AUTONOMIA FEDERATIVA DOS ESTADOS E MUNICÍPIOS NA REGULAÇÃO ...

65
PUC DEPARTAMENTO DE DIREITO AUTONOMIA FEDERATIVA DOS ESTADOS E MUNICÍPIOS NA REGULAÇÃO DA SUCESSÃO DO CHEFE DO PODER EXECUTIVO por Vinicius Cozzolino Abrahão ORIENTADORA: Regina Coeli Lisbôa Soares 2013.2 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO DE JANEIRO RUA MARQUÊS DE SÃO VICENTE, 225 - CEP 22453-900 RIO DE JANEIRO - BRASIL

Transcript of AUTONOMIA FEDERATIVA DOS ESTADOS E MUNICÍPIOS NA REGULAÇÃO ...

Page 1: AUTONOMIA FEDERATIVA DOS ESTADOS E MUNICÍPIOS NA REGULAÇÃO ...

PUC DEPARTAMENTO DE DIREITO

AUTONOMIA FEDERATIVA DOS ESTADOS E MUNICÍPIOS NA REGULAÇÃO DA

SUCESSÃO DO CHEFE DO PODER

EXECUTIVO

por

Vinicius Cozzolino Abrahão

ORIENTADORA: Regina Coeli Lisbôa Soares

2013.2

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO DE JANEIRO

RUA MARQUÊS DE SÃO VICENTE, 225 - CEP 22453-900

RIO DE JANEIRO - BRASIL

Page 2: AUTONOMIA FEDERATIVA DOS ESTADOS E MUNICÍPIOS NA REGULAÇÃO ...

AUTONOMIA FEDERATIVA DOS

ESTADOS E MUNICÍPIOS NA

REGULAÇÃO DA SUCESSÃO DO

CHEFE DO PODER EXECUTIVO

por

VINICIUS COZZOLINO ABRAHÃO

Monografia apresentada ao

Departamento de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

(PUC-Rio) para a obtenção do Título de Bacharel em Direito.

Orientadora: Regina Coeli Lisbôa Soares

2013.2

Page 3: AUTONOMIA FEDERATIVA DOS ESTADOS E MUNICÍPIOS NA REGULAÇÃO ...

AGRADECIMENTOS

À minha mãe, por ter me dado a vida, e por dar vida aos meus dias.

Quando penso no amor que sinto por você, tenho certeza de que a

eternidade existe. Obrigado!

Ao meu pai, por sempre valorizar e incentivar os meus estudos. Por

mostrar o caminho certo, e ter me ensinado coisas como caráter e

humanidade. Meu muito obrigado por tudo.

À minha irmã, de longe a pessoa que mais me perturba, e aos meus

primos-irmãos. Até aqui, nós dividimos as nossas histórias, e tenho certeza

que construiremos juntos os nossos futuros. Vocês dão alegria aos meus

dias. Muito, muito, muito obrigado por serem meus companheiros.

Aos meus tão queridos tios, que me têm como filho. Vocês fazem

toda a diferença na minha vida. Obrigado a cada um de vocês por sempre

me incentivar. Vocês são muito especiais. Aos meus avós, obrigado pelo

amor e pelo carinho.

Aos meus amigos, por poder contar com vocês. Quanto aos da PUC,

saibam que esses foram os anos mais especiais da minha vida, sem dúvida.

As emoções foram tremendas, e a amizade que construímos é uma das

coisas mais valiosas da minha vida. Conviver com vocês é um privilégio!!

À minha professora orientadora, pelo carinho com o qual sempre me

atendeu. Também a todos os professores que de alguma maneira

contribuíram para a minha formação. Felizmente, ao longo de minha vida

estudantil, pude ter exemplos do que efetivamente ser quando crescer.

À Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, que sempre

terá um lugar especial no meu coração. Obrigado por me receber de forma

grandiosa e fazer com que eu me sinta em casa.

Page 4: AUTONOMIA FEDERATIVA DOS ESTADOS E MUNICÍPIOS NA REGULAÇÃO ...

RESUMO

O modelo federativo brasileiro tem histórico centralista, com a

concentração das competências constitucionais em torno do governo

central. Após anos de ditadura militar, a Constituição de 1988 foi

promulgada com o compromisso de restabelecer a democracia no país. Para

isso, precisou desenhar o Estado federal e concedeu aos entes parciais

maior autonomia. Ao lado dos Estados e da União, introduziu os

Municípios como o mais novo ente federativo.

Como é característico em toda federação, a autonomia concedida às

unidades parciais permite-lhes formular suas próprias Constituições

estaduais e Leis Orgânicas, o que é denominado capacidade de auto-

organização. No entanto, também devem guardar com o modelo central

semelhanças que resguardem os princípios mais essenciais do Estado de

Direito instituído.

A vacância nas chefias do Poder Executivo nos Estados e Municípios

tem levantado questão sobre a possibilidade de, a partir da capacidade de

auto-organização, esses entes regularem o processo de sucessão. No caso da

presidência da República, a matéria é disciplinada pela CRFB, art. 81, §1º.

O objetivo deste trabalho é discutir se, respeitados os preceitos

constitucionais que informam a organização dos entes federados, o modelo

de sucessão do Presidente da República deve ser observado na sucessão dos

Governadores e Prefeitos ou se podem os entes federados tratar a matéria de

forma diversa.

Palavras-chave: Autonomia Federativa; Capacidade de auto-organização;

Dupla Vacância na chefia do Poder Executivo; Art. 81 da Constituição da

República.

Page 5: AUTONOMIA FEDERATIVA DOS ESTADOS E MUNICÍPIOS NA REGULAÇÃO ...

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................. 5

CAPÍTULO I - RESUMO HISTÓRICO: CAMINHO AO

FEDERALISMO BRASILEIRO ................................................................ 8

CAPÍTULO II - ATUAL PANORAMA DO FEDERALISMO

BRASILEIRO ............................................................................................. 21

CAPÍTULO III - NORMAS DE SIMETRIA VS. AUTONOMIA

FEDERATIVA ............................................................................................ 29

CAPÍTULO IV - CRFB, ART. 81, §1º: NORMA DE

REPRODUÇÃO OBRIGATÓRIA? ......................................................... 38

CAPÍTULO V - REGULAMENTAÇÃO DAS ELEIÇÕES

INDIRETAS POR ESTADOS E MUNICÍPIOS ..................................... 49

5.1 Participação dos Partidos Políticos ................................................. 50

5.2 Voto aberto ou secreto .................................................................... 53

CONCLUSÃO ............................................................................................. 56

BIBLIOGRAFIA ........................................................................................ 61

Page 6: AUTONOMIA FEDERATIVA DOS ESTADOS E MUNICÍPIOS NA REGULAÇÃO ...

INTRODUÇÃO

Na metade da década de 1980, o país entrou num processo de

redemocratização, que desembocou na promulgação da atual Constituição da

República em 1988. A íntima ligação entre federalismo e democracia fez com

que os Estados-membros resgatassem certa autonomia federativa, que chegou

com novas feições. Ainda dentro do compromisso democratizante, a Carta

Política rompe com a tradição dual do federalismo brasileiro e coloca os

Municípios como a terceira esfera de autonomia, ao lado da União, dos Estados e

da figura híbrida do Distrito Federal. Como não poderia deixar de ser, dentro de

um sistema no qual os entes parciais possuem autonomia, organizam-se os

Estados e Municípios por suas Constituições Estaduais e Leis Orgânicas,

respectivamente, conforme dispõe a CRFB, arts. 25 e 29.

No entanto, essa capacidade de auto-organização atinente ao Estado

federal sofre limitações, já que deve seguir um determinado padrão, o que é

chamado de simetria. No caso brasileiro, o texto constitucional prevê a necessária

observância pelos entes federados do sistema presidencialista, estipulando que

Governadores e Prefeitos serão eleitos, a cada quatro anos, pelo voto popular

direto. Dentro da normalidade esperada, os governantes cumprem todo o período

previsto para o mandato, podendo, nos casos de impossibilidade de exercício, ser

sucedidos pelos vices. E quando também há a inviabilidade de o Vice-

Governador ou Vice-Prefeito dar continuidade ao restante do mandato, qual o

procedimento a ser seguido?

A Lei Fundamental trata, em seu artigo 81, o caso da dupla vacância do

cargo de Presidente da República. A matéria, todavia, não é tratada de forma

expressa em relação aos entes parciais, que, por conta disso, entenderam ser o

assunto atinente à capacidade de auto-organização que dispõem. Dessa forma, o

fenômeno sucessório ganhou regulação própria nas Constituições estaduais e

Leis Orgânicas.

Page 7: AUTONOMIA FEDERATIVA DOS ESTADOS E MUNICÍPIOS NA REGULAÇÃO ...

6

A inconstitucionalidade dessas normas regionais e locais tem sido

arguida, sob a alegação de que o texto constitucional já previu um

regramento em relação ao Presidente da República. Ou seja, a

jurisprudência tem sido instigada a manifestar-se sobre a possibilidade dos

Estados e Municípios, a partir do exercício da autonomia federativa,

regularem a sucessão do Chefe do Poder Executivo: se por eleições diretas

ou indiretas. Este trabalho pretende ponderar, de um lado, a simetria

organizacional imposta pela Carta Política brasileira ao Poder Constituinte

Decorrente dos Estados e dos Municípios1, e, de outro, a autonomia desses

entes políticos.

Para tanto, o capítulo I destrincha a formação do federalismo no

Brasil. Desde a colonização, o território brasileiro, por conta de sua

extensão, necessitou de divisões administrativas. Já no período imperial,

foram sendo destacadas as diferenças culturais por todas as partes do país, o

que destoava da forte concentração do poder político na figura do monarca

e na Corte, situada no Rio de Janeiro. Enfim, a Carta Republicana de 1891

inaugura, no Brasil, a forma de Estado federativa, que, todavia, não se

manteve intacta por todo o período republicano. O percurso histórico pode

demonstrar as dificuldades enfrentadas pelo modelo federal, e a que ponto

possui real legitimidade. Ao desembocar na ordem constitucional

estabelecida em 1988, ficará clara a proximidade entre democracia e

federalismo.

Continuando a partir da atual conjuntura do federalismo no Brasil, o

capítulo II pretende mostrar que, em muitos países, a opção pelo

federalismo pode ser uma necessidade, além das vantagens aferidas de sua

implementação. Especificamente em relação à atual Constituição brasileira,

é feita uma análise crítica tanto à demasiada interferência na organização

dos entes federados, o que gera um modelo demasiadamente simétrico, e

quanto à divisão de competências legislativas e administrativas. Por outro

1 É controverso na doutrina se os Municípios exercem parcela de Poder Constituinte. Nesse trabalho,

adotamos o posicionamento de Gilmar Ferreira Mendes, segundo o qual tais entes possuem poder constituinte

decorrente. MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 5ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2010.

Page 8: AUTONOMIA FEDERATIVA DOS ESTADOS E MUNICÍPIOS NA REGULAÇÃO ...

7

lado, é destacado o seu ineditismo quanto à elevação dos Municípios como

entidade político-administrativa membro da federação, o que impede uma

ingerência dos Estados-membros em sua autonomia.

Explicitada a autonomia dos entes parciais, ponto fulcral é conseguir

mensurar os seus limites, e é isso que se pretende fazer no Capítulo III. As

regras e princípios de simetria inseridos na Constituição da República

abrem ou não a possibilidade para que o Estado-membro ou o Município

delibere acerca de sua organização. Para que haja a possibilidade de

regularem a sucessão do Chefe do Poder Executivo, é imprescindível que

tal matéria não esteja vinculada a nenhum preceito constitucional, pois aí

estarão invariavelmente sujeitos ao modelo federal.

Dando continuidade, o Capítulo IV dedica-se, especificamente, a

saber se a reprodução do art. 81 da CF é obrigatória nas Constituições

estaduais e Leis Orgânicas. Para isso, é feita uma busca por princípios

constitucionais que poderiam tornar o modelo de sucessão federal afeto às

unidades parciais. Nesse ponto, é possível adentrar a jurisprudência pátria e

separar os argumentos a favor e contra a regulação desvinculada. Além

disso, é preciso demonstrar a divergência em torno da natureza que possui a

escolha do sucessor do Chefe do Poder Executivo: matéria de direito

eleitoral, cuja competência legislativa privativa é da União, ou uma decisão

de poder?

Por fim, o Capítulo V, pressupondo a possibilidade dos Estados e

Municípios determinarem que o processo de sucessão seja feito por eleições

indiretas, discute sua regulamentação, especificamente quanto à

participação dos partidos políticos e quanto à forma de escrutínio, se

fechada ou ostensiva.

Em suma, partindo da construção do federalismo no Brasil e

chegando no atual modelo, pretende-se analisar se o art. 81 da Constituição

da República é de observância obrigatória aos Estados e Municípios e, caso

não o seja, se podem esses entes dispor acerca da regulamentação de

eleições indiretas.

Page 9: AUTONOMIA FEDERATIVA DOS ESTADOS E MUNICÍPIOS NA REGULAÇÃO ...

CAPÍTULO I

RESUMO HISTÓRICO: CAMINHO AO FEDERALISMO

BRASILEIRO

A primeira divisão administrativa de nosso território é feita entre

1534 e 1536. Com a necessidade de dar início à exploração colonial e

proteger suas terras de contrabandistas estrangeiros, a coroa portuguesa

dividiu seu território em 15 faixas a serem administradas por donatários,

sistema que ficou conhecido como “Capitanias hereditárias”. Mesmo não

possuindo as mesmas dimensões territoriais e demais complexidades atuais,

a medida tinha como clara motivação a imensidade territorial do país.

Muito embora tal divisão tenha ocorrido, sua imediata finalidade era

unicamente atender aos interesses gerenciais da coroa naquele período,

ficando as especificidades regionais e suas consequências econômicas a

demonstrarem importância ao longo do tempo. O que havia, de fato, era

uma desconcentração da Administração Pública, mas não uma

descentralização do poder político. Esse panorama centralista predominou

na história brasileira até o esfacelamento do Império.

Com a proclamação da Independência em 1822, surge a necessidade

de estabelecer uma ordem jurídica nacional. A primeira Constituição

brasileira, outorgada em 25 de março de 1824 pelo Imperador Dom Pedro I,

dividiu o país em províncias, cujos presidentes eram nomeados pelo próprio

monarca. A estrutura básica da Carta Política era centralizadora, prevendo,

inclusive, a existência do poder moderador, cuja função era regular os

demais poderes.

Apesar de terem sido enviadas cópias dos textos aos Municípios para

darem sugestões que a ela seriam acrescentadas, a Constituição não perdera

seu caráter autoritário. Naquele momento, apesar da ainda maior vastidão

Page 10: AUTONOMIA FEDERATIVA DOS ESTADOS E MUNICÍPIOS NA REGULAÇÃO ...

9

territorial e de, ao longo do período colonial, as regiões do país terem

passado por diferentes processos de ocupação que, nas palavras de João

Camillo de Oliveira Torres, criavam “um colorido mosaico de condições

econômicas variando ao infinito”2, o Brasil assumiu a forma de um Estado

unitário. De fato, o país ainda não possuía uma unidade nacional, e uma

descentralização política poderia ensejar uma fragmentação de seu

território3.

A primeira Constituição do país refletia a genuína vocação

centralizadora do Brasil, herdada do período colonial. A verdade é que

nosso federalismo foi gradativamente sendo forjado ao lado do

desenvolvimento econômico4, e os consequentes anseios das elites regionais

em instituírem as suas próprias parcelas de poder político frente ao governo

central.

Com a abdicação do Imperador, o Brasil entrou no período regencial,

compreendido entre 1831 e 1840. As manifestações decorrentes da

abdicação, juntamente às pressões por mudanças fizeram com que as

disputas entre os grupos políticos, possuidores de diferentes interesses,

fossem acirradas. Em 1834 foi elaborado o Ato Adicional à Constituição de

1824, que visava conciliar as tendências políticas centralizadoras dos

moderados com as descentralizadoras. Esse instituto significou a primeira

ruptura com o modelo de Estado unitário até então vigente, pois, entre

outras medidas, criou as Assembleias Legislativas provinciais com amplos

2 TORRES, José Camilo de Oliveira. A formação do Federalismo no Brasil. São Paulo,

Companhia Editora Nacional, 1961, p. 184. 3 Como ensina José Murilo de Carvalho, “o Império, não se distanciando do arcabouço instaurado

no período de pré-independência, logrou, ao menos durante os anos de sua existência mais pujante,

manter coesa a elite, o que significou a redução dos conflitos internos entre os grupos dominantes

e a neutralização da possibilidade de eclosão de revoltas mais amplas na sociedade”.

CARVALHO, José Murilo de. A Constituição da Ordem: a elite política imperial. Teatro das

sombras: a política imperial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p.40 apud OLIVEIRA,

Ricardo Victalino de. Federalismo assimétrico brasileiro. Belo Horizonte: Arraes Editora, 2012,

p. 148. 4 Uma ressalva é necessária, já que nem todas as regiões do país que receberam autonomia política

passaram por desenvolvimento gradativamente semelhante aos de outras. A economia brasileira é

geograficamente heterogênea, o que causa dúvidas, inclusive, acerca da viabilidade da existência

de algumas unidades federativas, seja quanto ao sustento de sua necessária máquina

administrativa, seja quanto à capacidade que possuem para a implementação de políticas públicas

atinentes às suas competências materiais.

Page 11: AUTONOMIA FEDERATIVA DOS ESTADOS E MUNICÍPIOS NA REGULAÇÃO ...

10

poderes, medida claramente descentralizadora, uma vez que cada província

poderia, a partir de então, criar leis próprias, além de conferir-lhes relativa

autonomia administrativa. Os governantes das províncias, no entanto, ainda

eram nomeados pelo governo central, assim como todo o aparato

administrativo do recém-criado Distrito Federal.

O instituto demonstrou-se uma transição entre a Carta outorgada em

1824 e o início da federação brasileira5. Algumas intentadas por

descentralização, como a Guerra Farroupilha, entre 1835 e 1845,

demonstravam a pouca efetividade do ato editado em meados dos anos 30.

Esse dispositivo, na verdade, traçava uma cooptação entre os interesses

conservadores e liberais, vez que impedia o chamado substitutivo Miranda

Ribeiro, de 1831, que pretendia transformar o Estado numa federação sob a

égide de uma monarquia constitucional. Com o fim do período regencial, a

experiência das assembleias provinciais salvaguardou às províncias um

grau menos restrito de autonomia, traduzindo-se o Ato adicional de 1834

numa concessão pragmática.

Hely Lopes de Meirelles adverte que, quanto aos Municípios, o Ato

adicional de 34 “enveredou pela descentralização, mas incorreu em igual

erro ao subordinar as municipalidades às Assembleias Legislativas

provinciais em questões de exclusivo interesse local”6. Mostra o autor que

fora um retrocesso, pois colocava as municipalidades em patamar inferior

aquele no qual se situava no curso dos séculos ao longo do período colonial.

O período regencial foi marcado por uma intensa instabilidade

política. Passadas suas rebeliões, os defensores da descentralização política

no início do Império converteram-se em adeptos da centralização, o que

deve ser atribuído a uma mudança na perspectiva econômica e política na

5 “Não se pode olvidar o precedente do ato de 1834 como genuíno prenúncio da sistematização

federativa do Estado brasileiro. Sua tênue e tímida eficácia prática não lhe retira a concretude

normativa nem o caráter de vitoriosa oposição ao sistema centralista emoldurado na Constituição

Política do Império do Brasil”. – FERREIRA, Gustavo Sampaio Telles. Federalismo

Constitucional e Reforma Federativa: Poder Local e Cidade-Estado. Rio de Janeiro: Editora

Lumen Juris, 2012, p. 8. 6 MEIRELLES, Hely Lopes. “Direito Municipal Brasileiro”. 15ª Edição. São Paulo: Malheiros

Editores, 2006. p. 48.

Page 12: AUTONOMIA FEDERATIVA DOS ESTADOS E MUNICÍPIOS NA REGULAÇÃO ...

11

classe dos latifundiários. No aspecto econômico, embora o território

nacional fosse de grandes dimensões, e o Nordeste passasse por período de

crise econômica, seus latifundiários conseguiram, aos poucos, chegar ao

controle do aparelho estatal. Do ponto de vista político, à medida que a elite

burocrática de origem portuguesa foi sendo substituída pela brasileira, a

aristocracia foi deixando de temer que a independência pudesse estar

ameaçada. Essa conjuntura propiciou um retrocesso em relação à autonomia

das províncias, cuja expressão jurídica foi a Lei nº 105 de 1840 (Lei

Interpretativa do Ato Adicional de 1834), editada ao tempo da regência da

Araújo Lima.

Em meio ao retrocesso centralizador, também não sobreviveu o

governo regencial, pois liberais temiam a demasiada retomada de poder

político ao governo central. Foi formado o “Clube da Maioridade”, que

associava defensores da imediata condução do Imperador Dom Pedro II ao

trono, com vistas a estancar as medidas centralizadoras.

Com a coroação do jovem monarca, pode-se dizer que houve uma

vitória dos liberais, embora durante todo o Segundo Reinado a forma de

Estado assumida fosse a unitária, sem descentralização do poder político. A

partir da década de 1870, os movimentos republicanos começam a ganhar

mais forma, e em 1873 é criado o Partido Republicano Paulista. A verdade

é o que o centro do republicanismo já não se encontrava no Rio de Janeiro,

pois tinha migrado para São Paulo, mais especificadamente para o interior

do Estado, onde os cafeicultores possuíam a maior parte da riqueza, como

destacam Claudio Vicentino e GianpaoloDorigo:

“o poder econômico dos cafeicultores paulistas não encontrava contrapartida na

política, uma vez que o Império era excessivamente centralizado no Rio de Janeiro.

A elite burocrática imperial era proveniente de outras áreas do país (Nordeste,

Baixada Fluminense), portanto desvinculada dos interesses ligados à moderna

cafeicultura do Oeste paulista. Assim, surgia um descompasso entre a

modernização e o imobilismo burocrático do governo imperial”.7

7 DORIGO, Gianpaolo; VICENTINO, Cláudio. História do Brasil. São Paulo: Editora Scipione,

2004, p. 261.

Page 13: AUTONOMIA FEDERATIVA DOS ESTADOS E MUNICÍPIOS NA REGULAÇÃO ...

12

No mesmo sentido, Ricardo Victalino de Oliveira:

“O unitarismo manteve-se vigoroso enquanto houve identificação entre economia e

participação política. Entretanto, como consequência do deslocamento do centro

dinâmico da economia do país, nos anos posteriores a 1850, observou-se a

instauração do desequilíbrio entre o poder econômico e o poder político. Esse fator

foi decisivo para que surgissem árduos conflitos entre as elites dirigentes e para o

fortalecimento da aspiração federalista no seio dos atores responsáveis pela

manipulação do poder ideológico”8.

A forma de governo monárquica há tempos já vinha se desgastando.

Fatores somados, como os custos da Guerra do Paraguai, o fim da

escravidão, sendo esse tipo de mão-de-obra predominantemente utilizada

pelos cafeicultores fluminenses, os mais ligados à Corte, e a crescente ânsia

das elites locais pela descentralização política colocaram em xeque o

modelo do centralismo. Houve uma mudança no pensamento que

sustentava o Império brasileiro como o garantidor da coesão nacional para

“a ideia de que a integridade nacional dependeria em demasia do êxito a

ser alcançado no processo de fragmentação do poder”9.

Em 1889 eclodiu a República e, com ela, a necessidade de uma nova

ordem jurídica, que refletisse a então configuração social e os anseios

daqueles que defendiam a troca de regime. Em 1891 foi promulgada uma

nova Constituição, que transformou o Brasil numa república federativa,

com um governo central e 20 Estados membros. Cada Estado teria grande

dose de autonomia10

, podendo até mesmo manter Forças Armadas próprias.

Essa autonomia era inclusive fiscal, pois os Estados estavam autorizados a

instituir impostos (Art. 9º). Não somente o nome do país, que se passou a

chamar Estados Unidos do Brasil, mas também sua forma de Estado foi

uma inspiração norte-americana, já queo modelo deEstado federal é

inaugurado na Constituição norte-americana de 1787. De acordo com

Manuel García Pelayo, tal Estado respondeu às necessidades práticas, haja

8 OLIVEIRA, Ricardo Victalino de. Op. cit., p. 148.

9 Ibid. p 148.

10 A capacidade de auto-organização dos Estados-membros conferida pela primeira Carta

Republicana jamais lhes foi concedida por regimes constitucionais posteriores. Para se ter ideia,

poderiam, inclusive, adotar Legislativo bicameral, abrindo a possibilidade para a existência de

Senados estaduais, assim como ocorre nos Estados Unidos da América.

Page 14: AUTONOMIA FEDERATIVA DOS ESTADOS E MUNICÍPIOS NA REGULAÇÃO ...

13

vista que "se tratava de buscar uma fórmula que fizesse compatíveis a

existência dos Estados individuais com a de um poder dotado de faculdades

para bastar-se por si mesmo, no concernente à esfera de suas funções"11

.

No que pese a devida diferenciação entre o federalismo vivenciado

nos Estados Unidos da América e o brasileiro, fato comum é que tal forma

de Estado teve e tem como razão de ser a capacidade de dirimir conflitos

entre agentes políticos heterogêneos, principalmente em Estados que

possuem territórios tão grandes a ponto de possibilitar diferenciações

regionais gritantes, e a necessidade comum que esses diferentes grupos

possuem de manter uma coesão. Os dois países possuem contexto histórico

profundamente distinto, e seus federalismos partem de pontos divergentes.

Enquanto nos EUA as treze colônias soberanas constituíam uma

confederação e caminharam a constituir um Estado federal, ou seja, um

movimento centrípeto, no Brasil diversos fatores, sobretudo a preocupação

pós-independência em evitar esfacelamento do território nacional, levaram

a uma centralização do poder político, de forma que a criação de entes

federados representa claramente um movimento centrífugo, também

chamado de federalismo por desagregação.

Reside na histórica tendência centralista e no referido processo de

desagregação a dificuldade em conceder aos entes federados competências

legislativas e materiais que até hoje emperra o desenvolvimento do

federalismo no Brasil. A primeira Constituição republicana, no entanto, foi

bem longe, e deu aos Estados as mais amplas competências, chegando a

delegar-lhes poder legislativo acerca do direito processual civil. A opção

feita era claramente por um federalismo dual, fixando competências

estaduais e federais que não se confundiam.

O resultado teórico demonstrou-se uma cópia fiel12

do modelo norte-

americano13

, tanto por sua dualidade, como pela simetria, tanto na

11

GARCIA-PELAYO, Manuel. Derecho Constitucional Comparado,.3º Edição. Madrid: Revista

de Occidente, 1953, p. 215 apud OLIVEIRA, Ricardo Victalino de. Op. cit., p. 23. 12

Diz-se cópia quanto à estrutura da Carta brasileira, pois a União concentrou mais competências

legislativas e administrativas se comparada à Constituição norte-americana.

Page 15: AUTONOMIA FEDERATIVA DOS ESTADOS E MUNICÍPIOS NA REGULAÇÃO ...

14

representação do Senado14

, quanto na igualdade de competências

concedidas, independentemente de qual fosse a unidade federativa. A

verdade foi que o brado por descentralização oriundo de Estados mais fortes

ecoou com seus efeitos Brasil adentro, esquecendo-se que “a fixação de

competências constitucionais é, sem dúvida, ponto de reconhecida

significância de todo o regime federativo, entretanto, o federalismo, como

fenômeno político-jurídico, abarca dimensões muito maiores”15

.

O que ocorreu durante a República Velha tem como lógica as

inovações jurídicas de caráter dogmático16

que nela surgiram. O direito

estava a serviço de oligarquias regionais que sustentavam o governo central,

em troca de uma carta branca na utilização do poder político em seus

territórios. Tal mecanismo era a chamada “Política dos governadores”, e

demonstrava claramente a ausência de essência democrática no federalismo

brasileiro em sua primeira formação, bem como a impossibilidade que

alguns Estados possuíam no exercício de sua autonomia. Vale destacar os

consoantes ensinamentos de Ricardo Victalino de Oliveira e Gustavo

Sampaio Telles Ferreira, respectivamente:

13

“Assim como a transformação da Monarquia em República foi o produto da convergência de

interesses que, essencialmente, eram diversos e muitas vezes contraditórios entre si, a questão do

federalismo também é controvertida, havendo quem afirme que a forma federativa foi adotada

porque, nas circunstâncias, era a opção natural e óbvia, enquanto outros sustentam seu caráter

artificial, desligado da realidade, dizendo que a sua adoção no Brasil não passou de cópia servil do

modelo estadunidense”. DALLARI, Dalmo de Abreu. República e Federação no Brasil. 20 anos

da constituição cidadã: Cadernos Adenauer IX (2008), nº1. Rio de Janeiro: Fundação Konrad

Adenauer. página 45. 14

Manuel Gonçalves Ferreira Filho esclarece que, “sem dúvida, foi a Federação americana o

modelo seguido. Era este certamente o que mais próximo estava de nossas condições. Esta

inspiração claramente se manifesta pela consagração da igualdade absoluta entre Estados-

membros, de que resulta a simetria na representação do Senado, nas competências, na repartição

de fontes tributárias, bem como pela rigorosa separação das esferas, da União, de um lado, dos

Estados, de outro, como é típico do federalismo dualista então consagrado na América do Norte”.

FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Aspectos do Direito Constitucional Contemporâneo. São

Paulo: Saraiva, 2003, p.174. 15

OLIVEIRA, Ricardo Victalino de. Op. cit., p. 198. 16

Vale aqui relembrar os ensinamentos de Ferdinand Lassalle sobre os fatores reais de poder e os

limites impostos ao Direito por essa realidade: “os problemas constitucionais não são problemas

de direito, mas do poder; a verdadeira Constituição de um país somente tem por base os fatores

reais e efetivos do poder que naquele país regem, e as Constituições escritas não têm valor nem

são duráveis a não ser que exprimam fielmente os fatores do poder que imperam na realidade

social: eis aí os critérios fundamentais que devemos sempre lembrar”. LASSALLE, Ferdinand.

Que é uma Constituição?. Porto Alegre: Villa Martha, 1980, p. 73.

Page 16: AUTONOMIA FEDERATIVA DOS ESTADOS E MUNICÍPIOS NA REGULAÇÃO ...

15

A autonomia política era mera declaração constitucional, inexistindo, em termos

práticos, quase que para todos os Estados-membros, os quais dependiam do

frequente auxílio do Tesouro Federal. Ademais, recorrer à ajuda da União, durante

a vigência da República Velha, significava acatar automaticamente os interesses

manifestados por aqueles dois Estados que exerciam domínio na política do país,

num sistema que ficou conhecido como “o bloco do café com leite”17

“Se, por um lado, achava-se na descentralização vertical a fonte inspiradora do

paradigma constitucional republicano brasileiro, dando-se às unidades da

Federação autonomia jamais experimentada, tinha-se, em outra face, inconteste

predomínio das elites agrárias do Sudeste no Poder Executivo Federal, com

revalidação dos vícios do unitarismo do Século XIX. A chamada política do café

com leite traía as próprias bases teóricas do movimento de 15 de novembro de

1889, repristinava por ele veementemente combatidas e que prevaleceram durante o

regime monárquico também por ele derrubado”18

.

Quanto aos Municípios, a Constituição de 1891 não reservava

tratamento especial. Apenas preconizava em seu artigo 68: “Os Estados

organizar-se-ão de forma que fique assegurada a autonomia dos

Municípios, em tudo quanto respeite ao seu particular interesse”. Dessa

forma, foi bastante variável a forma pela qual os Estados dispensaram

tratamento aos Municípios. Pretendia-se manter a essência do federalismo

dual, cabendo ao Estado-membro a regulação acerca da autonomia

municipal.

No fim da República Velha, ficou demonstrado que, apesar dos

ideários federalistas terem sido uma grande bandeira contra o governo

monárquico, a sua instalação no período republicano não serviu

efetivamente a um propósito democrático. O que houve foi um grande

fortalecimento de oligarquias regionais. O desgaste do modelo levou à

Reforma Constitucional de 1926, que por sua vez retornou a um

centralismo, vez que reconduziu à União competências até então da alçada

estadual.

Esgotado o modelo de sustentação da República Velha, a chegada de

Vargas ao poder, em 1930, é apoiada por oligarquias dissidentes que não se

sentiam prestigiadas pelo governo central. O golpe foi visto com bons olhos

em Estados nos quais os serviços de competência regional não eram bem

prestados por seus governantes. Foi editada a Lei de Organização do

17

OLIVEIRA, Ricardo Victalino de. Op. Cit., p. 153. 18

FERREIRA, Gustavo Sampaio Telles. Op. Cit., p. 19.

Page 17: AUTONOMIA FEDERATIVA DOS ESTADOS E MUNICÍPIOS NA REGULAÇÃO ...

16

Governo Provisório, datada de 11 de novembro de 1930, que permitia ao

presidente nomear interventores aos governos estaduais. Esse foi um dos

motivos para que eclodisse em São Paulo a Revolta Constitucionalista de

1932.

Em 1934 é promulgada uma nova constituição. Embora houvesse na

constituinte um consenso pelo federalismo, a autonomia dos Estados foi

reduzida, ampliando as tarefas legislativas da União. Além disso, o

unicameralismo funcional foi introduzido ao Legislativo Federal, colocando

o Senado como órgão auxiliar da Câmara dos Deputados19

.

Outra mudança de grande relevância foi na combinação de divisão

de competências. A entrada em cena da segunda fase do constitucionalismo,

com os direitos sociais, levou ao aparecimento, no cenário nacional, do

federalismo cooperativo, em que os entes federados passaram a partilhar

competências comuns com vistas a melhorar os serviços públicos prestados.

Da mesma forma, a nova Carta também conseguiu, através da prestação

positiva de auxílios aos Estados que necessitassem, diminuir a

intransigência com que o modelo federativo fora tratado em sua fundação,

respeitando as diferenças regionais. No que concerne aos Municípios,

limitava a autoridade estadual e ampliava a municipal. Instituiu tributos

para a formação do orçamento municipal capaz de atender aos interesses e

demandas locais.

A Carta promulgada em 1934 dura pouco tempo. Com a

decretação do Estado Novo, em 1937 é outorgada a chamada “Constituição

Polaca”, por ter inspiração na Constituição da Polônia, de 23 de abril de

1935, e nas ideias nazifascistas de Hitler e Mussolini. Previa poderes

altamente concentrados no executivo federal.

No tocante às relações federativas, textualmente dava aos Estados-

membros autonomia para instituir suas próprias constituições e as leis pelas

19

Artigo 88 da Carta de 1934: “Ao Senado Federal, nos termos dos artigos 90, 91 e 92, incumbe

promover a coordenação dos poderes federais entre si, manter a continuidade administrativa, velar

pela Constituição, colaborar na feitura de leis e praticar os demais atos de sua competência”.

Artigo 92, I: compete ao Senado Federal:, I, colaborar com a Câmara dos Deputados na elaboração

de leis sobre:...”

Page 18: AUTONOMIA FEDERATIVA DOS ESTADOS E MUNICÍPIOS NA REGULAÇÃO ...

17

quais seriam regidos. No entanto, o fato era que o Estado-Novo dispunha de

instrumentos ditatoriais que iam muito além da permissão jurídica para tal,

e isso favorecia uma restrição muito forte à autonomia federativa. O

Decreto-Lei nº 1.20220

, datado de 8 de abril e 1939, estabeleceu regência

aos Estados e Municípios até que fossem aprovadas as suas Constituições,

sem prazo para que tais trabalhos tivessem fim, além de regular os regimes

de servidores públicos dos demais entes. O grande problema estava no

Parágrafo Único do art. 1º da Constituição polaca, que previa que as

Constituições estaduais só seriam outorgadas após o plebiscito sobre o texto

da Carta Federal. Como o decreto presidencial a convocar tal plebiscito

nunca foi editado, todas as Constituições estaduais não puderam ter vida.

Além da nomeação de interventores nos Estados, apesar de terem

os Municípios competência legislativa para instituir o imposto municipal

(art. 26), os governadores estavam autorizados a nomear os prefeitos. Ou

seja, estava completamente suprimida, na prática, a capacidade de

autogoverno dos entes federados, vez que o presidente da república

nomeava os interventores e, por esses, eram nomeados os prefeitos dos

Municípios. Ou seja, a forma de Estado federal era meramente nominativa,

não existindo, na realidade, qualquer autonomia federativa.

Findo o Estado Novo, a Constituição de 1946 restabeleceu a

federação, com uma melhor distribuição de competências entre os entes

políticos, que, no entanto, não chegaram a recuperar o grau de autonomia

que possuíam antes do golpe de 1930. A quarta Carta Política republicana

ensaiou uma ruptura com o federalismo dual, como ensina Gustavo

Sampaio Telles Ferreira:

“Embora o parágrafo primeiro do art. 1º se restringisse a definir a União como ente

integrado pelos Estados e pelo Distrito Federal, foram as municipalidades, por não

poucas passagens, mencionadas em posição de proeminência mostra do prestígio

alcançado pelo poder local na organização estatal brasileira”.(...) “De fato, a

fixação da autonomia municipal como cláusula limitadora dos Estados-membros no

estabelecimento de suas Constituições aliou-se aos desígnios do interesse local e

20

A vigência do decreto 1.202 protraiu-se até 1943, quando foi introduzido o decreto 5.511, com

alterações sobre autonomia dos Estados e Municípios, discriminando melhor suas competências.

Page 19: AUTONOMIA FEDERATIVA DOS ESTADOS E MUNICÍPIOS NA REGULAÇÃO ...

18

serviu de impedimento a possíveis e pretensos ensaios centralistas de nível

estadual”21

.

No mesmo sentido, Walter Costa Porto, comentando texto do

Professor Miguel Reale:

“Em texto de 1960, o professor Miguel Reale afirma que a Constituição de 1946

havia introduzido uma novidade na vida federativa brasileira ao outorgar um

quadro de competência originária aos Municípios, que deixavam, desse modo, de

ter sua autonomia inteiramente regulada pelos Estados. A federação passava, assim,

de ‘dualista’ a ‘tridimensional’, pelo acréscimo dos Municípios aos Estados e à

União, antes considerados os dois únicos elementos constitutivos da federação”22

.

Ainda sobre tal tendência municipalista, Pontes de Miranda afirma

que “a Constituição de 1946, sem ir até onde deveria ter ido, restaurou a

autonomia municipal e deu nova oportunidade à intensa política

municipalista”23

.

O país retornou, no ano de 1964, a um período não democrático,

fruto de um golpe militar. Em novembro do mesmo ano, com a EC nº 10, a

autoridade legislativa da União foi alargada, com o acréscimo do direito

agrário às suas competências privativas. A Emenda 12 inovou com regras

sobre hipóteses de nomeação de prefeitos por governadores de Territórios e

de Estados-membros, enquanto a Emenda 13 tratava da eleição dos chefes

executivos estaduais e locais.

Com a edição de sucessivos atos institucionais pelo governo militar,

a Constituição de 1946 já não mais se sustentava. Antes de fechado o

Congresso Nacional, foi proclamada a Constituição semântica de 1967, que

apesar de manter a forma federativa em seu texto, centralizou todo o poder

político nas mãos do Presidente da República, possuidor de iniciativa de

legislativa sobre qualquer matéria. A competência estadual era estritamente

residual, podendo exercer todos os poderes pela Constituição não vedados,

21

Ibid. p. 39.

22PORTO, Walter Costa.O Federalismo no Brasil. Arquivos do Ministério da Justiça, Ano 46, n.

181. Brasília: Ministério da Justiça, 1993 – Janeiro/Junho 1993, página 12 apud FERREIRA,

Gustavo Sampaio Telles. Op. Cit., p. 39.

23 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários à Constituição de 1946. 3ª

Edição (revista e aumentada) – Tomo II – Rio de Janeiro: Editor Borsoi, 1960, página 256.apud

FERREIRA, Gustavo Sampaio Telles. Op. Cit., p. 39.

Page 20: AUTONOMIA FEDERATIVA DOS ESTADOS E MUNICÍPIOS NA REGULAÇÃO ...

19

e reservava aos governadores a nomeação de prefeitos de capitais e

Municípios estratégicos, ou seja, uma clara exterminação da capacidade de

autogoverno de tais Municípios. Nesse sentido:

“A nova Lei Fundamental fazia revalidar a concentração de poderes em torno da

esfera governamental da União, restringida sensivelmente a autonomia dos Estados

e Municípios. Muito embora seu artigo primeiro dispusesse pela opção federativa”

(...) “Mesmo que assente a tradição centralizadora consolidada no transcurso da

história brasileira, a leitura integral do texto então elaborado deixava inequívoca a

acentuação desta tendência”24

A Lei Fundamental do período ditatorial também trouxe em seu

artigo 13, III, regra segundo a qual os Estados e Municípios deveriam

adotar as mesmas regras de processo legislativo nela contidas – regra da

simetria. Tal regra não foi repetida na Constituição de 1988, mas a

jurisprudência parece decidir em estado de inércia, aplicando decisões

referentes ao atual processo legislativo sem que haja um dispositivo

constitucional que legitime tamanha interferência na autonomia dos

membros da federação.

Os anos de chumbo foram endurecendo e, em 1969, é editada

a EC nº 1 à Constituição de 1967, considerada por muitos autores como

uma nova Constituição, e que enxugou ainda mais a autonomia federativa.

Dispôs que seriam realizadas eleições indiretas para governadores em 1970.

A experiência constitucional brasileira demonstrou, como dito

anteriormente, uma forte tendência ao centralismo. Em certos períodos, isso

ficou evidente, com a real supressão da autonomia federativa no território

nacional, e, não por coincidência, em períodos nos quais a máquina estatal

não era movida por ideais democráticos. O próximo passo na jornada

constitucional, a atual Constituição, promulgada em 1988, modifica ainda

mais as feições do federalismo brasileiro.

Muito influenciada pelo contexto em que foi formulada, com as

grandes preocupações e pressões sociais em direcionar o país rumo a uma

via democrática, a Carta Política de 1988 reelabora a composição de nossa

24

FERREIRA, Gustavo Sampaio Telles. Op. Cit., p. 60.

Page 21: AUTONOMIA FEDERATIVA DOS ESTADOS E MUNICÍPIOS NA REGULAÇÃO ...

20

federação, incluindo nela os Municípios, e refaz a divisão de competências

administrativas e legislativas. Como abre espaço à descentralização do

poder político, consegue chegar um pouco mais perto daquilo que é, ao

mesmo tempo, fundamento e objetivo dos modelos de federação: formação

de governos democráticos.

Page 22: AUTONOMIA FEDERATIVA DOS ESTADOS E MUNICÍPIOS NA REGULAÇÃO ...

CAPÍTULO II

ATUAL PANORAMA DO FEDERALISMO BRASILEIRO

O objetivo neste capítulo é estudar os contornos do sistema

federativo brasileiro traçados pela atual Carta Política. Para isso, é essencial

entender a lógica da forma de Estado federativa, especificamente no Brasil,

mas não apenas nele. É fundamental entender o porquê da escolha pela

descentralização política, suas consequências – e aí se incluem os

benefícios aferidos -, e as eventuais dificuldades oriundas de uma má

elaboração desse sistema.

Primeiramente, é mister elucidar que não é o propósito de uma

federação criar qualquer tipo de desagregação ou distanciamento entre seus

membros. Muito pelo contrário. A escolha federativa é aquela que

justamente tenta conciliar a convivência de diferenças e semelhanças, de

forma que o custo-benefício para as entidades autônomas seja positivo. Nas

palavras de Pablo A. Ramella, “o princípio fundamental do federalismo é

que esse regime não aspira nem a fundir, nem a separar, mas a articular, a

guiar”25

.

As experiências estrangeiras têm demonstrado como o Estado federal

pode ser um instrumento a evitar a secessão em alguns Estados. Um

exemplo é o Canadá, que adota o modelo de federalismo assimétrico tendo

em vista as demandas por autonomia de Quebec. Essa província tem

estatuto jurídico diferenciado das demais regiões de seu país. Esse

mecanismo é de cunho isonômico, pois permite que possa dialogar melhor

com as variantes que a tornam tão diferente.

25

RAMELLA, Pablo A. Replanteo del Federalismo. Buenos Aires: Depalma, 1971, p.27 apud

OLIVEIRA, Ricardo Victalino de. Op. Cit., p. 23.

Page 23: AUTONOMIA FEDERATIVA DOS ESTADOS E MUNICÍPIOS NA REGULAÇÃO ...

22

O federalismo assume diferentes feições em cada Estado no qual é

adotado, não possuindo uma fórmula única, e “deve ser compreendido

como princípio fundamental político, consubstanciado na liberdade de

formação unificadora de totalidades políticas e diferentes”26

. Nas palavras

de Ricardo Victalino de Oliveira, é o objetivo de uma federação:

“que as partes se complementem (...), de forma que a soma dos valores

comungados pelos componentes do conjunto traduza-se em comandos

informadores das expectativas que motivaram a criação da organização estatal. (...)

A ordem federal institucionalizada deve ter como missão primeira fazer com que a

hegemonia do poder central possa coexistir com diversidade advinda das unidades

federadas”27

.

No Brasil, o caminho ao modelo foi feito em direção contrária à

maioria dos exemplos atuais de federação. Como já explanado na parte

histórica, o Império brasileiro, sob a forma unitária, logrou êxito em manter

o território em sua integralidade, evitando seu esfacelamento. O federalismo

brasileiro formou-se por desagregação, a partir da ânsia das elites regionais

em participarem do poder político ou receberem parcela dele para que

pudessem desenvolver seus interesses, sobretudo os econômicos, sem

interferência do governo central naquilo que tangia à esfera local.

Obviamente, a dimensão continental do território brasileiro é o grande fator

que deu azo a tal acontecimento.

O processo de descentralização do poder político no Brasil não tem

suas raízes fincadas em diferenças culturais, étnicas e religiosas, como é o

caso do Canadá. Logo, há de ser feita uma pergunta: se o federalismo

brasileiro, a priori, não possui suas bases em diferenças étnicas, culturais ou

religiosas, e deixando de lado os motores que a ele deram impulso, como a

necessidade de certas oligarquias em participarem da política nacional, qual

é a sua real necessidade? No que pode o pacto federativo, ainda nas

26

HESSE, Konrad. El Estado Federal Unitario: Revista de Derecho Constitucinal. Barueri:

Manole, 2005 apud OLIVEIRA, Ricardo Victalino de. Op. Cit., p. 33. 27

OLIVEIRA, Ricardo Victalino de. Op. Cit., p. 29.

Page 24: AUTONOMIA FEDERATIVA DOS ESTADOS E MUNICÍPIOS NA REGULAÇÃO ...

23

palavras de Pablo A. Ramella, guiar a execução de tarefas esperadas pelos

cidadãos de seus entes?

A afirmação histórica feita há pouco fazia muito sentido no cenário

brasileiro pós-proclamação da República. As diferentes regiões do país

passaram por transformações, sobretudo econômicas, e encontramos

variações culturais que não são pequenas. Além da questão territorial, os

efeitos do tempo ajudam a clarear o acerto na opção federalista para o

Brasil28

, pois destaca as diferentes necessidades que as diferentes regiões

passaram a ter29

. Apesar de o federalismo não ter sido necessário para

sustentar línguas e crenças diferentes dentro das fronteiras do Estado

brasileiro, o desenvolvimento se deu e continua a existir de forma diversa

em cada lugar, as diferenças culturais criam pensamentos coletivos

diversos, e é primordial que cada população possa optar por qual tipo de

governo formará, como será organizado o seu poder político, etc.

A nova Carta Política, proclamada em 1988, por conta do período

que a precedeu e dos novos anseios e desafios que se faziam (e ainda se

fazem) presente na sociedade brasileira, e nesses termos chamada de

Constituição-Resposta por Paulo Gustavo Gonet Branco, assume extensão

analítica e caráter programático, incorporando como dever do Estado vários

direitos sociais, além dos direitos negativos de cunho liberal. A partir de um

compromisso com a democracia, a atual Constituição enxergou a promessa

democratizante do modelo federalista, mais necessário ainda num território

de tamanha extensão.

Para tanto, "a fixação de competências constitucionais é, sem

dúvida, ponto de reconhecida significância de todo o regime federativo”30

.

28

O federalismo de 1891 pode ser considerado muito mais um produto do fisiologismo do que o

juridicamente instituído e faticamente vivenciado da atualidade. No entanto, o modelo simétrico

por ele assumido, incluindo nesse ponto a paridade representativa dos Estados-membros no

Senado Federal, somado à remanescência de algumas oligarquias regionais ainda colaboram para

que seja utilizado, em alguns casos, como um instrumento a práticas não republicanas.

29 Comentando o direcionamento que o poder central provoca frente aos entes federados, Ricardo

Victalino de Oliveira observa que “o que se sabe é que o absoluto descuido das próprias

disparidades territoriais não é o caminho para que um Estado federalizado alcance a solidificação e

o aperfeiçoamento de seu pacto federativo”. OLIVEIRA, Ricardo Victalino de. Op. Cit., p. 22.

30 Ricardo Victalino de Oliveira, página 198.

Page 25: AUTONOMIA FEDERATIVA DOS ESTADOS E MUNICÍPIOS NA REGULAÇÃO ...

24

Quanto a isso, cabe fazer uma crítica a interferências (ou pobres

concessões) que a Constituição Federal faz na autonomia dos Estados e

Municípios. Mesmo em períodos nos quais é possível falar-se na existência

de entes federados, a concessão de autonomia, na experiência brasileira, foi

tratada de forma muito semelhante a uma mera desconcentração vertical da

Administração Pública.31

Basta uma rápida análise dos dispositivos

constitucionais disciplinadores da divisão de competências federativas,

ponto de extrema significância no regime federativo, para percebermos a

clara residualidade guardada (ou não) aos Estados-membros, em específico

o Art. 25, §1º, que trata de suas competências materiais, e o art.24, §§1º a

4º, que trata de sua competência legislativa residual.

A negativa de transferir aos Estados e Municípios a responsabilidade

por tarefas que tendem a ser por eles melhor executadas traduz um

problema no arranjo federativo, e também propicia o desencontro à

proposta democratizante da Constituição de 1988, já que o direito deve

servir como instrumento às metas políticas do Estado. Nesse sentido está o

comentário de Carl Schmitt ao art. 127 da Constituição de Weimar:

“Pertence ao espírito da garantia institucional da administração autônoma do

Município, que certos traços típicos – feitos no desenvolvimento histórico

característicos essenciais – devem ser protegidos, por este modo e garantia, contra

uma remoção levada a cabo pelo legislador ordinário. Em consequência, não tem o

legislador mão livre no que se refere à organização e ao círculo material de eficácia

dos Municípios nem tampouco tocante à organização da fiscalização do Estado, se

é que a garantia ainda tem, a final de contas, conteúdo”.32

31 O professor Paulo Bonavides, ao comentar os modelos autonomistas municipais, chega a negar

legitimidade às Constituições que não concedem aos Municípios a competência para exercerem

em nome próprio as funções que historicamente lhes pertence. Quando a divisão de competências

constitucionais mostra-se deficitária, não concedendo aos Estados e Municípios atuação naquelas

esferas para as quais possuem vocações, por via transversa, há uma negativa do constituinte em

reconhecer a importância autonômica desses entes. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito

Constitucional. 28ª Edição. São Paulo: Malheiros Editores. 2013, p. 364.

32 “Es liegt im Sinne der institutionellen Garantie der Selbstverwaltung, dass gewissetypische

Merkmale, wie sie sich in der geschichtlichen Entwicklung als charakteristich und wesentlich

herausgebildet haben, durch diese Art und Garantie vor einer Beisentigung durch den einfachen

Gesetzgeber geschutzt werden sollen. Infolgedessenhat der Gesetzgeber weder hinsichtlich der

Organisation noch hinsichtlich des gegenstandlichen Wirkungskreise der Gemeinden noch endlich

hinsichtlich der Gestaltung uberhaupt noch einen Inhalt haben soll“. SCHMITT, Carl.

Freiheitsrechte und instutionelle Garantien der Reichsverfassung‘‘ (1931), in

Verfassungrechtliche Aufsatze, p. 140, apud BONAVIDES, Paulo, Op. Cit., p. 367.

Page 26: AUTONOMIA FEDERATIVA DOS ESTADOS E MUNICÍPIOS NA REGULAÇÃO ...

25

Também peca o texto constitucional ao diminuir em muito a

capacidade de auto-organização dos entes federados. Como os governos

não centrais possuem o dever de executar tarefas, é essencial que estejam

inseridos dentro de uma organização que possa se autodeterminar. Além de

preconizar a forma de organização, como o legislativo unicameral,

existência de Tribunais de Contas, entre outros, alcança até mesmo o

número de membros dos parlamentos estaduais e municipais (arts. 27 e 29,

IV)33

. Tais características apresentam contradição com o texto

constitucional, porque, ao mesmo tempo que ele tenta conferir aos Estados-

membros e Municípios maior grau de autonomia, , não são poucas as

restrições quanto à auto-organização desses entes.

A grande inovação democrática talvez tenha sido colocar os

Municípios como entes federados, ao lado dos Estados e da União, como

preconizam os artigos 1º e 18 de nossa Lei Fundamental, o que lhe rendeu o

apelido de “Constituição municipalista”. Essa terceira esfera de autonomia

faz com que a federação brasileira assuma condição diferenciada de todas

as demais federações do mundo, rompendo até mesmo com sua histórica

tradição dual34

. Quanto à autonomia municipal, ensina o professor Paulo

Bonavides:

“(...) no Brasil, com a explicitação feita na Carta de 1988, a autonomia municipal

alcança uma dignidade federativa jamais lograda no direito positivo das

Constituições antecedentes Traz o art. 29, por sua vez, um considerável acréscimo

de institucionalização, em apoio à concretude do novo modelo federativo

33 Quanto aos Municípios, a EC 58/2009 permitiu que determinassem um número exato de

vereadores a comporem suas Câmaras Municipais, desde que dentro dos balizares fornecidos,

conforme o contingente populacional. O que o constituinte fez foi conceder um “monitorado”

poder de auto-organização aos Municípios, de forma que não fixassem de forma excessiva o

número de vereadores, o que poderia causar um impacto orçamentário muito forte, já que cada

membro do parlamento municipal precisa do mínimo de estrutura para exercer seu mandato, ou um

número tão mínimo a ponto de nulificar a representatividade parlamentar, principalmente a de

minorias. É bom notar que o mesmo não é feito em relação aos Estados-membros, cujos números

de assentos nas Assembleias Legislativas é unicamente adstrito a um critério populacional, de

acordo com o número de deputados federais.

34 Hely Lopes de Meirelles comenta que, até a Lei Fundamental de 1946, o Município tinha

apenas autonomia nominal, não possuindo poder de auto-organização. O administrativista ainda

atesta que coube à atual Constituição, embora em alguns períodos os Municípios já tivessem tido

determinadas experiências autonômicas, promover a integração do Município à estrutura da

Federação, assegurando-lhe, inclusive, competência privativas, além do aumento da competência

para instituir tributos. MEIRELLES, Hely Lopes. Op. Cit., p. 30 - 47.

Page 27: AUTONOMIA FEDERATIVA DOS ESTADOS E MUNICÍPIOS NA REGULAÇÃO ...

26

estabelecido pelo art. 18, visto que determina seja o Município regido por lei

orgânica, votada por quorum qualificado, de dois terços dos membros da Câmara

Municipal – requisito formal que faz daquele estatuto um diploma dotado de grau

de rigidez análogo ao que possuem as cartas constitucionais”35

.

Na mesma esteira, Ricardo Victalino de Oliveira comenta a escolha

do constituinte pela autonomia municipal em detrimento ao centralismo:

“A atual Carta Constitucional foi a que inaugurou o Município como ente federal,

superando as conhecidas posições refratárias à autonomia municipal, garantindo-se

aos entes locais liberdade política para atender suas exigências e interesses

próprios"36

A concessão de autonomia aos Municípios torna clara a proposta

democratizante. “Liberdade e democracia exercem inigualável influxo

sobre a maior ou menor amplitude da autonomia municipal”,37

. Como o

Município é o ente político mais próximo dos cidadãos, inevitavelmente, é a

primeira porta de acesso ao poder político instituído. Consoante sublinha

José Alfredo de Oliveira Baracho:

“o municipalismo fortemente prestigiado na ordem constitucional em vigor,

permitiu o estreitamente dos laços entre Estado e comunidade, facilitando, por

consequência, o planejamento e a operacionalização de políticas sociais ao

propiciar maior interação entre o poder central e os poderes periféricos”.

É imprescindível dizer que os entes, na Federação brasileira, são

autônomos, e a cada um foi atribuído um leque de competências, sejam elas

privativas ou comuns. Dessa forma, não há espaço para falar-se em

sobreposição de um ente sobre o outro. Ou seja, ao conferir autonomia aos

Municípios, a Constituição da República automaticamente impede a

indevida interferência de normas estatais seja sobre a auto-organização ou

qualquer outro aspecto inerente à autonomia municipal.

No julgamento da ADIN 3549/GO, a Min. Carmen Lúcia destacou

em seu voto que a Constituição da República, do mesmo modo que

assegura autonomia aos Estados-membros impõe-lhes limitações,

35 BONAVIDES, Paulo. Op., Cit., p. 357.

36 OLIVEIRA, Ricardo Victalino de. Op. Cit., p. 173.

37 BONAVIDES, Paulo. Op. Cit., p. 358.

Page 28: AUTONOMIA FEDERATIVA DOS ESTADOS E MUNICÍPIOS NA REGULAÇÃO ...

27

destacando “a esfera mínima de ingerência na organização dos Municípios,

já que a esses também foi reservada autonomia política, o que é ditado pela

garantia de competência própria”. Tratava-se de julgamento em que norma

da Constituição do Estado de Goiás mitigava a auto-organização dos

Municípios integrantes de tal Estado-membro. Na doutrina, expõe o

professor Paulo Bonavides, claro defensor do municipalismo:

“ (...) a invasão do Estado-membro na área de competência do Município

representa no caso a cassação da autonomia, que não é mera descentralização

nem dádiva de um poder unitário, mas espécie de self government, com toda a

força em que se possa ele fundar escorado na mais tradicional das garantias

institucionais produzidas constitucionalmente pelos sistemas federativos em

proveito das comunidades: a autonomia municipal”38

Quanto às competências legislativas dos Municípios, que são as de

interesse do presente trabalho, estão enumeradas no artigo 30: “legislar

sobre assuntos de interesse local” (inciso I), “suplementar a legislação

federal e a estadual no que couber” (inciso II) e “instituir e arrecadar

tributos de sua competência (...)” (inciso III). Apesar das competências

legislativas municipais terem tomado forma no texto da atual Constituição,

com o consequente aumento de importância do trabalho realizado nas

Câmaras de Vereadores, ainda continuam um tanto quanto restritas39

. A

União ainda concentra, em detrimento também dos Estados-membros, a

maior (e mais importante) parte das matérias legislativas.

Essas competências municipais foram traçadas de forma a

possibilitar que todos os Municípios as apliquem, dentro da lógica de um

federalismo normativamente simétrico, e talvez por isso tenham vindo de

38 BONAVIDES, Paulo. Op. Cit., p. 365.

39 Comentando tais competências legislativas municipais, Gustavo Sampaio Telles Ferreira faz

uma comparação às competências estaduais e observa a ausência de ineditismo: “Muito embora a

disposição no inciso primeiro já tenha relativa procedência nos modelos constitucionais anteriores,

(...) a sua correlação com o tratamento residual das competências dos Estados-membros (parágrafo

primeiro do artigo 25) reforça a autoridade do poder local no quadro federativo. (...) No inciso

segundo do artigo 30, a competência para suplementação do ordenamento federal e estadual no

que couber alcançou vida prática mais abrangente do que se supunha. Consoante averbado no item

pertinente às competências concorrentes, a natureza essencialmente local de certas matérias

inclusas no artigo 24 leva ao Município muito do que seria feito pelo legislador federal”.

FERREIRA. Gustavo Sampaio Telles. Op. Cit., p. 106.

Page 29: AUTONOMIA FEDERATIVA DOS ESTADOS E MUNICÍPIOS NA REGULAÇÃO ...

28

forma tão restrita. Paulo Bonavides, em crítica à humilde delegação feita

pelo constituinte federal, defende a existência de um poder pré-estatal das

comunidades (populações municipais), que podem exercê-lo contra o

Estado nacional. Assim, as constituições devem assegurar aos Municípios

“aqueles funções que possuem ou exercem em caráter próprio, e se referem

a interesses exclusivamente comunitários”40

.

Ainda quanto à simetria jurídica de nosso federalismo,

representa um grande óbice para o efetivo gozo de autonomia41

por muitos

Municípios – e até mesmo Estados-membros –, principalmente no que

concerne à capacidade de execução de competências materiais. É

extremamente delicado (e talvez uma má opção política) dar mesma

roupagem jurídica a Municípios que apresentam diferenças tão gritantes.

Segundo observou Aires Barreto, “deveríamos ao menos classificá-los,

separá-los, segundo suas grandes vocações. (...) Essas peculiaridades,

especificidades, não permitem um tratamento idêntico, genérico, sem

resvalar injustiças”42

.

40

BONAVIDES, Paulo. Op. Cit., p. 361. 41

Ricardo Victalino de Oliveira defende que “o pensamento teórico da assimetria venha a ser

desenvolvido e concretamente empregado como garante da autonomia municipal, mesmo diante da

situação de extrema carência vivenciada por muitos Municípios no Brasil”. OLIVEIRA, Ricardo

Victalino de. Op. Cit., p. 179.

42

BARRETO, Aires. Os Municípios na nova Constituição Brasileira. In MARTINS, Ives Granda

(Org.). A Constituição Brasileira de 1988: Interpretações. Rio de Janeiro: Forense Universitária,

1988, p. 81. Nesse sentido, José Afonso da Silva: “"O Sistema municipal brasileiro carece de

profunda reformulação, com organização diferente à vista de fatores, inclusive com a reintegração,

em outros, de Municípios claramente inviáveis. Talvez seja aconselhável criar tipos diversos de

organização municipal, tendo em vista, por exemplo, suas características de rurais, industriais e de

capitais, com tratamento constitucional diferenciado, inclusive do ponto de vista tributário".

Constituinte: Caminhando para uma nova ordem constitucional, in Estudos Legislativos, ano 3, nº

especial, 2009. p.32 apud OLIVEIRA, Ricardo Victalino de, Op. Cit., p. 176.

Page 30: AUTONOMIA FEDERATIVA DOS ESTADOS E MUNICÍPIOS NA REGULAÇÃO ...

CAPÍTULO III

NORMAS DE SIMETRIA VS. AUTONOMIA FEDERATIVA

Também é importante, no presente trabalho, analisar de que forma é

instituído o poder de auto-organização dos Estados-membros e dos

Municípios, de forma a compreender seus limites. A instituição dessa

funcionalidade da autonomia federativa passa pelo que a doutrina chama de

Poder Constituinte Decorrente, que dá origem às Constituições Estaduais e

às Leis Orgânicas Municipais. Em que se fundamenta esse poder dos entes

descentralizados no Estado federal?

O conceito de Poder Constituinte Originário surgiu na Revolução

Francesa, que, em suma, tinha como justificativa substituir o Antigo

Regime por um novo, entregando o poder à nação. Esse poder constituinte

do povo, como está previsto no Art. 1º, Parágrafo Único, da CF, é um

corolário da ideia lógica de democracia popular, e não é criado por qualquer

norma jurídica. Ou seja, não é criado pelo Direito, pois é ele quem cria o

Direito, dando origem à Constituição.

Por ser o fundador da ordem jurídica, o poder constituinte é

ilimitado, podendo definir suas diretrizes sem necessidade de respeito a

quaisquer parâmetros43

. No caso brasileiro, e no que diz respeito

especificamente ao tema deste trabalho, a Constituição institui o Estado

43

Há uma divergência interessante entre jusnaturalistas e positivistas. O ponto de concórdia é que

a nova Constituição pode revogar qualquer norma do direito positivo anterior, inclusive as

constitucionais. A divergência está na existência ou não de um direito suprapositivo, porque os

jusnaturalistas acreditam nesse direito, o direito natural (conjunto de princípios de justiça não

escrito que estaria acima de todo o direito positivo, inclusive das constituições). Para essa corrente,

o direito natural é um referencial de validade para o direito positivo, ou seja, é inválida a norma de

direito positivo que viole as normas de direito natural. Por isso, o poder constituinte originário é

limitado para os jusnaturalistas. Já os positivistas consideram que não há limite de qualquer

natureza, seja ele positivo ou suprapositivo, o que faz com que seja um poder realmente ilimitado.

Para os jusnaturalistas, é um poder de direito; para os positivistas, um poder puramente de fato, ou

político.

Page 31: AUTONOMIA FEDERATIVA DOS ESTADOS E MUNICÍPIOS NA REGULAÇÃO ...

30

federal, como anteriormente já explanado. Em seu artigo 2544

, diz que

osEstados-membros serão regidos pela Constituições Estaduais, e, da

mesma forma, em seu artigo 29, prevê que os Municípios serão regidos por

Leis Orgânicas. Tais previsões constitucionais instrumentalizam o disposto

em seu artigo 18, que é a autonomia desses entes. A capacidade de auto-

organização é uma funcionalidade da autonomia federativa, sem a qual o

seu exercício torna-se impossível. Nesse sentido, ensina o professor Paulo

Gustavo Gonet Branco:

“A autonomia política dos Estados-membros ganha mais notado relevo por abranger

também a capacidade de autoconstituição. Cada Estado-membro tem o poder de dotar-se de

uma Constituição, por ele mesmo concebida, sujeitada embora a certas diretrizes impostas

pela Constituição Federal, já que o Estado-membro não é soberano. É característico do

Estado Federal que essa atribuição dos Estados-membros de legislar não se resuma a uma

mera concessão da União, traduzindo, antes, um direito que a União não pode, a seu talante,

subtrair das entidades federadas; deve corresponder a um direito previsto na Constituição

Federal”45

.

Assim, alguns pontos devem ser destacados. O fundamento de

validade da autonomia dos entes parciais do Estado é a própria Constituição

Federal, e podem eles se autodeterminarem, respeitadas as competências

que a eles foram incumbidas. Dessa forma, podem esses entes, através de

seu poder de auto-organização, criar órgãos político-administrativos, desde

que obedecidos os limites impostos pelo Constituinte originário. E que

limites são esses? De que forma são aferidos?

Primeiramente, é essencial esclarecer que, em toda federação, os

entes autônomos guardam algum nível de semelhança com o modelo

federal. Como observa Fábio Macedo Soares Condeixa, “em toda

federação, as unidades constituintes devem guardar alguma similitude com

o poder central, do contrário, estaria ela fadada à desagregação ou à

inoperância”46

. Ou seja, a Constituição do país, ao mesmo tempo em que

44

O artigo 11 do ADCT dispõe sobre o prazo de edição das Constituições Estaduais e das Leis

Orgânicas. 45

MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gonet. Curso de

Direito Constitucional. 5ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 930. 46

CONDEIXA, Fábio de Macedo Soares Pires. Princípio da Simetria na Federação Brasileira:

Supremo Tribunal Federal VS. Legislativos Estaduais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 75.

Page 32: AUTONOMIA FEDERATIVA DOS ESTADOS E MUNICÍPIOS NA REGULAÇÃO ...

31

concede autonomia às entidades políticas descentralizadas, determina-lhes

que, em certas matérias, suas próprias disposições sejam transportadas aos

textos regionais. Assim sendo, de acordo com o maior ou menor intensidade

de similitude que as Constituições do Estado venham a guardar com a

Constituição Federal, diz-se que o federalismo é muito ou pouco simétrico.

Aqui, vale advertir que o significado dessa simetria não é o mesmo daquele

abordado nos capítulos anteriores, quando o termo denotava diferenciação

entre os regimes jurídicos dados a entes federados dentro do mesmo

“patamar”, sustentado na concessão de competências administrativas e

legislativas diversas para cada um deles47

.

O sentido de simetria que agora passa a ser abordado refere-se à

necessidade de espelhar nos textos constitucionais dos entes parciais certas

disposições contidas na Carta Magna federal. Esse mecanismo

inevitavelmente levará a uma padronização dos textos de todos os entes que

estejam dentro de um mesmo patamar. O federalismo dos Estados Unidos

da América, por exemplo, é considerado pouco simétrico, pois, naquele

país, o texto constitucional impõe aos Estados-membros o respeito a um

restrito rol de regras e princípios, como separação de poderes e regime

democrático. Os Estados norte-americanos podem, até mesmo, optar entre

possuir um legislativo unicameral ou bicameral. No Brasil, o nível de

simetria é muito mais intenso. A Constituição Federal prevê a criação dos

tribunais de contas e ministérios públicos estaduais, além de determinar que

os legislativos estaduais sejam unicamerais.

47

Distanciando-se da diferença terminológica citada, também pode o federalismo ser

desmembrado em duas dimensões: plano material e plano formal, embora sejam indissociáveis,

por ser o plano material o que indubitavelmente irá formar o plano formal. Por plano material,

entendem-se as diferenciações regionais, culturais e econômicas que podem ser encontradas

quando comparada a realidade dos diferentes entes federados. Dessa forma, o federalismo

brasileiro pode ser classificado como materialmente assimétrico. Por plano formal, entende-se a

estrutura jurídico-normativa que regula a organização de tais entes, ou seja, se as competências

constitucionais destinadas aos Estados-membros são iguais para todos eles, e se as regras

previamente definidas e que limitam a organização desses entes são intensas ou brandas. Nesse

sentido, o federalismo brasileiro é formalmente simétrico.

Page 33: AUTONOMIA FEDERATIVA DOS ESTADOS E MUNICÍPIOS NA REGULAÇÃO ...

32

Constata-se, portanto, que a intensidade de simetria está ligada, de

maneira inversamente proporcional, ao nível de autonomia federativa48

.

Nas palavras de Cristiano Franco, a simetria “consiste na obrigatoriedade

de as unidades parciais do Estado federal observarem um determinado

modelo, um determinado padrão na sua organização e no exercício de seu

poder local”49

. Essa obrigatoriedade, entretanto, não é algo absoluto.

Entender que a utilização excessiva do princípio da simetria tende a

degenerar o modelo federativo talvez seja o grande cerne do presente

trabalho. No Estado federal, os entes são autônomos, e a simetria é o limite

dessa autonomia. Ou seja, para tudo aquilo que a Constituição não prever o

emprego de simetria, prevalece a autonomia dos entes. Nesse sentido,

Fábio de Macedo Soares Pires Condeixa, ao comentar o artigo 25 da

Constituição, diz tratar-se de uma cláusula de autonomia inerente ao pacto

federativo, para a qual o limite seria justamente a simetria.

No entanto, em que plano a simetria se apresenta? É empregada

através de regras ou de princípios? Primeiramente, é essencial fazer uma

diferenciação entre as duas espécies de normas. As regras fazem parte do

plano descritivo, e são aplicadas no sistema de subsunção, ou tudo ou nada,

o que leva a uma menor margem de atividade interpretativa (no caso,

também a legiferante do constituinte decorrente). Já os princípios, situam-se

no plano normativo, utilizam linguagem mais aberta e seus conflitos

normativos resolvem-se por meio de ponderação, exigindo ação integradora

48

Vale transcrever comentário de Fábio de Macedo Soares Pires Condeixa sobre o tema: “se o

grau de simetria for muito elevado – se tomadas as unidades constituintes como um todo -,

certamente seremos levados a crer que não houve autonomia dos entes para se organizar, o que

obviamente redundaria na não-eficácia do princípio federativo em si. A simetria, por si só, não

compromete o princípio federativo, todavia, quando a simetria é excessivamente imposta às

unidades constituintes – como acontece no federalismo brasileiro -, compromete-se a sua

autonomia organizacional, que é a pedra de toque do federalismo, mesmo que essa imposição

advenha do afã de impedir a desagregação ou a inoperância por incompatibilidade. Portanto, ao

aplicar o princípio da simetria para impor que um ente parcial se organize ou se abstenha de se

organizar de tal ou qual forma, deve-se ter cautela, sob pena de jogar o bebê fora junto com a água

do banho”. In “Princípio da Simetria na Federação Brasileira: Supremo Tribunal Federal VS.

Legislativos Estaduais”. CONDEIXA, Fábio de Macedo Soares Pires. Op. Cit., p. 76. 49

FRANCO, Cristiano. Princípio Federativo e Mudança Constitucional: Limites e Possibilidades

na Constituição Brasileira de 1988. 2003. p 120.

Page 34: AUTONOMIA FEDERATIVA DOS ESTADOS E MUNICÍPIOS NA REGULAÇÃO ...

33

do intérprete. As normas de simetria apresentam-se através das duas

espécies.

Quando a Constituição determina que os Estados-membros sigam o

sistema presidencialista (art. 28), ou fixa o número de deputados estaduais

nas assembleias legislativas (art. 27), aplicando-lhes, remissivamente, as

regras referentes aos deputados federais acerca de algumas matérias (art.

27, §1º), e até mesmo quando limita o teto do funcionalismo público

estadual (art. 37, XI), entre outros exemplos, lança mão de regras

previamente definidas e que necessariamente deverão ser observadas.

Nesses casos, não está aberta à opção do Poder Constituinte Decorrente

uma deliberalidade, ou seja, a limitação que é feita na capacidade de

autoconstituição está previamente delimitada50

. No mesmo diapasão, o art.

19 da Constituição expõe vedações expressas aos Estados e Municípios.

Quanto ao fenômeno da sucessão do Chefe do Poder Executivo,

regulamentado no âmbito federal pelo artigo 81, §1º, não consta, no texto

da Lei Fundamental brasileira, nenhuma regra que determine aos Estados-

membros ou aos Municípios qualquer procedimento a ser seguido ou que

seja vedado. Por esse motivo, não são as regras de simetria uma dificuldade

maior a este trabalho.

Em seguida, faz-se necessária a análise dos princípios

constitucionais de necessária reprodução. Vimos que Fábio Candeixa

entende ser o art. 25 da Constituição a fundamentação legal para algo que

denomina “cláusula de autonomia federativa”. Na redação do dispositivo,

está ressalvado, na segunda parte, que tal autonomia deve observar os

princípios da Constituição. Logo, é automática a pergunta: que princípios

são esses?

Em se tratando de princípios que regem as relações federativas, e

que se impõem aos Estados e Municípios como normas de simetria, têm sua

50

A doutrina costuma denominar essas regras de princípios constitucionais estabelecidos, por

estabelecerem, previamente, as disposições que estarão contidas nos diplomas dos entes parciais.

Tal classificação não está sendo utilizada, pois, como exposto logo acima, não possuem tal

dispositivos constitucionais a natureza de princípios.

Page 35: AUTONOMIA FEDERATIVA DOS ESTADOS E MUNICÍPIOS NA REGULAÇÃO ...

34

razão de ser na manutenção da coesão dentro do sistema federativo. Dessa

forma, caso sejam desrespeitados, o sistema jurídico necessariamente prevê

um mecanismo de sanar, ou, ao menos, fazer cessar a conduta dos Estados e

Municípios que seja incompatível com a ordem jurídica. O instituto jurídico

que se presta a esse papel é a intervenção federal, regulada no art. 34 da

Carta Política brasileira. Indo adiante, o inciso VII do referido dispositivo

elenca alguns princípios constitucionais que, se desrespeitados, dão azo à

intervenção federal, sendo eles: forma republicana, sistema representativo e

regime democrático, direitos da pessoa humana, autonomia municipal,

prestação de contas da administração pública e aplicação do mínimo

exigido da receita estadual nos serviços de saúde e educação. Lançando

mão de uma interpretação sistemática, podemos perceber que são esses os

princípios mencionados pelo constituinte no art. 25, os limitadores da

autonomia federativa, tanto que, se desrespeitados, fica o ente parcial

passível de sofrer intervenção51

. A doutrina convencionou chamá-los de

princípios constitucionais sensíveis. A partir de agora, neste trabalho, o

estudo desses princípios assume grande importância, pois cabe a investigar

se o artigo 81, §1º, CF, encontra-se resguardado por um desses princípios

sensíveis, devendo, portanto, ser observado por Estados e Municípios nas

suas organizações.

Antes, no entanto, é importante esclarecer o efeito prático que

possuem esses princípios. Na prática, limitam a autonomia federativa por

justamente forçarem os entes parciais a copiarem em suas Constituições

certos dispositivos que estão na Carta federal52

. Não se trata de uma

51

Vale mencionar que, de acordo com o caput dos artigos 34 e 35, a União não pode intervir

diretamente em Município localizado na circunscrição de um estado-membro. Apenas pode fazê-lo

em relação aos próprios Estados-membros e aos Municípios localizados em territórios federais.

Ainda de acordo com o artigo 35, cabe aos Estados-membros intervir em Municípios constituintes

de seus territórios. 52

As regras de simetria, ou, como a doutrina as denomina, princípios constitucionais

estabelecidos, determinam descritivamente quais as regra a serem incorporadas, podendo ou não

guardar semelhança com o modelo federal. Um exemplo é quanto aos Tribunais de Contas dos

Estados, quando o art. 75, PU, prevê que sejam compostos por sete conselheiros. No caso do TCU

da União, há nove ministros. Embora os Tribunais de Contas dos Estados sejam regidos pelos

mesmos princípios que o da União, e todos exerçam funções análogas, há uma clara diferença de

escolha feita pelo constituinte. Outro exemplo, talvez ainda mais robusto, é quanto à possibilidade

Page 36: AUTONOMIA FEDERATIVA DOS ESTADOS E MUNICÍPIOS NA REGULAÇÃO ...

35

deliberalidade feita pelos Estados-membros, como em alguns casos em que

podem assim proceder. No caso das normas resguardadas pelos princípios

constitucionais sensíveis, há de se falar em observação compulsória, e são

chamadas de normas de reprodução obrigatória. O Ministro Sepúlveda

Pertence, no julgamento da reclamação nº 37053

, distinguiu as normas

constitucionais estaduais reproduzidas entre as normas de imitação e

normas de absorção compulsória. Assim discorre sobre as primeiras:

Essas normas de imitação – na consagrada terminologia de Raul Machado Horta (A

Autonomia do Estado-membro, 1964 – p. 193) = , que, no dizer do notável escritor,

apenas “exprimem a cópia de técnicas ou institutos, por influência ou sugestão exercida

pelo modelo superior” - , são frutos da autonomia do Estado-membro, da qual deriva a sua

validade e, por isso, para todos os efeitos, são normas constitucionais estaduais (negritos no

original).

Já quanto às normas que ele denomina de absorção compulsória,

também conhecidas como de reprodução obrigatória, aduz o seguinte:

Essas normas de reprodução (...) – e que talvez fosse melhor chamar de normas federais de

absorção compulsória –, não são, sob o prima jurídico, preceitos estaduais e,

consequentemente, a violação delas não apenas pelo constituinte local, mas também por

todas as instancias locais de criação ou execução normativas, traduz ofensa à Constituição

Federal – da qual, e unicamente da qual, deriva a vinculação direta e imediata do seu

conteúdo de todos os órgãos do ordenamento estadual.

Como grande exemplo a ser citado, estão algumas normas do

processo legislativo, em específico aquelas que garantem ao Chefe do

Executivo a iniciativa privativa para determinados assuntos, nos moldes da

CRFB. O STF tem entendimento pacífico no sentido de que, resguardar ao

Chefe do Poder Executivo determinadas iniciativas legislativas é resguardar

das Constituições dos Estados preverem sabatina para os chefes dos Ministérios Públicos

estaduais. A Constituição federal prevê que o Procurador-Geral da República seja sabatinado pelo

Senado Federal. Seguindo tal modelo, e apesar de não haver previsão no texto federal, alguns

Estados-membros inseriram em suas Constituições previsões análogas quanto ao Procurador-Geral

de Justiça. A questão foi levada ao Supremo Tribunal Federal através das ADIs 1.962/RO,

1.506/SE, 452/MT, 1.228-MC/AP e 2.319/PR. Apesar do silêncio da Lei Fundamental, o STF

entendeu que a regulação da matéria já estaria por ela esgotada, não cabendo nenhuma inovação

por parte dos Estados. Ou seja, entendeu que era uma regra de simetria diferente daquela referente

ao âmbito federal. 53

STF, Rcl 370/MT, Rel. Min. Octávio Gallotti, Brasília, Julgamento 08/04/1992.

Page 37: AUTONOMIA FEDERATIVA DOS ESTADOS E MUNICÍPIOS NA REGULAÇÃO ...

36

ao poder Executivo a sua independência e a possibilidade de exercício de

suas atribuições54

.

Também há casos em que a jurisprudência criou verdadeiras

“simetrias jurisprudenciais”, lançando mão de interpretação restritiva da

autonomia dos entes federados. Algumas Constituições estaduais e até

mesmo Leis Orgânicas passaram a estipular prazos para que os

governadores e prefeitos, respectivamente, pudessem se ausentar do país. A

Constituição Federal dispõe que o Presidente da República necessita de

autorização do Congresso Nacional para permanecer fora do país por mais

de quinze dias. O STF entendeu que uma ausência de prazo mínimo, nesses

casos, seria inconstitucional por uma questão de simetria, já que a

Constituição da República estabelece um termo mínimo, e o contrário

infringiria a separação de poderes. Cabe aqui uma crítica ao julgado do

STF, muito mais por sua fundamentação do que por seu dispositivo. Poderia

o Tribunal ter-se valido do princípio da proporcionalidade, pela

desnecessidade em submeter o Chefe do Executivo local ao crivo do

respectivo parlamento para qualquer viagem internacional, o que atenta até

mesmo contra o a liberdade de locomoção. No entanto, o Tribunal preferiu

utilizar um argumento que restringe a autonomia dos entes federados, mas

54

Um dos precedentes nesse sentido foi o julgamento da ADIN 1.060-MC/RS, DJ de 23/09/1994::

“Constitucional. Estado-membro. Processo Legislativo. I. - A jurisprudência do Supremo Tribunal

Federal e no sentido da observância compulsória pelos Estados-membros das regras básicas do

processo legislativo federal, como, por exemplo, daquelas que dizem respeito a iniciativa

reservada (C.F., art. 61, par. 1.) e com os limites do poder de emenda parlamentar (C.F., art. 63).

Processo legislativo: modelo federal. Iniciativa legislativa reservada: aplicabilidade, em termos, ao

poder constituinte dos Estados-membros. 1. As regras básicas do processo legislativo federal são

de absorção compulsória pelos Estados-membros em tudo aquilo que diga respeito - como ocorre

às que enumeram casos de iniciativa legislativa reservada - ao princípio fundamental de

independência e harmonia dos poderes, como delineado na Constituição da República. 2. Essa

orientação - malgrado circunscrita em princípio ao regime dos poderes constituídos do Estado-

membro - é de aplicar- se em termos ao poder constituinte local, quando seu trato na Constituição

estadual traduza fraude ou obstrução antecipada ao jogo, na legislação ordinária, das regras básicas

do processo legislativo, a partir da área de iniciativa reservada do executivo ou do judiciário: é o

que se dá quando se eleva ao nível constitucional do Estado-membro assuntos miúdos do regime

jurídico dos servidores públicos, sem correspondência no modelo constitucional federal, a exemplo

do que sucede na espécie com a disciplina de licença especial e particularmente do direito á sua

conversão em dinheiro”.

Page 38: AUTONOMIA FEDERATIVA DOS ESTADOS E MUNICÍPIOS NA REGULAÇÃO ...

37

que não encontra lastros sólidos na separação de poderes. Quanto à simetria

criada pela exegese jurisprudencial, comenta muito bem Fábio Condeixa:

“essa simetria por construção judicial é resultado de uma petitioprincipiiem que incorre a

Suprema Corte. A Corte decide causas sobre a organização dos Estados federados impondo

a simetria sob o argumento de que a federação brasileira é do tipo simétrico, ao mesmo

tempo em que muito do caráter simétrico desta se deve às decisões do STF em favor da

simetria”55

.

E quanto à regulação da sucessão do Chefe do Poder Executivo nos

Estados e Municípios? Está afeta a algum princípio constitucional sensível,

devendo observar a CRFB, art. 81, §1º, ou possuem os entes federados

autonomia para regular a matéria? Trata-se o mencionado dispositivo de

regra de reprodução obrigatória na organização dos entes parciais? É o que

será analisado a seguir.

55

CONDEIXA, Fábio de Macedo Soares. Op. Cit., p. 80.

Page 39: AUTONOMIA FEDERATIVA DOS ESTADOS E MUNICÍPIOS NA REGULAÇÃO ...

CAPÍTULO IV

CRFB, ART. 81, §1º: NORMA DE REPRODUÇÃO

OBRIGATÓRIA?

Vistos os limites da autonomia federativa impostos pela simetria,

passemos à análise da possibilidade dos entes parciais regularem a sucessão

de seus respectivos governadores e prefeitos. De antemão, há de ser feita

uma diferenciação entre substituição e sucessão do cargo. Quando a

Constituição, nos artigos 78 e 79, regula a substituição do cargo de

Presidente da República, o faz em caráter temporário, e em razão de algum

impedimento daquele que, pela ordem estabelecida, deveria ocupar o cargo,

seja por questões de saúde ou viagem, por exemplo. No caso da sucessão, o

que ocorre é uma impossibilidade no cumprimento do mandato, uma saída

sem retorno. Ou seja, a sucessão é uma substituição permanente. Somente o

Vice-Presidente da República pode suceder o Presidente da República,

conforme redação do art. 79. Todas as demais autoridades que venham a

assumir a Presidência da República, o fazem em caráter temporário.

Portanto, quando se fala em sucessão do Chefe do Poder Executivo, estar-se

a tratar da impossibilidade permanente do Vice-Presidente e do Presidente

da República em darem continuidade aos seus mandatos eletivos, dizendo-

se, então, que há a vacância do cargo.

Seguindo com as aclarações, vale a pena fazer um adendo sobre as

hipóteses em que a vacância pode vir a ocorrer. Podemos citar a renúncia, o

impeachment – que é a cassação política feita em sede parlamentar –, as

cassações feitas pela justiça eleitoral, que atingem os dois membros da

chapa, casos de falecimento, entre outros. Todos esses casos têm levado

tanto o Tribunal Superior Eleitoral como o Supremo Tribunal Federal, em

julgamentos envolvendo a realização de eleições suplementares

extemporâneas, a decidir sobre a possibilidade de regulação diversa ao

Page 40: AUTONOMIA FEDERATIVA DOS ESTADOS E MUNICÍPIOS NA REGULAÇÃO ...

39

modelo federal. Como efeito prático da decisão está a realização de eleições

diretas ou indiretas para completarem mandatos já em curso.

Feitos tais esclarecimentos, passemos à análise da questão. Os que

sustentam a impossibilidade da matéria ser regulada por Estados e

Municípios argumentam que a participação popular é um preceito

constitucional sensível, e que a Constituição, no seu artigo 14, previu que a

soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto.

Dessa forma, somente o Poder Constituinte Originário pode inserir

exceções à cláusula do voto direto (esculpida no artigo 14, e que também é

arrolada como cláusula pétrea – art. 60, §4º, II), e essa exceção foi

exclusivamente prevista no art. art. 81, §1º56

. Para os casos de vacância nos

poderes executivos dos entes parciais, sendo a participação popular um

princípio constitucional sensível, e tendo o Poder Constituinte Originário a

exclusividade na previsão de eleições que não sejam diretas, devem os

Estados e Municípios, em suas Constituições, reproduzirem o disposto no

art. 81, §1º, inclusive no que tange ao tempo de mandato em que se darão as

eleições indiretas. Ou seja, a norma da Constituição Federal, por simetria, é

de reprodução obrigatória nas Constituições Estaduais e Leis Orgânicas

Municipais.

Um dos casos mais recentes julgados pelo Tribunal Superior

Eleitoral, ainda sobre as eleições de 2008, e que tem a capacidade de

demonstrar a divergência de posicionamento entre os então membros

56

Quando da promulgação da Constituição em 1988, o mandato presidencial era originariamente

de cinco anos. No entanto, em 1997, adveio a EC nº 16, que alterou o art. 82, diminuindo o prazo

para quatro anos, mas abrindo a possibilidade de uma reeleição subsequente. Essa emenda veio a

romper com toda a história constitucional republicana brasileira, pois, pela primeira vez, foi

possível no país a reeleição subsequente do Chefe do Poder Executivo. A redação do art. 81, §1º,

por sua vez, não foi por ela alterada. Ou seja, se antes o dispositivo regulava a hipótese de eleições

indiretas nos 2/5 finais do mandato, passou a fazê-lo sobre sua metade. Por isso, aqui vale uma

observação. No mesmo sentido da crítica feita pelos que defendem a impossibilidade de regulação

diversa ao art. 81, §1º, da CF. Como só o Poder Constituinte Originário teria a possibilidade de

instituir exceções à cláusula do voto direto, o que essa emenda fez, indiretamente, foi alargar o

período hipotético em que seriam possíveis eleições indiretas para o cargo de Presidente da

República. Dessa forma, cabe, talvez, indagar sobre a inconstitucionalidade de tal medida, pois a

norma constante do §1ºdo art. 81 deveria abranger os últimos 2/5 do mandato, e não sua metade.

No entanto, não é esse o objeto desse trabalho, e por essa questão não será esse assunto estudado

com profundidade.

Page 41: AUTONOMIA FEDERATIVA DOS ESTADOS E MUNICÍPIOS NA REGULAÇÃO ...

40

daquela Corte é o MS nº 539-74.2011.6.00.000/PB57

. No caso, questionava-

se uma resolução do TRE-PB, determinando a realização de eleição direta

no Município, vez que a vacância teria ocorrido antes da metade do

mandato58

. Sem comentar o dispositivo do julgado, o voto do relator,

Ministro Marco Aurélio Mello, demonstra os principais argumentos e vai de

encontro à posição que defende ser a norma emanada do art. 81, § 1º, um

preceito constitucional:

“(...) quando o preceito da Constituição Federal, artigo 81, § 1º - alude a eleição

indireta, alcança situação na qual a escolha dos novos representantes se faça

quando já em curso o segundo período do mandato. Tendo em vista que o espaço

de tempo de ação dos novos mandatários é inferior a dois anos, a máquina eleitoral

não deve ser acionada, optando-se pela feitura das eleições indiretas. (...)

Reconheço a simetria, o que, para mim, bastaria ante a disciplina similar quanto à

Presidência e à Vice-Presidência da República. Entendo que a regra do artigo 81 da

Constituição Federal é sensível, a ser adotada também pelos demais entes da

Federação. Como o Direito Eleitoral é uno no território brasileiro, não posso

imaginar que a espécie de escolha, de escrutínio, varie a depender da unidade

federada. Existe, ainda, outra motivação: viabilizar, inclusive, o implemento do

governo, sem a necessidade de conquistar a maioria na Casa Legislativa. Tendo em

conta que a eleição indireta é realizada pelo Legislativo, isso praticamente implica

o apoio nesse final de administração”.

O ilustre ministro, em seu voto, destaca alguns motivos para que a

matéria siga o modelo federal: (i) ser a norma do art. 81, § 1º, um preceito

constitucional de observação obrigatória pelos Estados e Municípios,

mencionando, ainda uma questão de proporcionalidade no lapso temporal

escolhido pelo legislador constituinte; (ii) a matéria regula a escolha de

quem irá ocupar cargos eletivos, o que regularmente ocorreria em eleições

ordinárias, e por isso é questão de matéria eleitoral, competência legislativa

da União (CRFB, art. 22, I); (iii) faz alusão ao sistema presidencialista, que

não precisa da Casa Legislativa para formar um governo, e deve ser

57

TSE, MS 539-74.2011.6.00.0000, DJ 9/06/2011, Rel. Min. Marco Aurélio, Rel. para acórdão

Min. Nancy Andrighi, Brasília, 9 de junho de 2011. I. O art. 81, §1º, da CF/88 não é de reprodução

obrigatória pelos entes municipais. Assim, compete à Lei Orgânica Municipal dispor acerca da

modalidade de eleição no caso de dupla vacância no Poder Executivo Municipal. 58

A jurisprudência ainda não tem entendimento pacificado se o momento em que ocorre a

vacância, nos casos de cassação dos mandatos eletivos pela justiça eleitoral, é o do

pronunciamento judicial, ou o de realização das eleições. O tema ainda será abordado neste estudo.

Page 42: AUTONOMIA FEDERATIVA DOS ESTADOS E MUNICÍPIOS NA REGULAÇÃO ...

41

observado na federação. Passaremos a comentar os pontos levantados no

voto relator.

Quanto à obrigatoriedade de reprodução do dispositivo, repousa no

fato de ser resguardado, por quem assim entende, sob a égide de preceitos

constitucionais sensíveis, mais especificamente os elencados no artigo 34,

VI, a, quais sejam, a forma republicana e o regime democrático. O que uma

interpretação sistemática do dispositivo com as regras de sucessão leva a

crer é a impossibilidade da ausência de qualquer processo de escolha, ou

seja, não podem, por exemplo, os Estados estabelecerem que, na ausência

do Vice-Governador, o Presidente da Assembleia Legislativa

automaticamente sucederia o cargo de Governador. Essa impossibilidade de

sucessão automática dos vice-governadores e dos vice-prefeitos tem

realmente o seu lastro no princípio republicano (CRFB, art. 1º, caput), do

qual a eletividade59

é um dos basilares. No caso do vice-governador,

quando eleito para tal cargo, tem como suas atribuições pré-estabelecidas a

sucessão do governador; isso, no entanto, não ocorre com o deputado

estadual que preside a Assembleia Legislativa, já que foi eleito para a

função parlamentar. O professor José Afonso da Silva ensina:

“Há que estabelecer (...) a situação que decorrer da inexistência concomitante de

Governador e Vice-Governador. Sabe-se que, em tal caso, o Presidente da

Assembleia ou, no impedimento deste, o Presidente do Tribunal de Justiça, será

chamado ao exercício do cargo, mas por quanto tempo? Pois, esses substitutos

eventuais não se transformam em Governador. São Presidentes no exercício da

governança. As Constituições estaduais sempre deram solução diversificada a essa

situação, umas prevendo nova eleição direta se a última vaga ocorresse nos

primeiros três anos de mandato governamental e eleição pela Assembleia de novo

Governador e Vice, completando o eleito, em qualquer caso, o mandato em curso;

outras estatuíam que haveria eleição popular para Governador e Vice, se a vaga se

desse nos três primeiros anos e, se no último ano, o substituto completaria o

período. A primeira hipótese estará mais de acordo com o atual modelo federal, que

não é obrigatório.”60

59

Inocêncio Mártires Coelho, ao comentar o princípio republicano, o decompõe em elementos

específicos, entre eles, a legitimação do poder político. Explica que, numa República, esse

processe, quanto aos cargos, empregos ou funções públicas passam, necessariamente, pela

observação de quatro características: eletividade, colegialidade, temporariedade e pluralidade.

MENDES, Gilmar Ferreira. COELHO, Inocêncio Mártires. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Op.

Cit., p. 212. 60

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 32ª Edição. São Paulo,

Malheiros, 2009. p. 627

Page 43: AUTONOMIA FEDERATIVA DOS ESTADOS E MUNICÍPIOS NA REGULAÇÃO ...

42

Na jurisprudência, o julgamento da ADI 2709/SE61

, Rel. Min.

Gilmar Mendes, demonstrou a necessidade de um processo eleitoral para a

escolha do sucessor de um Vice-Governador. A EC 28/2002 alterou a

Constituição do Estado de Sergipe, transformando o presidente da

Assembleia Legislativa e o presidente do Tribunal de Justiça em

automáticos sucessores do cargo de governador do Estado. No caso, o STF

entendeu pela possibilidade do Estado-membro regular o processo de

sucessão, mas reconheceu a inconstitucionalidade da norma por ferir o

princípio republicano

Porém, apesar da necessidade de um processo de escolha, não há

como concordar que, de alguma forma, o preceito constitucional obrigue os

entes federados a reproduzirem a norma do art. 81, §1º. Já foi demonstrado

que, apesar da necessária simetria presente em todos os sistemas federais,

sua aplicação demasiada tende a degenerar o modelo de federação, sob pena

de limitar além da conta a capacidade de auto-organização dos entes

federados. Dessa forma, a cláusula de autonomia federativa – esculpida na

CRFB, art. 25 – deve ser interpretada de forma ampliativa, somente

cobrando dos Estados e Municípios as limitações que a Constituição

Federal realmente lhes impõe. Nesse ponto, o que a Carta Magna brasileira

coloca como preceito constitucional é a temporariedade dos mandatos de

governadores e prefeitos, que deverão ser renovados a cada quatro anos,

conforme seus artigos 28 e 29, I. Ou seja, a norma de simetria a qual os

entes parciais estão adstritos refere-se à necessidade de, em intervalos de

quatro anos, renovarem, através de eleições diretas, as chefias dos Poderes

Executivos.

61

STF, ADI 2709/SE, Rel. Min. Gilmar Mendes, Brasília, 01/08/2006: “I. Emenda Constitucional

n° 28, que alterou o § 2º do art. 79 da Constituição do Estado de Sergipe, estabelecendo que, no

caso de vacância dos cargos de Governador e Vice-Governador do Estado, no último ano do

período governamental, serão sucessivamente chamados o Presidente da Assembleia Legislativa e

o Presidente do Tribunal de Justiça, para exercer o cargo de Governador. II. A norma impugnada

suprimiu a eleição indireta para Governador e Vice-Governador do Estado, realizada pela

Assembleia Legislativa em caso de dupla vacância desses cargos no último biênio do período de

governo. III. Afronta aos parâmetros constitucionais que determinam o preenchimento desses

cargos mediante eleição. IV. Ação julgada procedente”.

Page 44: AUTONOMIA FEDERATIVA DOS ESTADOS E MUNICÍPIOS NA REGULAÇÃO ...

43

Nesse ponto, é importante retornar à noção de legitimação do poder

político local, pois, já que no povo reside a soberania, mister é dar a ele

condições de implementar efetivamente o seu próprio autogoverno. Sem

sentido restaria essa funcionalidade autonômica se tais entes não pudessem

estabelecer as diretrizes de seus próprios governos, que são instituídos por

suas Constituições e Leis Orgânicas. Em momento algum a Lei

Fundamental estabelece que a norma do art. 81, §1º, é de observação

obrigatória; apenas limita a si mesma. A sucessão do Chefe do Poder

Executivo dentro do intervalo do mandato eletivo ordinário é matéria de

interesse local, e uma disposição diferente do art. 81, §1º, da CRFB feita

por algum ente federal nada mais é que um ato de poder político local. O

Ministro Celso de Mello, em brilhante voto no julgamento da ADI 1057-

MC/BA, expõe a questão com excelência62

:

“O processo de escolha do Governador e do Vice-Governador de Estado, para

mandato quadrienal, foi definido, em norma expressa, pela própria Constituição da

República. Esta, ao instituir modelo jurídico subordinante e limitador da esfera de

autonomia institucional dos Estados-membros, prescreveu – no que concerne à

eletividade, por sufrágio universal e por voto popular do Chefe do Poder Executivo

estadual – regra de observância compulsória por essas unidades regionais do Estado

federal brasileiro. (...) Na realidade, os Estados-membros acham-se vinculados, em

função de expressa determinação constitucional inscrita no art. 28, caput, in fine,

da Carta da República, ao modelo subordinante estabelecido pelo art. 77 da

Constituição Federal, que se aplica, no entanto, por força dessa cláusula de

extensão, apenas às eleições ordinárias e populares realizadas para a seleção de

Governador e de Vice-Governador de Estado, inexistindo no que concerne à

hipótese de escolha suplementar pelo próprio Legislativo, no caso excepcional da

dupla vacância, qualquer regramento constitucional que, limitando a autonomia

estadual, imponha a essa unidade da federação e sua integral submissão aos padrões

normativos federais. (...) o Estado da Bahia, embora podendo dispensar tratamento

normativo diferenciado ao tema, optou por seguir, em função de uma autônoma

deliberação, as diretrizes aplicáveis, à eleição congressual do Presidente e do Vice-

Presidente da República, no caso de ocorrência da dupla vacância desses altos

cargos na estrutura do Poder Executivo da União. (...) A escolha do Governador e

do Vice-Governador do Estado, quando ocorrida a dupla vacância na segunda

metade do período governamental, traduz uma iniludível prerrogativa da

Assembleia Legislativa outorgada pela Carta estadual com fundamento na

capacidade de autogoverno de que dispõe, com apoio na autonomia política que lhe

é conatural, essa unidade regional da federação. Essa prerrogativa jurídico-

institucional da Assembleia Legislativa, refletindo projeção da autonomia

assegurada aos Estados-membros pelo ordenamento constitucional, não se reduz,

em seu alcance e conteúdo, à dimensão conceitual de matéria eleitoral,

62

STF, ADI 1057-MC/BA, Rel. Min. Celso de Mello, Brasília, 20/04/1994.

Page 45: AUTONOMIA FEDERATIVA DOS ESTADOS E MUNICÍPIOS NA REGULAÇÃO ...

44

circunstância esta que, por revestir-se de relevo jurídico, pré-exclui, a meu juízo,

qualquer possibilidade de intervenção normativa da União federal na definição da

disciplina ritual desse processo escolha eminentemente política dos sucessores, por

um período administrativo meramente residual do Governador e do Vice-

governador de Estado. Na realidade, a escolha parlamentar dos novos mandatários

(...) veicula e exterioriza uma típica decisão de poder, cuja prática, superando o

campo do mero processo eleitoral, projeta-se na dimensão mais ampla do exercício,

pelo Estado-membro, da irredutível autonomia política de que dispõe em matéria de

organização dos poderes locais” (negritos no original).

Na apreciação da Medida Cautelar da ADIN 4.298/TO63

, (cujo

mérito ainda aguarda julgamento), o STF também entendeu pela

possibilidade dos Estados-membros regularem a sucessão do Chefe do

Poder Executivo, reconhecendo a não obrigatoriedade de reprodução do art.

81, §1º. Em seu voto, o Relator, Ministro Cezar Peluzo, tratou de, como já

vem sendo feito ao longo deste trabalho, advertir sobre a desnaturação do

modelo federalista quando da aplicação de excessiva e desnecessária das

normas de simetria, além de corroborar ao entendimento segundo o qual o

modelo federal não é compulsório:

“(...) Não é lícito, senão contrário à concepção federativa, jungir os Estados-

membros, sob o título vinculante da regra da simetria, a normas ou princípios da

Constituição da República cuja inaplicabilidade ou inobservância local não

implique contradições teóricas incompatíveis com a coerência sistemática do

ordenamento jurídico, com severos inconvenientes políticos ou graves dificuldades

práticas de qualquer ordem, nem com outra causa capaz de perturbar o equilíbrio

dos poderes ou a unidade nacional. A invocação da regra da simetria não pode, em

síntese, ser produto de uma decisão imotivada do intérprete”. “A reserva de lei

constante do art. 81, §1º, da Constituição Federal, que é nítida e especialíssima

exceção ao cânone do exercício direto do sufrágio, diz respeito tão só ao regime de

dupla vacância dos cargos de Presidente e do Vice-Presidente da República, e,

como tal, é da óbvia competência da União. E, considerados o desenho federativo e

a inaplicabilidade do princípio da simetria ao caso, compete aos Estados-membros

definir e regulamentar as normas de substituição do Governador e Vice-

Governador. De modo que, quando, como na espécie, tenha o constituinte estadual

reproduzido o preceito constitucional federal, a reserva de lei não pode deixar de se

referir à competência do próprio ente federado”.

O Ministro Marco Aurélio Mello, no mesmo julgado, e em seu voto,

já apresentou seu entendimento que viria a ser mantido no julgamento pelo

TSE do MS 539-74.2011.6.00.000/PB. Alega o magistrado que “o

63

STF, ADIN 4298-MC/TO, Rel. Min. Cezar Peluzo, Brasília, 07/10/2009. O plenário decidiu, por

maioria, indeferir o pedido de medida cautelar, vencido o Ministro Joaquim Barbosa, que a deferia

em parte, em relação ao dispositivo da lei que previa votação nominal aberta.

Page 46: AUTONOMIA FEDERATIVA DOS ESTADOS E MUNICÍPIOS NA REGULAÇÃO ...

45

afastamento da vontade popular se dá mediante preceito sensível – de

observação obrigatória nas duas outras esferas: estadual e municipal”. O

argumento do Ministro perde razão se pensarmos que, da mesma forma que

o ente federado pode optar pelo escrutínio indireto, também pode fazê-lo

pelo direto durante todo o período do mandato – o que não é feito nem

mesmo no modelo federal. Caso opte pelo escrutínio indireto, devemos

lembrar que o colégio eleitoral formado será por representantes que pelo

povo foram eleitos. Somado a isso, e utilizando uma interpretação

gramatical, a Constituição preceitua o sistema representativo e o regime

democrático. Dessa forma, o que é o sistema representativo senão aquele no

qual o exercício do poder é feito pelos mandatários do povo? É nesse

sentido que será feita a escolha pelos parlamentares: uma escolha política

dentro de um sistema representativo. Portanto, cabe ao ente federativo, no

exercício da sua capacidade de autoconstituição, fazer um juízo de

proporcionalidade entre um tipo ou outro de escrutínio.

Ainda é importante ressaltar que o sistema de eleição dos deputados

estaduais e vereadores é o proporcional, e por isso garante a representação

de minorias nas Casas Legislativas, abrindo possibilidade de atendimento

aos mais variados tipos de seguimentos sociais. Esse argumento também

pode ser utilizado para derrubar um dos motivos enumerados pelo Ministro

Marco Aurélio Mello, ainda no julgamento do MS 539-

74.2011.6.00.000/PB, para reconhecer a norma do art. 81, §1º, da

Constituição da República como de simetria. Argumenta o Ministro que a

eleição indireta tem como consequência a necessidade de maioria

legislativa para que haja a viabilidade do governo eleito, em clara alusão ao

princípio da separação de poderes típico do sistema presidencialista.

Primeiramente, a composição das Casas Legislativas tende a refletir os

posicionamentos político-ideológicos da sociedade, o que é propiciado

justamente pelo sistema representativo. Podem ter assento os defensores

dos animais, dos servidores públicos, dos policiais militares, dos direitos

dos homossexuais, dos direitos dos deficientes físicos, entre outros, e

Page 47: AUTONOMIA FEDERATIVA DOS ESTADOS E MUNICÍPIOS NA REGULAÇÃO ...

46

certamente essa heterocomposição legitima a forma indireta do escrutínio.

Além disso, especificamente em relação ao sistema presidencialista, que é

preceito sensível, não é de forma alguma atingido, vez que o Poder

Executivo continuará dispondo das mesmas prerrogativas se eleito

diretamente tivesse sido. Não há como fazer diferenciação entre a

independência de um governo eleito direta ou indiretamente. O que ocorre é

uma reunião em colégio eleitoral, cujo resultado, a priori – e pensar o

contrário seria uma incoerência – é o de eleger um governo que espelhe as

pretensões populares expressadas anteriormente nas eleições legislativas.

Passado isso, tal governo terá as mesmas dificuldades ou facilidades que

todos os governos possuem em formar sua base de sustentação parlamentar.

Já em relação à inconstitucionalidade formal, por ser o direito

eleitoral matéria de competência legislativa privativa da União (CRFB, art.

22, I), não parece gerar grandes conflitos. Claro que só o Congresso

Nacional pode legislar sobre direito eleitoral, e sobre esse assunto não

pairam dúvidas, por expressa e clara disposição do texto constitucional. No

entanto, a regulação da sucessão do Chefe do Poder Executivo pelos entes

federados, no exercício do seu poder de autoconstituição, não é

absolutamente exercer competência legislativa sobre direito eleitoral; é, na

verdade, exercício do poder que é intrínseco aos entes federados.

Claro que a matéria possui conotação político-eleitoral, mas não

versa sobre o direito eleitoral. A competência legislativa da União sobre

direito eleitoral já é abrangente, e refere-se às inelegibilidades, inscrição em

partidos políticos, e toda a sistemática que regule as eleições ordinárias. O

tema é consolidado na jurisprudência pátria, conforme precedente do STF já

mencionado, o julgamento da ADI 1057-MC/BA, relatado pelo Ministro

Celso de Mello, de cujo voto condutor consta:

“É irrecusável, de um lado, que a disciplina normativa pertinente a questões de

direito eleitoral insere-se na competência legislativa da União Federal. Essa

competência normativa, definida ratione materiae, decorre da regra inscrita no art.

22, inc. I, da Constituição da República, que atribui ao poder central competência

para legislar privativamente sobre direito eleitoral. Ocorre que, salvo melhor

Page 48: AUTONOMIA FEDERATIVA DOS ESTADOS E MUNICÍPIOS NA REGULAÇÃO ...

47

juízo, a escolha do Governador e do Vice-Governador de Estado, para efeito de

exercício residual do mandato político, na hipótese de dupla vacância esses cargos

executivos, subsume-se à noção de matéria político-administrativa que se acha

essencialmente sujeita, no que concerne à sua positivação formal, ao domínio

institucional reservado à atuação normativa do Estado-membro” (negritos no

original).

No mesmo julgamento, e nesse sentido, está o voto do Min. Carlos

Velloso:

“A questão a saber, primeiro que tudo, é se a lei referida é federal ou estadual. (...) estou à

vontade para afirmar que a lei, no caso, é estadual. É que, em tal caso, não se tem uma

lei materialmente eleitoral, vale dizer, uma lei de natureza eleitoral, dado que ela vai,

simplesmente, regular a sucessão do Chefe do Executivo, sucessão que chamaríamos de

extravagante. A lei, no caso, o Estado a edita com base na sua autonomia, que é a maior

das características da Federação. Classicamente, são traços característicos de uma

Federação, a repartição constitucional de competências entre as entidades políticas que

compõem a Federação e a participação da vontade parcial na vontade federal” (grifos no

original).

O mesmo posicionamento também foi adotado pelo Min. Paulo

Brossard: “Trata-se de um ato eleitoral, mas não se trata de direito

eleitoral;trata-se de eleição, mas não se trata de matéria eleitoral, n

sentido em que é versada pela Constituição Federal e pela lei ordinária, o

Código Eleitoral”. Na ADI 2709/SE, também já mencionada neste capítulo,

votou a Min. Carmen Lúcia: “estou inteiramente de acordo com o fato de

não se tratar de matéria eleitoral para os fins de competência da União”.

Embora não possuam natureza de direito eleitoral, o procedimento

de escolha dos sucessores dos Chefes do Poder Executivo, mesmo que

regulado pelos entes parciais, devem seguir, no entanto, as normas

Constitucionais referentes às chamadas condições de elegibilidades gerais,

constantes no art. 14, §§ 3º e 4º. Os direitos políticos são regulados pela

Constituição da República, e o seu mecanismo deverá automaticamente ser

seguido em eventuais de eleições indiretas feitas por Estados ou

Municípios. Também no julgamento da ADI nº 1057-MC, o STF formou

seu posicionamento sobre o assunto, conforme demonstrado no voto do

Min. Rel. Celso de Mello:

Page 49: AUTONOMIA FEDERATIVA DOS ESTADOS E MUNICÍPIOS NA REGULAÇÃO ...

48

“A circunstância de a lei estadual não haver feito menção expressa às demais

condições de elegibilidade, tais como a posse da cidadania (exercício pleno dos

direitos políticos), o alistamento como eleitor, a existência de domicílio eleitoral e a

filiação partidária dos candidatos, não significa que o ato legislativo tenha

exonerado esses mesmos candidatos dos requisitos em causa que incidem,

necessariamente, em função de expresso comando constitucional, sobre aqueles

que disputam qualquer mandato eletivo, não importando, sob esse aspecto, a

forma de provimento dos cargos em disputa” (grifos no original).

Ainda é válido discutir se os §§ 6º e 7º do art. 14 se aplicariam às

eleições indiretas. Isso porque, utilizando a interpretação teleológica, a

razão de tais dispositivos é impedir que aqueles que estejam no exercício do

poder utilizem a máquina administrativa comandada para influenciarem, de

alguma forma, o pleito eleitoral. No caso, por exemplo, de um prefeito que

queira participar de eleições indiretas à governança do Estado, parece não

ser aplicado o §6º, já que sua permanência no cargo não implicaria em

grandes transtornos como se estivesse disputando uma eleição direta, além

de ser menos provável a utilização da máquina administrativa para exercer

influência sobre o pleito, dado o caráter de imprevisibilidade na vacância do

cargo disputado.No tocante ao art. 16 da CRFB, que preconiza o princípio

da anterioridade eleitoral, não é aplicável às disposições feitas pelas

Constituições estaduais e Leis Orgânicas municipais. Esse princípio rege as

normas estritamente eleitorais.

Explanada a possibilidade de escolha do tipo de eleição que

resolverá a questão sucessória, o próximo capítulo tratará da certos limites

impostos à regulação das eleições indiretas em sede parlamentar.

Page 50: AUTONOMIA FEDERATIVA DOS ESTADOS E MUNICÍPIOS NA REGULAÇÃO ...

CAPÍTULO V

REGULAMENTAÇÃO DAS ELEIÇÕES INDIRETAS POR

ESTADOS E MUNICÍPIOS

Como visto no capítulo anterior, o Supremo Tribunal Federal, em

sede de controle abstrato de constitucionalidade, tem firmado

posicionamento no sentido de permitir aos Estados-membros e aos

Municípios que escolham o processo pelo qual ocorrerá a sucessão das

respectivas chefias do Poder Executivo, ou seja, se por eleições diretas ou

indiretas. Se indiretas, cabe ao ente parcial editar lei regulamentando o

processo de escolha.

Atualmente, no âmbito federal, a eleição indireta para os cargos de

Presidente e Vice-Presidente da República é regulada pela Lei Ordinária nº

4.321, de 7 de abril de 1964 (publicada no DOU no dia subsequente). Ainda

que, em seu art. 1º, caput, o referido diploma normativo coadune-se ao

disposto no art. 81, §1º, da CRFB, quanto ao acontecimento das eleições

indiretas quando a vacância ocorrer nos últimos dois anos do mandato

presidencial, sua edição deu-se em momento histórico completamente

distinto do que o país vivencia hoje, e, por esse motivo, a regulação da

matéria carece de reformulação.

Somente após quase vinte e cinco anos da promulgação da atual

Carta Política, fora apresentada, pela Comissão Mista especial destinada a

consolidar a legislação federal e regulamentar dispositivos da Constituição

Federal (CMCLF)64

, o Projeto de Lei n° 5821/2013, originalmente de

autoria do Senador Pedro Taques (PDT/MT). Além de prever a revogação

expressa da Lei nº 4.321/64, transforma o tipo de voto em ostensivo e

aberto, e ainda preenche muitas lacunas não resolvidas pela lei em vigor,

64

A criação da CMCLP se deu através do Ato Conjunto dos Presidentes do Senado e da Câmara

nº2/2013, apresentado via protocolado em 21/03/2013. A reunião de instalação da Comissão se

deu em 02/04/2013.

Page 51: AUTONOMIA FEDERATIVA DOS ESTADOS E MUNICÍPIOS NA REGULAÇÃO ...

50

como, por exemplo, a convivência das eleições indiretas com as novas

regras sobre partidos políticos, desincompatibilização de cargos públicos,

condições de elegibilidade e registro de candidaturas.

Embora a competência para edição dessas leis regulamentadoras seja

dos próprios entes parciais nos casos das sucessões regionais e locais, a

forma de abordagem dessas matérias há pouco mencionadas deve passar

por uma padronização. E qual o porquê disso? O motivo é a limitação da

autonomia dos entes federados, por questão de simetria. Quanto à

aplicabilidade das condições de elegibilidades e hipóteses de elegibilidade,

já ficou demonstrado no capítulo anterior que o STF, no julgamento do

pedido de medida cautelar na ADI 1.057/BA, DJ 06/04/2001, Rel. Min.

Celso de Mello, entendeu pela plena observação nos procedimentos

regionais e locais. Também foi comentado o tema da desincompatibilização

de cargos públicos65

. Merecem, neste capítulo, serem discutidos dois pontos

que poderão fazer parte das leis regulamentadoras: a participação dos

partidos políticos e o tipo de escrutínio, se aberto ou secreto.

5.1 Participação dos Partidos Políticos

Para adentrar a necessidade ou não de participação dos partidos

políticos no processo de eleições indiretas, é necessário, antes de qualquer

coisa, relembrar que, apesar de não ter a lei regulamentadora caráter

eleitoral, sua conotação é política e, tem como conseqüência (,) indicar

aquele que irá ocupar um cargo eletivo, mesmo que por um ato de poder do

ente local.

Numa primeira impressão, poder-se-ia pensar que, como a eleição

indireta dos Governadores e Prefeitos traduz-se em expressão da autonomia

federativa, somente as regras expressamente constantes da Constituição da

República, especificamente o art. 14, §3º, V – que também se refere a uma

65

O PL 5821/2013 prevê expressamente, em seu art. 5º, §4º, a não aplicação das exigências de

desincompatibilização de cargos públicos, em razão da excepcionalidade de tais eleições.

Page 52: AUTONOMIA FEDERATIVA DOS ESTADOS E MUNICÍPIOS NA REGULAÇÃO ...

51

condição geral de elegibilidade –, deveriam ser necessariamente observadas

na regulamentação sucessória. Partindo desse pressuposto, o tratamento

infraconstitucional quanto ao registro de candidaturas, convenções

partidárias e coligações eleitorais estaria atrelado à competência da União

em legislar sobre o direito eleitoral, sendo aplicável, dessa forma, somente

às eleições diretas.

A participação dos partidos políticos, no entanto, é tratada pela

Constituição Federal com maior profundidade. A democracia representativa

brasileira tem o sistema partidário como sua base, e no caso das

Assembleias Legislativas e das Câmaras Municipais, a eleição de seus

membros através do sistema proporcional prenuncia ainda maior relevância

a tais agremiações. Esses membros, eleitos pelas coligações partidárias, nas

eleições indiretas, serão os votantes no colégio eleitoral formado.

Não que possam os partidos substituírem o povo no protagonismo

democrático; a soberania popular é a fonte de legitimidade do poder político

instituído, conforme o célebre enunciado constitucional esculpido no art. 1º,

Parágrafo Único. Ao sistema de democracia representativa, todavia, é

imprescindível a busca de instrumentos que viabilizem a organização da

vontade popular em governos, passando, logicamente, pelo processo

eleitoral. É nesse ponto que os partidos políticos assumem importância,

mesmo embora tal entendimento não tenha, atualmente, a afinidade

necessária com a realidade popular66

.

Quando o constituinte exigiu como condição de elegibilidade a

inscrição em partido político, o fez com o propósito de racionalizar o

posicionamento de grupos políticos e correntes ideológicas no pleito. Em

compensação a tal exigência, e seguindo os princípios redomocratizantes

que inspiraram a elaboração da atual Lei Fundamental, instituiu, no art. 17,

66

Nos Julgamentos do MS 26602, DJ 17/10/2008, Rel. Min. Eros Grau, do MS 26603, DJ

19/12/2008, Rel. Min. Celso de Mello, e do MS 26604, DJ 03/10/2008, Rel. Min. Cármen Lúcia, o

STF entendeu que os mandatos eletivos pertencem aos partidos políticos, que podem, inclusive,

requerer judicialmente a vaga do titular que deixe a agremiação sem que haja motivo justificante.

Entre outros fundamentos, o Tribunal alegou a importância que os partidos políticos exercem na

formação da opinião política nacional.

Page 53: AUTONOMIA FEDERATIVA DOS ESTADOS E MUNICÍPIOS NA REGULAÇÃO ...

52

o pluripartidarismo. Ou seja, ao mesmo tempo em que exige do candidato a

junção de seu nome ao de uma agremiação partidária, abriu a liberdade para

que elas existam em grande quantidade, tantas quantas forem as correntes

político-ideológicas que pretendam participar do processo eleitoral.

Sendo os partidos políticos basilares do sistema político-

representativo, a previsão de participação imediata dessas associações nas

eleições indiretas é obrigatória, vez que preceito constitucional sensível (art.

34, VII, a). Além disso, embora a eleição indireta seja um ato de poder

inerente ao Legislativo estadual ou municipal, não lhes cabe frustrar as

normas gerais sobre direito eleitoral. Por exemplo, o art. 2º da Lei n°

2.143/2009, do Estado do Tocantins, revogad(a)o pela Lei n° 2.154/2009,

previa que cada deputado estadual pode inscrever uma chapa para concorrer

no pleito indireto, afastando completamente a participação dos partidos.

Cabe uma crítica: se o Legislativo pode escolher entre a modalidade direta

ou indireta, não pode o próprio colégio eleitoral escolher os candidatos, por

se tratar de medida claramente desproporcional em ponderação ao princípio

da supremacia popular. No julgamento da ADI 4298-MC/TO, o Ministro

Cezar Peluzo, em seu brilhante voto relator, comenta o assunto em relação

ao disposto na lei revogada, que originariamente era o ato normativo que se

pretendia impugnar:

“(...) lei revogada, a qual atribuía aos deputados o poder de inscrição de chapas e

candidatos, coisa que já não prevê a lei atual, mas o estipula a resolução

regulamentar, está prejudicado o argumento de indispensabilidade da participação

partidária na eleição, calcado nas recentes decisões da Corte que, proclamando a

supremacia da fidelidade, assentou pertencerem os mandatos aos partidos, não aos

representantes eleitos. E, se o não estivesse, à míngua de previsão específica,

incidiria, na lacuna, o indisputável princípio constitucional que, haurido à

conjugação do disposto nos arts. 14, §3º, inc. V, e 17 da Constituição da República,

consagra a intermediação necessária dos partidos políticos no processo de escolha

popular, como simetria, tantas vezes reafirmado, que repele candidaturas avulsas

ou autônomas”.

O PL n° 5821/2013 prevê a ostensiva participação dos partidos

políticos na nova regulação que dá ao §1º do art. 81, medida que

necessariamente deve ser seguida pelos Estados-membros e Municípios

quando tratarem da matéria. A única ressalva, no entanto, é quanto ao prazo

Page 54: AUTONOMIA FEDERATIVA DOS ESTADOS E MUNICÍPIOS NA REGULAÇÃO ...

53

mínimo de um ano de filiação ao respectivo partido, conforme Lei n°

9.096/95, art. 18. Da mesma forma que as questões de

desincompatibilização de cargos públicos, os pretendentes a candidatos não

podem ser pegos de surpresa por uma eleição atípica, de modo que soa

incoerente exigir-lhes o tal prazo mínimo de filiação como condição de

elegibilidade.

5.2 Voto aberto ou secreto

Embora possam regulamentar as eleições indiretas, é defeso aos

Estados e aos Municípios que instituam a votação secreta. Essa vedação

encontra o seu fundamento no princípio republicano (CRFB, art. 1º, caput),

que exige, por parte daqueles que exercem mandatos eletivos, compromisso

com a vontade popular. Para que haja o controle social dos atos de poder, é

imprescindível que sobre eles haja publicidade. Assim, quando os

parlamentares deliberam, seja sobre uma proposição legislativa ou até

mesmo para eleger o Governador ou o Prefeito, estão exercendo atos de

poder que, em regra, devem ser públicos.

Porém, em algumas matérias, a Constituição da República

expressamente prevê o escrutínio secreto, como, por exemplo, nas hipóteses

do art. 52, III (competências privativas do Senado Federal em aprovar

nomeações para cargos estratégicos), nos casos de deliberação da Casa

Legislativa sobre a cassação de parlamentar (art. 55, §2º) e nas votações dos

vetos presidenciais (art. 66, §4º). Se analisados, todos esses casos têm em

comum a tutela do parlamentar frente ao Poder Executivo, até mesmo nos

casos em que deliberam sobre a perda de mandato parlamentar67

. São casos

67

As cassações arbitrárias de direitos políticos e mandatos eletivos era uma prática comumente

utilizada pelo regime militar contra os seus opositores. Dessa forma, a nova ordem constitucional

teve a preocupação de resguardar as garantias dos membros do Poder Legislativo. Quanto à

correlação disso com as pressões sofridas pelo Poder Executivo, é bom lembrar que a base

governista é, na quase totalidade dos casos, bem ampla, e, numa democracia imatura como a que o

Brasil experimentou no final dos anos 80 e no início dos anos 90, não era de se estranhar que

algum governo utilizasse da cassação parlamentar para afastar algum adversário do Congresso

Nacional ou de qualquer Casa Legislativa do país.

Page 55: AUTONOMIA FEDERATIVA DOS ESTADOS E MUNICÍPIOS NA REGULAÇÃO ...

54

verdadeiramente excepcionais, para os quais o constituinte sopesou o a

publicidade do republicanismo com a necessária garantia institucional da

separação de poderes – ambos preceitos constitucionais sensíveis –, e

resolveu, nessas hipóteses, privilegiar a independência do Poder

Legislativo. Essas previsões são taxativas, e não cabe ao constituinte

reformador ou aos regimentos internos das Casas de Leis alargarem a

abrangência do escrutínio secreto.

Quanto à cláusula do voto direto e secreto, insculpida no art. 14, é

destinada aos cidadãos em eleições comuns. Serve como uma proteção ao

poder-dever de votar e participar da vida política nacional. Portanto,

estando os entes federados, por simetria, sujeitos a respeitarem as normas

constitucionais que preveem no processo legislativo o escrutínio aberto

como regra – e também aquelas que preveem o secreto, como é o caso da

combinação do art. 27, §1º, com o art. 55, §2º, e de alguns outros

decorrentes da necessária separação de poderes68

-, o escrutínio nas eleições

indiretas é, invariavelmente, o aberto. Para finalizar, os ensinamentos no

voto relator do Min. Celso de Mello no precedente já tantas vezes

mencionado, a ADI 1057-MC/BA:

“Cumpre analisar, agora, uma outra objeção deduzida pelos autores, para quem a

lei ora impugnada, ao expressamente determinar que o preenchimento dos cargos

executivos vagos far-se-á “pelo sufrágio dos deputados integrantes da

Assembleia Legislativa, em sessão pública e através de votação nominal e

aberta” (art. 1º), vulnerou o “o princípio geral do voto secreto”, contemplado no

art. 14 da Constituição Federal e que, pela fundamentalidade de que se reveste,

“não pode ser abolido por qualquer outra instância legislativa, ainda que o

Congresso Nacional, no exercício do poder constituinte derivado” (fls. 8). Tenho

pra mim, Sr. Presidente, que a norma do parâmetro invocada pelos autores – art.

14, da Constituição Federal – não pode atuar como fator de contraste jurídico da

lei ora questionada nesta sede processual, eis que esse preceito de nossa Lei

Fundamental proclamou o sigilo do voto como instrumento de proteção ao

cidadão comum enquanto partícipe de processos eleitorais regidos pelo princípio

do sufrágio universal. O voto secreto – que constitui o instrumento da atuação

concreta do direito público subjetivo de sufrágio assegurado à universalidade dos

68

No julgamento do pedido de medida cautelar na ADI 1949/RS, DJ 25/11/2005, Rel. Min.

Sepúlveda Pertence, decidiu-se, liminarmente, por constitucionalidade de norma da Constituição

do Estado do Rio Grande do Sul que previa a aprovação, pela Assembleia Legislativa, das

nomeações feitas pelo Governador do Estado para os cargos de diretores da Agência Estadual de

Serviços Públicos Delegados (AGERGS). No entanto, o Tribunal ressalvou a suspendeu a eficácia

de dispositivo que previa a possibilidade de a Assembleia Legislativa destituir os conselheiros da

agência antes do término do mandato, por incompatibilidade com o princípio da separação de

poderes.

Page 56: AUTONOMIA FEDERATIVA DOS ESTADOS E MUNICÍPIOS NA REGULAÇÃO ...

55

cidadãos – reflete, na dualidade funcional que o caracteriza, tanto o momento

expressivo de afirmação da soberania popular quanto o meio destinado a proteger

o eleitor comum no exercício da sua liberdade política. (...) Constata-se, pois, que

é o eleitor comum no exercício da sua cidadania, enquanto detentor da

capacidade eleitoral ativa que qualifica a participar do processo de escolha direta

dos seus próprios governantes, o destinatário da cláusula tutelar inscrita no art.

14, caput, da Constituição Federal, pois, no âmbito das Casas legislativas, é

diversa, no ponto, a disciplina constitucional de regência do processo do exercício

do poder político. É de registrar que as votações parlamentares submetem-se,

ordinariamente, ao processo de votação ostensiva, sendo de exegese estrita as

normas, de índole necessariamente constitucional, que fazem prevalecer, em

hipóteses taxativas, os casos de deliberação sigilosa. (...) Não tendo a

Constituição Federal fixado, desse modo, para a escolha parlamentar dos

mandatários do Poder Executivo, na hipótese de dupla vacância ocorrida nos

últimos dois anos do período governamental, a forma secreta de votação, parece

tornar-se evidente que, nessa situação, deve prevalecer a regra geral peculiar às

decisões tomadas no âmbito do Poder Legislativo, vale dizer, deve prevalecer o

princípio do voto nominal e aberto. Cumpre acentuar, neste ponto, que o caráter

aberto na escolha parlamentar desses mandatários executivos estaduais impõe-se

como um meio necessário de controle social da opinião pública sobre as

deliberações emanadas dos representantes do Povo.” (negritos no original)

Page 57: AUTONOMIA FEDERATIVA DOS ESTADOS E MUNICÍPIOS NA REGULAÇÃO ...

56

CONCLUSÃO

No Brasil, o processo de formação e transformação da federação foi

bastante peculiar se comparado a outros exemplos de Estados federais.

Inicialmente, o sistema de “Capitanias Hereditárias” formulado pela Coroa

portuguesa refletia uma proposta de gerenciamento, uma vez que, já

naquela época, o território colonial possuía grande dimensão. Após quase

três séculos de colonização, a nacionalidade brasileira já plantara sua

semente, e crescia nas ruas o clamor por um país livre. A chegada da

família real em 1808 acabou impulsionando o processo de Independência,

proclamada em 1822. No entanto, o medo de esfacelamento do território

nacional transportou o centralismo colonial para a figura do monarca. Na

verdade, até então não havia uma grande razão que justificasse qualquer

concessão de autonomia às parcelas territoriais. Esse cenário começou a

mudar quando o principal eixo econômico se distanciou do centro do poder

político. Ou seja, a proposta de federalismo no Brasil não ganhou força

como um ideal de preservação das diversidades, mas sim como uma

alternativa pragmática à centralização do poder político.

A República chegou em 1889 e, junto com ela, o federalismo. A

Constituição de 1891, de inspiração norte-americana, premiou os Estados

com grande dose de autonomia. Sua divisão de competências entre os entes

federados seguia o modelo dual, o que gerava distorções, à medida que

alguns Estados não conseguiam cumprir com as tarefas pelas quais eram

responsáveis. Essa autonomia meramente nominal favoreceu a prática que

ficou conhecida como “Política dos Governadores”, resultando na

concentração do poder político de fato em torno dos Estados de maior

pujança. A má formação do federalismo brasileiro em sua primeira edição

demonstra que, já naquele momento, a técnica do federalismo assimétrico

poderia contribuir com a distribuição geográfica do poder político.

Page 58: AUTONOMIA FEDERATIVA DOS ESTADOS E MUNICÍPIOS NA REGULAÇÃO ...

57

A partir de 1930, aparecem os sinais de uma contradição: apesar dos

entes terem a autonomia reduzida, a necessidade do federalismo caminhava

para se tornar evidente. As diferenças regionais, sobretudo quanto à divisão

espacial das atividades econômicas, conseguiam justificar a existência de

diferentes formas de governar. Não que sua instituição em 1891 tenha sido

um erro, mas seu propósito estava atrelado aos interesses oligárquicos e não

ao respeito pelas diferenças regionais. O WalfareState, ao consagrar os

direitos fundamentais de segunda geração, introduziu o federalismo

cooperativo, o que acabou por diminuir ainda mais as competências

destinadas aos Estados. A partir desse momento, o centralismo preponderou

na distribuição do poder político, atingindo seu auge no período da ditadura

militar.

Tal conjuntura só mudou com a promulgação da atual Constituição

Federal. Embora o processo de redemocratização tenha dado nova chance

ao federalismo, a histórica centralização teve como consequência a

concentração das competências constitucionais, sobretudo as legislativas, na

figura da União. Embora tenha inovado na concessão de autonomia aos

Municípios, resguardando-os da ingerência dos Estados-membros, a

federação brasileira ainda precisa ser repensada. A transformação passa

pela redistribuição das competências constitucionais entre os entes

federados, e também pela diminuição do excessivo grau de simetria imposto

pela Constituição.

Além de haver no texto constitucional inúmeras limitações à

capacidade de auto-organização estadual e municipal, a exegese

jurisprudencial acaba por restringir mais ainda a autonomia dos entes

descentralizados. Como já mencionado neste trabalho, essa restrição,

quando muito intensa, tem como consequência a degeneração da forma

federativa de Estado. A cláusula de autonomia dos entes federados só pode

ser excetuada quando a Constituição nesse sentido dispuser, e então deverão

ser respeitados os princípios constitucionais sensíveis e as regras de

Page 59: AUTONOMIA FEDERATIVA DOS ESTADOS E MUNICÍPIOS NA REGULAÇÃO ...

58

simetria, que não são poucas. No contrário, salvaguardar a diversidade entre

os entes federados é o caminho mais correto.

Felizmente, como demonstrado, em relação à participação dos

Estados e dos Municípios na regulação da sucessão do Chefe do Poder

Executivo, o Supremo Tribunal Federal tem formado sua jurisprudência

prestigiando a capacidade de auto-organização desses entes. O modelo de

sucessão previsto pela Constituição em seu artigo 81 refere-se

exclusivamente ao Presidente da República. Em relação ao preenchimento

dos cargos eletivos nos Estados e Municípios, dispõe sobre as eleições

ordinárias e diretas, que deverão ocorrer a cada quatro anos. O texto

constitucional não possui regramento expresso quanto à dupla vacância das

governadorias estaduais e prefeituras municipais.

Outra possibilidade de limitação seria pela via principiológica, mas

tampouco há algum princípio constitucional sensível que afete a

possibilidade de auto-organização dos entes federados nessa matéria. Em

casos de eleições indiretas, os poderes continuarão sendo independentes,

pois após a votação parlamentar, o eleito precisará formar a sua base para

conseguir governar. Quanto ao regime democrático, as eleições indiretas

têm como colégio eleitoral os representantes do povo, que são eleitos pelo

sistema proporcional. Ainda assim, podem os entes determinar que o

modelo de eleições diretas tenha aplicabilidade mais alargada do que o

previsto pela Constituição em relação à sucessão do Presidente da

República, ou seja, abarcar período superior aos dois últimos anos do

mandato. E, quanto ao regime republicano, no tocante à legitimação do

governante, a necessidade, como até mesmo se pronunciou o STF, é que

haja um processo de escolha, ou seja, não pode haver um sucessor natural

do Vice-Governador ou do Vice-Prefeito.

O voto proferido pelo Min. Marco Aurélio Mello, no julgamento

pelo TSE do MS n. 539-74.2011.6.00.000/PB, remete à unicidade do direito

eleitoral no território brasileiro. Por essa lógica, a escolha de quem ocupa

um cargo eletivo possui natureza eminentemente eleitoral. Não se nega à

Page 60: AUTONOMIA FEDERATIVA DOS ESTADOS E MUNICÍPIOS NA REGULAÇÃO ...

59

União a competência privativa de legislar sobre direito eleitoral. Porém,

apesar da conotação eleitoral, a matéria não possui propriamente essa

natureza. Havendo eleição direta, as normas federais eleitorais são

plenamente aplicáveis a ela. No entanto, como não há nenhuma norma de

simetria que disponha sobre a sucessão dos Governadores e Prefeitos no

caso de dupla vacância desses cargos, é ato de poder inerente à capacidade

de auto-organização do ente federado decidir se o processo de escolha será

feito por eleições diretas ou indiretas.

Embora não tenha a matéria natureza eleitoral, inegável também é

que versa acerca do preenchimento de cargos eletivos, cuja essência é

eminentemente política. Dessa forma, é salutar que os eleitos, mesmo que

por eleições indiretas, apresentem as condições gerais de elegibilidades e

não estejam impedidos por nenhuma causa de inelegibilidade. Entender

dessa forma é homenagear a coesão do ordenamento jurídico, vez que são

requisitos para o exercício da função pública, e não meramente para a

inscrição da candidatura. Da mesma forma, a participação dos partidos

políticos no processo deve ser resguardada, pois, como bem anota o Min.

Cezar Peluzo no julgamento da ADI 4298-MC/TO, nosso sistema político-

eleitoral “repele candidaturas avulsas ou autônomas”. Em relação ao tipo

de escrutínio nas eleições indiretas, deve ser aberto, por uma clara

necessidade de controle popular do exercício de poder, o que é mais do que

elementar numa democracia representativa.

Entender pela possibilidade dos Estados e Municípios regularem a

sucessão das suas respectivas chefias executivas é não limitar a capacidade

de auto-organização dos entes federados além do que a Constituição já o

faz. É certo que o federalismo brasileiro precisa de profunda reformulação,

rumo à concessão da autonomia que os entes federados realmente precisam

e, necessidade essa que as alterações socioeconômicas experimentadas ao

longo dos anos trataram de acentuar. Enquanto isso, o Estado de Direito

instituído deve, ao menos, assegurar o pouco de autonomia que restou aos

Page 61: AUTONOMIA FEDERATIVA DOS ESTADOS E MUNICÍPIOS NA REGULAÇÃO ...

60

entes federados, por estarem eles mais próximos da população e serem os

responsáveis pela solução dos problemas mais imediatos.

Page 62: AUTONOMIA FEDERATIVA DOS ESTADOS E MUNICÍPIOS NA REGULAÇÃO ...

61

BIBLIOGRAFIA

BARRETO, Aires. Os Municípios na nova Constituição Brasileira. In

MARTINS, Ives Granda (Org.). A Constituição Brasileira de 1988:

Interpretações. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1988. p. 81- 93.

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 28ª Edição. São

Paulo: Malheiros Editores. 2013. 746 p.

CARVALHO, José Murilo de. A Constituição da Ordem: a elite política

imperial. Teatro das sombras: a política imperial. Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira, 2003.

CONDEIXA, Fábio de Macedo Soares Pires. Princípio da Simetria na

Federação Brasileira: Supremo Tribunal Federal VS. Legislativos

Estaduais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. 124 p.

DALLARI, Dalmo de Abreu. República e Federação no Brasil. In: 20 anos

da constituição cidadã: Cadernos Adenauer IX (2008), n. 1. Rio de Janeiro:

Fundação Konrad Adenauer. 2008.

VICENTINO, Cláudio; DORIGO, Gianpaolo. História do Brasil. São

Paulo: Editora Scipione, 2004. 496 p.

FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Aspectos do Direito

Constitucional Contemporâneo. São Paulo: Saraiva, 2003. 301 p.

FERREIRA, Gustavo Sampaio Telles. Federalismo Constitucional e

Reforma Federativa: Poder Local e Cidade-Estado. Rio de Janeiro: Editora

Lumen Juris, 2012. 366p.

Page 63: AUTONOMIA FEDERATIVA DOS ESTADOS E MUNICÍPIOS NA REGULAÇÃO ...

62

FRANCO, Cristiano. Princípio Federativo e Mudança Constitucional:

Limites e Possibilidades na Constituição Brasileira de 1988. 2003. 199 p

HESSE, Konrad. El Estado Federal Unitario: Revista de

DerechoConstitucinal. Barueri: Manole, 2005

LASSALLE, Ferdinand. Que é uma Constituição. Porto Alegre: Villa

Martha, 1980, 74 p.

MEIRELLES, Hely Lopes. “Direito Municipal Brasileiro”. 15ª Edição. São

Paulo: Malheiros Editores, 2006. 920 p.

MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO,

Paulo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 5ª Edição. São Paulo:

Saraiva, 2010. 1616 p.

OLIVEIRA, Ricardo Victalino de. Federalismo assimétrico brasileiro.

Belo Horizonte: Arraes Editora, 2012. 254 p.

PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários à

Constituição de 1946. 3ª Edição (revista e aumentada) – Tomo II – Rio de

Janeiro: Editor Borsoi, 1960.

PORTO, Walter Costa.O Federalismo no Brasil. Arquivos do Ministério da

Justiça, Ano 46, n. 181. Brasília: Ministério da Justiça, 1993 –

Janeiro/Junho 1993.

RAMELLA, Pablo A. Replanteo del Federalismo. Buenos Aires: Depalma,

1971.

Page 64: AUTONOMIA FEDERATIVA DOS ESTADOS E MUNICÍPIOS NA REGULAÇÃO ...

63

SCHMITT, Carl. Freiheitsrechte und instutionelle Garantien der

Reichsverfassung‘‘ (1931), in Verfassungrechtliche Aufsatze

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 32ª

Edição. São Paulo: Malheiros, 2009. 926 p

ZIMMERMANN, Augusto. Teoria Geral do Federalismo Democrático.

Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1999.

STF, ADI n. 452/MT, Min. Rel. Maurício Corrêa, Brasília, 28/08/2002.

STF, ADI 1057-MC/BA, Rel. Min. Celso de Mello, Brasília, 20/04/1994.

STF, ADI 1060-MC/RS, Rel. Min. Carlos Velloso, Brasília, 01/08/1994.

STF, ADI 1228/AP, Min. Rel. Sepúlveda Pertence, Brasília, 15/03/1995.

STF, ADI 1506/SE, Min. Rel. Ilmar Galvão, Brasília, 09/09/1999.

STF, ADI n. 1949-MC/RS, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, Brasília,

18/11/1999.

STF, ADI n. 1962/RO, Min. Rel. Ilmar Galvão, Brasília, 08/12/2001.

STF, ADI n. 2319-MC/PR, Rel. Min. Moreira Alves, Brasília, 01/08/2001.

STF, ADI n. 2709/SE, Rel. Min. Gilmar Mendes, Brasília, 01/08/2006.

STF, ADI n. 4298-MC/TO, Rel. Min. Cezar Peluzo, Brasília, 07/10/2009.

STF, MS n. 26602/DF, Rel. Min. Eros Grau, Brasília, 04/10/2007.

Page 65: AUTONOMIA FEDERATIVA DOS ESTADOS E MUNICÍPIOS NA REGULAÇÃO ...

64

STF, MS n. 26603/DF, Rel. Min. Celso de Mello, Brasília, 04/10/2007.

STF, MS n. 26604/DF, Rel. Min. Carmen Lúcia, Brasília, 04/10/2007.

TORRES, José Camilo de Oliveira. A formação do Federalismo no Brasil.

São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1961. 381 p.

TSE, MS n. 539-74.2011.6.00.0000, Rel. Min. Marco Aurélio, Rel.

Acórdão Min. Nancy Adrighi, Brasília, 09/06/2011.