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Azerbaijão: análise conceitual de sua inserção no sistema internacional A proposta de escrever sobre o Azerbaijão desperta, a princípio, um conjunto de recordações esparsas e impressões difusas. Vêm à memória antigos relatos de viajantes que, em suas passagens pelo Cáucaso, produziram narrativas divididas entre os cenários fantásticos e os acontecimentos fantasiosos, muitas vezes próximas daquilo que o acadêmico Edward Said definiu como “Orientalismo”: fenômeno no qual as narrativas produzidas por europeus ocidentais reiteravam generalizações e versões distorcidas de sociedades pouco conhecidas por eles, cuja consequência foi aprofundar a visão das diferenças entre os povos. Surgem também impressões forjadas pelo consumo cultural acrítico de filmes e livros contemporâneos que situam o país, assim como sua região, numa espécie de vala comum da memorabilia soviética. Essas abordagens ignoram o tempo decorrido desde a independência nacional e denotam profunda incapacidade de discernimento, ao imaginar como indistinto um bloco econômico e político de proporções continentais. É também forte o impulso automático de inserir o país em uma categoria taxonômica determinada pelo nome: a dos países cujo nome é terminado pelo sufixo “-ão”, de som tão marcante no idioma português. Essa categorização grupal não poderia ser mais distante da realidade, uma vez que os diversos Estados passíveis de ser assim categorizados formariam um grupo extremamente heterogêneo e sem traços

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Análise da inserção internacional do Azerbaijão

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Azerbaijão: análise conceitual de sua inserção no sistema internacional

A proposta de escrever sobre o Azerbaijão desperta, a princípio, um

conjunto de recordações esparsas e impressões difusas. Vêm à memória

antigos relatos de viajantes que, em suas passagens pelo Cáucaso,

produziram narrativas divididas entre os cenários fantásticos e os

acontecimentos fantasiosos, muitas vezes próximas daquilo que o acadêmico

Edward Said definiu como “Orientalismo”: fenômeno no qual as narrativas

produzidas por europeus ocidentais reiteravam generalizações e versões

distorcidas de sociedades pouco conhecidas por eles, cuja consequência foi

aprofundar a visão das diferenças entre os povos. Surgem também impressões

forjadas pelo consumo cultural acrítico de filmes e livros contemporâneos que

situam o país, assim como sua região, numa espécie de vala comum da

memorabilia soviética. Essas abordagens ignoram o tempo decorrido desde a

independência nacional e denotam profunda incapacidade de discernimento,

ao imaginar como indistinto um bloco econômico e político de proporções

continentais. É também forte o impulso automático de inserir o país em uma

categoria taxonômica determinada pelo nome: a dos países cujo nome é

terminado pelo sufixo “-ão”, de som tão marcante no idioma português. Essa

categorização grupal não poderia ser mais distante da realidade, uma vez que

os diversos Estados passíveis de ser assim categorizados formariam um grupo

extremamente heterogêneo e sem traços comuns para além do nome. Tais

esforços descritivos iniciais formam uma espécie de “Azerbaijão imaginado”,

expressão que diz mais sobre a desinformação do observador externo em

relação ao país do que sobre a realidade.

Um exercício que pretenda levar a cabo de forma séria a atuação do

Azerbaijão na arena internacional precisa despir-se de tais ideias pré-

concebidas e apresentar um raciocínio sistemático sobre as características do

país. A análise necessita abordar seu objeto indistintamente de bagagens

culturais anteriores e retratá-lo da forma que ele é: um Estado soberano e

sujeito às condições globais modernas. A apresentação da inserção azeri no

sistema internacional será feita por meio da classificação de eixos conceituais,

cuja função é tornar claras as condições nas quais o país está colocado e quais

as medidas por ele adotadas em relação ao resto do mundo. O contexto

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geopolítico, o Azerbaijão como ator no mercado mundial de hidrocarbonetos e

a atuação do país em organismos multilaterais serão abordados, com vistas a

produzir um diagnóstico breve, porém acurado, do país na contemporaneidade.

O Azerbaijão, quando analisado em termos geopolíticos, pode ser

classificado como importante ator de duas áreas: a região central da Ásia e,

mais precisamente, o Cáucaso. Necessário observar que o primeiro conceito

não deve ser confundido com o a área abrangida pelo termo “Ásia Central”, que

exclui o istmo caucasiano e a Rússia. O geógrafo Halford J. Mackinder, no

trabalho fundador da geopolítica enquanto ciência, “O pivô geográfico da

história”, identificou a região central da Ásia como o espaço fundamental da

disputa de poder mundial. O grande espaço continental, composto por terras

irrigadas e férteis, sem grandes obstáculos geográficos à movimentação

humana, serviria como suporte para a ação do Estado que o controlasse. O

terreno, delimitado a oeste pelas planícies da Europa Oriental e ao sul pelas

montanhas caucasianas e do Himalaia, forneceria uma miríade de recursos ao

seu ocupante e permitir-lhe-ia projetar-se de forma centrífuga, isto é, em

direção ao continente europeu, ao Oriente Médio e ao Oceano Índico. O

conceito desenvolvido por Mackinder fundamentou a atuação regional de

países como o Reino Unido e os Estados Unidos, que buscaram conter a

expansão russa nos arredores – seja no tempo dos czares, seja no período

soviético. Nestes termos, o Azerbaijão configura-se como um Estado essencial

para os interesses geopolíticos no centro asiático, já que, por se situar nos

limites da região central da Ásia e contar com relevo montanhoso em sua

fronteira norte, pode atuar como controlador e mediador do acesso à área –

intermediando, por exemplo, as relações entre o Irã e a Rússia, vizinhos

relevantes para o balanço geopolítico global. A localização azeri permite que o

país seja preponderante nas decisões e atos sobre os fluxos vindos do Oriente

Médio para o centro da Ásia e vice-versa.

Em escala mais precisa, a região do Cáucaso é a moldura geopolítica de

inserção e atuação do país. Dotado de importância em si mesmo, e não

apenas como ponte entre regiões maiores, o Cáucaso é composto também

pela Geórgia, pela Armênia e por províncias meridionais russas, e sua situação

hodierna apresenta-se como um desafio. Dois casos minam a estabilidade local

e apresentam empecilhos para o estabelecimento pleno das soberanias da

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região, meta última dos Estados. O conflito entre a Armênia e o Azerbaijão em

torno da região do Karabakh tem raízes históricas que remontam à propagação

de ideologias expansionistas por parte da Armênia ainda durante o período

soviético. Durante o conturbado processo de mudança política entre as

décadas de 1980 e 1990, tropas armênias efetuaram o desmembramento

territorial do Azerbaijão e estabeleceram um governo, sem reconhecimento

internacional, em nome de um suposto Estado do Karabakh. Os

enfrentamentos cessaram em 1994 e houve o início de negociações para a

resolução pacífica do conflito, porém, até o momento não há acordo entre as

partes. O conflito deixou aproximadamente vinte mil mortos e é, até os tempos

atuais, fonte problemas entre os dois países envolvidos, cujas relações

diplomáticas não estão normalizadas; ademais, permanecem os danos

econômicos gerados pela guerra e, acima de tudo, as más condições de vida

dos envolvidos – segundo o Comitê Internacional da Cruz Vermelha, a região

ainda conta com cerca de 50 mil minas terrestres e aproximadamente 600 mil

azeris são registrados como refugiados internos. O segundo conflito que põe

em risco a estabilidade do Cáucaso é a situação entre a Rússia e a Geórgia,

cujos enfrentamentos em 2008 expuseram a fragilidade da paz no caso. A

guerra, motivada por disputas sobre a autonomia das regiões da Ossétia e da

Abecásia, não contou com envolvimento direto do Azerbaijão, porém, possui

reflexos imediatos sobre a segurança na região. A elevação das tensões entre

a Rússia, Estado dotado de capacidade de dissuasão nuclear, e a Organização

do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), organização com a qual o governo da

Geórgia demonstrou desejar estabelecer cooperação estreita, pode prejudicar

a estabilidade regional.

O segundo eixo conceitual de fundamental importância para

compreender a inserção do Azerbaijão no sistema internacional é sua atuação

no mercado mundial de hidrocarbonetos. Necessário sublinhar que este campo

engloba a questão petrolífera, mas vai além, incluindo também a produção de

gás natural e carvão mineral, dois insumos de fundamental importância para a

matriz energética mundial. Ao definir os hidrocarbonetos como eixo, o debate

sublinha a importância do petróleo como insumo indispensável para diferentes

cadeias produtivas devido aos seus subprodutos, não apenas como fonte de

energia. Segundo estimativas da Organização dos Países Exportadores de

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Petróleo, o país conta com reservas de aproximadamente sete bilhões de

barris de petróleo e produz cerca de 980 mil barris por dia, o que garante sua

colocação como um dos vinte maiores produtores mundiais do material. Em

meados da década de 1990, o governo de Baku iniciou o processo de

modernização da estrutura de exploração petrolífera da Bacia do Cáspio, por

meio de contratos com empresas multinacionais para a exploração conjunta

dos recursos disponíveis em campos “offshore”, isto é, em águas profundas. O

escoamento da produção ocorre por meio de oleodutos que ligam as

plataformas exploradoras do campo de Azeri-Chirag-Guneshli às cidades

portuárias de Ceyhan (Turquia), Novorossiysk (Rússia) e Supsa (Geórgia), de

onde o produto é embarcado para os mercados consumidores, especialmente

o da Europa Ocidental. O Azerbaijão conta também com grandes reservas de

gás natural, recurso que vem adquirindo relevância nos últimos anos devido

aos debates sobre a necessidade de tornar a estrutura das matrizes

energéticas menos poluentes. Estima-se que o país conte com reservas de

aproximadamente 850 bilhões de metros cúbicos do material, concentrados

principalmente no campo de exploração de Shah Deniz, cuja descoberta em

1999 foi um dos maiores avanços na exploração de gás natural em décadas. O

escoamento da produção é feito atualmente por dutos paralelos aos do

transporte de petróleo da rota Baku-Tbilisi-Ceyhan – há expectativas em torno

da construção do projeto Nabucco, que levaria o gás diretamente para a

Europa, passando pela Turquia, sem a necessidade de transporte marítimo. A

concretização dos planos consolidaria o país como um dos principais

fornecedores de gás natural para a União Europeia, terceiro maior mercado

consumidor do produto em todo o planeta. O Azerbaijão, ao contar com

grandes reservas e produção corrente de petróleo e gás natural, pode ser

considerado um ator de relevância global para o mercado de hidrocarbonetos,

setor fundamental para o funcionamento da economia mundial.

O sistema internacional contemporâneo baseia-se, em grande parte, no

funcionamento de organizações internacional multilaterais. O Azerbaijão

compreende esta realidade e busca projetar-se mundialmente por meio da

inserção ativa em organismos internacionais de natureza variada. O país é

membro da Organização das Nações Unidas (ONU) desde 1992 e conta com a

atuação desta para a resolução do conflito com a Armênia. O Conselho de

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Segurança da ONU já aprovou resoluções que propugnam pela restituição da

soberania completa do Azerbaijão sobre a região do Karabakh, e organizações

subsidiárias como a UNICEF e o ACNUR implementaram programas de alivio

humanitário e melhoria das condições de vida para a população refugiada em

decorrência do conflito. As credenciais azeris de observância aos princípios

orientadores da atuação da ONU, como a defesa dos direitos humanos e a

busca da resolução pacífica dos conflitos levaram à eleição do Azerbaijão para

um dos assentos rotativos do Conselho de Segurança para o biênio 2012-2013.

O país ainda participa de duas grandes organizações voltadas para a

segurança na região da Eurásia: é membro efetivo da Organização para

Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), principal condutora das

negociações para a resolução do conflito com a Armênia por meio do chamado

“Grupo de Minsk”. É também parceiro da Organização do Tratado do Atlântico

Norte (OTAN) por meio da iniciativa “Parceria pela Paz”, e realiza com a

organização programas de cooperação técnica.

As organizações internacionais são também um meio utilizado pelo

Azerbaijão para se aproximar da Europa, de forma a aproveitar sua localização

geográfica estratégica. No início da década de 2000, o país foi admitido como

membro do Conselho da Europa, organização voltada para a cooperação

intergovernamental entre os países da região e responsável por zelar pela

Convenção Europeia de Direitos Humanos. Em 1999 entrou em vigor o

Contrato para Parceria e Cooperação entre o Azerbaijão e os Estados-

membros da União Europeia (UE), instrumento cujas atribuições vêm sendo

ampliadas com o passar dos anos. O contrato serve de base para o

estabelecimento de iniciativas de investimento e auxílio técnico, teve grande

utilidade para reconstruir as estruturas nacionais prejudicadas durante o

conflito com a Armênia e deve ser a base para a ampliação das relações azeris

com a Europa, especialmente em um contexto de intensificação das relações

comerciais. A atuação do Azerbaijão em organizações internacionais, sejam

estas de alcance global, como a ONU, sejam de cunho regional, como a

parceria com a UE, amplifica a capacidade de agência do país e fornece meios

para o alcance da estabilidade regional, fundamental para o desenvolvimento

nacional.

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A divisão em eixos conceituais permite elaborar uma descrição da

inserção azeri no sistema internacional que acomoda múltiplas variáveis. O

país é um ator relevante no Cáucaso, com o maior produto interno bruto e a

maior população da região, e é capaz de agir em escala global devido à posse

de enormes reservas de petróleo e gás natural, matérias fundamentais para a

geração de energia e sustentação de diversas cadeias produtivas – os fluxos

comerciais entre o Azerbaijão e a Europa configuram uma relação de

interdependência exemplar, na qual ambas as partes conseguem satisfazer

seus interesses. A posição geográfica do país permite que ele sirva de

intermediador entre duas regiões de grande relevância para a geopolítica

global, contudo, a instabilidade regional provocada por conflitos armados serve

como fator limitador da projeção externa. Para solucionar os impasses, o

Azerbaijão age por meio de organizações internacionais das áreas de

cooperação e segurança, cujas ações visam auxiliar na pacificação regional e

garantir o restabelecimento dos direitos legítimos de soberania azeri sobre seu

território. Essa descrição concisa da situação do Azerbaijão na arena

internacional permite compreender, em linhas gerais, como se dá a atuação

diplomática do país e quais as possibilidades que se apresentam para a sua

inserção futura. A busca pela solução dos conflitos em torno da região do

Karabakh se configura como meta fundamental, seguida da melhoria das

condições de segurança da região – meta para a qual o país tem muito a

contribuir, tendo em vista suas boas relações com a Rússia e a Geórgia.

Ademais, o país deve manter a política de usar os recursos oriundos da

exploração de suas riquezas naturais para incrementar o desenvolvimento

nacional, valendo-se das parcerias com entidades internacionais para isso. O

Azerbaijão, ao adotar uma conduta condizente com suas características, busca

uma inserção madura no sistema internacional, capaz de fazê-lo conhecido

como um Estado preparado para os desafios do sistema internacional

contemporâneo, distante das imagens difusas que prevalecem no imaginário

coletivo.