Autores e editores de compêndios e livros de leitura

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475 Educação e Pesquisa, São Paulo, v.30, n.3, p. 475-491, set./dez. 2004 Autores e editores de compêndios e livros de leitura (1810-1910) Circe Maria Fernandes Bittencourt Universidade de São Paulo Resumo Este artigo apresenta reflexões sobre o problema da autoria do livro didático. O papel do autor do livro didático tem sido um tema polêmico por sua ambigüidade em relação a seus direitos e suas responsabilidades. O livro didático oferece retornos financei- ros consideráveis para editores e autores, e esta condição implica envolvimentos mais complexos e tensos. O artigo procura, nessa perspectiva, traçar o perfil dos primeiros autores de livros didá- ticos brasileiros, no período de 1810 a 1910, com o objetivo de caracterizar o processo de intervenções de diferentes sujeitos nessa produção. As características da produção do livro didático como texto submetido aos programas curriculares, dependente das autorizações do poder educacional e das formas de comercialização e circulação, são indicadas para mostrar quem foram os autores que aceitaram essas imposições. Apresenta as imposições para a confecção dos livros diante das mudanças do público ao qual é destinado. Inicialmente produzido para pro- fessores, o livro didático vai se tornando livro do aluno. Nesse processo os referenciais pedagógicos e o público escolar passa- ram a exigir cuidados com a linguagem e exige-se a constituição de novos “gêneros didáticos” para o nível elementar. O perfil do autor do livro didático transforma-se, assim como sua autonomia, acentuando as relações entre editor e autor. Palavras-chave Livro didático — Autoria — Editoras — Função-autor. Correspondência: Circe Maria F. Bittencourt R. Maria Tereza F. Rodrigues, 219 05327-000 – São Paulo – SP e-mail: [email protected]

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Autores e editores de compêndios e livros de leitura(1810-1910)

Circe Maria Fernandes BittencourtUniversidade de São Paulo

Resumo

Este artigo apresenta reflexões sobre o problema da autoria dolivro didático. O papel do autor do livro didático tem sido umtema polêmico por sua ambigüidade em relação a seus direitos esuas responsabilidades. O livro didático oferece retornos financei-ros consideráveis para editores e autores, e esta condição implicaenvolvimentos mais complexos e tensos. O artigo procura, nessaperspectiva, traçar o perfil dos primeiros autores de livros didá-ticos brasileiros, no período de 1810 a 1910, com o objetivo decaracterizar o processo de intervenções de diferentes sujeitosnessa produção. As características da produção do livro didáticocomo texto submetido aos programas curriculares, dependentedas autorizações do poder educacional e das formas decomercialização e circulação, são indicadas para mostrar quemforam os autores que aceitaram essas imposições. Apresenta asimposições para a confecção dos livros diante das mudanças dopúblico ao qual é destinado. Inicialmente produzido para pro-fessores, o livro didático vai se tornando livro do aluno. Nesseprocesso os referenciais pedagógicos e o público escolar passa-ram a exigir cuidados com a linguagem e exige-se a constituiçãode novos “gêneros didáticos” para o nível elementar. O perfil doautor do livro didático transforma-se, assim como sua autonomia,acentuando as relações entre editor e autor.

Palavras-chave

Livro didático — Autoria — Editoras — Função-autor.

Correspondência:Circe Maria F. BittencourtR. Maria Tereza F. Rodrigues, 21905327-000 – São Paulo – SPe-mail: [email protected]

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Editors and authors of compendia and reading books(1810-1910)

Circe Maria Fernandes BittencourtUniversidade de São Paulo

Contact:Circe Maria F. BittencourtR. Maria Tereza F. Rodrigues, 21905327-000 – São Paulo – SPe-mail: [email protected]

Abstract

This article presents considerations about the issue of theauthorship of schoolbooks. The role of the authors of aschoolbook has been a controversial topic due to its ambiguitywith respect to their rights and legal accountability. A schoolbookcan offer substantial financial return to editors and authors, andsuch situation implies more complex and tense connections. Underthis perspective, the article seeks to draw a profile of the firstauthors of Brazilian schoolbooks, from 1810 to 1910, with thepurpose of characterizing the process through which differentagents intervened in such production. The particular features ofthe production of a schoolbook as a text subjected to curricula,dependent on the approval of official educational bodies, and thecommercialization and circulation conditions are indicated to showwho were the authors that accepted those impositions. The articlealso presents the demands placed on the elaboration ofschoolbooks by the changes in the books’ target public. Initiallyprepared for teachers, the schoolbook gradually becomes a bookfor the pupil. Along this process, the pedagogical framework andthe target public begin to demand greater care with language andwith the constitution of new “didactic genres” directed at theelementary level. The profile of the author of a schoolbookchanges, as does his/her autonomy, accentuating the relationsbetween editor and author.

Keywords

Schoolbook — Authorship — Publishers — Author-function.

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Autores de compêndios e livrosde leitura

A história do livro didático inclui emsuas abordagens a figura do autor, e este é otema deste artigo, o qual, por sua vez, poderiater como título “Quem foram os primeiros au-tores de livros didáticos no Brasil?”.

Diferentemente de outras obras impres-sas, o livro didático possui peculiaridades emsua produção, circulação e uso, entre elas a daautoria, por meio da qual é possível ver a dis-tinção entre o trabalho de escrever um texto eo de fabricar um livro.

A identificação da autoria dos livros di-dáticos tornou-se mais complexa na medida emque o ato de escrever o texto e o de transformá-lo em livro passaram por intensas transformações,as quais geraram polêmicas que se intensificaramnos últimos anos. Uma rápida leitura da ficha téc-nica, por exemplo, apresentada na contracapa dasobras didáticas produzidas a partir da década de1990, comprova que o papel do autor de umaobra didática tem se modificado em decorrênciadas inovações tecnológicas impostas pela fabrica-ção do livro. Copidesque, revisor de texto, pesqui-sador iconográfico, entre outros, constituem umaequipe cada vez mais numerosa de pessoas res-ponsáveis pelo livro, e o autor do texto, emborapermaneça encabeçando esse conjunto de profis-sionais, nem sempre é a figura principal.

A autoria do livro didático tem passadopor transformações ligadas às especificidadesdesse produto cultural, notadamente o retornofinanceiro considerável que ele traz, sobretudono caso de países como o Brasil, com um ex-pressivo público escolar e um mercado assegu-rado pelo Estado na compra e distribuição delivros para as escolas públicas. Nos últimos anos,o interesse de editoras estrangeiras, que tem seconcretizado na compra ou associações comempresas nacionais, conduz a transformaçõesque afetam o papel do autor do livro escolar.Para agilizar a produção e criar padrões unifor-mes para o livro didático dilui-se a figura doautor por intermédio da compra de textos de

vários escritores, textos que se integram em umprocesso de adaptações nas mãos de técnicosespecializados. Desse modo, não se pode maisidentificar quem efetivamente escreveu o texto.A nova situação demonstra que o livro didáticoé uma mercadoria que gera lucros consideráveispara as editoras, mas que coloca a perguntainevitável sobre a função do autor, entendidocomo escritor do texto, e seus direitos de pro-priedade em relação à obra produzida.

A constatação de alguns dos problemasque envolvem os autores quanto ao seu papel naelaboração do livro nos faz indagar se tensõese conflitos dessa natureza são inerentes à pro-dução do livro didático e, portanto, visíveis emoutros momentos de sua história. Dessa forma,a preocupação em traçar o perfil dos primeirosautores de livros didáticos, no decorrer do sécu-lo XIX e início do século XX, centrou-se naapreensão das articulações entre os diferentessujeitos sempre presentes na produção didática,destacando a atuação do Estado e das editoras.

Os autores na história do livrodidático

Pesquisadores voltados para a históriada alfabetização ou das disciplinas escolaressempre demonstraram interesse por determina-dos autores cujos livros foram amplamente uti-lizados em sua época. Um dos trabalhos pionei-ros sobre o tema foi o de Marisa Lajolo (1982),no qual se resgatam questões educacionais deum período que havia sido estudado mais pelostextos legislativos, pelos discursos oficiais, doque pela produção realizada para a escola e suaspráticas efetivas de ensino, estudo que pratica-mente não havia sido feito até então.

Outros autores de obras didáticas queforam referências para várias gerações de estu-dantes tornaram-se objeto de estudos a partirdos anos 1990, sendo abordados com enfoquesdiversos. Conceição Cabrini (1994) percorreu oitinerário da produção de Felisberto de Carva-lho (1886), autor do final do século XIX cujaobra era ainda utilizada em meados do século

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XX, com forte presença na memória de váriasgerações nas mais variadas regiões do país.Selma Rinaldi de Mattos analisou os manuais deHistória do Brasil de Joaquim Manuel deMacedo, e várias pesquisas mostram o papeldos professores do Colégio Pedro II na produ-ção de obras didáticas das variadas disciplinas.

Entre os franceses, a preferência dapesquisa de autores didáticos tem sido igual-mente sobre os que ficaram na memória degerações de estudantes. Os autores de livros dehistória encabeçaram as preferências. ErnestLavisse1 e os textos que escreveu para a esco-la primária francesa, após o advento da TerceiraRepública, foi um deles.

Um livro e não exatamente seu autor,Le tour de la France par deux enfants, tem sidoalvo de atenção, pela enorme repercussão queteve no período que antecedeu à Guerra de1914-1918, tornando-se importante fonte parase determinar o alcance de um livro escolar naformação ideológica dos jovens. O livro repre-senta o inconformismo dos grupos republica-nos franceses, perdedores da guerra contra osalemães e que prepararam uma revanche, ex-pressa na Primeira Grande Guerra.2 Uma obraque tem chamado a atenção de pesquisadorespela sua longa vida nas salas de aula na Itáliae pelas traduções e adaptações em diversosoutros países é Cuore (Coração), do italiano DeAmicis, publicado pela primeira vez em 1886.3

Nesses casos, os autores são na maio-ria dos casos vistos pelo seu papel de escritorde obras marcantes, personalizadas e represen-tativas na formação de determinadas geraçõesde alunos. O objetivo central é analisar o con-teúdo da obra, sua importância como veículo deideologia, valores, métodos de ensino e, majo-ritariamente, no caso dos autores de obras di-dáticas do ensino secundário, é destacar seupapel na constituição das disciplinas escolares.

Mas se deslocamos o foco da pesqui-sa do conteúdo de determinadas obras e seuautor para um conjunto de autores e seu papelna produção da obra didática, surgem novasexigências sobre conceitos e categorias de

análise. Uma contribuição importante têm sidoas reflexões de Roger Chartier (1997), em seusestudos sobre a história do livro e sobre acultura letrada. Diferentemente dos pesquisado-res de livros didáticos, estudar os autores nãofoi muito usual na história do livro. A nítidadistinção entre o trabalho de escrever um tex-to e o de fabricar um livro foi alvo de estudosque se voltaram sobre a materialidade dos li-vros, especialmente entre os historiadores domundo de língua inglesa. Entre os franceses aspesquisas se voltaram mais sobre a circulaçãodo livro, a posse desigual pelos diferentes gru-pos sociais e a diversidade das práticas de lei-tura. O foco era o conteúdo do texto e seussignos, mas excluía-se o autor.

Para os recentes trabalhos sobre o au-tor do livro, Chartier (1997) recupera a contri-buição de Foucault no ensaio “Qu´est-ce unauteur?”. Foucault coloca o autor como perso-nagem importante ao fornecer um nome pró-prio às obras e acentua o caráter de responsabi-lidade que presume um estado de direito e,portanto, sujeito a sanções penais como pro-prietário de uma obra literária. Destaca, nessaperspectiva, a função-autor que necessariamen-te estabelece vínculos diversos com a obra ecria identidades. A produção de textos realiza-se sob tais condições e cria status diversosentre autores, dependendo da variação dostextos: os discursos “científicos” e os discursos“literários”. Chartier adverte, baseando-se napreocupação de Foucault sobre direitos e dis-criminações em relação ao autor do texto,quanto ao cuidado em identificar a produçãode diferentes discursos em momentos históricosespecíficos. O valor comercial da obra, a cons-tituição de direitos autorais, conflitos entre

1. Sobre Ernest Lavisse ver Nora (1984).2. Sobre o livro Le tour de la France par deux enfants de G. Bruno, publicadoem 1877, destacam-se o de Ouzouf, J. et M. Le tour de la France par deuxenfants: le petit livre rouge de la Republique; o de Nora (1984), o de Dupuy(1953) e de Siepe (1988). No Brasil, Olavo Bilac e Manuel Bomfim escreve-ram o famoso livro de leitura Através do Brasil inspirados nessa obra francesa.3. Entre outras publicações sobre esta obra destaca-se a de Catarsi (1896).A tradução em português publicada em 1891, pela editora de FranciscoAlves, foi feita por João Ribeiro.

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autor e editor, sanções jurídicas sobre os auto-res analisados por Chartier em produções nosséculos XVII e XVIII, indicam a necessidade denovos enfoques e a complexidade na aborda-gem do tema.

Tendo por base essa dimensão da fun-ção-autor, a pesquisa sobre os autores de obrasdidáticas exige uma ampliação de perspectivaalterando os limites do contexto biográfico emsuas relações com o conteúdo expresso no tex-to. Os conflitos, tensões, acordos, discrimina-ções, satisfações, fazem parte da história dosautores dos livros e há necessidade de inclusãode outras fontes documentais. Requer uma lei-tura bastante atenta de catálogos das editoras,de contratos ou correspondência entre editorese autores e, cabe assinalar, que há dificuldadesem ter acesso a essas fontes por causa dasempresas editoriais, que nem sempre permitem aconsulta de seus arquivos, além do fato de se-rem escassas. Ademais, nos livros didáticos exis-tem outras informações além do seu conteúdodidático, que se encontram nos prefácios, pró-logos, advertências, introduções. Nestes, é pos-sível entrever mensagens dos autores e os possí-veis diálogos com os professores, com as autori-dades e com os alunos e suas famílias.

O estudo dos primeiros autores de livrosdidáticos brasileiros é uma tentativa de indicaressas relações complexas, situá-los junto aos de-mais sujeitos que constituíram a história da edu-cação escolar no século XIX e início do século XX.

Surgem os autores de livrosdidáticos brasileiros

O autor de uma obra didática deve ser,em princípio, um seguidor dos programas oficiaispropostos pela política educacional. Mas, alémda vinculação aos ditames oficiais, o autor édependente do editor, do fabricante do seu tex-to, dependência que ocorre em vários momen-tos, iniciando pela aceitação da obra para publi-cação e em todo o processo de transformaçãodo seu manuscrito em objeto de leitura, ummaterial didático a ser posto no mercado.

A história do livro didático brasileirotem demonstrado que existem preconceitos emrelação aos intelectuais que se dedicam à pro-dução didática, considerando-se o livro escolarcomo uma obra “menor”, um trabalho secundá-rio no currículo acadêmico. No século XIX einício do século XX, período inicial dessa pro-dução, a situação não era muito diferenteembora houvesse algumas particularidades.Identificar o grupo de intelectuais que se sujei-taram às imposições do poder educacional edas editoras merece, assim, considerações sig-nificativas para aprofundar o conhecimentosobre o livro didático e o papel que tem de-sempenhado na produção da cultura escolar.

Algumas indagações são inevitáveis:Estariam nossos primeiros autores motivadospelas vantagens financeiras que a empreitadapoderia oferecer ou seriam outros os motivosque os levaram à realização de um trabalhointelectual considerado inferior na hierarquia daprodução do conhecimento?

Um ponto inicial para um estudo dessanatureza é conhecer suas produções, buscandoentender a concepção que possuíam sobre opapel do livro didático na educação escolar. Oslivros escolares foram considerados, pelos auto-res, como instrumento de trabalho do professorou seu substituto? Qual seria a concepção deuso do livro didático em uma época onde pra-ticamente inexistiam instituições de formação deprofessores, tanto para o ensino das primeirasletras quanto para o nível secundário?

Na listagem de autores de obras didáti-cas deparamos com alguns nomes famosos daliteratura, da vida política e cultural do séculoXIX e início do século atual. Muitos desses lite-ratos e políticos tiveram suas obras e açõesanalisadas, decifradas sob várias abordagens,mas foram praticamente ignorados enquantoautores de obras destinadas às escolas. MarisaLajolo assinala que “o livro escolar, quandoobservado no conjunto da obra de um autorcomo Bilac, é quase sempre visto como obramenor” (1982, p. 20). Da mesma forma, é signi-ficativo o trabalho sobre o cônego Fernandes

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Pinheiro, escrito por um seu descendente, aoprocurar marcar apenas sua obra de historiadore mais especificamente seu pioneirismo na his-tória da literatura no Brasil. A extensa produçãodidática do cônego é lembrada em poucas li-nhas, em um único parágrafo (Pinheiro, 1978).

Quem foram, então, os pioneiros daprodução didática brasileira?

Considerando o período entre 1810 e1910, pode-se verificar uma mudança do perfildos autores. Um primeiro grupo iniciou sua pro-dução a partir da chegada da família real portu-guesa no Brasil, e suas obras foram produzidaspela Impressão Régia, mas podemos identificaruma primeira “geração” a partir de 1827, auto-res preocupados com a organização dos cursossecundários e superiores, apenas esboçando al-gumas contribuições para o ensino de “primei-ras letras”. Uma segunda “geração” começou ase delinear em torno dos anos 1880, quando astransformações da política liberal e o tema donacionalismo se impuseram, gerando discussõessobre a necessidade da disseminação do saberescolar para outros setores da sociedade, am-pliando e reformulando o conceito de “cidadãobrasileiro”, criando-se uma literatura que, semabandonar o secundário, dedicaram-se à cons-tituição do saber da escola elementar.

“Sábios”, políticos eprofessores em ação

Senador do Império do Brasil; Conselheirode Estado; Grão-Cruz da Imperial Ordemdo Cruzeiro; Cavaleiro da de Cristo; Briga-deiro do Imperial Corpo de Engenheiros;Bacharel Formado em Matemática pela Uni-versidade de Coimbra; Lente jubilado daacademia Real da Marinha de Lisboa; Mem-bro honorário da Sociedade Literária do Riode Janeiro, e do Instituto Histórico e Geo-gráfico Brasileiro; Sócio da Academia Realdas Ciências de Lisboa, da Sociedade Geo-gráfica de Paris; da Academia da IndustriaFrancesa; Membro Honorário da SociedadeEtnológica de Paris; Sócio da Academia dos

Liceus, e da Arcádia de Roma; membro cor-respondente do Instituto Nacional de Wa-shington; etc.(Folha de rosto de Elementos de geometria, domarquês de Paranaguá)

Esta apresentação do autor, do marquêsde Paranaguá, inscrita na página de rosto de suaobra escolar de 1846, nos sugeriu uma possívelclassificação dos autores, dentre os inúmerosnomes elencados nos catálogos das editoras. Asreferências sobre a participação do marquês nosmeios culturais eruditos da época estabelecemprontamente a vinculação entre o grupo de in-telectuais próximos ao poder do Estado e osprimeiros autores das obras destinadas à divul-gação do saber para instituições escolares. Operfil dos autores dessa “primeira geração” é ode homens pertencentes à elite intelectual epolítica da recente nação, conforme está visívelna “biografia” do autor citado.

As referências do marquês de Paranaguáapresentadas indicam, além da sua formação aca-dêmica e de seus contatos com os grandes centrosinternacionais do mundo científico, que ele erauma figura de destaque nos meios políticos: sena-dor do Império e conselheiro do Estado.

E ele não foi um exemplo isolado.Outros personagens do cenário político tambémse aventuraram na tarefa de redigir obras aserem divulgadas nas escolas de formação dasfuturas elites. José Justiniano da Rocha (1866),também senador do Império, e o visconde deCairu (Lisboa, 1827), figura importante dogoverno de d. Pedro I, deram suas contribui-ções nesse sentido.

A leitura das obras desses autores mos-tra que o interesse maior deles residia na ques-tão da formação moral e que eles estavam aten-tos aos textos que eram oferecidos aos jovensleitores. Na Introdução do livro escolar do vis-conde de Cairu, o autor expressou seu temorpela disseminação da palavra escrita para “jo-vens incautos”. Temia também que as classestrabalhadoras pudessem se instruir e aspirassema mudanças de sua condição e seriam “seduzi-

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dos para Revoluções por insidiosos demagogos”(Lisboa, 1827, p. 21).

José Justiniano da Rocha em 1866, aoadaptar o célebre poema Os lusíadas, deCamões, para os alunos, intitulou seu livro deCamoniana Brasileira e nele resumiu os trechosmais belos do poema dentro de cuidadososcritérios. O crivo da censura fez com que amaioria das estrofes do Canto IX, do episódioda Ilha dos Amores, fosse cortada. As leiturasde cenas amorosas eram, assim, vetadas aosjovens adolescentes.

O marquês de Paranaguá era também“membro honorário do Instituto Histórico eGeográfico Brasileiro”, uma vinculação signifi-cativa a uma instituição “científica e cultural”simbólica do Império e das primeiras décadasda República.

Da lista dos iniciadores do InstitutoHistórico e Geográfico Brasileiro fazia parte umgrupo classificado por Lilia Moritz Schwarcz“como a nata da política imperial, boa partedela nascida em Portugal e fiéis servidores daCasa de Bragança” (1989, p. 21). A presençado poder político no IHGB foi constante duran-te todo o império, tendo d. Pedro II participa-do assiduamente de suas reuniões. Não é, tam-bém, por mero acaso que encontramos na lis-ta do IHGB vários nomes de professores doColégio Pedro II e muitos deles foram os res-ponsáveis pelas mais conhecidas e divulgadasobras didáticas destinadas ao curso secundário.

Tais autores possuíam, portanto, estrei-tas ligações com o poder institucional responsá-vel pela política educacional do Estado, nãoapenas porque eram obrigados a seguir os pro-gramas estabelecidos, mas porque estavam “nolugar” onde este mesmo saber era produzido. Aprimeira interlocução que os autores estabele-ciam era exatamente com o poder educacionalinstitucionalmente organizado. O “lugar” de suaprodução situava-se junto ao poder e realizava-se para consolidar o poder instituído por inter-médio dos colégios destinados à formação daselites, dialogando com intelectuais e políticosresponsáveis pela política educacional. O mesmo

ocorreu com alguns dos autores das provínciasque estavam ligados a institutos congêneres.

Muitas figuras que se destacaram comosecretários do IHGB foram também autores delivros didáticos. O cônego Caetano FernandesPinheiro (1859-1876), dr. Duarte Moreira deAzevedo (1880-1886), Joaquim Manuel deMacedo (1852-1856) e Max Fleiuss (1900-1905). Além do papel que desempenharam naentidade, como secretários, tinham todos elesuma atuação dinâmica, conciliando seu traba-lho de “cientistas” com outros cargos, quercomo professores, quer como profissionais li-berais. Os secretários compuseram um segundoescalão importante para a sobrevivência dainstituição e deles dependia a imagem e a pro-dução científica do IHGB. Sem serem nomesfamosos, eram os que lutavam para conseguiraproximar-se e desfrutar dos privilégios dopoder. O IHGB abrigou outros nomes, entre seussócios efetivos, que deixaram textos escolarescomo uma de suas contribuições culturais semque, entretanto, alardeassem estas atividades.Em suas bibliografias é difícil encontrar asobras didáticas que produziram.

Outra instituição significativa que abri-gou autores de livros foi a Escola Militar ins-talada no Rio de Janeiro, em 1810. A partir domomento em que foi criada, essa instituiçãoteve que se haver com a questão dos compên-dios a serem adotados. Essa escola, responsá-vel pelo ensino das ciências matemáticas, físi-cas, química, história natural, técnicas de guer-ra e fortificações, cuidou da oferta de textosescolares, embora com produção reduzida nasprimeiras décadas, no que se refere a trabalhosdidáticos próprios. Os lentes limitaram-se arealizar traduções, ou adaptações de textosestrangeiros ou, preferencialmente, recorriamàs obras de Portugal. Entretanto, iniciando adécada de 1840, durante as disputas políticase sociais da fase regencial, com a questão daunidade nacional e a nova configuração dopapel político dos militares, houve a necessi-dade de uma produção de obras didáticaslocais, que deveriam se encarregar, entre ou-

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tros aspectos, de esboçar os contornosterritoriais da nação independente. A EscolaMilitar foi, então, o lugar institucional respon-sável pelo aparecimento dos primeiros com-pêndios dedicados ao ensino das disciplinasformadoras da “nacionalidade”, especialmentehistória e geografia.

As relações entre os autores e editorescorrespondem ao percurso histórico da consti-tuição das editoras no Brasil. Após o términodo monopólio da Impressão Régia em 1822,teve início a transferência dos encargos edito-riais para o setor privado. A Tipografia Nacio-nal continuou publicando obras didáticas emnúmero restrito e editores de origem estrangei-ra passaram a se ocupar da produção nacional,mas sempre vinculados aos países europeusprincipalmente. As marcas editoriais francesas,em especial, foram se consolidando em razãode nossa dependência das técnicas de produ-ção e das políticas de importação.4

Até 1885 três editoras se destacaram naprodução de obras didáticas. A editora dos ir-mãos Laemmert

surgiu da iniciativa de Eduard Laemmert, nas-cido em Baden e chegou ao Brasil como só-cio da firma do livreiro francês Bossange. Em1838 resolveu criar sua própria firma e asso-ciou-se ao seu irmão Heinrich. (...) A. E. & H.Laemmert foi praticamente a substituta daTipografia Nacional, nova denominação daImpressão Régia. (Bittencourt, 1993, p. 82)

A editora de B. L. Garnier que, segun-do Hallewell, foi o “primeiro editor a fazer umesforço real para atender às necessidades delivros escolares brasileiros, correndo um riscocomercial por sua própria iniciativa” (1985, p.144). E a terceira editora que se destacou nesseperíodo foi a firma de Nicolau Alves, livreiroportuguês que a partir dos anos 1880 tevecomo sócio o sobrinho Francisco Alves, figurasignificativa na mudança da editora, transfor-mando-a na mais importante empresa de obrasdidáticas entre 1880 e 1920.

As estratégias das primeiras editorascentraram-se na aproximação ao poder institu-cional, podendo-se entender por essa via o cri-tério de escolha dos autores. Estes corres-pondiam a um perfil que expressava essa depen-dência política. Compêndios, cartilhas eram tex-tos que precisavam da aprovação institucionalpara que pudessem circular nas escolas, o queacabava por direcionar as opções dos editoresna seleção dos autores. Entende-se, portanto, apreferência por autores oriundos do ColégioPedro II ou da Academia Militar. Além de asse-gurarem uma vendagem, dificilmente seus no-mes seriam vetados pelos conselhos educacionaisque avaliavam as obras, inclusive porque váriosmembros do IHGB compunham as comissões deavaliação das obras didáticas. A figura do autorera assim realçada, sua biografia geralmenteexposta na página de rosto, e os editores esme-ravam-se em valorizar sua posição social.

A concepção de livro didático e a suadestinação eram determinações quase exclusi-vas do poder político educacional, que procu-rava, no grupo da elite intelectual, apoio paraa produção desse tipo de literatura. Tivemosassim, na geração dos iniciadores da produçãodidática, figuras próximas ao governo, escrito-res de obras literárias, sobretudo os principaisencarregados do “fazer científico” da época. Oscompêndios que escreveram para o públicoestudantil eram de literatura, gramática, histó-ria e geografia, dedicados ao ensino secundá-rio, majoritariamente, e em menor escala paraas “escolas de primeiras letras”. Os autores, comraras exceções e pela condição da disciplina,inspiravam-se ou mesmo adaptavam obras es-trangeiras. Os livros de matemática, então des-dobrada em aritmética, geometria, álgebraexemplificam essa produção modelada emobras européias, lembrando ainda que os pro-gramas curriculares eram originários e “tradu-zidos”, em sua maioria, da França.

4. Um dos problemas das editoras e gráficas era o da impressão, porqueo preço do papel e das tintas variava muito, daí a opção de muitos editorespela impressão de obras na Europa.

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Uma nova “geração” deautores entra em cena

Um segundo grupo de escritores come-çou seu trabalho a partir do momento em queo ensino elementar das escolas públicas come-çou a se avultar. Os anos de 1870 e 1880marcaram o início do crescimento escolar e osurgimento de escritores provenientes de outrasesferas sociais. Pfromm Netto assinala que omovimento responsável pelo crescimento doensino elementar possibilitou

as condições favoráveis que estimularam, emeducadores brasileiros, o desejo de elaborarlivros de leitura e de outros textos didáticospara uso dos alunos e professores do ensinoelementar. O baiano Abílio Cesar Borges, pri-meiramente, e mais tarde, Felisberto de Carva-lho, Hilário Ribeiro, Romão Puiggari, Arnaldode Oliveira Barreto, Francisco Vianna, JoãoKöpke e outros produziram nossas primeirasséries graduadas de livros de leitura. Livrosque foram verdadeiramente nacionais (…)concorrendo de modo nada desprezível paraa unidade brasileira de sentimento. (PfromNetto, 1974, p. 170)

As biografias dos nomes citados indi-cam uma diferenciação de formação e expe-riências quando comparamos com o grupo an-terior, mais homogêneo em sua composição.

Os autores dessa geração possuíam, namaioria das vezes, experiências pedagógicasprovenientes de cursos primários, secundáriosou de escolas normais voltadas para a forma-ção de professores. A prática pedagógica des-ses autores refletiu, parcialmente, uma preocu-pação menos limitada quanto às opções educa-cionais, saindo da esfera do ensino puramentedestinado à formação das elites.

A qualidade de “sábio”, capaz deadaptar os textos estrangeiros, realizando es-crituras baseadas em obras científicas, seguin-do o modelo de compêndios destinados àselites de outros países passou a ser alvo de

críticas por parte de alguns desses educado-res. Surgiram preocupações com a elaboraçãode livros destinados especialmente às crianças,atentando para as especificidades do públicoinfantil.

As editoras, por seu turno, consideran-do seu público consumidor, estavam atentas àspreferências dos professores. Livros do nívelsecundário com maior sucesso de venda eramos provenientes “das aulas” dos professores. Olivro Lições de História do Brasil, de JoaquimManuel de Macedo, se originou das aulas desseprofessor no Colégio Pedro II e inovava pelosexercícios e atividades pedagógicas ao final decada capítulo ou “lição”.5 Para professores semformação específica, o livro didático represen-tava “o método de ensino”, além de conter oconteúdo específico da disciplina. A formaçãodo professor, ao ser constituída na prática, no“aprender fazendo” exigia uma produção didá-tica específica que intelectuais preocupadoscom o conhecimento científico ou literário, massem a vivência da sala de aula, eram incapazesde produzir com sucesso.

Esse período correspondeu a uma sen-sível mudança quanto ao público do livro didá-tico. O livro didático traz, desde sua origem,uma ambigüidade no que se refere ao seupúblico. O professor é figura central, mas existeo aluno. O livro didático não pode separá-los.A partir da segunda metade do século XIXpassou a se tornar mais claro que o livro didá-tico não era um material de uso exclusivo doprofessor, que transcrevia ou ditava partes dolivro nas aulas, mas que ele precisava ir direta-mente para as mãos dos alunos. O aluno era (eainda é) um público compulsório, mas assumi-lo como consumidor direto do livro significava,para autores e editores, atender a novas exi-gências, transformando e aperfeiçoando a lin-guagem do livro. As ilustrações começaram a setornar uma necessidade, assim como surgiramnovos “gêneros didáticos”, destacando os livros

5. Essa característica inovadora explica as inúmeras edições desse li-vro, cuja primeira edição é de 1861 e a última, de 1924.

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de leitura e os livros de lições de coisas, não selimitando mais a compêndios e cartilhas.

Escrever um livro didático apresentavadesafios, e os editores possuíam consciência dacomplexidade da tarefa. Entre outros desafioshavia o de elaborar textos que pudessem mes-clar narrativas e “atividades” de aprendizagem,compondo as relações de ensino e aprendiza-gem. O “discurso” do livro didático é semprecomplexo e de difícil denominação, variandoentre um “discurso científico” e um “discursoliterário”.

A valorização das experiências pedagógi-cas do escritor passou a ser fortemente conside-rada por parte dos editores como critério de es-colha dos autores. Da mesma forma, a seleçãodestes voltava-se para os que acompanhavam osavanços pedagógicos dos países onde a alfabe-tização se estendia para uma população cada vezmaior. A qualidade principal, entretanto, exigidado autor de livro didático para a escola elemen-tar, era sua capacidade de “bom escritor”, ou seja,possuir qualidades literárias para atingir aespecificidade de um público infantil e juvenil.

A idealização governamental dos auto-res das obras didáticas, nos primórdios do sé-culo XIX, centrada na figura do “sábio” paracumprir esta tarefa “patriótica” modificou-se,mas sem desaparecer totalmente. O discursosobre a elaboração de textos escolares como“missão patriótica” permaneceu. As modifica-ções ocorreram sob a concepção de “sábio” oudo “sábio mais adequado” para escrever com-pêndios e livros de leitura. O incentivo gover-namental marcante da época foi o de oferecerconcursos para “melhores obras” que teriam apublicação garantida e prêmios monetários aosautores. O “lugar” da produção deslocou-se,situando-se na esfera mais específica do podereducacional, e provocou novas articulações dossetores editoriais na escolha dos autores.

A nova “geração” de autores caracteri-zou-se por sua heterogeneidade, por divergên-cias inevitáveis, uma vez que produziam paraum público ampliado, não se limitando maisaos filhos dos grandes proprietários rurais e

comerciantes. Tratava-se de um público bastan-te diferenciado, compreendido por alunos deescolas de ensino elementar, com idades va-riáveis, por adolescentes desejosos de seguircarreiras no setor terciário, muitas vezes oriun-dos de classes menos favorecidas da socieda-de e por jovens da elite econômica, agoraacrescida por elementos do sexo feminino.

Autores autônomos

Um ponto de divergência entre os au-tores relacionava-se ao tema da alfabetização.A opção do método de alfabetização não seexplicava apenas por razões didáticas. Ela ex-pressou conflitos políticos que começaram nosúltimos anos da década de 1870 e se estende-ram até o início do século XX.

A escolha do método analítico para aalfabetização, em oposição ao usual métodosintético, representava a posição dos grupos deeducadores defensores de uma escola laica. Osseguidores do método analítico eram, em suamaioria, republicanos com o discurso voltadopara uma democratização do saber escolar e,contrários ao espírito tradicional de educação,cujo ensino era calcado em métodos da Igreja.

A divulgação de autores e suas obraspelo jornal a Província de São Paulo é umaamostra da luta pela implantação de uma esco-la laica. O jornal paulista propugnava um libe-ralismo no qual a escola particular era o sím-bolo de “liberdade de ensino”, entendida comoescola livre das imposições da Igreja Católica edo Estado. O jornal Província de São Paulo foium veículo importante para fazer propaganda deautores oriundos de escolas particulares leigas,esforçando-se em criar uma imagem para a escolaprivada como sendo a de melhor qualidade. Osproprietários do periódico paulista entendiam quea divulgação das obras escolares, notadamente dediretores de escolas particulares, significavaprestigiar e moldar a opinião pública para asvantagens da iniciativa particular, embora nãoabdicassem da defesa das subvenções de verbasdo Estado para tais iniciativas.

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O grupo de autores divulgados pelo jor-nal a Província de São Paulo foram defensores deum ensino renovado, moldado, muitas vezes nosmodelos norte-americanos. Foram os precursoresda formulação de um discurso sobre a neutrali-dade do ensino, objetivo e sem dogmas. Na di-vulgação de livros escolares, seus autores predi-letos foram Abílio César Borges, João Köpke,ambos proprietários de escolas particulares.

O hábito de diretores de escolas par-ticulares se dedicarem à composição de livrosescolares não era recente. Antonio Álvaro Pe-reira Coruja, considerado como autor da pri-meira gramática escolar brasileira, publicadaem 1835, no Rio Grande do Sul “organizou [,]e manteve na Corte, um colégio famoso, o Co-légio Minerva, onde continuou a publicar li-vros escolares de variadas disciplinas” (PfhromNetto, 1974, p. 194).

Menezes de Vieira, antes de tornar-sediretor do Pedagogium, era conhecido na ca-pital do Império pelo seu colégio, famoso porter introduzido o método Fröebel no Brasil, in-centivando a criação dos “Jardins de Infância”.Menezes Vieira aliava a direção escolar com aprodução de obras didáticas para o ensino pri-mário, que ele próprio se encarregava de publi-car, tendo inclusive criado a Tipografia do Co-légio Menezes Vieira. Os livros didáticos eramanunciados em revistas e jornais do Rio de Ja-neiro, difundindo com a mesma ênfase do jor-nal A Província de São Paulo, o ideário da es-cola privada:

As noções de gramática que o consciencio-so e adiantado diretor do Colégio MenezesVieira acaba de dar a estampa representamum trabalho que se funda na racionalidadedo ensino intuitivo, e conseqüentemente daeducação positiva, a única que pode formarcidadãos suculentamente instruídos e aptospara os misteres da vida e da sociedade. Alise encontram os processos recomendadospela moderna ciência pedagógica: a instru-ção, o raciocínio e a prática aliaram-se naspáginas do precioso livrinho. (Vieira, 1887)

João Köpke foi outro exemplo de autorque desenvolveu suas habilidades de escritor deobras escolares em seu próprio estabelecimen-to de ensino, a escola Neutralidade, em SãoPaulo. Köpke iniciou sua carreira de escritor ediretor na capital paulista, ficando conhecidocomo defensor do método analítico. A utiliza-ção do método analítico na alfabetização inse-riu-se nas disputas e divergências políticasentre os próprios republicanos. Köpke criticavao método analítico de João de Deus, intelectualportuguês e militante político cuja obra foiamplamente divulgada pelos republicanos maisradicais brasileiros. Silva Jardim foi um deles.Köpke reelaborou e adaptou o denominadométodo analítico, divulgando-o em vários livrosescolares e suas divergências com Silva Jardimforam ocasionadas pela “ortodoxia positivistaque separou de mim o estremo companheiro”(Köpke, 1896, p. 2).

Outros diretores poderiam ser citados,mas o autor que melhor pode representar essegrupo é Abílio César Borges. O “amigo das crian-ças” escreveu uma vastíssima obra didática, criouinúmeras escolas na Bahia, no Rio de Janeiro e emBarbacena, Minas Gerais. Muito elogiado, sendoagraciado com o nobre título de “barão deMacaúbas” pelo imperador, em razão dos “servi-ços prestados à grande causa patriótica: a edu-cação”, teve biografias que destacaram suas obrasescolares. Abílio César Borges, diretor geral dainstrução da Bahia, fundou o Ginásio Baiano,e depois se transferiu para a Corte, no Rio deJaneiro, criou o Colégio Abílio e outro emBarbacena, Minas Gerais, atraindo os filhos daselites pelas inovações pedagógicas. O colégioda capital do país ficou reno-mado por com-bater a palmatória, criando uma imagem deescola laica moderna, em oposição ao mode-lo fradesco e truculento das escolas con-fessionais.

Entretanto, o método, o personagem ea obra didática foram objeto de críticas. RaulPompéia, ex-aluno do famoso colégio, em suaobra O Ateneu, revela outras facetas do diretore sua obra:

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Eram boletins de propaganda pelas provín-cias, conferências em diversos pontos dacidade, a pedidos, à sustância, atochando aimprensa dos lugarejos, caixões, sobretudo,de livros elementares, fabricados às pressascom o ofegante e esbaforido concurso deprofessores prudentemente anônimos, cai-xões e mais caixões de volumes cartonadosem Leipzig, inundando as escolas públicasde toda a parte com a sua invasão de ca-pas azuis, róseas, amarelas em que o nomede Aristarco, inteiro e sonoro, oferecia-se aopasmo venerador dos esfaimados de alfabe-to dos confins da pátria. Os lugares que osnão procuravam eram um belo dia surpre-endido pela enchente gratuita, espontânea,irresistível! E não havia senão aceitar a fari-nha daquela marca para o pão do espírito.(Pompéia, 1905, p. 8)

É difícil provar se o diretor Abílio con-tou com o concurso de “anônimos professores”como afirmou o autor do Ateneu, mas a quan-tidade e a variedade de obras que deixou podemlançar algumas dúvidas sobre a possibilidade deserem realmente trabalhos de um único indiví-duo. Foram produzidas e postas em circulação,sob sua autoria, cerca de 400 mil volumes e 22títulos, com variadas edições revisadas.

A existência de professores anônimosna composição de obras didáticas é difícil deser detectada, mas desde meados do século XIXpassou a existir a prática de autores renomadosassinarem obras feitas por auxiliares desconhe-cidos, tornando-se uma espécie de marca regis-trada e, em situação oposta, existiram (ou exis-tem) autores com pseudônimos, escondendosua identidade.6

Mas independentemente das formas en-contradas para a produção de textos didáticos,temos que o barão de Macaúbas assim comoJoaquim José Menezes Vieira foram represen-tantes de um grupo de autores específicos e sig-nificativos do processo de escolarização brasilei-ra. Esmeraram-se em criar uma imagem de ino-vadores pedagógicos, com projetos centrados na

escola particular mas sob a proteção do gover-no, monárquico ou republicano, que garantia osucesso de suas escolas e de suas obras. Obrasprestigiadas pela imprensa tiveram ainda umapeculiaridade: marcaram o movimento delaicização escolar. Em geral as obras desses au-tores sofreram várias reedições, mas não foramde “longa duração”, limitando-se à primeiradécada do século XX.

Esses autores caracterizaram-se aindapor uma produção independente da escolhadas editoras. Eram seus supostos autores detextos, encarregavam-se dos custos de ediçãoe impressão e escolhiam as editoras para suasobras. Abílio César Borges teve um númeroconsiderável de livros publicados pela editoraAillaud, Guillard sediada em Paris. Aparentemen-te não tinha interesse lucrativo com a vendados livros pelas informações que temos sobre adistribuição gratuita que fazia de suas obraspor várias regiões do país. Entretanto, a proxi-midade com o poder imperial garantiu a aqui-sição de obras pelo governo para que o autorpudesse distribuir “gratuitamente” nas escolas.

Juntamente com esses autores ligadosàs escolas particulares, a produção didática desetores religiosos também desempenhou umpapel significativo nesse período.

Compondo a lista de professores que setornaram famosos como escritores de compên-dios, temos os oriundos de escolas protestantesde São Paulo: Antonio Trajano e Júlio Ribeiro.Esses autores foram bem aceitos por parte dosliberais paulistas, por representarem uma formade oposição aos textos de autores católicos.

Antonio Trajano produziu livros de arit-mética e álgebra para as escolas primárias e

6. O caso exemplar de autor “de marca registrada” foi Victor Duruy,historiador francês, ministro da Instrução Pública da França (1863 a 1869)e professor de história do Liceu Napoleão (antigo Liceu Saint Louis), um dosprimeiros grandes nomes de autores didáticos da editora Hachette de Pa-ris. Para a segunda situação temos o cônego Fernandes Pinheiro, que as-sinava obras como Sá e Menezes ou então escrevia textos sem que cons-tasse a autoria: “O cônego dr. Joaquim Caetano Fernandes Pinheiro cedea B.L. Garnier a sua História Contemporânea desde 1815 até 1865,publicada sem o nome do autor mediante as seguintes condições (…)”.Manuscrito Arquivo da Editora Itatiaia, Belo Horizonte.

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secundárias e com Aritmética elementar ilustra-da, obra premiada na Exposição de 1883 do Riode Janeiro, tornou-se um autor nacionalmenteconhecido. Júlio Ribeiro, mais conhecido comoromancista, foi “o verdadeiro introdutor, nasescolas, da nova e brilhante fase do ensino dalíngua portuguesa” (Almeida, 1889, p. 159).

A projeção de autores de origem protes-tante não significou a ausência de religiosos ca-tólicos na tarefa a que vinham se dedicando hátantos anos. Os jesuítas retomaram suas ativida-des pedagógicas lentamente no decorrer do sé-culo XIX e deixaram algumas obras escolares. Omais famoso escritor didático, dentre os jesuítas,foi o padre Rafael Maria Galanti, professor noColégio Anchieta em Nova Friburgo. Os clérigosseculares que assumiram cátedras no ColégioPedro II ocuparam-se da literatura escolar com-pondo livros próprios, como o cônego FernandesPinheiro, ou como tradutores. Personalidadesmais eminentes da hierarquia religiosa tambémcontribuíram para os trabalhos pedagógicos,notadamente produzindo livros de religião, disci-plina obrigatória durante o Império, e catecismosou livros de História Sagrada.

A produção das obras de autores reli-giosos, em princípio, deveria seguir os progra-mas curriculares oficiais, entretanto, sua circu-lação dependia da autorização eclesiástica. OImprimatur, assinado e datado por autoridadesreligiosas dos locais da edição, visível nacontracapa do livro, representava a censura e aforma de interferência no texto dos autores emrelação à produção didática. A edição de qual-quer livro destinado às escolas católicas depen-dia dessa chancela.

A contribuição maior do setor católicopara a literatura escolar ocorreu com a vindados irmãos maristas e a instalação de sua edi-tora, a FTD. As obras didáticas, de carátermarcadamente europeu, compuseram um acer-vo didático que se opôs à tendência “naciona-lista” então em voga. Os autores anônimos daFTD começaram a disseminar livros impressosno exterior, traduções que em sua maioria fo-ram sendo consumidas pelo número crescente

de escolas confessionais católicas no início doséculo XX. A questão do “nacionalismo educa-cional” encontrou em tais autores verdadeirosopositores, incluindo as questões metodológicase pedagógicas, com muitas obras mantenedorasdo método catequético organizado com per-guntas e respostas.

Autores de best-sellersdidáticos

Durante o período republicano, sobre-tudo, pudemos listar um número significativode autores que exerciam cargo de inspetores deinstrução ou que fizeram parte de Conselhos deInstrução. Embora muitos deles tivessem pro-duzido obras pouco conhecidas, limitadas apouco mais de uma edição, alguns consegui-ram se sobressair, tornando-se nomes famososda literatura escolar.

O mais famoso escritor de livros esco-lares que iniciou sua carreira como inspetorescolar foi Olavo Bilac. O renomado poeta co-meçou a compor textos escolares com ManuelBomfim, então diretor de Instrução Pública doDistrito Federal. Juntos escreveram o Livro decomposição, um Livro de leitura e o célebreAtravés do Brasil, publicado anos mais tarde,em 1910. Com Coelho Netto, Bilac publicouContos pátrios em 1904, obra de inúmerasedições assim como suas Poesias infantis.

Um outro autor de sucesso cuja origemfoi a prática escolar foi o já citado Felisberto deCarvalho. Na página de rosto do Dicionáriogramatical, ele era apresentado como

professor público da província do Rio deJaneiro, habilitado pela Escola Normal damesma província; ex-professor interino dacadeira de português da extinta escola Nor-mal para o sexo feminino, professor interinoda segunda cadeira na atual escola; membrodo Conselho de Instrução. (Carvalho, 1886)

Felisberto de Carvalho escreveu obrasde gramática, geografia, educação moral e cívi-

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ca, história natural e higiene sendo, entretanto,seus livros mais famosos e de “longa duração”,os cinco livros de leitura publicados inicialmentena década de 1880 com reedições até 1959.

Obras e autores que se tornaram famo-sos e alcançaram altos índices de vendagemrepresentavam o espírito de renovação educa-cional iniciado no final do século XIX. As po-sições que muitos desses autores ocupavam emsetores educacionais proporcionavam a elabo-ração de textos com maior probabilidade deaprovação por atenderem aos critérios dos Con-selhos de Instrução Pública.

As relações entre editor e autor erammuito próximas quanto aos procedimentos paraa obtenção de certidão de aprovação dos livrospelos Conselhos Diretores de Instrução Pública.Mas, além da aprovação oficial, as editoras esco-lhiam autores “que tivessem uma margem devenda garantida”, com aceitação pelo público. Oautor, por outro lado, esperava da editora “ainfra-estrutura para a composição, propaganda edistribuição de seus livros” (Cabrini, 1994, p. 66).

Um editor em particular percebeu o novocenário educacional e as perspectivas mercado-lógicas que se abriam. Francisco Alves, depois deassumir a firma criada pelo tio Nicolau Alves apartir de 1897, passou a investir com maiorempenho na produção didática e acabou quaseque monopolizando a produção nessa área apartir do século XX. Além de estender uma efi-ciente rede para a venda dos livros por todo opaís, Francisco Alves comprou várias editorasmédias e pequenas. De acordo com Hallewell,

muitas dessas aquisições — houve pelomenos dez delas — foram feitas para con-seguir determinados direitos de edição.Francisco Alves comprou a pequenina li-vraria da Viúva Azevedo, apenas para ob-ter os direitos da Antologia nacional deFausto Barreto e Carlos Laet, amplamenteadotadas nas escolas. A Livraria Melilo, deSão Paulo, foi comprada porque os livrosde João Köpke por ela editados eram osprincipais competidores dos de Felisberto

Rodrigues Pereira de Carvalho, editadospela Alves. (1985, p. 211)

Francisco Alves, além das estratégias devenda e formas de atração de autores comobras já conhecidas, oferecia contratos quegarantiam retorno financeiro significativo, mes-mo para professores renomados de escolas fa-mosas. O caso de João Ribeiro, professor doColégio Pedro II e autor de vários livros dehistória e literatura para o ensino primário esecundário, expressa a opção do autor para seuofício de “escritor de obras didáticas”:

João Ribeiro (...) de família numerosa, semgrandes recursos. Necessitava dedicar-se aoensino e à elaboração de livros didáticos,como forma de trabalho para o sustento dosseus. (...) Mas o argumento decisivo — fi-nanceiro — justificava a opção por compên-dios, de retorno mais garantido, porque es-critos por um Catedrático do Colégio, nessaépoca ainda rótulo reconhecido socialmente,por isto mesmo apresentado na capa dasobras didáticas. (Gasparello, 2004, p. 163)

Os ganhos financeiros dos autores in-centivaram de maneira considerável essa gera-ção de escritores de obras didáticas, conformeatestam as biografias de muitos deles. Havia ointeresse em difundir métodos de ensino reno-vados, havia interesses de interferência na for-mação das novas gerações, mas o retorno fi-nanceiro também era considerado pelos auto-res. A postura de interferência do editor justi-fica-se porque, sobretudo, cabia a ele garantira venda do livro.

A análise dos contratos entre FranciscoAlves e seus autores feita por Aníbal Bragançamostra diferentes formas de pagamento dostextos e expressa a existência de variadas ma-neiras de apropriações das edições subseqüen-tes pelos editores:

Os editores, por escritura de 05.01.1900, ad-quiriram ao autor, a “propriedade plena” des-

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tes dois livros, pagando a Thomaz Galhardo9:000$000. em 12 (1+11) prestações mensaisde 750$000.” (1999, p. 465)

Conceição Cabrini em seu estudo sobreFelisberto de Carvalho fornece ainda importan-tes dados sobre as interferências do editor notexto. O poder de modificar, ampliar, incluirimagens, entre outras formas de intervenção doeditor no texto do autor dependia do contra-to. Uma cláusula do contrato assinado entreFelisberto de Carvalho e Francisco Alves mos-tra, por exemplo, que o

Quinto Livro de Leitura, com cerca de 450páginas, em 16, francez foi comprada pelaquantia de dez contos e 500 mil réis (...)podendo os outorgados dispor inteira eexclusivamente o livro para fazer tantasedições quantas lhes convenham, sobre oformato e título que julgarem convenientes,podendo mesmo resumir, vir aumentar o li-vro em futuras edições, vir juntá-los, virreuní-los a outros trabalhos. (1993, p. 68)

Outros contratos garantiam menor in-tervenção do editor na obra, sobretudo no casodo autor assumir parte dos custos e, neste caso,o preço do livro e a porcentagem do autoreram diferentes. Os direitos do autor sobre aprópria obra tinham assim variações.

A editora Francisco Alves acompanhouas inovações tecnológicas na fabricação dos li-vros, mantendo associações com empresas edi-toriais no exterior, sobretudo, para garantir im-pressões com menor custo. A visão empresarialdo editor possibilitava colocar o livro no merca-do a preços mais baixos, facilitando sua difusãoe possibilitando uma “longa vida” para muitosdos seus best-sellers. Considerando esta outraimportante característica do livro didático — ogrande número de reedições — pode-se enten-der também o poder de interferência maior doeditor nas adaptações e renovações da obra.

O comportamento dos professores emrelação ao livro didático tem sido bastante con-

traditório desde esse período. Exigem obrasatualizadas, mas ao mesmo tempo desconfiamdas renovações pedagógicas que alteram a con-figuração do saber escolar, tanto nos conteúdosquanto nos métodos de ensino. Daí o cuidadodos editores em oferecer uma obra aparentemen-te nova (capa, certas ilustrações, títulos), massem mudar efetivamente o conteúdo.

Um número significativo de obras pro-duzidas no final do século XIX e início do sé-culo XX teve inúmeras edições e foram usadaspor várias gerações de alunos. Além das obrasda editora Francisco Alves, que encabeçaram aslistas de livros aprovados e adotados nas esco-las primárias e secundárias oficiais até 1920, li-vros de outras editoras, especialmente as des-tinadas às escolas confessionais, também tive-ram “uma longa duração”. O catálogo da CasaBriguiet de 1936 traz livros de Joaquim Mariade Lacerda, um autor religioso de variadasobras para o ensino elementar produzidas nadécada de 1880. O falecimento do autor nãodiminuiu a venda de suas obras, conforme ates-tam os catálogos que indicam as “atualizações”realizadas por outro autor em seus textos ori-ginais. A permanência dessas obras comprova aimportância da “tradição escolar” e o alcancedas mudanças às quais autores e editores esta-vam ou ainda estão submetidos, no processo dereformulações curriculares.

A trajetória de produção dos primeirosautores brasileiros possibilita identificar algumasdas características das relações entre autor, editore Estado. Permite constatar as especificidades dotexto didático e a complexa teia de interferên-cias a que o livro é submetido. Esses primeirosautores, com maior ou menor autonomia, foramos criadores de textos didáticos que possibili-taram a configuração de uma produção nacio-nal, com características próprias. Mesmo que aforma se assemelhasse aos livros estrangeiros,os textos escolares expressaram uma produçãoprópria que buscava atender as condições detrabalho dos professores das escolas públicasque se espalhavam pelo país. Procuravam suprira ausência de formação dos docentes, em sua

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grande maioria leigos e autodidatas.Os editores sempre estiveram atentos a

essas especificidades. O interesse comercial, en-tretanto, nunca saiu do horizonte de seu idealde promotor da cultura letrada. B. L. Garnier,editor responsável pela publicação de váriasobras da literatura nacional, como as José deAlencar e Machado de Assis, afirmava que olivro didático era “a carne” da produção edito-rial em contraposição às obras de literatura ou“científicas” que corresponderiam aos “ossos”.

A comercialização do livro didático, noentanto, sempre esteve dependente do Estado,quer pelo seu poder de aprovação quer comocomprador, condição que conduziu os editores aestratégias diversas de aproximação com o podereducacional. Uma delas era assegurar a presençade autores que estivessem de alguma forma pró-

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A história dos autores de obrasdidáticas possibilita uma maior reflexão sobre afunção do autor nessa produção específica ebastante diversa dos demais livros. O problemada autoria da obra didática não é recente, con-fluindo em sua confecção muitos sujeitos. Ahistória do livro didático mostra as mudançasquanto ao grau de interferência entre os diver-sos sujeitos assim como as mudanças das polí-ticas educacionais em relação a esse significati-vo objeto cultural, símbolo da escola moderna.

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Recebido em 07.10.04

Aprovado em 03.11.04

Circe Maria F. Bitencourt é professora doutora do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação da USP edoutora em História Social pela Faculdade de Filosofia Ciências e Letras da USP.