Aula 4 - Iorubás e Haussas

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1 O objetivo desta aula é analisar alguns aspectos socioculturais de um grande reino da África Ocidental: Iorubá. A complexidade que marcou tal sociedade, as relações com outros povos, as soluções que deram para seus desafios e refutar a ideia de uma cultura única africana, a partir, junto com a noção de família extensa, de uma das características definidora das sociedades da África Subsaariana a relação com o divino.

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O objetivo desta aula é analisar alguns aspectos socioculturais de um grande reino da

África Ocidental: Iorubá. A complexidade que marcou tal sociedade, as relações com

outros povos, as soluções que deram para seus desafios e refutar a ideia de uma cultura

única africana, a partir, junto com a noção de família extensa, de uma das

características definidora das sociedades da África Subsaariana – a relação com o

divino.

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a aula anterior, vimos que mesmo tendo traços bem diferentes, os africanos

partilham características comuns. Nesta aula analisaremos a sociedade iorubana,

valorizando, além dos aspectos comuns já mencionados na aula anterior, mais um – a

religiosidade. Não perderemos de vista, claro, os aspectos que tornam essa formação

social e política diferente.

A religiosidade, para as sociedades ao sul do Saara, era central. Toda ação

humana era uma ação religiosa. Embora as comunidades acreditassem em um Deus ou

em deuses próprios, as formas de acessar o divino eram muito parecidas.

O cultivo da terra, a guerra, audiência com os chefes eram antecedidas por

cerimônias religiosas. A família extensa também era compreendida por meio da

religião, pois seus membros consistiam nos vivos, nos ancestrais e naqueles que

estavam por nascer.

Acreditavam na coexistência entre os vivos e os mortos. Os ancestrais eram

entendidos como semideuses e intermediários nas relações com os deuses. Os cultos

eram precedidos por música e dança que geralmente levavam ao transe de pessoas

iniciadas para incorporar os deuses ancestrais.

A religião era praticada por toda comunidade e dava um forte sentido de

coletividade aos diferentes povos. Outro elemento importante é o especialista religioso,

como sacerdote ou feiticeiro. Os primeiros eram responsáveis por grande parte das

atividades religiosas se influentes junto aos líderes. Os segundos, geralmente temidos,

em muitas comunidades eram associados aos ferreiros, pois ambos tinham o poderoso

conhecimento de como alterar a natureza.

Vejamos, a seguir, como a religião foi um componente importante na

organização de iorubás e haussas.

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Oxalá cria a Terra

No começo, o mundo era todo pantanoso e cheio de água,

Um lugar inóspito, sem nenhuma serventia.

Acima dele havia o Céu, onde viviam Olorum e todos os orixás,

que ás vezes desciam para brincar nos pântanos insalubres.

Desciam por teias de aranha penduradas no vazio.

Ainda não havia terra firma, nem o homem existia.

Um dia Olorum chamou à sua presença Orinxalá, o Grande Orixá.

Disse-lhe que queria criar terra firme lá embaixo

E pediu-lhe que realizasse tal tarefa.

Para a missão, deu-lhe uma concha marinha com terra,

uma pomba e uma galinha com pés de cinco dedos.

Orinxalá desceu ao pântano e depositou a terra da concha.

Sobre a terra pôs a pomba e a galinha

e ambas começaram a ciscar.

Foram assim espalhando a terra que viera na concha

até que terra firme se formou por toda parte.

Orinxalá voltou a Olorum e relatou-lhe o sucedido.

Olorum enviou um camaleão para inspecionar a obra de Oxalá

e ele não pôde andar pelo solo que ainda não era firme.

O camaleão voltou dizendo que a terra era ampla,

mas ainda não suficientemente seca.

Numa segunda viagem o camaleão trouxe a notícia

de que a Terra era ampla e suficientemente sólida,

podendo-se agora viver em sua superfície.

O lugar mais tarde foi chamado Ifé, que quer dizer ampla morada.

Depois Olorum mandou Oxalá de volta à Terra

para plantar árvores e dar alimentos

e veio a chuva para regar as árvores.

Foi assim que tudo começou.

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Foi ali, em Ifé, durante uma semana de quatro dias,

que Oxalá criou o mundo e tudo o que existe nele.

PRANDI, 2001, pp. 502-503.

ste belo relato mítico1 dos Iorubás sobre a criação do mundo está presente, também,

na grande maioria das casas de candomblé Queto do Brasil. Há um sentimento de

pertencimento, de forma simbólica, à Ifé, nessas casas religiosas. Os malês da Bahia

também se sentiam descendente de Ifé (REIS, 2003, p. 212). Vestígios arqueológicos

importantes contam parte da história dessa cidade mítica. Ela foi um ponto de ligação

entre a floresta e a bacia do rio Níger e centro religioso dos Iorubás.

Segundo a Oralidade, um líder divinizado chamado Odudua foi o responsável

pela prosperidade de Ilê Ifé. Acredita-se que Odudua tenha vivido entre os séculos VIII

e XIII de nossa era (SOUZA, 2006, p. 36). Os Iorubás deixaram uma rica produção

artística e vários mitos na oralidade. A partir da análise desses vestígios percebe-se uma

forte relação entre política e religião.

Território Iorubá, c. 1830.

Fonte: REIS, 2003, p. 337.

1 Os mitos presentes nas tradições orais africanas são fontes legítimas para a reconstrução das histórias de

um determinado povo. São relatos que se diferenciam do histórico por não estarem comprometidos com

datas e coerência. Os mitos procuram justificar a existência de quem o cultiva. Seu tempo é o passado

distante, tempo das origens e seu relato parcial. É passado pela oralidade de geração a geração e objetiva

dar sentido à vida e fornecer subsídios para a construção e reconstrução da identidade grupal (PRANDI,

2005, pp. 31-32).

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Mapa Iorubá.

Fonte: KI-ZERBO, p. 203.Fonte: KI-ZERBO, p. 203.

Ilê ifé, segundo o método radiocarbono realizado em matérias de escavação, era

habitada desde o século VI. Seus habitantes teriam surgido da interação entre povos

autóctones e imigrantes do norte. Estes teriam inaugurado uma nova forma de organizar

o poder, um novo conceito de rei.

Segundo o africanista Alberto da Costa e Silva e J. Fage, neste caso, o

acampamento militar precedeu o mercado no surgimento da cidade. O que ocorria

comumente era a cidade se formar a partir do mercado.

O mito relatado acima representa a introdução da monarquia entre os Iorubás.

Há diversas versões para ele. Ora Oxalá cria o mundo ora Odudua aparece como

criador. Tentemos resolver esta equação.

Odudua, em uma das versões, seria filho de um rei de Meca chamado Lamurudu.

Este não queria deixar de cultuar seus deuses e não aceitou o islamismo. Os

muçulmanos se revoltaram e instaurou-se uma guerra civil. Lamurudu teria sido morto e

seus filhos expulsos da cidade. Odudua, perseguido, teria viajado pelo Sael e chegado

em Ifé, nas florestas Iorubás, e fundado um reino. Em outras versões, os Iorubás vieram

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de Medina, ou das cidades-Estado Haussas ou das terras dos Nupe. Ou mesmo de uma

região incerta.

O mito narrado por Prandi traz a ideia de que o mundo, e não apenas a

monarquia, foi criado em Ilê Ifé, a fonte de todas as coisas, o lugar de onde os homens

se espalharam sobre a terra. Ifé, o que é vasto, o que se alarga. Pierre Verger (1981),

explica que Olorum não mora no céu e sim no

além, Orum. Odudua não teria vindo do céu, nem

Oxalá, e sim do Orum, o outro lado, o infinito, o

longínquo, o desconhecido.

Uma leitura pode ser feita das diferentes

versões e da substituição ora por Oxalá ora por

Odudua na tarefa da criação. Eles teriam sido

chefes de distintas comunidades, culturalmente

semelhantes, existentes na área de Ifé. Pode

mostrar, também, a precedência de Oxalá, como

dono da terra, sobre Odudua e sua gente, que

chegaram depois, do outro lado, do Orum.

Ilê Ifé teria surgido antes da chegada de

Odudua e se organizava como um reino. Odudua

chegou fortemente armado e se apossou

militarmente de Ifé, porém, como é tradição entre

essas sociedades africanas ao sul do Saara, aquele

que chega depois reconhece o precedente como o

dono da terra. Odudua, então, reconheceu Oxalá e lhe deu, como a seus seguidores,

papéis de relevo no governo. Essa história conta não a criação do mundo, mas como

começou outra dinastia.

Fonte: : http://br.taringa.net/posts/imagens, acesso

19/03/2011, às 12h.

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Oxalá e Odudua na cabaça.

Fonte: Prandi, 2001, p.423.

Ifé tornou-se um entreposto de produtos da savana, da floresta e do litoral. Dali, era fácil

fazer viajar Níger acima, até Gaô, os artigos do sul: os inhames, o peixe seco, o dendê,

as pimentas, a noz-de-cola, as gomas, as madeiras, o ouro, o marfim, as canoas e o sal,

ou levá-los até atravessar o rio, às cidades haussas. Ao norte tinham como parceiros

comerciais os nupes. Ao sul, com Ijebu. O escravo foi o artigo mais valioso e servia

como moeda de troca na compra do cobre, do latão, das armas, dos tecidos e todo tipo

de bens demandados pelos habitantes de Ifé (SILVA, 2006, p. 480). Produziam,

também, contas de vidro coloridas que chagavam em Koumbi Saleh.

Ifé transformou-se no centro espiritual dos Iorubás e para onde retornava os

restos mortais e as insígnias de todos os reis (era comum guardar as unhas e cabelos

para enviar à Ifé). Por Oni era chamado seu soberano que também era o grande

pontífice. Segundo outros relatos, teria crescido de um santuário. Como centro espiritual

dos Iorubás recebeu tributo e homenagem de várias cidades, cujas dinastias reclamavam

a descendência de Odudua e mantinham certa forma de submissão ao Oni, soberano de

Ifé. Porém, existiram cidades que contestaram o poder do Oni de ifé e desenvolveram

outros mitos de criação, como Oió, Ilexá e Ijebu. Forjaram tradições que não os

colocavam como descendentes de Odudua, mas de um escravo dele.

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As casas de Ifé eram compostas de pequenos pátios internos e abertas ao sol. O

chão era calçado com fragmentos de cerâmica e seixos brancos, dispostos de tal forma a

guiar os olhos para o centro do terreno. Lá ficava um pote enterrado que servia para

receber oferendas. Nos cantos erguiam-se pequenos altares, lugares próprios para se

colocar as cabeças de barros ou terracota, comuns na produção artística do território

Iorubá. Essas imagens de terracota ou estavam ligadas ao culto dos antepassados, ou

deuses dos lares. Esse tipo de pátio, dedicado aos deuses, existe até hoje nos palácios e

moradias particulares, nos chamados compound, conjunto murado de casas de gente da

mesma família. As casas são compostas de quartos que se abrem para varandas. E nelas

vive-se a vida familiar – local onde se cozinha o alimento, de costura, confecção de

esteiras, de conversas e na estação seca dormia-se também.

A formação da cidade de Ifé é um excelente estudo de caso para

compreendermos a história do Reino Iorubá. Caracteriza-se pela formação de cidades-

Estado quase como se fossem pequenos reinos que rivalizam entre si ou que mantinham

alianças militares quando se acreditava ter ancestral comum – Odudua. A tradição oral

nos conta que grande parte das cidades foi fundada por descendentes deste poderoso

Orixá, que teria, em vida, iniciado outra dinastia na cidade sagrada.

Segundo Ki-Zerbo, os Iorubás teriam vindo do Nordeste, talvez do Alto Nilo,

entre os séculos VI e XI. Teriam passado um longo período em Kanem. Os estudos dos

linguistas mostram que ao Reino haviam chegado emigrantes por duas vias: uma na

direção de Ekiti, Ifé e Ijebu, na floresta; a outra em direção à Oió, na periferia da

floresta. O Reino se caracterizaria por uma confederação de cidades, cada qual com

centenas de milhares de habitantes.

A cidade de Irê foi dominada pelo primogênito de Odudua, Ogum. Este matou

seu rei e submeteu seu povo. Colocou o seu filho, Ogundaunsi, no lugar do antigo rei.

Existem duas versões para a morte de seu filho: uma nos fala que retornando de uma de

suas campanhas militares, Ogum teria se aborrecido com seu filho e o matou, outra diz

que o povo de Irê havia realizado um ritual que o obrigava ao silêncio de um dia. Ogum,

quando chega à cidade, não consegue obter respostas às suas perguntas e se enfurece.

Derrama sobre o povo toda a sua raiva e degola-os. Percebe que não estava sendo

ignorado, mas que as pessoas cumpriam os votos pelo ritual realizado. Aponta sua

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espada para a terra e nela mergulha com grande estrondo. Irê ainda hoje é o lugar

sagrado do Orixá Ogum, senhor do ferro e da guerra.

Depois de Odudua assumir a dinastia de Ifé, tornou-se tradição usar a coroa de

contas com franja – adê – e todos se chamavam “coroados”, aludindo á descendência de

Odudua. Ela foi dada aos seus filhos, que fundaram cidades, como forma de estreitar os

laços e marcar a descendência de Ifé e subordinação. Ogum foi o único que não usou a

coroa com franjas. Usava um pequeno diadema chamado acoró. Isso se deveu a

conflitos entre ele e Odudua.

Uma das características do Reino Iorubá é ser composto por inúmeras aldeias

independentes e de difícil acesso. Tais questões ecológicas os protegeram das

conquistas militares e reduziram o impacto das mudanças políticas e de dinastias

observadas em Ifé.

Soberano Iorubá usando ade de contas.

Fonte: SOUZA, 2006, p. 36.

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A área cultural Iorubá, como vimos, era constituída por cidades que se

diferenciavam culturalmente e politicamente, mas possuíam características em comum,

como a deificação de seus soberanos e a ancestralidade ligada a Odudua, mesmo que

algumas cidades como Oio tenham tentado fugir a esta regra. Tentado, pois um dos

mitos populares sobre Oxalá narra uma longa viagem que fez para visitar seu filho

Xangô, um alafim de Oió (VERGER, 1981, p. 80).

Outra questão importante abordada foi a possibilidade de reconstruir a história

de um povo a partir de seus mitos. Estes presentes, também, nas casas de candomblé do

Brasil.

ARNAUT, Luiz & LOPES, Ana Mónica. História da África: uma introdução. Belo

Horizonte: Crisália, 2005.

ILIFFE, John. Africanos: história dum continente. Lisboa: Terramar, 1999.

KI-ZERBO, Joseph. História da África Negra I. Lisboa: Publicações Europa-América,

s/d.

M’BOKOLO, Elikia. África Negra: história e civilização. Lisboa: Vulgata, 2003.

SILVA, Alberto da Costa e. A enxada e a lança. A África antes dos portugueses. São

Paulo: Nova Fronteira/EDUSP, 1992.

PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos Orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

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Filme: Atlântico Negro – na rota dos Orixás (1998)

Direção: Renato Barbiere.

Resumo: Documentário que mostra o caminho que os Orixás percorreram até chegarem ao

Brasil. Excelente oportunidade para saber sobre as práticas culturais e religiosas dos Iorubás

tanto na África como no Brasil. É uma reflexão privilegiada sobre o que são os Orixás e como

se tornam afrobrasileiros.