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    CAPTULO 11

    A VELHICE TANGVEL

    Elaine Moura1

    2.1. As bioidentidades : a cincia e o sentido da existncia

    Dentre as vrias formas de se interpretar a velhice, possvel situar ta m bm um

    discurso que a patologiza, concebendo o envelheci mento como processo passvel de

    tratamento c substituindo os referentes cu l turais por referen tes fisicos. Nesta concepo.

    confunde-se sade com juventude e o olha r sobre a velhice passa a se ater sobre as

    mudanas corporais, observadas exclusi vamen te como degenerao do organismo

    (Groisman. 2002)

    Pa rtindo da avaliao de Birman (2007) entende-se que esta interpretao

    fundamenta-se em uma passagem de ordem histrica e em uma mudana

    epistemolgica. a partir das quais a medicina cientfica passa a ocupar l ugar central na

    regulao da vida social.

    Acerca da 'moderni dade', preciso compreender que as sociedades

    ocidenta is passaram a ser pern1eadas pelos discursos mdicos, os quais

    passaram a regular desde ento todas as prticas e laos sociais. Assim, a

    modernidade ocidental impl icou uma med ica l izao' d o campo socia l como

    um todo. Desde ento, port an to, nada seria estra nho e exterior ao olhar

    mdico. que passou no apenas a interpretar a totalidade dos acontecimentos

    sociais. mas tambm a intervir so b re ela.

    BlRJvl AN: 2007: 533

    A corporeidade - a mparada pelo estatuto de 'verdade' do saber biomdico -

    passa ento a sobrepor outras di menses do humano, reduzindo-o a uma conti ngncia

    funcional , cuja subjetividade se referencia na anatomia e nos processos orgnicos. A

    crena no binmio sade/felicidade se estabe lece articulada associao imaginria

    en tre perfeio fisica e retido de conduta.

    A imagem de um corpo saudvel, calcado na exterioridade, se sustenta na

    exibio da aparncia rejuvenescida, visto que a perda de a tri butos da juventude

    corresponderia perda da prpria condio de sade. A lm de demonstrar o fracasso do

    sujeito na tarefa de cuidar de si, tal qual um dever moral, a exposio de marcas, rugas,

    1 Sociloga e ps-graduada na Escola de Sociologia Poltica de SP.

    Este captulo compe o TCC "DISCURSOS CONTEMPORNEOS SOBRE A VELHICE: DO ESTATUTO BIOLGICO AO SOCIAL" da autora.

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    doenas crnicas, fragilidade, dependncia, dentre outras caractersticas que podem

    acometer os idosos, expe o inexorvel encontro com a finitude e a impossibilidade de

    dominar por completo o curso do viver.

    O conjunto de tecnologias capazes de prolongar a expectativa de vida,

    estendendo artificialmente, por vezes, este perodo, assim como aquelas que se

    oferecem para retardar o aparecimento de sinais de envelhecimento compe hoje um

    movimentado e rico mercado. Representam tanto o desenvolvimento do campo

    tcnocientfico quanto a busca pelo controle da vida, extensivo ao domnio da natureza.

    A promessa do bem estar, conjugando sade e longevidade, se mostra ao sujeito como

    possibilidade de expulsar os contl itos da vida humana prevenindo disfunes fsicas.

    Investe-se na noo de qualidade de vida associada busca de um ideal de

    sade, focado na chamada capacidade funcional do sujeito e em sua performatividade.

    A vivncia da velhice passa a ser redescrita a partir da busca do controle corporal e as

    subjetividades contemporneas conformadas atravs dos discursos da tecnocincia

    (Biehl. xxxx). Neste ponto, a identidade dos sujeitos reitera-se na referncia biolgica e

    extrai dela os significados da existncia.

    Tomada por Lucien Sfez ( 1 996, pg.24) como utopia do sculo XXI , a 'Grande

    Sade' restaria como projeto mundial, expressa em corpos perfeitos, construdos a base

    de controle e preveno.. O foco da ateno redirecionado para o viver e "pa ra fazer

    viver as biotecnologias".

    Pois, se h um lugar que resiste dissoluo do sentido, este lugar o nosso

    corpo, centro e foco de uma identidade, portador da continuidade da espcie

    humana {...} Radiografado, auscultado, em suas menores dobras, substitudo

    por pedaos, enxertado em todos os sentidos, prometido sobrevida de seus rgos, o corpo humano fonte e foco de pesquisas, tecnocientificas e

    paracientificas, provocando uma inflao de proibies e de injunes que

    confluem num discurso de mdia bastante confuso, e de prticas autoritrias

    at o tota l itarismo {...} Desdobra-se ento uma espcie de atividade de

    controle destinada a preservar a espcie humana dos -hbitos singulares dos

    indivduos. culminando na introduo de uma mora l sanitria "politicamente

    correta"

    SFEZ: 1996:41

    Frente ao enfraquecimento de referenciais tradicionais como a famlia, a religio

    e as utopias polticas, a busca pelo sentido da existncia volta-se para o corpo,

    materialidade apontada como capaz de conferir segurana, um saber e uma verdade

    sobre o ser.

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    A face narcisista e hedonista expressa nos valores identitrios da

    contcmporaneidade remonta a uma concepo segundo a qual. como demonstra Jurandir

    Freire Costa no artigo A Subjeti vidade Exterior. "o suje ito o ponto de partida e

    chegada do cuidado de si" e que "Quanto maior. mais imediato, mais constante for o

    prazer. mais feliz o sujeito". Neste cenrio o autor observa a configurao de um novo

    tipo identitrio: a bioidentidade. acompanhada pela bioascese, a exigir al ta dose de

    disciplina contra hbitos deletrios. U m modelo pautado pelo indi viduali smo e guiado

    pela noo de qualidade de vida, tributria dos ditames naturalistas. Mais adiante, no

    mesmo artigo. exemplifica "O justo o saudvel; o reto o que se conforma ao projeto

    de vida bem-sucedida. do ponto de vista biolgico".(id.ibidem. pg. 3).

    A vel hice. analisada sob o paradigma bioidentitrio. confronta o sujeito com o

    ideal de perfeio do di scurso cientfico disposto nas prticas bioascticas. Em busca de

    adaptar-se norma. ou seja, ao modelo vigente, o sujeito adere a uma conduta de

    constante autovigilncia e autocontrole. Como indica Ortcga:

    O auto-aperfeioamento ind ividual t ornou-se um significante privilegiado por meio do qual os indi vduos exprimem s ua autonomia c se constituem

    num mundo competi tivo. A travs das numerosas prticas bioascticas, o indi vduo demonstra sua competncia para cuidar de si e construir sua identidade.

    ORTEGA: 2003: 65

    Entretanto. o corpo "por onde circulam nossos conOitos pulsionais. onde nossas

    representaes recalcadas so traduzidas, por onde expressamos nossas emoes, nossos

    apetites e nossas trocas com o mundo" (Messi na, 2002. pg 3). mesmo submetido a

    rgida rotina disciplinar , no deixa de ser campo ingovernve l e de permanentes

    transformaes. Diante do processo irreversvel do envelhecimento, da imagem no

    reconhecida, disforme e em desacordo com os padres esperados, o sujeito confronta-se

    com sua impotncia.

    Envelhecer ento pode assumtr um carter de falha explcita e reiterada.

    Submetido lgica da intensa exposio. de onde a visibilidade lhe garante existncia

    no mundo social, o sujeito encontra-se tambm vulnervel ao olhar vigi lante do Outro.

    A cada si nal que desestabiliza os ndices da boa sade e da imagem idealizada. o sujeito

    considerado inapto, fraco, desviante; alm de ser responsabilizado por no ter

    empenhado os esforos necessrios pa ra evitar tal condio.

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    2.2. O mal estar na velhice- excluso da cena espetacula r

    Retomando o texto clssico de freud ( 1 930), no qual o mal esta r descrito como

    condio estrutural do humano, pode-se, a exemplo de Bauman (1998) na crtica ps-

    modernidade, circunscrev-lo aos condicionamentos de um perodo histrico. Para alm

    da a nlise sobre a constituio do psiquismo h u mano e das consideraes acerca da falta

    e do desa mparo inerentes a ele, observa-se que os ideais sociais so tambm agentes de

    mal estar. Na perspectiva do saber analtico, o conheci mento que avana sobre a

    singula ridade, avana tambm sobre o tipo de lao social disposto pela contingncia

    histrica. Assim, os sintomas que ressoa m na atual idade tanto tm a di zer sobre o

    sujeito quanto sobre sua poca.

    Diversas anlises identificam na chamada ps-modernidade uma crise referente

    ao acirramento entre aqui lo que o sujeito assume ao cumprir a lgica do individualismo

    -colocando-se como centro da cul tura, despojado da tradio e da temporalidade -e os

    limites impostos por sua cond io transitria, precria e finita. Na anl ise de Contardo

    Calliga ris (1993), para que advenha o indi vduo, nega-se a hera na simblica, gerando

    uma a usncia de "recursos identi ficatrios".

    Ora. se uma cull ura - a ocidental - consiste em fazer do indivduo o valor social maior, preciso entender que esta cultura, quando se transmite, se

    t ransmite com o imperativo de odi-la. Pois o indivduo que seu valor supremo, somente poder se afim1ar ao recusar a cu llura que lhe est sendo transmitida.

    CALLIGAR IS: 11 93:188

    A pontando outros elementos desta crise, Mario Pablo Fu ks ( 1 999. pg.70)

    conclui ''Na ps-modernidade. ser homem implica em ser reconhecido como imagem

    por outro q ue tambm o ", o que prod uz um lao soc ial no qual o outro se torna to

    somente um espectador, compondo relaes esvaziadas e superficiais. Adia nte comenta:

    "Na composio da personagem que identifica o sujeito. num cenrio social concebid o como espetculo, a imagem do corpo ganha um papel de relevncia. A exacerbao da lgica d e sujeitos-fachada, constitudos de imagem. sem volume nem interioridade. ter fortes efeitos patognicos que envol vem a corporal idade {..}

    FUKS: ibidem: 72

    Se o lugar soc ial da velhice demarcava-se pela transmisso de valores c saberes

    e hoje estes se disseminam a travs de meios diversos, alm de haver uma tendncia a

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    dissolver a temporal idade numa contnua reiterao do tempo presente, Goldfarb ( 1998,

    pg 13) prope "Cabe ento perguntarmos sobre a particular subjetivao do "ser velho"

    em um momento histrico onde a velhice perdeu as atribuies prprias da sociedade

    tradicional"{...}.

    O mal estar que caracteriza a condio humana, advindo de sua estrutura

    faltante, incide sobre a velhice de modo pronunciado medida que, na formao social

    atual. grande parte dos velhos encontra-se fora das relaes produtivas do mercado de

    trabalho. fora da dinmica produtor/consumidor, conseqentemente vi ve sem

    visibi lidade social e portanto, inexiste ao olhar do Outro. Na avaliao de Bauman

    ( 1 998), o critrio de pureza da ps-modernidade - tal como um ideal capaz de dar

    segurana aos indivduos contra estranhos e impuros - se assenta na "aptido de

    participar do jogo consumista" e na "hostilidade a qualquer coisa constante". Assim,

    aqueles que no se mostram capazes de exercer sua 'li berdade individual' realizando

    escolhas frente s mltiplas ofertas do mercado, so falhos e representam a impureza do

    sistema.

    Em relao s mudanas corporais ocorridas durante o enve lhecimento e

    demarcadas na velhice. Messina explcita pontos centrais de outra fonte de angstia,

    face aos rgidos padresestticos de uma cultura facada na imagem do corpo perfeito.

    O corpo do velho, que tem modalidades anatmicas e modalidades de

    encontro com outros corpos, perde seu estatuto erognico com a eroso

    natural c irreversvel da velh ice. A imagem que el e tem de si prprio no

    permanece mais assegurada. Al go em seu corpo no se equ ili bra mais e se

    destri permanentemente enquanto sua mente permanece inquieta por v iver.

    O velho passa ento a vivenciar uma amarga dicotomia entre corpo e mente.

    MESSINA: 2002: 3

    Para Ortega (2003), a angstia se origina na vu lnerabi lidade do sujeito ao

    persecutria do olhar do outro, assim como provm da ambivalncia entre o imperativo

    da busca do prazer e a exigncia de controle corporal. A relao contraditria entre

    hedonismo e disciplina precisa contemplar consumo ilimitado e comedimento, servindo

    integralmente ideologia da sade, para a qual "os sinais da idade tornaram-se marcas

    de averso e patologia".(pg 65)

    Cabe ento observar que a velhice faz furo no discurso contemporneo e o velho

    torna-se um ser dissonante em um sistema de valores que se fundamenta no efmero. na

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    obsolescncia programada. no consumo. na cultura da imagem e nos ideais ligados a

    juventude. A final. vendo-se. aos poucos. despojar-se dos atribu tos imagticos e dos

    recursos materiai s que o tornam apto a partic ipar do espetculo. o sujeito envelhecido

    percebe-se excludo. apartado do ol har do Outro.