    urgentes que possibilitem a constituio de novas prticas apropriadas ao

    surgimento de contextos humanos que emergem de situaes as mais

    diversas. Essas podem incluir sofrimento humano intenso que requer cuidado

    imediato, fato que tem sido impulsionador de modos originais e peculiares de

    ateno psicolgica ao longo de histria.

    De fato, conforme afirma Figueiredo (1995), a prtica no um mero

    campo de aplicabilidade da teoria. a partir da ao que se vai discutir e

    reestruturar a teoria. No contexto do fazer psicolgico, especificamente da

    clnica psicolgica, que a teoria constituda e desenvolvida como tal

    (Morato, 1999).

    O pavoroso panorama de devastao fsica, psicolgica, social ecultural que se tornou concreto com a ocorrncia da Segunda Guerra Mundial

    (1939-1945) deixou como legado multides de combatentes com srias

    dificuldades psiquitricas e psicolgicas com consequncias para a

    reinsero na sociedade. Centenas de combatentes retornaram ao lar

    confusos, deprimidos, moralmente derrotados, sentindo-se culpados e

    precisando desesperadamente de ajuda tanto para encontrar trabalho quanto

    para conseguir retomar a rotina da vida em famlia, bem como para suportara perda de pessoas queridas falecidas.

    A necessidade de reconstruo tornou-se imperativa em todos os

    sentidos. Psiclogos foram chamados para compor equipes tanto na Europa

    quanto nos Estados Unidos, que tinham como objetivo prover a sociedade

    ps-guerra de meios que viabilizassem o retomar da vida a pessoas

    combalidas.

    Todo o movimento de mudana provocado na psicologia pela Segunda

    Guerra, somado ao crescimento do movimento psicanaltico em solo norte-

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    americano, so considerados impulsionadores da consolidao da rea da

    psicologia clnica (Schneider, 2002). Um fato importante foi que mais de

    1.500 acadmicos, que at ento se ocupavam de pesquisas com processos

    psicolgicos bsicos e psicodiagnstico (Morato, 1999), converteram-se em

    psiclogos clnicos para auxiliar no tratamento dos sequelados da guerra,

    exercendo, portanto, um incrvel impacto sobre a especialidade, conforme

    explica Schneider (2002).

    Contudo, o nmero de pessoas necessitadas de apoio psicolgico

    crescia muito mais do que o de psicanalistas, pois estes no podiam

    disponibilizar tratamentos longos. O fator tempo, ao lado das restries

    econmicas, era um dos elementos que impulsionaram atualizaes das

    teorias psicolgicas vigentes. Ocorreu, ento, o desenvolvimento de prticas

    voltadas a oferecer suporte psicolgico como resposta mais apropriada

    demanda da sociedade no perodo ps-guerra.

    Dessa forma, foram possveis transformaes no modo de

    compreenso do homem ao fomentar prticas psicolgicas mais

    abrangentes, pois as possibilidades de tratamento vigentes no

    contemplavam essas necessidades. No contexto europeu, surgem ento as

    primeiras tentativas, a partir de autores como Ferenczi e outros, que fizeram

    despontar a Psicoterapia Breve (Lustosa, 2010). Por outro lado, em solo

    norte-americano, o Aconselhamento Psicolgico surgiu como uma prtica

    inicialmente voltada a reintegrar, vocacional e profissionalmente, os

    veteranos (Morato, 1999, p. 75).

    Carl R. Rogers (1902-1987), psiclogo norte-americano que desde

    1928 trabalhava com crianas no Rochester Society for the Prevention of

    Cruelty to Children (NY), debatia-se entre perspectivas antagnicas que iamde um ponto de vista ultrapsicanaltico a uma viso ultraestatstica (Rogers,

    2005, p. XVI), fato que o impulsionou a desenvolver perspectiva prpria.

    Rogers e sua equipe foram os primeiros a gravar, transcrever e

    publicar casos completos de atendimentos (Kirschenbaum & Jourdan, 2005).

    Ele nunca se permitiu estar acomodado em um territrio esttico de

    compreenso, o que demonstra sua elevada produo de mais de 250

    artigos e cerca de 20 livros publicados (Wood, 2008). Concebeu, a partir dodesenvolvimento de uma postura no diretiva, a terapia centrada no cliente.

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    A proposta do aconselhamento rogeriano insere-se nos desafios da

    constituio da prtica do psiclogo. No perodo compreendido entre 1940 e

    1960 (Morato, 2008), sendo a psicoterapia uma atividade exclusiva dos

    mdicos, o aconselhamento possibilitou um lugar de reconhecimento e

    legitimao do fazer psicolgico (Santos, 1988).

    Conforme aponta o Prof. Oswaldo de Barros Santos, sua experincia e

    suas tcnicas expressas no livro Counseling and psychotherapy: newer

    concepts in practice (Rogers, 1942) causaram uma das mais notveis

    revolues no campo da psicoterapia e da orientao educacional (Santos,

    1988). Sua concepo de counseling opunha-se ao que at ento era

    praticado. No enfatizava a indicao de um caminho a ser seguido pelo

    cliente na busca pela resoluo de suas dificuldades, e sim uma postura ativa

    no sentido de ajudar a pessoa a se ajudar.

    Desde 1945, Rogers dedicou-se a contribuir para diminuir o sofrimento

    dos ex-combatentes das guerras. Publicou seu terceiro livro juntamente com

    John L. Wallen, Counseling with Returned Servicemen (Rogers & Wallen,

    1946/2000), inicialmente destinado a servir de manual para a formao e

    suporte de conselheiros de forma breve e intensiva. Essa obra, juntamente

    com aquela publicada em 1942 e citada anteriormente, considerada a

    proposio de um novo paradigma em psicoterapia e relao de ajuda

    psicolgica. A ttulo de registro histrico, foi a primeira vez que Rogers

    utilizou o termo centrado no cliente para referir-se atitude do terapeuta,

    em substituio a no-diretiva (Barrett-Lennard, 2013).

    Rogers discute, entre outros temas pertinentes, a possibilidade do que

    seria a utilizao do contato casual (Rogers & Wallen, 2000, p. 115) para

    fins teraputicos: pela descrio ricamente detalhada de um encontro entreum marinheiro e o conselheiro, ele despretensiosamente inaugura uma outra

    forma de interveno teraputica.

    Por meio de encontros breves e no planejados, a interveno

    oferecia a oportunidade de liberdade emocional para a pessoa atendida, a

    partir de um encontro sem julgamentos, num clima de um caloroso interesse

    pessoal, de conversa social amigvel e de prontido para escutar (p. 116).

    O caso descrito passa-se no refeitrio do clube militar, quando oconselheiro, percebendo um marinheiro triste e inquieto, convida-o para

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    tomar refrigerante. Sem exercer nenhuma presso, disponibiliza-se a estar

    com o outro em seu silncio inicial, e posteriormente escuta-o sobre sua dor

    de ter perdido um grande amigo na guerra. Ao final da descrio, concluiu:

    Esta foi a nica entrevista com o marinheiro, apesar de mais tarde ofuncionrio receber vrias cartas dele. Em cada carta repetia o alvio ea satisfao que sentira a partir da conversa no clube. As suas cartaseram comunicativas, pessoais e no voltou a expressar preocupaoou sentimento de culpa relativamente morte do seu amigo (p. 120).

    Esse relato de sesso compreende e caracteriza bem a forma como se

    desenhava a prtica do aconselhamento psicolgico em solo norte-

    americano, cuja atuao era essencialmente de curta durao e objetivava a

    soluo da crise imediata por meio de uma relao de ajuda.

    Compreendemos que a visada de Rogers iniciou-se do

    questionamento a respeito dos elementos pertinentes relao de ajuda,

    constituindo assim um modo especfico de estar com o outro, num encontro

    pautado por atitudes de empatia, aceitao incondicional e congruncia.

    Consistia seu mtodo em propiciar um contexto favorvel para clarificar a

    natureza da dor e a demanda por ajuda (Schimidt, 1999), mas no somente:

    propunha um espao de escuta qualificada a fim de elaborar a experincia

    emergente.

    Rogers, nos anos que se seguiram, investiu sua ateno no

    refinamento e delimitao das condies necessrias e suficientes para a

    mudana teraputica (Rogers, 1957/1995), compreendendo a importncia da

    qualidade da relao intersubjetiva e no se restringindo prtica clnica

    tradicional. Avanou para outros contextos e formas de atuao, como na

    educao, nas empresas, nos conflitos sociais, nos hospitais, nos grupos e

    nas comunidades.As prticas psicolgicas contemporneas, fomentadas a partir de

    estudiosos herdeiros das propostas de Rogers, constituem-se em uma

    alternativa no campo do aconselhamento psicolgico (Morato, 2008). O

    caminho trilhado por Rogers e sua equipe semearam o solo que possibilitou a

    consolidao posterior de uma prtica clnica socialmente engajada e

    inclusiva que prioriza uma ateno em relao ao sofrimento humano a partir

    de enquadres clnicos diferenciados.Oportuno esclarecer que prtica nos referidos contextos no

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    clssicos convencionou-se denominar ateno psicolgica e que,

    tradicionalmente, tem como modalidade interventiva o planto psicolgico.

    Nascido em solo brasileiro pelas mos da Profa. Raquel Rosenberg, na USP,

    promove uma prtica contextualizada e intersubjetiva, tendo sido um marco

    ao romper com uma viso restritiva e enrijecida da prtica clnica comumente

    exercida nas dcadas de 60 e 70. Outros psiclogos foram dando forma a

    uma prtica clnica para alm das clnicas-escolas e consultrios particulares

    e alteraram seu modo clssico de funcionamento, distanciando-se de

    imposies estruturais em relao durao e periodicidade dos encontros.

    O planto psicolgico tem sido uma modalidade constantemente

    submetida investigao cientfica para que se possa viabilizar a

    compreenso e interpretao de todos os elementos de ordem psicolgica

    pertinentes gerao de novas hipteses tericas e consolidar a rea da

    ateno psicolgica clnica (Palmieri & Cury, 2007, p. 479). Caracteriza-se

    por um tipo de interveno psicolgica, que acolhe a pessoa no exato

    momento de sua necessidade, ajudando-a a lidar melhor com seus recursos

    e limites, na medida em que o plantonista coloca-se disponvel para acolher a

    experincia do cliente em determinada situao, ao invs de enfocar o

    problema (Mahfoud, 1987). A funo do psiclogo no solucionar

    problemas, mas estar presente de maneira a acolher a pessoa numa escuta

    ativa, possibilitando a mobilizao frente a uma situao conflituosa

    (Tassinari, 2003).

    Quando algum procura um plantonista nas diversas instituies que

    alocaram essa prtica ao longo da histria como hospitais, asilos, creches,

    escolas, CAPS, batalho de polcia, delegacias, etc. , ocorre uma

    experincia clnica radical (Braga, Mosqueira & Morato, 2012) que pode serexpressa como a ao de inclinar-se para, disponibilizando ateno e

    cuidado ao sofrimento humano no momento em que ele assim se apresenta,

    de maneira pronta e imediata.

    Portanto, acompanha a vocao do aconselhamento psicolgico

    rogeriano ao romper com paradigmas psicoterpicos tradicionais. Recupera,

    assim, a essncia da psicologia clnica como um modo de estar cabeceira

    do paciente num estado de ateno e disponibilidade s suas peculiaridadescomo pessoa inserida em determinado contexto (Morato, 2008). Nesse

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    sentido, aponta para novas perspectivas do termo klin 4 : criao de

    enquadres diferenciados voltados ao favorecimento de um lugar configurado

    para a proviso de cuidado, a atualizao da experincia e a retomada da

    autonomia pessoal da pessoa atendida.

    Diante dos desafios para consolidar uma prtica psicolgica

    contextualizada que se origina a partir das demandas sociais e a servio

    delas, torna-se pertinente discutir a ateno psicolgica que ora se

    desenvolve em situaes de desastres. Compreender a evoluo da ateno

    psicolgica permite recuperar norteadores importantes para estruturar uma

    prtica que se torna gradualmente presente e necessria em contextos que

    se caracterizam por um desarranjo das estruturas sociais a partir de rupturas

    nas formas habituais de vida aps a ocorrncia de desastres naturais ou

    conflitos decorrentes de tenses entre grupos ou naes.

    A fim de lanar luz sobre a ateno psicolgica nesses cenrios,

    problematizaremos a seguir aspectos relevantes decorrentes dos esforos de

    psiclogos que atuaram no desastre que se imps aps a passagem do

    Furaco Katrina em diversas cidades localizadas no Sul dos Estados Unidos.

    Em agosto de 2005, uma devastadora tempestade tropical destruiu

    parte da costa sul dos Estados Unidos. Chamado de Katrina, o furaco tirou

    mais de um milho de pessoas de casa e causou por volta de mil mortes.

    Dentre os voluntrios que ajudaram no resgate e reconstruo das

    reas atingidas estavam inmeros psiclogos que integraram as equipes de

    cuidado em sade mental. Que aes foram implementadas? Qual o impacto

    na vida pessoal e profissional desses psiclogos? Que lies foram

    aprendidas? Com a finalidade de lanar luz a essas indagaes, a revista

    Professional Psychology: Research and Practice (ano 2008, volume 39,nmero 1) lanou um nmero especial com 16 artigos escritos por psiclogos

    que atuaram no ps-Katrina. Alguns aspectos relevantes da ateno

    psicolgica desenvolvida naquele cenrio foram descortinados e merecem

    ateno.

    4Klin, origem grega para a palavra clnica, significa inclinar-se junto ao leito. o movimento de algum que se curva sobre aquele que sofre (Morato,2008).

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    A participao nas equipes de socorro ao desastre deu-se

    imediatamente aps a ocorrncia do furaco. Os artigos revelam que

    centenas de profissionais chegaram logo nas primeiras semanas, vindos de

    diversas regies dos Estados Unidos (Akin-Little & Little, 2008), bem como

    havia psiclogos da prpria localidade (Osofsky, 2008; Kamps, 2008; Levy,

    2008).

    Conforme acontece com a maioria dos desastres, o impacto foi

    sucedido por muita confuso, e o caos se instalou; muitas pessoas tentavam

    esponteaneamente ajudar sem uma estrutura organizada. Havia

    precariedade fsica e estrutural. Nos primeiros dias, a despeito das tentativas

    de estruturao, a ajuda de natureza psicolgica prosseguiu de maneira

    desorganizada. Akin-Little e Little (2008) revelam que aqueles que

    comandavam as aes humanitrias demonstravam desconhecimento

    quanto utilidade dos profissionais de sade mental, especialmente os

    psiclogos.

    A falta de treinamento para atuao em desastre um ponto discutido

    amplamente (Akin-Little & Little, 2008; Osofsky, 2008). Alguns j faziam parte

    de organizaes que atuavam em situaes de crise, contudo a maioria dos

    autores aponta a ausncia de qualquer formao prvia que os facilitasse a

    insero e lhes instrumentalizasse as intervenes.

    Dessa forma, a prtica psicolgica era construda medida que a

    executavam (Akin-Little & Little, 2008; Levy, 2008), ou seja, no decorrer do

    trabalho eles se deparavam com a falta de conhecimento, bem como com

    novas intercorrncias que exigiam mudanas e reajustes na interveno

    (Rosser, 2008).

    Naquele contexto, a postura de abertura e flexibilidade do profissionalfoi apontada como fundamental (Dass-Brailsford, 2008; Kamps, 2008);

    abertura para reavaliar a pertinncia e adequao das prticas convencionais

    (ditas tradicionais) da psicologia; e flexibilidade para agregar interveno

    aspectos culturalmente apropriados (Rosser, 2008). Portanto, podemos

    perceber que o empirismo dos profissionais frente aos desastres faz com que

    a interveno seja o prprio campo de aprendizagem.

    Em diversos artigos, enfatizado que os profissionais de sade,principalmente os psiclogos, precisavam estar prontos para oferecer

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    primeiros socorros psicolgicos (Osofsky, 2008). O objetivo, ao implementar

    essa teraputica, avaliar e reduzir o sofrimento emergente (Osofsky, 2008;

    Rosser, 2008), ou seja, uma interveno de apoio que tambm avalia a

    capacidade de enfrentamento da situao.

    Levy (2008) revela que as pessoas em Nova Orleans no buscavam

    os servios formais de psicoterapia. Elas estavam envolvidas na tentativa de

    reconstruir a vida. Apesar das atrocidades, elas estavam otimistas, resilientes

    e buscavam sadas prticas para agilizar o que precisavam. Assim, o

    psiclogo oferecia um espao de escuta em que era permitido falar sobre o

    que quisesse (Akin-Little & Little, p. 19, 2008), facilitando o surgimento de

    pensamentos sobre coisas agradveis e o planejamento de ordem prtica

    (reconstruo da moradia, volta rotina, etc.).

    Ao trabalhar com as vtimas do Katrina, o psiclogo Levy (2008)

    apreendeu a necessidade das pessoas de compartilhar sua histria, de

    comunicar a algum o que tinham vivido. Para ele tornou-se evidente quanto

    ouvir e ocasionalmente refletir sentimentos foi benfico quelas pessoas.

    Ele discute de forma ampla a potencialidade da escuta reflexiva (p. 32), que

    seria o movimento de ser capaz de ouvir o que o outro est dizendo e

    sentindo e transmitir-lhe essa compreenso. Quando a pessoa percebe que

    est sendo compreendida, a relao teraputica fortalecida, sendo este um

    elemento imprescindvel para a eficcia da interveno (Levy, 2008).

    A postura do psiclogo, a partir de atitudes clnicas j consolidadas em

    sua formao (Levy, 2008), oferecia acolhimento e compreenso em

    conversas informais, nos momentos de descanso e durante as refeies.

    Para Haskett et al. (2008) algumas vezes a interveno consistia em

    aproximar-se da pessoa que chorava e, silenciosamente, entregar-lhe umleno. O psiclogo tornava-se disponvel e acolhedor, aguardando o

    momento em que ela quisesse conversar.

    Dessa forma, os psiclogos contam que procuraram desenvolver o

    fazer teraputico como uma maneira de ser (Levy, 2008), ou seja, como uma

    ferramenta includa naturalmente nas suas aes, conforme pontuam Akin-

    Little e Little (2008), seja no engajamento em atividades dirias, como

    oferecer comida ou ajudar a limpar a casa, seja na prtica formal deavaliao e aconselhamento psicolgico.

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    Em suma, a ateno psicolgica perpassa o estabelecimento de um

    espao facilitador no qual as pessoas possam se expressar da forma como

    desejarem, dando-lhes a oportunidade de saber que foram compreendidas

    em sua dor (Levi, 2008; Akin-Little & Little, 2008).

    Haskett et al. (2008) asseguram que todos, inclusive a equipe de

    socorro, eram potenciais clientes. Percebiam, em muitas situaes, as

    equipes e demais profissionais relutantes em fazer pausas e descuidando

    das necessidades fsicas. Assim, os psiclogos acompanhavam essas

    equipes disponibilizando aconselhamento psicolgico e apoio aos socorristas,

    reconhecendo que aqueles profissionais estavam envolvidos em um tipo

    arriscado de atividade devido alta exposio a que estavam expostos.

    O Furaco Katrina impactou os psiclogos de muitas maneiras no

    previstas. Rosser (2008) revela que sua vida pode ser divida em antes e

    depois do desastre. Assim, eles perceberam que diante da rotina de

    dificuldades tiveram seus limites extrapolados e a experincia vivida superou

    qualquer expectativa sobre como seriam aqueles dias em Nova Orleans.

    Os psiclogos desenvolveram e registraram preciosas reflexes sobre

    o que vivenciaram, descortinando formas de como contornar as dificuldades.

    Aquela experincia possibilitou lies pertinentes para o futuro profissional,

    sumarizadas a seguir:

    (a) Integrar-se a uma organizao: imprescindvel ser membro de uma

    equipe com experincia em desastres. A interveno psicolgica pode ser

    prejudicada pela falta de planejamento e ausncia de coordenao das

    atividades. Profissionais relatam frustrao pessoal e impossibilidade de

    exercer seu trabalho quando atuaram em uma organizao que no oferecia

    o apoio bsico. Recomenda-se integrar uma organizao reconhecida, poisassim se pode ter a implementao eficiente dos recursos necessrios, bem

    como suporte pessoal para a atuao (Rosser, 2008, Akin-Little & Little,

    2008).

    (b) Esperar o inesperado: como afirmou Rosser (2008), o desastre por

    definio catico, imprevisvel e frustrante. O psiclogo precisa estar

    preparado para enfrentar situaes no imaginadas. Haskett et al. (2008)

    revelam o que lhes foi passado durante o treinamento: espere peloinesperado e seja flexvel (p. 98). Consideraram esse o melhor conselho que

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    receberam. Mudanas de atribuio, ida a lugares de difcil localizao, a

    emergncia de novas circunstncias; as situaes no corroboram as

    expectativas constitudas de forma rgida, gerando, muitas vezes,

    sentimentos de impotncia, inutilidade e incompetncia nos psiclogos

    (Rosser, 2008).

    (c) Ativar seu sistema de apoio e autocuidado: os relatos descrevem a

    precariedade fsica da situao, como falta de comida, higiene, abrigo

    adequado e descanso (Akin-Little & Little, 2008). Para tanto, recomenda-se

    estabelecer dias de folga e participar de outras atividades no relacionadas

    ao desastre, a fim de fomentar o equilbrio e a resilincia do profissional. Os

    artigos discutem a potencializao das habilidades de enfrentamento e

    resoluo de problemas para lidar com o inesperado e reduzir a frustrao.

    Haskett et al. (2008) apontam o humor como eficaz na difuso da frustrao e

    reduo do estresse.

    Rosser (2008) relata, ao concluir seu artigo, que passou mais de seis

    meses sem conseguir falar sobre sua experincia, no por um desgaste

    emocional ou sequelas decorrentes do que havia vivido. Para ele, o privilgio

    de fornecer servios naquelas circunstncias era to comovente, que se

    transformou em uma misso sagrada. O fato de ter testemunhado o que as

    pessoas faziam para sobreviver o impossibilitava de expor ou abusar de tais

    confidncias.

    De forma ampla, os psiclogos descortinam em seus artigos

    experincias de terem sido transformados por estarem atuando junto s

    vtimas do Furaco Katrina. O impacto sentido tanto em termos pessoais

    quanto profissionais, algo que envolve um esforo pessoal para

    compreenso, abertura e flexibilidade. Profissionalmente, contribuiu para umacompreenso mais ampla do que ser psiclogo (Levy, 2008) e sobre o que

    efetivamente pode ser fomentado na vida das pessoas atendidas.

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    CAPTULO 3: O caminho metodolgico da pesquisa

    Nos ltimos trezentos anos, a racionalidade dominante na cincia

    ocidental foi responsvel pelo reducionismo da pessoa e da realidade a partir

    de trs aspectos (Mogilka, 2005). Primeiro, a reduo da conscincia ao ato

    de pensar, ao intelecto. Esse reducionismo produz uma excessiva

    valorizao da atividade intelectual, uma vez que pensar e tomar conscincia

    so considerados sinnimos. O segundo aspecto a reduo do sujeito

    conscincia, esta de acordo com o expresso anteriormente. A pessoa e tudoque se relaciona a ela so definidos com base em sua capacidade intelectual,

    racional. E, por ltimo, h a reduo do real quilo que pode ser conhecido e

    pensado. Novamente, a razo intermedeia a relao da pessoa com o

    mundo, este considerado como realidade externa e objetiva. Portanto,

    deprecia-se e desvaloriza-se a experincia direta, originria e pr-reflexiva.

    Para a construo do conhecimento cientfico na matriz positivista,

    necessrio um ponto de segurana para o pensar (Critelli,1996), um pontoque possa retirar do homem todas as suas condies mais bsicas de

    humanidade (sua experincia, seus significados, seus sentimentos), um

    ponto fora do mundo, descontextualizado. Esse vis objetivista conduziu a

    uma distoro da prxis investigativa e a um descaminho da civilizao

    (Husserl, 2008).

    Diante do questionamento epistemolgico da cincia positivista e dos

    caminhos tomados pela racionalidade moderna, Edmund Husserl (1859-

    1938) buscava outra lgica investigativa para as cincias humanas. Ele

    cunhou, ento, a fenomenologia como alternativa epistemolgica,

    demarcando um novo territrio de reflexo sobre as prticas cientficas. A

    proposta de Husserl inclui a mudana da atitude de investigao cientfica, a

    aceitao sem questionamento do mundo natural, para a atitude

    fenomenolgica (DeCastro & Gomes, 2009). A nova atitude diante dos

    fenmenos o conhecer de maneira originria por meio da reduo (ou

    recuperao) das coisas como tal (Holanda, 2009).

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    O modo de investigao adotado nesta pesquisa o de um estudo

    qualitativo e fenomenolgico, que se baseia na apreenso dos fenmenos

    norteada por um caminho exploratrio de descoberta, heurstico. Diante da

    inquietao que motivou este estudo, qual seja compreender elementos da

    experincia de psiclogos que efetivaram alguma forma de ateno

    psicolgica em situaes extremas, buscamos, semelhana do proposto

    por Moustakas (1990), um modo apropriado de compreender a pessoa luz

    da sua prpria experincia. Entendemos por compreenso como um abraar

    a existncia humana na sua totalidade (Maciel, 2004) a partir de trs

    movimentos atitudinais: descrio, compreenso e interpretao5.

    A fim de fundamentar esse percurso metodolgico, faz-se necessrio

    retomar brevemente a proposta fenomenologia de Edmund Husserl.

    Edmund Husserl, filsofo alemo que inicialmente empreendeu

    estudos nas cincias matemticas, interessou-se pela filosofia a partir do

    curso de Psicologia Descritiva ministrado por Franz Brentano. No incio do

    sculo XX, procurou consolidar um projeto de cincia rigorosa para as

    cincias humanas. Buscava uma lgica investigativa que no seguisse os

    caminhos racionalistas assumidos pela cincia positivista, tampouco

    permanecesse no mbito filosfico, sem critrios de validao ou rigor.

    Husserl reconhecia o mrito de Ren Descartes (1596-1650) de elevar

    a razo sobre o fazer humano, contudo considerava que esse mtodo

    separou o ser humano de suas experincias subjetivas, distanciando-o da

    reflexo como constituio essencial do conhecimento humano (DeCastro &

    Gomes, 2009). Ele empreendeu uma avaliao da objetividade cientfica

    vigente e props a reaproximao entre sujeito e objeto. A partir de Brentano,

    retomou o conceito de intencionalidade, demarcando seu percurso de volta conexo conscincia e mundo (sujeito e objeto). A intencionalidade da

    conscincia deveria contemplar compreensivamente a relao entre sujeito e

    mundo, revogando o modelo explicativo e objetivista (DeCastro & Gomes,

    2009).

    5As trs fases do mtodo fenomenolgico sero mais bem discutidas aseguir, quando abordaremos acerca dos procedimentos propostos nestapesquisa.

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    Na viso da fenomenologia, a cincia deveria estar fundada em um

    modelo descritivo e esclarecedor sobre as essncias constituintes do

    surgimento dos fenmenos conscincia (Husserl, 1985). Assim, Husserl

    demarcou um novo territrio de reflexo sobre as prticas cientficas,

    apontando outro caminho para a investigao alicerado na essencialidade

    irredutvel da experincia.

    O termo experincia chave para a compreenso da fenomenologia.

    O seu significado desdobra-se em duas possveis direes: um conhecimento

    adquirido com a prtica e a vivncia emocional que subjacente a esse

    conhecimento acumulado. Para alguns autores entre eles Amatuzzi (2007)

    , deve-se recorrer lngua germnica a fim de se compreender o termo

    experincia e seus significados.

    Em alemo, experincia possui pelo menos dois significados

    distintos. O primeiro refere-se palavra Erfahrung, que se refere s

    aprendizagens acumuladas ou conhecimento adquirido ao longo da vida. Em

    portugus, dir-se-ia que algum experiente ou experimentado. J Erlebnis

    caracteriza a emoo sentida diante de um acontecimento. Refere-se mais a

    uma experincia vivida do que a experincia adquirida e possui conotao de

    presenciar mais do que aprender. Erlebnis fluxo do vivido, experincia

    intencional que confirma a prpria existncia humana.

    Larrosa Bonda (2002), em artigo no qual discute a relao entre

    educao e o conceito de experincia, aponta que a destruio da

    experincia na contemporaneidade tem se dado por vincul-la a um ethosde

    opinio, de informao, de julgamento, de poder e de querer. A experincia

    seria impossibilitada pelo excesso de informao, de ideias pr-concebidas e

    de julgamentos. Experincia a possibilidade de que algo nos acontea ounos toque, quando se permite suspender o juzo, os valores, o automatismo

    da ao e abrir-se para o sentido do que nos acontece. A experincia a

    totalidade de significados de cada momento, anterior a qualquer reflexo,

    define Amatuzzi (2007). Nas palavras de Bonda (2002), o sujeito como

    experincia poderia ser contextualizado da seguinte forma:

    Se recorrermos ao espanhol, lngua em que a experincia o que nospassa, o sujeito da experincia seria algo como um territrio depassagem, algo como uma superfcie sensvel que aquilo queacontece afeta de algum modo, produz alguns afetos, inscreve

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    algumas marcas, deixa alguns vestgios, alguns efeitos. Serecorrermos ao francs, em que a experincia ce que nous arrive, osujeito da experincia um ponto de chegada, um lugar a que chegamas coisas, como um lugar que recebe o que chega e que, ao receber,lhe d lugar. Em portugus, italiano e ingls, a experincia soa como

    aquilo que nos acontece, nos sucede, ou happentous, o sujeito daexperincia sobretudo um espao onde tm lugar os acontecimentos(p. 24).

    Seja como territrio de passagem, lugar de chegada, seja como

    espao dos acontecimentos, o sujeito da experincia define-se no por sua

    atividade, mas por sua receptividade, disponibilidade e abertura em

    apreender os significados produzidos a partir do contato com a realidade,

    conforme explicita Amatuzzi (2007).

    Para melhor adentrar o sentido de experincia, oportuno lembrar o

    que est posto na etimologia da palavra: temos o radical latino peri, que

    significa obstculo e dificuldade, aproximando-se de perigo e do verbo

    latino aperire, que quer dizer abrir. Portanto, em sua significao

    etimolgica, a palavra experincia quer dizer vencer dificuldades, superar

    obstculos, abrir novas perspectivas, conforme aponta Rocha (2008).

    Dessa forma, o experienciar abrir-se ao que se passa (Bonda,

    2002) de forma imediata, antes mesmo de se ter refletido ou elaborado

    qualquer conceito mais preciso (Amatuzzi, 2007). O conjunto dessa

    experincia o que Husserl (1985) chamou de Lebnswelt(o mundo vivido).

    Neste estudo, a experincia enquanto Erlebnis ser a perspectiva

    adotada como via para apreender o fluxo do vivido em relao aos

    participantes nos encontros com a pesquisadora.

    O estudo da experincia vivida foi o foco central nas reflexes de

    Husserl. Para tanto, apresentou o mtodo fenomenolgico como uma formade interrogar a experincia por meio da descrio do seu contedo,

    objetivando, com esse processo, a gerao de conhecimento sobre os

    conceitos primeiros ou os fundamentos originais dos elementos a serem

    estudados (Moreira, 2004). A reduo fenomenolgica proposta por ele

    possibilitaria um afastamento em relao s interferncias provenientes de

    julgamentos, valores e desejos construdos previamente ao vivido. A reduo

    considerada o elemento lgico central do mtodo e comporta doismovimentos. O primeiro epoch, que consiste em voltar-se para a

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    conscincia e apreender o fenmeno da maneira como se mostra (Moreira,

    2004). No segundo movimento, denominado eidtico, almeja-se intuir a

    essncia do fenmeno, que consiste em unidades bsicas de entendimento

    comum de qualquer fenmeno, aquilo sem o qual o prprio fenmeno no

    pode ser pensado (Moreira, 2004, p. 84).

    Nessa perspectiva, Husserl advoga a universalidade do conhecimento

    obtido pela via da fenomenologia, pois deixaria de ser pautado por vivncias

    individuais para fundar um saber vlido para todos, trazendo elementos

    primordiais da experincia humana (Goto, 2007).

    Para tanto, em uma pesquisa fenomenolgica objetiva-se estudar os

    significados que alguma experincia teve para um determinado sujeito.

    Contudo, o desvelamento da experincia no naturalmente explicitado no