Átila - Grupo Editorial Record · O cavaleiro de pedra levantou o braço direito e agitou a mão...

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William Napier

Átila:O prenúncio da tempestade

Tradução deAlda Lima

R I O D E J A N E I R O • S Ã O PAU L OE D I T O R A R E C O R D

2011

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CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTESINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ.

Napier, William, 1965- N172a Átila,v.2: o prenúncio da tempestade / William Napier; tradução de

Alda Lima. – Rio de Janeiro: Record, 2011.

Tradução de: Attila: the gathering of the storm ISBN 978-85-01-08727-0

1. Átila, m. 453 – Ficção. 2. Roma – História – Invasão dos bárbaros, Século III-VI – Ficção. 3. Romance inglês. I. Ferreira, Alda Luiza de Lima. II. Título.

10-4619. CDD: 823 CDU: 821.111-3

TíTulo original: Attila : the gathering of the storm

Copyright © William Napier, 2007Publicado originalmente por Orion Books, Londres.

Diagramação:

Texto revisado segundo o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

Todos os direitos reservados.Proibida a reprodução, no todo ou em parte, através de quaisquer meios.

Direitos exclusivos de publicação em língua portuguesa somente para o Brasil adquiridos pelaEDITORA RECORD LTDA.Rua Argentina, 171 — Rio de Janeiro, RJ — 20921-380 — Tel.: 2585-2000,que se reserva a propriedade literária desta tradução.

Impresso no Brasil

ISBN 978-85-01-08727-0

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Para Iona

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ENTRA MAPAO império romano e as terras bárbaras, 441 d.C.

1- OCEANO ATLÂNTICO2- HIBÉRNIA3- Pictos4- BRITÂNIA5- Saxões6- ESCÂNDIA7- Francos8- Rio Reno9- GERMÂNIA10- Augusta Treverorum11- GÁLIA12- Visigodos13- Suevos14- Hispânia15- Tolosa16- Narbo17- Rio Ródano18- Burgúndios19- Mediolanum20- Massalia21- Ravena22- Aquileia23- Rio Danúbio24- Ilíria25- Aquincum 26- Carnuntum27- Montanhas Kharvad28- Ungvar29- Sirmium30- Margus31- Panônia32- Singidunum33- Viminacium34- Rio Danúbio35- Tessalônica36- Atenas37- Roma38- Nova Cartago39- MAR MEDITERRÂNEO40- Mauritânia

41- REINO DOS VÂNDALOS42- Hipona43- Cartago44- NUMÍDIA45- Leptis Magna46- CÍTIA47- Rio Borysthenes48- Terra dos hunos49- Tanais50- Rio Tanais51- Ofiússa52- Maeotis Palus53- MAR CÁSPIO54- CHORASMIA55- Rio Oxus56- MAR DE ARAL57- MÉSIA58- Chersonesus59- MAR EUXINO60- Cordilheira do Cáucaso61- Portas cáspias62- Trácia63- Constantinopla64- Nicomédia65- Nicaea66- PONTO67- Rio Tigre68- Rio Eufrates69- Antióquia70- Chipre71- Creta72- Alexandria73- PÉRSIA SASSÂNIDA74- Império romano ocidental75- Foederati76- Império romano oriental

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LISTA DOS PRINCIPAIS PERSONAGENS

Os personagens marcados com asteriscos foram figuras históricas reais. Os outros podem ter sido.

Aécio* — Flávio Aécio, nascido em 15 de agosto de 398 d.C., na cidade fronteiriça de Silestria, atualmente na Bulgária. Filho de Gaudêncio, general comandante da cavalaria, foi, mais tarde, supremo coman-dante do Império Romano do Ocidente.

Aladar — guerreiro huno, filho de Chanat e um dos oito escolhidos.Amalasunta* — única filha do rei Teodorico dos visigodosAthenaïs* — filha de Leôncio, um professor de Atenas, e mais tarde

esposa do imperador Teodósio IIÁtila* — rei dos hunos, nascido em 15 de agosto de 398 d.C.Bayan-Kasgar — general e mais tarde rei de OronchaBela — guerreiro huno, um dos oito escolhidosBleda* — irmão mais velho de ÁtilaCandac — guerreiro huno, um dos oito escolhidosCéu-em-Frangalhos — chefe dos hunos kutrigurChanat — guerreiro huno, um dos oito escolhidosCharaton — considerado o primeiro rei dos hunos brancosCheca* — rainha Checa, primeira esposa de ÁtilaCsaba — guerreiro huno, um dos oito escolhidos

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Dengizik* — filho mais velho de ÁtilaEllak* — segundo filho de ÁtilaEnkthuya — feiticeira dos hunos kutrigursGala Placídia* — nascida em 388 d.C. Irmã do imperador Honório,

mãe do imperador Valentiniano IIIGenserico* — nascido em 389 d.C., perto do lago Balaton, atualmente

na Hungria. Rei dos vândalos a partir de 428 d.C.Geukchu — guerreiro huno, um dos oito escolhidosHonória* — nascida em 422 d.C., filha de Gala Placídia e irmã de

Valentiniano IIIHonório* — nascido em 390 d.C., imperador de Roma até 423 d.C.Juchi — guerreiro huno, um dos oito escolhidosKouridach — chefe dos hunos heftalitasMundzuk* — irmão mais velho de Ruga e por um breve período rei

dos hunosNoyan — guerreiro huno, um dos oito escolhidosOrestes* — escravo grego, companheiro de toda a vida de ÁtilaPássaro Miúdo — xamã hunoPulchéria* — irmã do imperador Teodósio IIRuga* — irmão mais novo de Mundzuk e mais tarde rei dos hunosTeodorico* — filho de Alarico e rei dos visigodos de 419 a 451 d.C.Teodorico II* — primeiro dos seis filhos de TeodoricoTeodósio II* — apelidado de “Kalligraphos”, o Calígrafo — impera-

dor do Oriente de 408 a 450 d.C.Tokuz-Ok, “Nove Flechas” — Deus-Rei do povo de OronchaTurismundo* — segundo dos seis filhos do rei TeodoricoValentiniano* — nascido em 419 d.C., imperador de Roma de 425 a

455 d.C.Yesukai — guerreiro huno, um dos oito escolhidos

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PRÓLOGO

Trinta anos se passaram desde que o jovem huno, príncipe Átila, foi banido, e o mundo conheceu uma paz apreensiva. O que ele vivenciou nos inimagináveis desertos da Cítia durante o exílio, tendo como com-panhia apenas o leal escravo grego Orestes, ninguém sabe. Mas po-de-se imaginar. Está nas Escrituras que o homem nasce para o sofrimento, da mesma forma que faíscas voam. E homens extraordiná-rios nascem para sofrimentos extraordinários.

No primeiro volume de minha história, eu, Prisco de Pânio, contei a respeito da infância de Átila como refém em Roma, sua fuga e sua jor-nada por uma Itália devastada e arruinada pelos góticos e seu retorno amaldiçoado às terras hunas. Neste segundo volume, contarei o que aconteceu em seguida: a volta de Átila do deserto assombrado e o dia sangrento em que ele se fez rei; como ele reuniu todas as tribos de sua própria gente e as consolidou num exército grande e terrível o sufi-ciente para satisfazer seu objetivo final. Se voltar contra o Império Romano, o império odioso que atormentou sua infância, destruiu sua juventude e humilhou seu povo durante os longos anos de seu exílio. E preparar sua vingança apocalíptica, planejada durante muito tempo.

Então, continuemos nossa história.

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PARTE I A ChEGADA DO REI

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CAPíTuLO 1O CAvALEIRO DE PEDRA

AS ESTEPES DA CÍTIA, PERTO DO RIO DNIEPER, OUTONO DE 441 D.C.

O velho guerreiro huno forçou sua montaria a parar e apertou os olhos em direção ao leste. O cavaleiro estranho ainda estava lá. Ele tinha passa-do um dia e uma noite inteiros sob o sol quente e a lua fria, sem se mexer. Havia alguma coisa de sobrenatural nele e o velho guerreiro estremeceu.

Era o Mês das Tempestades, apesar de nenhuma ter chegado até então, e o céu estava escuro de tanto esperar. O vento soprava com força pelo capim marrom que fenecia, e nos canais das estepes, secos pelos seis meses de sol de verão, ele levantava desamparados demô-nios de poeira em espirais. Nuvens cinzentas corriam sem descanso no céu, os cavalos nos currais estavam assustadiços e se levantavam so-bre as patas traseiras, os cachorros erguiam as orelhas e choraminga-vam inquietos embaixo das carroças. Era um dia de expectativa, de energia acumulada. Atrás da cortina do mundo os espíritos se reme-xiam e acordavam mais uma vez, pensando em alguma nova irrupção para seu poder e suas brincadeiras sem limites com o mundo dos ho-mens, e com as quais estes podiam apenas se maravilhar e cultuar, mas que nunca compreenderiam.

Alguns disseram mais tarde, depois dos eventos dignos de sonho daquele dia, que tinham visto relâmpagos nitidamente cortando o

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céu onde não havia uma única nuvem. Outros tinham visto a sombra de uma águia gigante passando sobre a Terra, por cima dos túmulos nas planícies.

O cavaleiro desconhecido estava sentado em seu pequeno e ma-lhado garanhão sobre o monte onde ficava o túmulo do irmão do ve-lho rei Ruga, Mundzuk, que tinha morrido havia trinta anos ou mais. As canções da tribo costumavam dizer que Mundzuk não havia mor-rido, e sim que havia sido milagrosamente puxado para o céu por uma águia gigante, o próprio Astur, o rei de Tudo. Diziam que Mundzuk tinha decolado, com hecatombes de cavalos mortos e todas as suas belas esposas e escravas, no auge de sua vida humana, até o Eterno Céu Azul, para assim viver com seus ancestrais para sempre, lutando e festejando até o fim do mundo. Mundzuk nunca passara pelos por-tões da morte como homens de carne e osso.

Mas depois de um tempo, o rei Ruga começou a se cansar de escutar o povo enaltecendo Mundzuk em suas canções e fez com que seu desagrado se tornasse público. Hoje em dia, poucos na tribo nem sequer se lembra-vam do nome de Mundzuk. Três décadas era muito tempo para um povo que, assim diziam, considerava velha uma mulher de 20 anos.

O velho guerreiro recordava enquanto olhava das planícies para o cemitério. E apesar de seus cansados e úmidos olhos mal conseguirem enxergar o tal estranho através do ar seco das estepes, alguma coisa na maneira como ele se sentava, tão imóvel e forte, dava-lhe arrepios. Era firme como uma rocha. Já se fora o tempo em que um guerreiro huno teria galopado com seu cavalo até o estranho intruso sem um minuto de hesitação, tirando uma flecha de sua aljava e encaixando-a em seu arco enquanto cavalgava. Quem era esse espectro solitário das estepes que chegava e sentava seu cavalo bem no túmulo de um dos reis mor-tos sem pedir permissão? Chanat tinha envelhecido e hesitou em pu-xar a poderosa corda do arco para trás. Ele cavalgaria de volta ao acampamento e contaria o que tinha visto. Em breve morreria lutando

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como um homem. Rezava aos deuses por uma morte desse tipo todas as noites. Mas não assim. Não num conflito solitário no meio das este-pes com um cavaleiro desconhecido, sem ninguém para testemunhar ou louvar sua partida.

No monte, o cavaleiro virou um pouco a cabeça, e parecia olhar fixamente o ancião guerreiro. Chanat não conseguia ver sua expressão. Seus olhos estavam fatigados e fracos. Mas o cavaleiro se eriçava com um vigor forte e constante, esperando para ser libertado. O vento le-vantava a crina aparada de seu cavalo, e os cabelos escuros do cavalei-ro batiam de um lado para o outro em seu rosto. Existia uma energia até na maneira com que seus punhos seguravam as rédeas do cavalo com firmeza. Até mesmo na maneira com que apertava os flancos do animal entre as coxas. Existia alguma coisa nele como se fosse de pe-dra e ferro, nada que fosse nem de perto macio como carne.

O cavaleiro de pedra levantou o braço direito e agitou a mão ape-nas uma vez, num gesto claro de comando. Deixou o braço cair nova-mente e olhou para longe, esperando. O velho guerreiro pôde apenas aceitar o convite do estranho. Ele, que nunca tinha obedecido às or-dens de ninguém a não ser do rei Ruga durante trinta anos ou mais, arrancou com seu cavalo e correu em direção ao monte.

O cavaleiro de pedra se virou para trás quando ele se aproximou e olhou-o calmamente. O guerreiro parou subitamente a sua frente. Ele levantou os olhos para o rosto do cavaleiro por um tempo, demorando a acreditar. Não! Não podia ser!

O cavaleiro tinha talvez 40 e poucos anos. Usava um manto curto de pelos amarrado no pescoço com um nó de couro cru. O manto um dia devia ter sido brilhante e escuro como pele de marta, mas já esta-va cinzento e encardido com a poeira das planícies. Em sua cabeça uma ponta de feltro, um barrete em estilo huno, estava puxada para baixo até suas largas sobrancelhas. O cabelo grosso, escuro e com me-chas grisalhas caía sobre os ombros musculosos. Os olhos escuros

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faiscavam abaixo das sobrancelhas, mas qualquer traço de humor ali era do tipo mais feroz e sarcástico. O nariz era forte e ossudo mostran-do as marcas de socos e espancamentos recebidos ao longo de muitos anos. A boca era extraordinariamente firme e o queixo estava coberto com finos tufos de barba grisalha. Usava argolas brilhantes e doura-das nas orelhas. Os braços cor de cobre apareciam por baixo do man-to, nus até os ombros com a exceção de duas argolas de prata em volta do bíceps. Os músculos eram grandes e rígidos como rochas. Os antebraços repletos de veias grossas e seus tendões eram torneados como os de um ferreiro, mas com muito mais cicatrizes. O braço direi-to, principalmente, estava marcado e arranhado como uma tábua de açougueiro.

Por baixo do manto encardido usava apenas um colete desgastado de couro preto preso na frente, calções de amarras e botas de pele de veado esfarrapadas. Num largo cinto de couro em sua cintura havia um chekan huno, uma curta machadinha com ponta de ferro curvada e pregos e uma corda enegrecida. Do outro lado carregava uma bela es-pada, de feitio mais persa ou bizantino do que huno, com elaborados arabescos em ouro no cabo e uma bainha de couro arranhada num estilo um tanto espanhol, com um alargamento sinuoso e depois afi-nando até uma ponta comprida e letal. Transversalmente, nas costas, carregava um coldre de couro com flechas e o pequeno e mortífero arco das estepes. Suas mãos apertavam a sela de madeira bruta, nodo-sas e marcadas de veias grossas, as mãos de um homem muito forte. A pele era desgastada e envelhecida como a de seu rosto, castigada pelo vento. Todas revelavam um homem que havia enfrentado anos de tempestades de gelo, implacáveis ventos dos desertos e castigantes sóis de meio-dia, e que, ainda assim, tinha continuado a correr, invicto, sem se deixar abater.

— Então — disse o cavaleiro de pedra, sua voz grossa e suave. — Chanat. Ainda vivo.

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Chanat não respondeu. Pois um ancião, era verdade, não era mais que um fardo e uma vergonha para seu povo; ele devia ter morrido há muito tempo, de espada em punho, em algum campo de batalha coberto de sangue.

— Eu também — continuou o cavaleiro. — Ainda vivo, e venho para casa reivindicar o que é meu.

Era ele mesmo. Chanat levantou os olhos mais uma vez. Era ele.Outro cavaleiro se aproximava vindo do leste. Era mais ou menos

da mesma idade, talvez um ou dois anos mais novo. Montava uma pequena égua. Tão desgastado e manchado da estrada quanto o ou-tro, mas com mais leveza na montaria, os olhos afiados e inquietos, a cabeça nua e o crânio estreito, ficando calvo no topo quase como um monge, o cabelo claro cortado rente nas laterais. As bochechas e o queixo barbudos, assim como sua cor, denunciavam que não era huno, embora também carregasse um pequeno arco huno e dois col-dres nas costas, amarrados atravessados. Mesmo depois de todo esse tempo, Chanat pensou ter se lembrado dele. O menino escravo, um grego, um daqueles gregos de pele clara. O fiel servo de seu mestre durante todos aqueles anos de exílio passando por diversos misté-rios, horrores e aflições. O servo curvou a cabeça para Chanat, que assentiu de volta.

— Chanat — disse o cavaleiro de pedra. — Vá até o acampamen-to. Traga-nos uma espada.

Chanat franziu o cenho.— Uma espada, príncipe Átila?— Átila Tanjou — respondeu ele. — Rei Átila. Rei.

Por duas vezes Chanat foi interrogado enquanto saía do acampamen-to carregando a espada por cima da sela. Duas vezes ele ignorou quem perguntava e continuou cavalgando obstinadamente. Em seu cora-ção, em todo o seu peito e em todo o seu corpo rijo e abatido, sentia

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arder e ondular uma excitação que não experimentava há anos. Seu mestre tinha dado a ele suas ordens. Nada mais importava. Um mes-tre que impunha respeito com a ponta do dedo mínimo. O tipo de mestre a quem desejara servir a vida toda. Não aquele velho bêbado degenerado dentro de sua tenda real, em uma túnica de lã branca e macia de Anatólia e seus roupões de seda púrpura bizantina. Os baús de ferro cheios de moedas imperiais: grandes moedas de ouro estam-padas com lendas de nações estranhas e cabeças de reis estrangeiros. Com manchas de vinho na barba, roncando com a cabeça no colo de alguma jovem capturada, enquanto as espadas e as lanças enferruja-vam penduradas nos tetos das barracas. Lá no alto do túmulo de Mundzuk estava sentado um verdadeiro líder de homens, altivo e firme em suas vestimentas precárias de couro desgastado e cobertas de poeira: um Tanjou. Um rei.

Chanat passou pelos guardas entediados e curiosos, pronto para dar uma bordoada com sua espada em suas cabeças se ousassem ten-tar impedi-lo. Não tentaram. O velho guerreiro esguio de rosto severo ainda impunha respeito nesse sonolento campo de hunos.

Ele estendeu a espada para o rei. Seu rei. Quantas ofertas mais ainda faria a ele, sem falar no derramamento de seu sangue ralo e ancião.

— Orestes — disse o rei.O grego de pele clara pegou a espada de Chanat e desceu graciosa-

mente de seu cavalo.Átila desceu o monte pelo lado leste e olhou para trás.— Cave ali — disse, com um aceno de sua cabeça coberta.— Você vai abrir um dos túmulos dos...Sob o olhar súbito e feroz do rei, até Chanat chegou a hesitar

por um momento. Mas então ele prosseguiu. Esse era um rei que não se ressentiria de um homem que expressasse sua opinião, se esta fosse sincera.

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— Um dos túmulos dos reis sepultados?— O túmulo de Mundzuk — disse Átila. — O túmulo de meu pai.Uma sombra atravessou o rosto de Chanat, mas ele não disse

nada. Eles se sentaram e observaram Orestes cavar até o núcleo do monte sepulcral, tirando a terra das pedras empilhadas. O próprio Átila desmontou e se ajoelhou ao lado das compridas placas de pe-dras e as retirou uma a uma com a maior delicadeza. Ele parou por um longo tempo antes de esticar a mão para dentro do túmulo. Removendo para o lado a terra acumulada, pousou a palma da mão quente sobre o crânio frio de seu pai e rezou por seu perdão e compre-ensão. Ficou ajoelhado por um longo tempo, depois colocou a outra mão, e parecia estar puxando o próprio esqueleto, desamparado e sujo. Por fim, arfando, ele o soltou, pôs-se rapidamente de pé e mon-tou de volta no cavalo. Os dois homens, o firme escravo grego e o re-sistente velho guerreiro, revezaram-se para recolocar as pedras no lugar e cobrir a ferida aberta, que tinha sido feita naquele solo sagra-do com terra e relva. Finalmente, alisaram o pequeno monte com a espada e tudo voltou a ser como antes.

Eles montaram de volta em seus cavalos e subiram até o monte de túmulos coletivos. O rei estendeu o braço direito sobre local e, num murmúrio, repetiu parte da grande oração huna para o enterro dos mortos.

Em seguida as partiram com seus cavalos e galoparam em frente, descendo a encosta íngreme do monte de túmulos em direção à fuma-ça tranquila que saía do acampamento dos hunos.

Aproximando-se do acampamento, Átila parou seu cavalo e os dois homens se detiveram ao lado dele.

Ele se voltou para Chanat:— Ele foi enterrado sem seus cavalos, sem suas esposas ou suas

escravas. — Sua voz aumentou de intensidade. — Sem um só anel de ouro para a jornada.

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Chanat não conseguia encará-lo nos olhos.— Fale — exigiu Átila.Com um olhar de sofrimento, Chanat disse suavemente:— Não pergunte a mim, Tanjou. Não pergunte a mim sobre os mortos.Átila levantou o olhar para a paisagem como se sentisse que seria

capaz de cortar a garganta do próprio horizonte. E com isso seguiram.

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CAPíTuLO 2A TENDA Em ChAmAS

O acampamento huno ficava perto de uma curva do rio Dnieper, chama-do pelos gregos de Borysthenes. Sua nascente fica bem ao norte seguindo as montanhas geladas, e até mesmo no final do verão ele ainda corre larga e serenamente pelas pastagens até o mar Negro. Ali os hunos haviam descansado o verão inteiro, secando, salgando e comendo os esturjões do rio, atirando em galinhas selvagens e caçando saigas gordas de tanto co-mer capim quando estas desciam até as margens para beber ao anoitecer. Antigamente o verão era a estação da guerra, e o inverno a da paz. Agora se passara muito tempo desde que os hunos tiveram seu último conflito, até mesmo com seus vizinhos tribais, e a paz reinava o ano inteiro.

Na entrada do grande acampamento, os guardas olhavam insegu-ros para Chanat e seus novos companheiros. Um deles se aproximou e pegou as cordas do cavalo de Orestes, e o grego parou sem reclamar. Mas Átila foi em frente, e no momento que pousou os olhos sobre os guardas nenhum deles ousou impedi-lo. Ele foi até a tenda real, abai-xou a cabeça, chutou os flancos de seu cavalo e cavalgou diretamente entre as cortinas da barraca, surgindo na grande câmara externa ainda montado. Dois guerreiros ergueram as lanças em sua direção e um deles exigiu que dissesse seu nome.

— Sem nome e amaldiçoado — respondeu, levantando uma das pernas por cima da cabeça de seu cavalo e saltando no chão. Ele se-

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guiu em direção à câmara interna, fechada por uma cortina. Um dos guerreiros o impediu e, em um segundo, se dobrou, curvado sobre a reluzente lâmina da espada de Átila enfiada em sua barriga. Ele cam-baleou para trás e se sentou, sangrando profusamente. O outro guer-reiro foi até ele com sua lança abaixada, mas Átila quebrou-a em dois pedaços com um feroz golpe lateral de sua espada, aproximou-se do guerreiro e enfiou a lâmina por baixo de seu braço, indo até as costelas. Continuou andando sem parar por um instante, soltando a lâmina com um puxão enquanto o guerreiro caía morto a seus pés.

Átila agarrou a requintada cortina de seda bizantina que ocultava a câmara interna e a puxou até o chão, pisando em cima dela em segui-da. Ali estava o rei Ruga, levantando-se trôpego do sofá, com uma jo-vem ajoelhada a seus pés. O rei encarou o recém-chegado com olhos embaçados. Tinha engordado nos últimos tempos, mas ainda era uma figura impressionante aos 70 e poucos anos de idade, com uma barba cheia, bem diferente da dos hunos típicos, e ombros redondos e pode-rosos. Mas seu nariz arrebitado estava roxo como vinho envelhecido e seus olhos, inchados e vermelhos. Olhou para a moça e a chutou, fa-zendo-a sair correndo, e levantou os olhos novamente para a figura em sua frente. Apesar da tremedeira causada pelo vinho, não demons-trava medo.

— Quem o mandou aqui? — exigiu grosseiramente.— Quem me mandou aqui? — Átila sorriu. — Astur. Astur me

mandou aqui.Ruga ficou olhando.O estranho se aproximou e afastou o capuz das largas sobrancelhas

queimadas de sol, e foi quando o velho rei viu as três antigas cicatrizes avermelhadas. As marcas nas faces do estranho eram delicadas e tingi-das de azul, feitas, sem dúvida, por sua mãe quando ainda era um bebê. Ele claramente era do povo. Mas as cicatrizes em sua testa não eram comuns. A não ser em traidores condenados ao exílio e à morte.

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Átila se manteve num silêncio de pedra na frente dele, a lâmina de sua espada pingando. Ruga parecia esquecido, perplexo e, depois, es-pantosamente alegre. Deu um passo à frente e jogou seus braços de urso em volta dele:

— Meu garoto! — gritou. — Depois de trinta anos você está de volta! Certamente foi Astur quem lhe mandou. Certamente Astur cui-dou de você e o abrigou sob suas asas por trinta anos!

Ele largou e se afastou de Átila, começando a balbuciar:— Quando o mandei embora, seguindo as leis e costumes da tri-

bo, nunca achei que o veria novamente. Porque nem mesmo um rei pode desrespeitar as regras de seu povo. Lembre-se disso, meu garo-to, quando entrar em seu reino. Mas, Átila, eu teria lhe dado tudo...

— Você matou meu pai — disse Átila. Ele estendeu a mão esquer-da e a abriu virada para cima. — Aqui está a ponta da flecha que tirei de seu esqueleto hoje. De seu solitário e miserável túmulo.

Ruga o encarou com os olhos molhados, hesitante. Finalmente ele se virou e se sentou no sofá.

— Sente-se a meu lado — disse.Átila permaneceu em pé em sua frente.— Átila — disse o velho rei. Ele estendeu a mão rechonchuda e

paralisada como se para tocar o rosto e as cicatrizes de seu traidor, mas deixou-a cair de volta. Respirou fundo e soltou o ar. — Mundzuk não era um homem para se venerar. Foi assassinado, sim. E não houve ninguém para contestar o assassinato comigo.

Os olhos de Átila estavam em chamas, mas ele não pôde dizer nada.— A memória é uma coisa estranha e a imaginação muitas ve-

zes a engana. — Ruga sacudiu a cabeça quase com triste-za. — Conhece a lei da tribo. Depois que seu irmão mais velho, Bleda, nasceu, Mundzuk nunca mais se deitou com sua mãe. No túmulo, seus ossos agora descansam solitários. Sim, abrace-me, ga-roto. Pois eu...

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Átila caiu sobre o pescoço do rei e jogou seus braços em volta dele.Ruga chorou com tamanha acolhida, com tamanha mistura de tris-

teza e felicidade.— Meu garoto — disse. — Meu garoto...Sua voz estava entrecortada de emoção e presa na garganta. Ele pa-

rou de súbito e nada mais saiu de sua boca vermelha e surpresa, além de um engasgo vazio.

Átila se afastou e colocou as mãos em volta do pescoço do velho homem, com a ponta da flecha que matou Mundzuk ainda na mão esquerda. Com uma força semelhante às presas de um lobo ele forçara a flecha lentamente na garganta do rei que engasgava.

— Está mentindo — disse baixo.As mãos sarapintadas de Ruga se debatiam por cima das mãos mus-

culosas em volta de seu pescoço, mas eram tão ineficazes quanto mari-posas. Seus pés escorregadios arranhavam a esteira abaixo deles em busca de estabilidade, e seus olhos se viraram para cima em suplício. Átila apertou com mais força, a ponta atravessando o papo gordo até a traqueia, o sangue esvaindo-se pelo meio de seus dedos assassinos, es-pumando com bolhas que vinham de seus pulmões em colapso.

— Meu garoto — sussurrou o rei moribundo. — Meu filho...Átila colocou uma das mãos na testa de Ruga e empurrou sua

cabeça para trás, e com o polegar da outra mão empurrou ainda mais fundo a flecha na garganta ensanguentada. A ponta suja e en-ferrujada raspou em sua coluna vertebral, e, com um empurrão fi-nal, ela a atravessou e o velho rei morreu. Átila tirou o dedo polegar do horrível buraco. O sangue jorrou de dentro dele, até se reduzir a poucas gotas e então parar.

Átila ficou imóvel, suando, as mãos brilhando de sangue, os olhos fi-xos no homem morto em sua frente. Seu peito se elevava e ele parecia um homem ainda em combate. Balançou violentamente a cabeça. Pegando a espada, agarrou o cabelo grisalho do velho rei e cortou sua cabeça.

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Saiu até a câmara externa, remontou em seu cavalo, que tinha fica-do parado ali esperando e assistindo pacientemente o massacre, deu meia-volta e cavalgou para fora da tenda.

Do lado de fora, na arena formada pelo círculo de tendas dos senhores chefes da tribo, bem no meio do acampamento, ele atirou a cabeça decepada com a boca aberta de surpresa sobre a terra, sen-tou-se e esperou. Aos poucos, o povo horrorizado foi se juntando. Homens com barrigas flácidas e bocas abertas como a do velho rei, mulheres com grandes olhos assustados segurando recém-nascidos, crianças sujas engatinhando por baixo das pernas de seus pais para ver também. Não mais do que cem pessoas ao todo, e muito mais homens que mulheres, pois, a cada ano, um número maior de mu-lheres morria no parto, e durante uma geração inteira não havia mais guerras para matar os homens. Um povo esfarrapado, poeiren-to, pacífico e manso.

Enquanto ele olhava para todos, uma voz, a voz de Chanat, exclamou:— Viva o, rei Átila!Como se fossem um, todos repetiram:— Viva o, rei Átila!Mesmo assim Átila continuava olhando seu povo sem sorrir.Depois de um longo e desconfortável silêncio, ele chamou Chanat

para seu lado.— Traga-me fogo.Chanat foi até as fileiras de espectadores em pé e eles se apres-

saram para atender a seu pedido. Nada menos que oito tochas ace-sas foram rapidamente oferecidas a ele. Chanat escolheu a que tinha a chama mais forte e voltou até o rei. Átila pegou a tocha com a mão direita, deu a volta com o cavalo, cavalgou de novo até a tenda real e encostou a tocha no feltro branco. As chamas imedia-tamente começaram a devorar o tecido e as colunas de madeira nas quais estava pendurado.

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— Meu senhor — disse Chanat se aproximando por trás dele. — A moça...

— Hum — disse Átila, olhando de volta para ele e coçando deva-gar a barba rala. — E o ouro.

Ele enfiou os calcanhares nos flancos do cavalo, e o animal ater-rorizado se levantou sobre as patas traseiras, relinchando, o fedor do feltro em chamas já penetrando em suas narinas. Átila despren-deu uma corda de seu cinto e açoitou sem pena o pobre animal, sua outra mão apertando as rédeas com tanta força que o focinho do cavalo foi puxado de volta até o pescoço. Os calcanhares bateram mais uma vez nos flancos agitados enquanto o cavalo se erguia no-vamente e gritava um último protesto com a garganta metade es-trangulada, antes de lançar-se para a frente, pela entrada em chamas da tenda.

O povo ficou olhando. Durante uma geração inteira não tinham visto nada parecido. E isso, eles sabiam, era apenas o começo.

Por trás da multidão, alguém observava. O silencioso escravo gre-go do novo rei. As pessoas assistiam à tenda queimando. Uma delas, um rapaz com não mais que 20 anos, deu um passo à frente em direção à tenda, como se disposto a ir atrás de seu rei. Orestes sorriu quase imperceptivelmente para si mesmo.

Uma das paredes da tenda desabou enquanto os suportes de ma-deira de dentro cediam, e o rugido das chamas ficou ainda mais fu-rioso. O povo se afastou um passo do calor intenso. Alguns olharam para Chanat, mas ele nem se mexia. As chamas subiam e mancha-vam o céu cinzento e carregado, faíscas subindo mais alto ainda, cin-zas e restos de feltro enegrecido subindo em espirais como uma oferenda desordenada para os deuses. A tenda era um inferno. Ninguém conseguiria sobreviver a ela. Certamente a tribo tinha sido visitada não por um assassino ou por um usurpador, mas simples-mente por um louco.

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E então, cavalo e cavaleiro ressurgiram pelos trapos flamejan-tes da tenda, galoparam até sair e derraparam, levantando poeira ante a multidão. O povo olhava espantado. A pele do cavalo estava fumegando, e o cheiro de pelo queimado era fétido. O rosto do cavaleiro estava escuro e seus olhos ardiam vermelhos no rosto. Um relâmpago caiu do céu ultrajado e atingiu o último poste de madeira da tenda real, derrubando-o até o chão. O novo rei nem olhou para trás, e seu cavalo ofegante e ardendo a fogo lento não se perturbou. O raio caiu sem estrondo e, também sem umas pou-cas e hesitantes gotas de chuva que pudessem ajudar a extinguir a fogueira monstruosa. A tenda desabada queimaria até o esqueci-mento. Os deuses queriam assim.

Contra a incrível cortina de fogo e sangue, o escuro cavaleiro se sentou e observou seu povo. Então ele soltou o embrulho que tinha sobre o colo e o largou no chão. Era a jovem que o rei morto protegia, enrolada num tapete para evitar que sua pele pálida se queimasse. Ela se pôs de pé com dificuldade e deu um passo para trás, para longe da terrível visão do cavaleiro queimado. Ele deu uma meia-volta e puxou sua corda, e o povo viu que ele também tinha arrastado daquele infer-no o grande baú de tesouros do rei morto. Seus olhos brilharam, e não apenas por causa do fogo.

O enlouquecido cavaleiro, o rei queimado, ou quem quer fosse esse homem agitou a corda e ela se soltou das alças do baú. Ele assen-tiu para Chanat e o velho guerreiro desmontou do cavalo, foi até a arca e deu-lhe um forte golpe com seu machado. Alguma coisa dentro dela quebrou. O homem pegou a pesada tampa e a levantou. O baú estava cheio até a borda de moedas de ouro.

O cavaleiro ardente começou a cavalgar para a frente e para trás diante de seu povo, como um general ante as fileiras de seus ho-mens momentos antes de uma batalha. Numa voz estranha e mono-córdia, ele recitou:

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“O que a força e astúcia não dobraram,Por muitos anos de guerra,Agora uns covardes aceitaram,Por moedas e um pouco de terra.”

Eles se remexeram desconfortavelmente.Sua voz ficou mais firme:— Mas chega disso. Um povo que um dia foi de grandes guerrei-

ros, temido das montanhas Altai até o mar Cáspio e as margens do Danúbio, será mais uma vez assim. Os deuses estão conosco — ele fi-xou o olhar em seu povo escolhido, e eles olharam de volta para ele e pareceram sentir alguma coisa inflamando em suas almas.

“Quanto ao ouro — disse com desdém, olhando para o baú, com a tampa aberta e despedaçada —, podem ficar com tudo. Nenhum guer-reiro de verdade regozija-se com mero ouro.”

Ele parou e os olhou mais uma vez, parecendo mais ereto sobre a cela.

— Sou Átila. E sou seu rei. Sou o filho de Mundzuk, filho de Uldin, exilado durante trinta verões pelas palavras de um homem morto — e olhou para os restos da tenda em chamas e depois de volta para os rostos fascinados por essa visão. Alguns abaixavam a cabeça como se sentissem uma vergonha coletiva. Mas sua voz os surpreendeu, ficando mais suave.

“Sou seu rei e vocês são meu povo. Vão lutar por mim, e morrerei por vocês. E vamos dominar até o litoral do oceano ocidental, e até as ilhas do Mediterrâneo, e ninguém ficará de pé em nossa frente.”

O povo de uma só voz entoou uma grande exclamação, e, por fim, começou a chover.

Os olhos de Átila cintilavam com algo que lembrava divertimento. Atrás dele, as ruínas negras da tenda real começaram a chiar e a fume-gar, e a se acalmar sob os fortes e insistentes pingos de chuva como um grande animal finalmente descansando.

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