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UNIVERSIDADE SEVERINO SOMBRA – USS WEBER BEZERRA NOVAIS BAHIMINAS: LUGAR DE MEMÓRIA NA CIDADE DE TEÓFILO OTONI (1898/1966) Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em História da USS – Universidade Severino Sombra – como parte do requisito para a obtenção do Título de Mestre. Orientadora: Profa. Dra. Lúcia Helena P. Silva VASSOURAS 2007 1

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UNIVERSIDADE SEVERINO SOMBRA – USS

WEBER BEZERRA NOVAIS

BAHIMINAS:

LUGAR DE MEMÓRIA NA CIDADE DE TEÓFILO OTONI

(1898/1966)

Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em História da USS – Universidade Severino Sombra – como parte do requisito para a obtenção do Título de Mestre.Orientadora: Profa. Dra. Lúcia Helena P. Silva

VASSOURAS2007

1

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UNIVERSIDADE SEVERINO SOMBRA – USS

WEBER BEZERRA NOVAIS

BAHIMINAS:

LUGAR DE MEMÓRIA NA CIDADE DE TEÓFILO OTONI

(1898/1966)

VASSOURAS2007

2

TERMO DE APROVAÇÃO

WEBER BEZERRA NOVAIS

BAHIMINAS:

LUGAR DE MEMÓRIA NA CIDADE DE TEÓFILO OTONI

(1898/1966)

Dissertação aprovada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em

História social da Universidade Severino Sombra, pela Comissão formada pelos

professores:

______________________________________

Profa. Dra. Lucia Helena P. Silva – Orientadora

______________________________________

Prof. Dr. Paulo César Pontes Fraga

______________________________________

Prof Dr. Fabio Henrique Lopes

Vassouras, outubro de 2007

3

“No inferno órfico, o morto deve evitar a fonte do

esquecimento, não deve beber no Letes, mas, ao contrário,

nutrir-se da fonte da Memória, que é uma fonte de

imortalidade.”

Jacques Le Goff

4

Agradecimentos

Foram tantos aqueles que generosamente se dispuseram a nos ajudar, seja

materialmente, seja cedendo um espaço em suas vidas – e em suas casas – como a

família do nosso amigo e companheiro de batalha Teófilo, que agora considero

como minha própria família. Por falar em família, não posso deixar de agradecer aos

meus, “sangue do meu sangue”, meus pais Dulce e Beto, minha irmã Adriana e meu

cunhado Northon, minha esposa Chalúbia e meu filho João Pedro pela paciência,

compreensão e sacrifício. Ao mestre Márcio Achtshim, sempre com seu apoio e

incentivo. À minha orientadora Lúcia, por ter me aturado. A todos o meu grande

obrigado e preces.

5

Dedico este trabalho a todos aqueles que se preocupam com a

preservação da História e da Memória de nossa cidade. E, de

maneira especial, aos ferroviários da Bahia-Minas que muito

contribuíram para esta pesquisa.

6

RESUMO

Esta dissertação tem como objeto as memórias constituídas pela população

de Teófilo Otoni em relação à estrada de Ferro Bahia Minas (EFBM). Do final do

século XIX até meados do século XX, os Vales do Mucuri e Jequitinhonha em Minas

Gerais foram ligados ao Sul da Bahia e ao Oceano Atlântico pela Estrada de Ferro.

A ferrovia foi criada para levar desenvolvimento urbano e transportar riquezas do/

para o interior de Minas. Em 1966 a estrada foi desativada deixando marcas

indeléveis em Teófilo Otoni. Não só marcos físicos como pontes, túneis barragens e

ruínas, mas suportes materiais que desempenham papel importantíssimo na

manifestação das memórias daqueles que foram atendidos pela ferrovia.

Essas memórias teimam em não desaparecer, apesar dos 30 anos de

desativação. Estão presentes, sobretudo entre os ex-ferroviários e seus

descendentes que se reúnem para lembrar dos tempos da ferrovia. Sobre essas

memórias é que se debruça esse trabalho.

Palavras-chave: Memória, Patrimônio, cidade, urbanização.

7

ABSTRACT

This dissertation has as object the memories consisting of the population of

Teófilo Otoni in relation to the road of Ferro Bahia Mines (EFBM). Of the end of

century XIX until middle of century XX, the Valleys of the Mucuri and Jequitinhonha

in Minas Gerais had been on to the South of the Bahia and the Atlantic Ocean for the

Railroad. The railroad was created to take urban development and to carry wealth

from/to the interior of Mines. In 1966 the road was disactivated leaving indeléveis

marks in Teófilo Otoni. Not only physical landmarks as bridges, material tunnels

barrages and ruins, but supports that play role very important in the manifestation of

the memories of that they had been taken care of by the railroad.

These memories persist in not disappearing, although the 30 years of deactivation.

They are gifts, over all between the former-railroad workers and its descendants who

if congregate to remember the times of the railroad. On these memories it is that this

work is leaned over.

Key Words: Memory, Patrimony, city, urbanization.

8

LISTA DE MAPAS

Mapa 1. Minas Gerais. Destaque para a localização de Filadélfia e o Porto de Santa

Clara...........................................................................................................................25

Mapa 2. A Colonização Alemã no Vale do Mucuri.....................................................28

Mapa 3. Linha da Estrada de Ferro Bahia-Minas......................................................36

Mapa 4. Mapa extraído do Guia de Horários da EFBM – Estações..........................48

9

LISTA DE TABELAS

Tabela 1. Extensão das ferrovias do Brasil................................................................51

Tabela 2. Crescimento populacional de T. Otoni.....................................................100

10

LISTA DE FOTOGRAFIAS

Foto 1. Pintura da Estação Ponta de

Areia..............................................................105

Foto 2. Pintura do Porto de Ponta de Areia.............................................................106

Foto 3. Pintura da Estação Presidente Bueno.........................................................106

Foto 4. Pintura da Estação Teófilo Otoni.................................................................107

Foto 5. Pintura da Estação Teófilo Otoni.................................................................107

Foto 6. Pintura da Estação Valão............................................................................109

Foto 7. Pintura da Estação Sucanga.......................................................................110

Foto 8. Pintura das Oficinas de Ladainha................................................................111

Foto 9. Pintura da Estação Novo Cruzeiro..............................................................112

Foto 10. Pintura da Estação Queixada....................................................................113

11

SUMÁRIO:

INTRODUÇÃO...........................................................................................................13

CAPÍTULO 1 – DE PHILADÉLPHIA A TEÓFILO OTONI – UM RETRATO DA

CIDADE NOS FINS DO SÉCULO XIX E INÍCIO DO SÉCULO XX............................32

1.1. De Filadélfia a Teófilo Otoni: um breve histórico da

cidade....................................................................................................34

1.2. A chegada da Estrada de ferro Bahia-Minas à região..........................48

CAPÍTULO 2 – A BAHIMINAS E A VIDA NA CIDADE: DA PROSPERIDADE À

DESATIVAÇÃO.........................................................................................................68

2.1. A Desativação da Estrada de Ferro Bahia-Minas.....................................78

2.2. O Prejuízo Social......................................................................................88

CAPÍTULO 3 – BAHIMINAS: LUGAR DE MEMÓRIA EM TEÓFILO OTONI.............97

3.1. A Associação Cultural Ferroviários da Bahia-Minas...............................103

3.2. As Memórias e Histórias da Bahiminas..................................................106

CONSIDERAÇÕES FINAIS.....................................................................................128

FONTES...................................................................................................................137

BIBLIOGRAFIA.........................................................................................................139

12

INTRODUÇÃO

A partir do século XVIII, com a Revolução Industrial, as ferrovias passaram a

ser encaradas como símbolo do progresso técnico. Disseminar trilhos por todo o

território, integrando as várias regiões, ligando o interior ao litoral tornou-se

imperativo para as nações que se pretendiam desenvolvidas1.

Na Europa, a Revolução Industrial enriqueceu ainda mais a burguesia

européia, que soube muito bem explorar a tecnologia aplicada em suas fábricas,

associada à mão-de-obra proletária abundante. Soube, ainda, fazer crer aos demais,

e estamos nos referindo principalmente ao proletariado, que esse progresso

beneficiaria a todos2. “Dar com uma mão, tirar com a outra”, esse dito popular

poderia ser aplicado a essa situação, se considerarmos os ganhos e perdas de cada

parte envolvida nesta relação. Ganharam os trabalhadores, com conforto advindo da

tecnologia e alguma assistência social com o Estado do Bem-Estar. Ganharam

muito mais as grandes empresas com o monopólio da produção das mercadorias.

Hardman ilustra o impacto dessa nova tecnologia na esfera dos transportes

no século XIX, narrando as impressões do reverendo Edward Stanley acerca da

primeira viagem da linha ferroviária Liverpool – Manchester, em 1830: “Não há

palavras que possam dar uma idéia adequada da grandiosidade (não posso usar

palavra menor) de nosso progresso.”3 O trem, com sua velocidade e força tornou-se

símbolo do progresso técnico e comparando-o às tropas que transportavam as

1 Cf. CANÊDO, Letícia Bicalho. A revolução Industrial: Tradição e ruptura, Adaptação da economia e da sociedade rumo a um mundo industrializado. Campinas: UNICAMP, 1985. (Discutindo a História).2 Idem.3 HARDMAN, Francisco Foot. Trem-fantasma: A ferrovia Madeira-Mamoré e a modernidade na selva. 2.ed. São Paulo: Cia. das Letras, 2005. p. 34.

13

mercadorias no Brasil nesta mesma época, a ferrovia parecia estar anos-luz à frente

do sistema de escoamento de mercadoria brasileira.

Teófilo Otoni, situada no Nordeste de Minas Gerais, região pobre, cuja

economia atual centra-se na agropecuária, é conhecida no senso comum, como a

cidade do “já foi” / “já teve”. Muito do que já existiu na cidade (bancos, empresas,

órgãos públicos, ferrovia) deixou de existir ou foi transferido para outra cidade. Até o

seu patrimônio é mal cuidado, não tem um arquivo público, uma biblioteca pública

organizada ou um museu. Por outro lado, pessoas mais idosas da cidade têm prazer

em contar suas histórias, suas desventuras e, lembrar com saudade, o tempo em

que a Teófilo Otoni era realmente um importante pólo econômico para toda a região.

Entre outras coisas que a cidade “já teve”, destaca-se a Estrada de Ferro

Bahia-Minas, cuja estação foi inaugurada em 1898. Dela restam apenas uma

pequena locomotiva americana, da marca Baldwin, e alguns metros de trilhos,

cercados na Praça Tiradentes, no centro da cidade. Ela evoca nos moradores mais

antigos uma nostalgia impressionante, uma saudade de épocas passadas e, ao

mesmo tempo, traz consigo um sentimento de abandono: da locomotiva, da história

da cidade, da memória do povo.

A existência de uma locomotiva na praça central da cidade é bastante

significativa. A cidade não “nasceu” com a ferrovia, no entanto, ganhou impulso de

crescimento com a sua chegada. A lembrança dos tempos da estrada é muito forte

nessas pessoas. Nas ruas estreitas que se originaram do antigo leito, no pontilhão

metálico, hoje usado apenas por pedestres, nos túneis praticamente abandonados

na antiga estrada para Ladainha, ainda se sente a sua presença. Segundo

moradores mais antigos, a fartura que existia na cidade, com muito dinheiro no

comércio, com boa qualidade de vida, com facilidade de transporte e frete barato,

14

tudo isso estava intimamente ligado à ferrovia. Ela provocou grandes

transformações na vida da cidade – de sua implantação e sua extinção. Trazer à

tona parte desta história representa resgatar parte desta memória.

É exatamente isso que buscamos fazer ao responder ao questionamento:

“qual foi o impacto sócio-cultural e econômico da Estrada de Ferro Bahia-Minas em

Teófilo Otoni e sua importância na formação da memória do teófilo-otonense?”. Para

tanto recorremos à leitura de autores que trabalharam com a temática ferroviária,

bem como com os conceitos de memória, progresso/modernidade e urbanização.

Trabalhar com estes conceitos apresenta muitos desafios

Um dos desafios é articular nosso objeto à historiografia do tema, são raros

os estudos acadêmicos relacionados ao mesmo. Além de publicações genéricas em

sites da internet e trabalhos escolares – raramente no nível de graduação, pouco se

tem encontrado a respeito da Estrada de Ferro Bahia-Minas, e para

compreendermos a história dessa ferrovia, pensamos ser necessário contextualizá-

la à história das ferrovias no mundo e no Brasil.

15

A Revolução Industrial inglesa proporcionou aumento extraordinário na

produção de mercadorias, o que demandou novos meios de transporte, tanto para o

escoamento da mesma, quanto para a chegada de matéria-prima e demais

subsídios para a produção. Em 1814, utilizando a máquina a vapor de James Watt,

George Stephenson apresentou a sua Locomotion, a primeira locomotiva criada para

tracionar vagões que resolveriam a questão de logística que a indústria nascente

demandava. A primeira viagem dessa locomotiva, puxando uma composição,

ocorreu em 1825 entre as cidades Stockton e Darlington, num trecho de 15 km,

numa velocidade de aproximadamente 20 km por hora. Já na metade do século XIX,

as ferrovias se espalhavam pela Europa e Estados Unidos, com expansão notável

(aproximadamente 3.000 km e 5.000 km de ferrovias, respectivamente).

No Brasil a ferrovia despertou interesse no governo imperial, em 1835 criou

uma lei (nº 101, de 31 de outubro) concedendo privilégio por um prazo de 40 anos

às empresas que se interessassem em construir estradas de ferro interligando as

províncias do Rio de Janeiro, São Paulo, Rio Grande do Sul, Minas Gerais e Bahia.

Esta iniciativa, a princípio, não despertou interesse. Somente em 1852, quando o

governo através da Lei nº. 641 deu garantias de juros e isenções de impostos, o

interesse pelas ferrovias foi inflamado. Naquele mesmo ano ocorreu a construção da

primeira estrada de ferro, construída por Irineu Evangelista, o Barão de Mauá,

possuía 14,5 km de extensão e ligando o Porto de Estrela, no Rio de Janeiro à

Petrópolis. A partir de então, com a inauguração da Estrada de Ferro Pedro II,

posteriormente, Estrada de Ferro Central do Brasil, outras várias estradas

começaram a ser construídas no Brasil do século XIX.

16

Vale lembrar, que até então, todo o transporte de mercadorias no Brasil era

processado em lombo de burros por estradas mal conservadas e difíceis de trafegar.

O que não era diferente na região do Mucuri.

A cidade de Filadélfia (T. Otoni), fundada em 1853, ficara por

aproximadamente quarenta anos, praticamente isolada dos grandes centros, quando

o político mineiro João da Mata Machado solicitou junto a Assembléia Provincial de

Minas Gerais a autorização para a construção de uma ferrovia que ligasse

Caravelas (Sul da Bahia) a Teófilo Otoni para escoamento do café e madeira, dentre

outros produtos. Tal obra foi concedida ao engenheiro Miguel de Teive e Argolo, que

tomou as providências necessárias para o início da obra.

Caravelas, pelo seu desenvolvimento e domínio comercial do Sul da Bahia,

pelos projetos do Argolo, deveria ser o ponto de partida da Estrada de Ferro Bahia –

Minas (EFBM).

A construção da ferrovia ocasionou muitas mortes de trabalhadores, seja por

doença, ataque de índios ou picadas de cobras e insetos, provocando escassez de

mão-de-obra, obstruindo e atrasando a construção. Para suprir a falta de

trabalhadores, a ferrovia trazia-os de colônias portuguesas e espanholas, imigrantes

que tiveram que enfrentar, entre outros problemas, a hostilidade dos índios

botocudos, que viviam na região.

Diante de tantas dificuldades, foi inaugurado o primeiro trecho, ligando

Caravelas (Ponta de Areia), na Bahia a Serra dos Aimorés, na divisa com Minas

Gerais em 1882.

Após um tempo de paralisação nas obras, o governo de Minas ajudou na

construção do prolongamento da estrada até Teófilo Otoni, liberando um importante

empréstimo para a companhia, o que acabou provocando a cessão do controle da

17

mesma ao governo mineiro, posteriormente. Em 03 de maio de 1898, foi inaugurada

a estação de Teófilo Otoni, com grande festa preparada pela “elite” local, com

significativa participação popular.

A mão-de-obra especializada para os serviços da ferrovia chegava em

Caravelas, de onde seguia para Teófilo Otoni e Ladainha (local onde foram

construídas as oficinas da Cia.).

A partir da década de 50 do século passado, com a crise econômica na região

do Mucuri, houve a diminuição das atividades cafeeiras e, conseqüentemente, a

redução do ritmo dos transportes ferroviários, restringindo a demanda da madeira

para combustível. Na região foi introduzida a pecuária, ocupando o espaço deixado

nas matas devastadas. Com a crise faltaram recursos que seriam investidos na

manutenção da ferrovia, cujas locomotivas já estavam ultrapassadas e a estrada,

então, tornou-se pouco rentável.

Em 1948 teve início a construção da rodovia BR 116 (Rio Bahia), passando

por Teófilo Otoni, provocando forte impacto sobre a cidade, contribuindo para a

decadência da EFBM. Além dos problemas econômicos, a Bahia-Minas havia se

tornado cabide de empregos políticos, até que em 1964, com a chegada dos

militares ao poder, e diante de uma política de contenção de gastos, acabou

condenada à extinção. Todos os bens e funcionários da EFBM passaram para a

Rede Ferroviária Nacional e em 1966, os trilhos começaram a ser retirados.

Como são poucas as obras específicas sobre a EFBM, lançamos mão de

estudos sobre outras ferrovias coetâneas, como é o caso do artigo de Blasenheim,

publicado em 19864 onde o autor estuda a construção de estradas de ferro na região

cafeeira da Zona da Mata mineira no século XIX, revelando muito sobre o jogo

4 BLASENHEIM, Peter L. As Ferrovias de Minas Gerais no século dezenove. In: LOCUS: revista de História. Juiz de Fora: Núcleo de História Regional/EDUFJF, 1966. n.2.v.2. p.81-110.

18

político e a influência de fazendeiros nos destinos da região. A primeira ligação

ferroviária entre Juiz de Fora e o Rio de Janeiro foi construída em 1876, mas o

governo imperial já havia criado uma lei em 1852 que garantia 5% de juros para

quem investisse em companhias aprovadas em Minas Gerais. O autor relata que até

1884, a Zona da Mata possuía 602 km de via, distribuídos entre a União Mineira, a

Alto Muriaé, a Pirapetinga, a Leopoldina e a Rio-Doce. Em 1890 a Estrada de Ferro

Leopoldina havia absorvido suas rivais.

Naquela época, o transporte foi considerado fator fundamental de

desenvolvimento de Minas Gerais, no entanto, o autor destaca outros fatores

(ecológico, trabalhista e produção) como preponderantes.

“As míseras facilidades de transporte existentes em Minas em meados do século XIX explicam a euforia que saudou a primeira estrada pavimentada (1861) e a primeira ligação ferroviária (1876) entre Juiz de Fora, capital regional da Mata, e a cidade do Rio de Janeiro. [...] Antes de 1861 a viagem de 215 quilômetros entre Juiz de Fora e Rio de Janeiro levava quatro dias.5”

A falta de estradas dificultava o acesso aos principais centros do Brasil. Como

percebemos na citação acima, a chegada de estradas pavimentadas ou estradas de

ferro traziam grande alegria e a certeza de que distâncias estariam sendo

encurtadas.

Com a construção das estradas de ferro, as exportações de café da região

praticamente dobraram entre 1875 e 1880. A idéia seria espalhar o “progresso” em

toda a província, mas, optou-se por começar pela Zona da Mata, região rica em

café, portanto, com maiores chances de sucesso. Assim, o número de fazendeiros

envolvidos com os projetos rodoviários e ferroviários era crescente.

5 p. 83)

19

Vale ressaltar que o Mucuri, na época da construção da Bahia-Minas,

destacava-se pela produção cafeeira, inserindo-se, assim, a história da nossa

ferrovia neste mesmo contexto.

Essa visão otimista não era consenso e, no ano de 1877, auge das ferrovias

da Mata, Benedito Valadares, um sul-mineiro, chamou a atenção para as fraquezas

das companhias privadas, já que o governo estava conferindo concessões demais, o

que provocaria uma forte concorrência entre as Companhias ávidas por um

mercado, naquele momento pequeno. As previsões de Valadares se confirmaram e

da áspera luta entre as ferrovias, venceu a Estrada de Ferro Leopoldina, que

atravessava municípios mais produtivos, além de gozar do apoio político federal,

vindo a absorver todos os seus rivais até 1890.

O desejo dos representantes dessa região de possuir estradas de ferro

também existia além da Zona da Mata, como na região do Mucui, por exemplo,

regiões consideradas mais pobres, mas, que, no entanto, possuíam mercadorias

para escoar (produtos de granjas, fazendas e minas). A própria Zona da Mata

substituiu o café por gado leiteiro após 1900, quando a produção cafeeira diminuiu.

O autor segue o artigo com a história da Estrada de Ferro Pedro II, construída

com capital nacional, que tinha como prioridade a integração do país. Sua

concessão original previa a ligação de Minas ao nordeste brasileiro, seguindo as

margens do Rio São Francisco.

Devido ao mau planejamento, a partir de 1884 foi constatada a deficiência das

ferrovias da Mata, que comprometiam o Tesouro provincial.

Os investidores subestimavam o custo de construção e manutenção de ferrovias, e superestimavam a quantidade de café que linhas, em competição entre si, podiam carregar, até nos municípios do sul, onde a produção estava no auge, no início da década de 1880. a influência política de fazendeiros individuais da Mata determinava as trajetórias de linhas locais,

20

a ligar plantações em vez de centros de população, confirmando o ditado de que “estrada de ferro no Brasil, é a linha geométrica dos pontos de maior influência política.6

Seguindo em seu estudo sobre a Leopoldina, Blasenheim credita seu sucesso

ao fato de poder contar com o apoio financeiro de fazendeiros da Mata e também de

políticos da Corte, além de parte de seu trajeto penetrar municípios cafeeiros mais

prósperos. A questão política, aliás, merece um destaque, principalmente quando

das disputas da Leopoldina com outras companhias, quando esta última acabava

sendo favorecida. Segundo o autor, esta Cia. era a única com condições de

prolongar seus trilhos até o norte de Cataguases. Apesar de nunca ter conseguido

chegar ao Vale do Jequitinhonha, como o prometido, a Leopoldina estava de acordo

com o desejo do governo nacional por uma ferrovia que integrasse o país.

Com a queda na produção de café entre 1883 e 1884, as primeiras indicações

de crise na Leopoldina apareceram, principalmente porque ela comprou todas as

linhas falidas do norte e nordeste da província do Rio; o que daria a ela o monopólio

sobre o transporte em toda a zona costeira entre o sudeste de Minas e a cidade do

Rio. A atenção voltou-se para a rede fluminense, o que acabou por ondenar o

serviço na Mata até o final de 1888.

Com o revigoramento da economia cafeeira na década de 1890, e a

reestruturação da Leopoldina, essa companhia continuou transportando café,

batendo um recorde de 50,4 milhões de quilos em 1893. Mas a companhia voltou a

ter vários problemas, desde uma crise de cólera a descarrilamentos causados por

chuvas torrenciais, provocando uma segunda liquidação da ferrovia.

6 BLASENHEIM, Peter L. Op. Cit. p.97.

21

A partir de 1898, com a extinção da Leopoldina, iniciou-se uma nova fase de

expansão ferroviária de Minas, desta vez na zona sul, onde já havia uma atividade

ferroviária crescente, também financiada pelo café.

Blasenheim conclui que a construção das ferrovias contribuiu para a

expansão da economia cafeeira, no entanto ficaram expostas as suas fraquezas.

Para os fazendeiros, no entanto, as ferrovias foram a solução ideal, uma vez que os

mesmos tinham como prioridade o rápido crescimento econômico sem custo social e

representavam o progresso e o desenvolvimento tecnológico.

Este artigo ilustra o pensamento comum na época (século XIX), acerca da

necessidade de melhorar o sistema de transporte e promover a integração das

regiões mais isoladas de Minas aos grandes centros. Tal pensamento também

norteou os projetos para construção da Bahia-Minas.

Para além da história das estradas de ferro em Minas Gerais, e como em

nossa pesquisa vamos trabalhar na interface entre a Histórica Econômica e História

Cultural, outro desafio foi refletir sobre o conceito de modernidade que utilizamos –

englobando desenvolvimento urbano e a idéia de progresso, pois é imprescindível

para a compreensão do impacto sócio-econômico e cultural da Estrada de Ferro

Bahia Minas na cidade de Teófilo Otoni.

Berman7 , logo na introdução escreve que “Ser moderno é encontrar-se em

um ambiente que promete aventura, poder, alegria, crescimento, autotransformação

e transformação das coisas em redor (...)” 8. Construir uma estrada de ferro ligando a

região nordeste de Minas ao litoral na Bahia não deixa de ser um projeto

aventureiro, no sentido de que toda essa região era praticamente isolada dos

grandes centros. Uma região pouco habitada, mas, que, no entanto, apresentava um

7 BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: A aventura da modernidade. 2.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.8 Idem, p. 15.

22

potencial produtivo suficiente grande para atrair capitalistas interessados em

promover o seu desenvolvimento. Também era uma demonstração de poder. Poder

sobre a técnica e sobre as forças da natureza. Para abrir a estrada, aterros foram

feitos, matas foram derrubadas, pessoas foram trazidas para esta região (aí

podemos enquadrar também a “transformação das coisas em redor”).

A justificativa do engenheiro Argolo ao apresentar seu projeto de ferrovia em

1878, era trazer a modernidade para a região. Seu conceito de modernidade é

positivista, portanto, era contrário a tudo o que na época simbolizava o “atraso” –

cidade isolada, transporte por tropas, índios bravios... A modernidade promovida por

Argolo e sua Estrada foi imposta sobre a região a partir de uma necessidade vista de

fora – por homens que não eram da região e, vista de dentro por alguns poucos

interessados – nesse caso, proprietários rurais que seriam beneficiados com o novo

meio de transporte.

Na análise de Berman sobre o modernismo em Nova York, quando trata da

construção de uma via expressa no Bronx9, ressalta que não se sabe determinar se

era da cidade ou do Estado já que a necessidade da construção da população local

não o era: “[...] quase nenhum de nós tinha um automóvel, o próprio distrito e o

metrô que levavam ao centro da cidade definiam o fluxo de nossas vidas”10. Mas,

essa obra que pode ser associada ao projeto de modernidade, alterara a vida das

pessoas no Bronx, da mesma forma, guardadas as devidas dimensões e

especificidades de cada realidade, como as vidas das pessoas do Mucuri foram

alteradas pela Bahia-Minas a modernidade representada pela ferrovia mudou

comportamentos, trouxe novos elementos culturais, construiu novas formas de

pensar a cidade e a vida.

9 BERMAN, Marshall. Op. Cit. p. 327.10 Idem. p. 327.

23

Ao ler a obra de Berman, não nos passou despercebida a analogia do Fausto

de Goethe, tão bem apresentado pelo autor, e seu projeto de modernização ou

transformação do mundo rumo ao desenvolvimento econômico. Argolo acreditava na

idéia de desenvolver a região do Mucuri, de promover o crescimento econômico com

a instalação da Estrada de Ferro como a principal via de comunicação e comércio.

Tal transformação, conforme nos apresenta Berman, a todo o momento influencia a

vida do homem comum, mesmo que o empreendedor, ou o fomentador, sequer veja

este homem:

“De súbito a paisagem à sua volta se metamorfoseia em puro espaço. Ele esboça grandes projetos de recuperação para atrelar o mar a propósitos humanos: portos e canais feitos pela mão do homem. Onde se movem embarcações repletas de homens e mercadorias; represas para irrigação em larga escala; verdes campos e florestas, pastagens e jardins, uma vasta e intensa agricultura; energia hidráulica para animar e sustentar as indústrias emergentes; pujantes instalações, novas cidade e vilas por construir – e tudo isso para ser criado a partir de uma terra desolada e improdutiva.”11

É impossível não imaginar tais palavras do Fausto na mente dos criadores da

Estrada de Ferro Bahia-Minas. Analisaremos o impacto desta Estrada em Teófilo

Otoni no diálogo com as conseqüências deste projeto fáustico de modernidade com

aquele apresentado por Berman.

Outro diálogo importante foi com o livro “Trem-Fantasma: A ferrovia Madeira-

Mamoré e a modernidade na selva”, de Francisco Foot Hardman,12. Escolhemos a

obra de Hardman, justamente por tratar de uma construção ferroviária no meio da

mata. Embora o Mucuri na época da Bahia-Minas não se enquadrasse no conceito

11 Apud. BERMAN, Marshall. Op. Cit. p. 71.12 HARDMAN, Francisco Foot. Trem-Fantasma: A ferrovia Madeira-Mamoré e a modernidade na selva. 2.ed. rev. e ampl. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

24

de mata, mas no de sertão13, o discurso utilizado na construção da Madeira-Mamoré

é muito semelhante:

A combinação entre imaginação romântica, espírito empreendedor e especulação financeira produziu um tipo característico de capitalista, que dominará o cenário de construção das grandes obras públicas internacionais, em especial no terceiro quartel do século XIX.14

Hardman analisa a construção de uma ferrovia em meio à floresta Amazônica

destacando os contrastes entre a paisagem natural e as etapas do trabalho; os

operários vindos de diversas partes do mundo e a destruição provocada em nome

de um ideal de modernidade.

Assim, Hardman começa seu estudo buscando os diversos significados da

Estrada de Ferro Madeira-Mamoré; e sobre a forma como seus vagões e

locomotivas tornaram-se lendas e “passara ao imaginário como fantasmas”.

Ao estudar o impacto da ferrovia construída na selva, o autor faz uma análise

da cidade, no século XIX, tudo isso numa perspectiva que liga a ferrovia ao

espetáculo, a “Madeira-Mamoré era o espetáculo privilegiado da civilização

capitalista na selva”15

A ferrovia e a navegação a vapor são vistas como os novos portões de

entrada das cidades, onde já não se consegue conceber a rede de tráfego a que

davam acesso, mas que, ao mesmo tempo, conferiam concretude ao mercado

mundial. Esta concepção dos meios de transporte que se tornaram fundamentais no

conceito de Modernidade no século XVIII e início do XIX encaixam-se muito bem no

contexto que fizemos sobre a Bahia-Minas.

13 Cf. ACHTSCHIN, Márcio Santos. Mucuri: Sociabilidades e cotidiano escravo no século XIX. 2006. Dissertação (Mestrado em História Social). Universidade Severino Sombra, Vassouras, 2006. p. 10-11.: “sertões seriam regiões de baixa densidade demográfica e de grandes distâncias, não sendo um espaço isolado, mas caminhos relacionados com o comércio de produtos”.14 HARDMAN, Francisco Foot. Idem, p. 141.15 HARDMAN, Francisco Foot. Idem, p. 25.

25

Ao tratar dos personagens dessa história, destaca a ausência do índio – o

que, segundo o autor, poderia provocar estranhamento, pois se trata de uma história

na floresta amazônica. Esta ausência pode ser explicada pela “ação destruidora da

cultura indígena”, em sua opinião, inicialmente pelos bandeirantes e depois pelos

jesuítas. Assim, os índios não resistiram à obra da ferrovia e muitos deles, foram até

engajados pela empresa construtora como trabalhadores. Podemos aqui, fazer uma

outra analogia com a Bahia-Minas, quando assistimos o trabalho dos freis

capuchinhos que vieram “cristianizar” os índios da região e, para isso, usaram a

estrada de ferro como meio de acesso às aldeias, bem como a locomoção dos

próprios índios transportados nos trens para as cidades que margeavam a ferrovia.

Quando trata da construção da ferrovia, Hardman o faz sempre com uma

crítica. Ele relaciona a locomotiva como símbolo do modernismo, termo que segundo

ele, foi introduzido na cultura brasileira nos anos 70 do século XIX. Esse contexto se

encaixa perfeitamente no cenário das Exposições Internacionais, onde se

evidenciavam as maravilhas produzidas pela tecnologia do homem; as maravilhas

do progresso material. Hardman se refere a essas Exposições como ”espetáculos da

sociedade industrial”. Entretanto, para ele, o trem, genericamente utilizado como

símbolo do progresso técnico, nem sempre leva o homem adiante, nem sempre

significa melhores condições de vida e de trabalho. No afã de se construir uma

imagem de progresso, de modernidade, a construção de ferrovias, como a Madeira-

Mamoré, provocou destruição, do ambiente e do próprio homem.

“Décadas antes, quando as ferrovias surgiram, houve também quem nelas cresse como condutoras da paz, espécie de versão primeva da teoria atual acerca do poder de dissuasão dos arsenais nucleares”

26

Para Hardman as ferrovias não devem ser vistas como instrumentos do

progresso. Afinal, tal progresso não representa o mesmo para todas as pessoas. Em

Teófilo Otoni, o que percebemos é que a imagem da EFBM é sempre positiva. Não

encontramos, entre os entrevistados, quem não relacionasse o tempo de operação

da ferrovia com um tempo de bonança, mesmo de fartura e de riquezas.

Trata-se de uma visão particular, contrastante em certo sentido com as duas

obras analisadas, mesmo levando-se em consideração que os interesses implícitos

nos processos de construção e funcionamento dessas ferrovias foram similares.

Outro autor utilizado em nossas análises foi Lima, com sua dissertação de

Mestrado16, publicada em 2003. Neste estudo o autor investiga as questões

despertadas pelo ato de lembrar e pela história da ferrovia no oeste mineiro,

tomando por base duas companhias construídas na região no final do século XIX e

início do XX, a Estrada de Ferro Oeste de Minas (EFOM) e a Estrada de Ferro Goiás

(EFG). Conforme o autor, tais ferrovias representaram a ligação e integração da

parte ocidental de Minas Gerais à economia nacional e ao mercado mundial,

conectando antigas localidades, antes isoladas e, ao mesmo tempo, fazendo surgir

novas cidades ao longo das respectivas linhas. São histórias que em muito se

assemelham à história da Estrada de Ferro Bahia-Minas.

Lima faz uma análise do impacto econômico, social e político da implantação

da ferrovia “bem como as transformações culturais acarretadas”. Tenta encontrar

uma resposta satisfatória ao questionamento levantado pela pesquisa: em que

medida a concepção evolucionista do século XIX, baseada no par atraso/progresso,

(...) teria contribuído para a disseminação da idéia de que o desenvolvimento dos

meios de transporte terrestres no Brasil seria necessário à sua modernização? Para

16 LIMA, Pablo Luiz de Oliveira. A Máquina, tração do progresso. Memória da Ferrovia no Oeste de Minas: Entre o Sertão e a Civilização. 1880 – 1930. 2003. 202 f. Dissertação (Mestrado em História). UFMG, Belo Horizonte, 2003.

27

responder a essa e outras questões, recorre aos livros de memórias, depoimentos

de viajantes brasileiros e estrangeiros que, segundo o autor “voltaram seus olhares

sobre a realidade do país com o fim de compreendê-la e informar a sociedades

futuras.” Relaciona os cinco autores utilizados em seus estudos: Auguste Saint-

Hilaire, James Wells e os brasileiros José Almeida Leite Moraes, Irineu Evangelista

de Souza e Christiano Benedicto Ottoni, cujas obras são analisadas no primeiro

capítulo da dissertação, chegando o autor à conclusão de que para todos eles, ficara

evidente a situação “atrasada” da sociedade brasileira “e concordavam que a

construção de uma nação civilizada exigiria o fortalecimento do Estado através da

integração ferroviária do território”. 17

Os conceitos de “atraso” e “modernidade” vêem ao encontro das idéias ainda

existentes na memória dos ferroviários da Estrada de Ferro Bahia-Minas (na

verdade, usaremos convencionalmente este termo, uma vez que os ex-funcionários

da Bahia-Minas ainda se consideram “ferroviários” contatados). É nítida a idéia de

que a ferrovia trouxe o desenvolvimento, o progresso para Teófilo Otoni e região.

Assim, há muitas semelhanças na história da EFOM e da EFG com a história da

Bahia-Minas. O estudo do impacto provocado por essas primeiras em suas

respectivas regiões é muito semelhante ao olhar que pretendemos fazer em nossa

cidade. Analisando o conceito de progresso pregado no século XIX pelo Império,

percebemos claramente sua aplicação na justificativa para a construção da EFBM.

Tentamos utilizar uma abordagem semelhante à utilizada por Lima ao

investigarmos os impactos da Bahia-Minas em Teófilo Otoni, assim, buscamos

analisar as seleções, lacunas, e desvios nos relatos contidos na memória da

população da cidade no período retratado. Neste caso, nos baseamos nas

17 LIMA, Pablo Luiz de Oliveira. A Máquina, tração do progresso. Memória da Ferrovia no Oeste de Minas: Entre o Sertão e a Civilização. 1880 – 1930. 2003. 202 f. Dissertação (Mestrado em História). UFMG, Belo Horizonte, 2003. p. 11.

28

informações dadas por pessoas ligadas à Ferrovia em questão. É comum nas

comparações dos ex-ferroviários, e até mesmo de cidadãos mais antigos,

encontrarmos afirmações de que “no tempo da ferrovia” tudo era melhor e a cidade

crescia e com a sua desativação tudo acabou. Sabe-se, no entanto, que a cidade

permaneceu. Mais, a cidade cresceu bastante nestes últimos quarenta anos, mesmo

sem a ferrovia18.

Para dimensionar a construção da ferrovia em nossa região devemos

trabalhar ainda com conceito desenvolvido por Lima, o conceito de “sertão”, segundo

o qual deve ser compreendido não apenas como um espaço geograficamente

determinado, mas como um ambiente cultural tipicamente brasileiro, um lugar

“incivilizado”. Assim, se a EFOM e a EFG foram construídas para levar o

desenvolvimento sócio-econômico e cultural para o sertão – o Oeste de Minas –

também a EFBM foi idealizada para levar o mesmo a outro “sertão” – o Nordeste de

Minas.

Na memória desta parte população da cidade, os ex-ferroviários e seus

descendentes, os “tempos da ferrovia” apontam apenas para os benefícios

proporcionados pela EFBM, apesar do discurso negativo sobre as ferrovias e do

“processo de construção do esquecimento sobre as ferrovias brasileiras”19, mesmo

assim persiste “para além da memória “oficial”20 uma memória imbricada com a

historia da ferrovia.

Ao trabalharmos na interface entre a história da cidade e a história da ferrovia,

dividimos o nosso estudo em três partes. No primeiro capítulo, destacamos a história

da cidade, a ação empreendedora do fundador, as dificuldades e realizações dos

18 Os censos de 1970,1980 e 1990 confirmam isto.19 PAULA, Dilma Andrade de. O futuro traído pelo passado: a produção do esquecimento sobre as ferrovias brasileiras. In: FENELON, Déa Ribeiro. MACIEL, Laura Antunes. ALMEIDA, Paulo Roberto. KHOURY, Yara Aun (Orgs.) Muitas Memórias, Outras Histórias.São Paulo: Olho dágua. 2004. p. 43. 20 PAULA, Dilma Andrade de. Idem. p. 42.

29

imigrantes, sobretudo alemães, bem como o seu desenvolvimento sócio-político e

econômico e a chegada da ferrovia.

No segundo capítulo, iniciamos com a vinda da ferrovia, abordando detalhes

de sua construção, a chegada nas cidades, com destaque para Teófilo Otoni, o

desenvolvimento técnico e econômico proporcionado pelo novo meio de transporte,

Sua relação com a vida da cidade. Neste mesmo capítulo, tratamos da problemática

da desativação de estradas de ferro no Brasil e da desativação da própria Bahia-

Minas e os abalos sofridos pela cidade e por toda a região de Teófilo Otoni nessa

época.

Como fonte para a história dos primeiros momentos da ferrovia, lançamos

mão de uma publicação do século XIX, de autoria do engenheiro que projetou a

Bahia-Minas, Miguel de Teive e Argolo. O livro chamado Memória Descriptiva sobre

a Estrada de Ferro Bahia e Minas, descreve não só a região que seria servida pela

ferrovia, como traz todas as justificativas para a sua construção, principalmente ligar

o norte da província de Minas Gerais ao litoral, por onde escoaria a sua produção

com menor custo. Além disso, relata pormenorizadamente desde o planejamento da

ferrovia, até a abertura e conservação de estradas de rodagem que dariam suporte à

ferrovia, ligando-a aos rincões do interior mineiro.

Para ajudar a compreendermos o que era Teófilo Otoni na época da

construção da ferrovia, usamos fontes como a Synopse do Recenseamento de 1890

e a obra Município de Theophilo Ottoni: Notas Históricas e Chorográphicas de

Samuel Teteroo, de 1922. Tais fontes ajudaram na análise do contexto da cidade

nos princípios do século XX, buscando construir um retrato possível da cidade dessa

época. Outras fontes como censos e periódicos foram articuladas as duas citadas,

de forma a ajudar nessa referida empreitada.

30

Obras de memorialistas foram utilizadas para nos ajudar na compreensão dos

processos de formação das memórias da Bahia-Minas. Assim, recorremos a dois

livros que tratam dessa temática: o primeiro, Estrada de Ferro Bahia e Minas: a

Ferrovia do Adeus de Arysbure Batista Eleutério, um ex-ferroviário, que conta, além

de suas memórias, a história da ferrovia, trazendo curiosidades, fotografias e cópias

de documentos como um boletim de pessoal de 1945. Nesse mesmo sentido o livro

Um trem passou em minha vida de Jaime Gomes, um dedicado “pesquisador” da

história da ferrovia.

A memória se materializa em fontes diversas, tais como fotografias, pinturas,

depoimentos orais e escritos. Assim, não poderíamos deixar de utilizar, como

instrumento de produção de fontes, a história oral, que para nós é metodologia de

produção de fontes21. A partir dos depoimentos levantados conseguimos revelar os

modos de vidas de alguns dos vários personagens que compuseram a história da

ferrovia em Teófilo Otoni. Outros depoimentos utilizados foram transcritos de outras

pesquisas, como na tese de doutorado de Giffoni, ou extraídas dos programas da

Rede Globo (Terra de Minas) e da Rádio Teófilo Otoni (Especial “Nos Tempos da

Bahiminas”) cuja referência era a Bahia-Minas e nos ajudaram a compor este quadro

da chamada “família ferroviária”.

O último conjunto de fontes utilizado foram as pinturas de João Eduardo, que

não só ilustram este trabalho, mas evidenciam aspectos importantes da memória da

Bahia-Minas, sempre tentando eternizar momentos, sejam da chegada ou saída das

locomotivas das estações, com muita fumaça, vapor e força. Retrata também a vida

em torno dessas estações, de homens simples, que viveram como espectadores

21 AMADO, Janaína, FERREIRA, Marieta de Moraes (orgs). Usos e abusos da História Oral. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1996.

31

daquele “espetáculo do progresso”, de trabalhadores da ferrovia, envolvidos com

aquela movimentação, de outros que de alguma forma tiveram suas vidas marcadas

com a passagem daqueles trens, cujas marcas permanecem hoje na memória.

Para encerrar esta apresentação vamos à definição de memória que

trabalharemos ao longo de toda a dissertação. O conceito é fruto de uma vasta

discussão historiográfica, que desde Halbwachs nos anos 30 vem colocando aos

historiadores a o desafio transformar as memórias em História. Memória é então

pensada

como campo minado de lutas sociais (...) de verdades que se batem, no qual o esforço de ocultação e de clarificação estão presentes na disputa entre sujeitos históricos concretos diversos, produtores de diferentes versões,interpretações, valores e praticas culturais”22

Revivendo as várias histórias que tem como marco as ruínas da Bahiminas, fazem da

ferrovia, lugar de memória em Teófilo Otoni.

CAPÍTULO 1

DE PHILADÉLPHIA A TEÓFILO OTONI – UM RETRATO DA CIDADE NOS FINS DO SÉCULO XIX E INÍCIO DO SÉCULO XX.

[...] antes mesmo do badalar do sino da Igreja Matriz, às cinco horas, a maior parte da população já se movimentava na agradável manhã, sob grande expectativa, enquanto grupos de exaltados com instrumentos musicais improvisados percorriam as ruas centrais, acordando os retardatários, convocando-os para o maior acontecimento do primeiro século da existência da Cidade, a inauguração da Estação da Estrada de Ferro Bahia e Minas. 23

Pela leitura do trecho acima, emerge uma imagem da ferrovia que será

difundida entre os cidadãos de Teófilo Otoni. A inauguração (tema que trataremos

22 FENELON, Déa Ribeiro. MACIEL, Laura Antunes. ALMEIDA, Paulo Roberto. KHOURY, Yara Aun (Orgs.) Muitas Memórias, Outras Histórias.São Paulo: Olho dágua. 2004. p.6.23 REVISTA CONFRONTO. Teófilo Otoni: Junho de 1979. p.10.

32

mais adiante) é tida como acontecimento fundamental na história da cidade,

reunindo a “maior parte da população” num horário pouco convidativo – cinco horas

da manhã! Os grupos com “instrumentos musicais improvisados”, possivelmente

cumpriram o papel de acordar o “populacho”, afinal, o “futuro” estava chegando à

cidade – pelo menos era assim que as pessoas deveriam pensar.

O discurso de uma modernidade que chega trazendo grandes benefícios e

riquezas não era novo no final do século XIX, e em nossa Filadélfia não foi diferente.

Aliás, toda a história da cidade será marcada por esse pensamento, ou essa

justificativa, sempre usada por empreendedores que por algum motivo quiseram

transformar e “modernizar” a região do rio Mucuri.

Neste capítulo nos debruçamos sobre a história da cidade de Teófilo Otoni.

Esta história será vista como parte de um projeto fáustico - utilizando a expressão de

Berman 24 - do político liberal Theophilo Benedicto Ottoni.

A história da cidade confunde-se com a própria história da ocupação da

região do Mucuri, região de terras férteis, porém acidentadas e habitadas por índios

dito bravios.

No que se refere à Província de Minas Gerais, a região do Mucuri foi uma das últimas áreas de Mata Atlântica a conhecer o avanço da civilização. O sonho de desvendar o mistério das matas ainda intocadas pela mão do homem civilizado não pertencia só a um homem. Muitos já haviam tentado ocupar a região. Desde fins do século XVIII, sucederam-se várias aventuras frustradas: enquanto muitos perderam-se pelas matas, outros foram vítimas do consumo de plantas venenosas, e a maior parte voltou aterrorizada, após sofrer ataque dos índios ditos botocudos, cuja fama era a de apreciadores ferozes da carne humana.25

Várias expedições foram organizadas para os lados do Mucuri, sobretudo as

explorações de reconhecimento do território feitas pelo Coronel Bento Lourenço

24 Marshall Berman no livro “Tudo que é sólido desmancha no ar”, analisa a obra de Goethe – Fausto – e evidencia seu projeto de modernização, utilizando a força da natureza para promover o desenvolvimento econômico. (Cf. BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: A aventura da modernidade.2.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 71)25 DUARTE, Regina Horta.(Org.) Notícia sobre os selvagens do Mucuri. Belo Horizonte: UFMG, 2002. p. 15.

33

(entre 1815 e 1816), houve também a de Francisco Teixeira Guedes (em 1829),

descobrindo o rio Todos os Santos, e a do Engenheiro Pedro Victor Renault (em

1834), que tinha por objetivo estudar a região para a escolha de um local para a

construção de um degredo de criminosos.26 O governo da Província de Minas tinha

a intenção de promover a ocupação do território, que naquela ocasião ainda era de

matas fechadas.

Em virtude de uma Resolução do governo da Província de Minas Geraes, de 1831, incumbiu o Exmo. Sr. Desembargador Antonio da Costa Pinto, então presidente dessa província, ao Sr. Pedro Victor Renault, engenheiro civil da mesma província, da medição de um local destinado para um degredo de criminosos e mesmo para uma colônia.27

Percebemos, então, que a região já despertava interesse há muito tempo, e

todos os estudos feitos mostram que era bem conhecida pelo governo da Província,

mas muito pouco ocupada. Dentre os motivos dessa não-ocupação destaca-se o

fato de ser região de matas habitadas por índios botocudos, problema esse, que se

resolveria a partir de 1845 quando o governo imperial estabelecia pelo Regulamento

das Missões, a instalação de um aldeamento de índios, a cargo dos franciscanos da

Ordem dos Capuchinhos. Ficaria a responsabilidade de “civilizar o selvagem” com

os frades, que realmente realizaram um “bom trabalho”.

1.1. De Filadélfia a Teófilo Otoni: Um breve histórico da cidade

Em fins do século XIX a região Norte de Minas Gerais encontrava-se

praticamente isolada dos centros mais movimentados do Brasil, ou mesmo, do

26 TETTEROO, Samuel. O Município de Theophilo Ottoni: Notas históricas e chorographicas. Belo Horizonte: Imprensa official de Minas Gerais, 1922.p. 7.27TETTEROO, Samuel. Op. Cit p.. 9.

34

restante do próprio Estado.28 Região muito rica em produtos minerais, há muito

atraía a atenção de aventureiros e/ou supostos abnegados como Theófilo Benedicto

Ottoni, que, percebendo seu potencial produtivo, embrenhara-se na mata fechada,

enfrentando todo tipo de percalços29, inclusive índios hostis, a fim de promover

estudos para verificar a navegabilidade do rio Mucuri, uma saída natural de uma

região do estado de Minas para o oceano Atlântico 30, o que viabilizaria a criação de

uma companhia de navegação para explorar o comércio nesta parte de Minas

Gerais.

Liderando a expedição estava Theófilo Benedicto Ottoni. Desde há muito tempo que os homens sonhavam em desbravar o nordeste de Minas Gerais, reunindo as várias cidades, vilas e povoados em torno de uma saída para o mar. Assim, tendo legalizado a “companhia de Comércio e Navegação do rio Mucuri” em maio de 1847, Theófilo Ottoni organiza, nesse mesmo ano, sua primeira viagem à região.31

Ottoni, nascido na cidade do Serro Frio a 27 de dezembro de 180732, eleito

deputado provincial em 1835 e membro da Assembléia Geral em 1838, destacou-se

na política do Segundo Reinado como Liberal, “Empreendeu diversos estudos

ferroviários e fluviais em Minas Gerais, com o intuito de integrar economicamente as

diversas regiões da Província e ainda dar-lhe uma saída para o mar [...]”33. Na região

do Mucuri, pretendia promover uma via de ligação entre as cidades de Minas Novas

(e toda a região) ao mar, sem que fosse obrigatória a passagem – mais longa, mais

difícil e mais cara – por Ouro Preto e daí para o Rio de Janeiro. Para tanto, baseou-

28 Cf. SANTOS, Márcio Achtschin. Sociabilidades e cotidiano escravo no século XIX. 2006. Dissertação (Mestrado em História Social). Universidade Severino Sombra, Vassouras, 2006. Segundo o autor, a ocupação do Mucuri ocorre a partir da década de 1830, apesar da presença isolada de bandeirantes que desde o século XVI procuravam metais preciosos na região.29 ARAUJO, Valdei Lopes de. “A Filadélfia de Theófilo Ottoni”: uma aventura cidadã. Belo Horizonte:Afato. 2003. O professor Valdei retrata as dificuldades representadas pelo desbravamento da floresta tropical, em especial a Mata Atlântica, típica da região de Teófilo Otoni no século XIX. 30 TETEROO, Samuel. Op. Cit. p. 10.31 ARAUJO, Valdei Lopes de. “A Filadélfia de Theófilo Ottoni”: uma aventura cidadã. Belo Horizonte:Afato. 2003. p. 19.32 Conforme revista “Acaiaca” ed. 52, Junho de 1953. P. 33.33 FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO. CENTRO DE ESTUDOS HISTÓRICOS E CULTURAIS. A Colonização Alemã no Vale do Mucuri. Belo Horizonte: 1993. p.21.

35

se nos estudos do engenheiro Victor Renault, a partir de uma expedição realizada

na primeira metade do século XIX, cujo objetivo era escolher um local para a

construção de uma colônia de degredados à margem do rio Mucuri. Renault havia,

nesta expedição, comprovado que em grande parte de seu percurso o Mucuri era

navegável, apesar de, em alguns trechos, fosse preciso seguir por terra devido a

corredeiras e cachoeiras. Tendo conhecimento destes estudos, Ottoni em conjunto

com Honório Benedicto Ottoni, organizou a empresa Companhia de Comércio e

Navegação do Rio Mucuri, de capital aberto – embora a Lei de 29 de maio de 1847,

que autorizou a referida Companhia, garantisse importantes concessões como o

monopólio de navegação pelo Mucuri e afluentes, desse o direito de cobrar do

governo o valor investido após quarenta anos, concessões de terras, isenção de

impostos provinciais e a construção de um quartel34; tratava-se, então, de uma

empresa privada, mas que possuía garantias de lucro por parte do governo.

Em maio de 1851 a fim de conhecer melhor as condições de navegabilidade

do rio Mucuri e a possibilidade de tal via de comunicação

[...] Theófilo Ottoni contrata o engenheiro polonês Christiano Wisevski. Sua tarefa seria abrir uma estrada em direção ao rio Todos os Santos e estudar o regime das águas e as condições de navegação do rio Mucuri desde sua foz, em São José do Porto Alegre, até a primeira cachoeira, em Santa Clara.35

Por conta desta cachoeira de Santa Clara, foi construída uma estrada de

rodagem36 de vinte e sete léguas, a Estrada Santa Clara, ligando o sertão via rio

Todos os Santos até o Mucuri, local onde uma cachoeira impedia sua navegação.

Num ponto central desta estrada, às margens do rio Todos os Santos, Ottoni fundou,

em 1853, um entreposto comercial chamado de Filadélfia, hoje cidade de Teófilo

34 FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO. CENTRO DE ESTUDOS HISTÓRICOS E CULTURAIS. Op. Cit. p. 20.35 ARAÚJO, Valdei Lopes de. Op. Cit. p.40.36 As estradas de terra batida,, abertas em meio as matas, para o trânsito de mercadorias assim eram chamadas.

36

Otoni, como ponto de apoio aos tropeiros, viajantes e trabalhadores da estrada.

SANTOS trata desta questão, colocando a instalação de povoações e quartéis como

necessárias à segurança do trânsito de viajantes pela Santa Clara, além de atender

ao interesse de atrair habitantes para povoar a região. 37

No mapa abaixo temos a noção da localização do Porto de Santa Clara, ponto

inicial da Estrada com o mesmo nome, e a localização da cidade de Filadélfia:

Mapa extraído do Atlas Geográfico escolar (destaques e legenda nossos).38

Os gastos com a construção e preservação da Estrada Santa Clara foram

maiores que o esperado, trazendo grandes dificuldades para a Companhia do

Mucuri. Segundo SANTOS,

Tais situações viriam a se somar com o comércio abaixo do esperado, não sendo compensatório o preço dos produtos que circulavam pelas estradas do Mucuri. Igualmente equivocado foi o consumo do norte de Minas, abaixo do previsto para a cobrança de impostos dos produtos em circulação. Acresce a dificuldade encontrada para ocupação de colonos, insuficiente

37 SANTOS, Márcio Achtschin. Mucuri: Sociabilidades e cotidiano escravo no século XIX. 2006. Dissertação (Mestrado em História Social). Universidade Severino Sombra, Vassouras, 2006. p. 21.38 SIMIELLI, Maria Elena, DE BIASI, Mário. Atlas Geográfico Escolar. 14.ed. São Paulo: Ática,1990. p.30.

37

para atender a ocupação do Mucuri, agravada pela frustrada imigração alemã. 39

Filadélfia contava, no princípio, apenas com galpões e casas da Cia. do

Mucuri, apenas a partir da “lei provincial no. 808 de 3 de julho de 1857 foi elevada a

Distrito e a Freguesia”40 da cidade de Minas Novas, quando também ficaram

determinados seus limites territoriais. Com a lei no. 2.486 de 9 de novembro de

1878, Filadélfia é elevada à condição de Município 41 recebendo a denominação

Teófilo Otoni, em homenagem a seu fundador.

Os primeiros habitantes da região eram indígenas descendentes de duas

nações diferentes, os Tapuias e os Tupis. Quando da chegada da Companhia do

Mucuri, na primeira metade do século XIX, a população indígena dividia-se em duas

confederações, os Nackenuks e os Gyporocks42. Theóphilo Benedicto Ottoni havia

se comprometido com o Governo de que atrairia colonos para Filadélfia, num total

de 3.000 pessoas, sendo 1.000 por ano. Assim, teve início a ocupação da região por

colonos brancos, sendo os primeiros, antigos moradores do Norte de Minas,

habituados ao plantio de subsistência pela dificuldade de exportar seus víveres, pois

era difícil o escoamento de mercadorias para outras regiões.

Conforme TETEROO, em 1856 havia em Filadélfia 63 famílias de posseiros

com 402 indivíduos. Mas os colonos brasileiros não bastavam para povoar a região,

uma vez que muitos chegaram a abandonar suas colônias ou, até mesmo desistir de

se estabelecer na região por causa do medo da fama de selvageria dos índios

botocudos. Ottoni conseguiu atrair para sua cidade 30 famílias de colonos oriundas

39 SANTOS, Márcio Achtschin. Idem, p. 38.40 TETEROO. Samuel. Op. Cit p. 31.41 Idem. p. 34.42 Idem. p. 53.

38

da Ilha da Madeira. A estes, ofereceu condições para reiniciar sua vida, mas fez

questão de que soubessem das dificuldades que encontrariam.

Derribar o matto virgem, escreve Theophilo Ottoni no seu folheto ‘A colonização do Mucury’, foi a menor das difficuldades com que esta boa gente teve de lutar (mas eram homens acostumados á vida do campo, homens de trabalho); não tinham vindo enganados e tudo venceram.43

Em 1853, nas mesmas condições dos madeirenses, chegaram 130 alemães,

por intermédio da casa comercial Schlobach-Morgenstern de Leipzig. Três anos

depois, mais 6 famílias de suíços vieram voluntariamente colonizar a região.

Para trabalhar na construção da Estrada Santa Clara vieram da China, cerca

de 160 operários, alguns dos quais se estabeleceram nas colônias de Urucu e Santa

Clara.

Os colonos eram atraídos com a oferta de terras para a lavoura e pecuária,

medida que chamou a atenção, sobretudo da população pobre dos vales dos rios

Doce e Jequitinhonha.44

Trabalhadores alemães, da região Potsdam, atraídos pela Associação Central

de Colonização do Brasil, vieram iludidos para a região, esperando encontrar uma

realidade completamente diferente do que realmente existia, além de benefícios que

nunca receberam. Conforme TETEROO

[...] vieram iludidos, escandalosamente enganados pelos agentes dessa Associação.E si não o foram, veja aqui um especimen tirado de um annuncio em nome dos agentes publicados em jornaes da Europa e transcripto por Theophilo Ottoni no seu folheto “A colonização do Mucury”: “Faz-se saber a todas as famílias que quizerem segurar a sua prosperidade para o futuro que uma companhia vem-se a formar tendo por fim mandar para esta terra estravagante fértil, emigrantes communs. La chegados a Companhia cederá a cada um dez mil braças quadradas de terra já cultivada, como assim morada, lugares para animaes e outras pertencencias; instrumentos de agricultura e gado de toda a qualidade. Carpinteiros, pedreiros, marceneiros, etc., podem ganhar lá pelo menos 13 francos por dia, e alem disso trabalhar nas suas terras, etc. etc.”45

43 TETEROO, Samuel. Op. Cit. p. 5944 Cf. FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO. CENTRO DE ESTUDOS HISTÓRICOS E CULTURAIS. Op. Cit. p. 21.45 Idem. p. 60.

39

As terras a serem colonizadas haviam sido preparadas anteriormente pelo

alemão Otto Voigl, mas não conforme fora publicado no exterior. Conforme Araújo,

muitos alemães teriam vindo para Filadélfia acreditando estarem sendo levados para

a cidade homônima, nos Estados Unidos.

Não só alemães vieram iludidos, mas também belgas, holandeses e

franceses, que acabaram não se fixando na região, muitos dos quais voltaram ao

Rio de Janeiro e depois para Porto Alegre.

De toda forma, foram introduzidos até o ano de 1858, 2091 colonos. Há de se

considerar que a partir do século XVIII a emigração de alemães para a América

intensificou-se e nos século XIX, dada a explosão demográfica na Europa, a fome e

a alta dos preços dos víveres.

A ação de estímulo à emigração dos agentes de nações ou empresas de colonização, côo a de Teófilo Ottoni, tiveram um papel bastante importante e eficaz na atração destes contingentes populacionais.46

A cidade de Teófilo Otoni originou-se de uma extensa derrubada, trabalho

realizado pela Companhia de Navegação e de Comércio do rio Mucuri, que, ao

construir uma estrada ligando o interior de Minas Gerais ao litoral Sul da Bahia,

necessitava de um ponto de apoio aos seus trabalhos.

46 FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO. CENTRO DE ESTUDOS HISTÓRICOS E CULTURAIS. Op. Cit. p. 52.

40

Fonte: FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO. CENTRO DE ESTUDOS HISTÓRICOS E CULTURAIS. A Colonização Alemã no Vale do Mucuri. Belo Horizonte: 1993. p.53.

O povoado fundado pelo político liberal Theophilo Benedicto Ottoni,

denominado Filadélfia, conforme TETEROO “ficava justamente no meio da extensão

de 50 léguas de matta virgem entre Santa Clara e o Alto dos Bois, que

embaraçavam a communicação entre o Norte de Minas e o litoral”. 47

Conforme o mesmo autor acima citado, no princípio de 1858, a cidade já

contava com 144 casas e 16 negócios, onde se vendia fazendas, louças, ferragens e

“molhados”. Entre os ofícios dos colonos, destacavam-se os pedreiros, carpinteiros,

marceneiros e ferreiros. A população, com a chegada dos imigrantes, atingiu a cifra

de 1.768 indivíduos.

47 TETEROO, Samuel, Op. Cit. p. 69.

41

Mas o desenvolvimento urbano não retratava toda a realidade da vida no

Mucuri. Em 1859, uma intensa seca assolou a região, dificultando a vida dos colonos

e trazendo consigo a temida “carestia”. Somada a essa dificuldade, a ação de

inimigos políticos do Ottoni contribuiu para promover o descontentamento entre os

habitantes, que aos poucos começaram a deixar a cidade.

Vencendo as dificuldades de cultivo em função do clima e a carestia, os que

permaneceram conseguiram atingir, em 1860 uma colheita de aproximadamente 30

mil alqueires de milho; quatro mil alqueires de arroz, feijão e batatas48. Além disso,

crescia a criação de porcos, a fim de atender a um crescente mercado consumidor

de toucinho na Bahia. Mas, a região teria um avanço significativo a partir da

plantação de café, que passou a sustentar a economia local, conforme podemos

perceber na Sinopse do Recenseamento publicada pelo Ministério da Indústria,

Viação e Obras Públicas em1898.

Apesar de todos esses problemas, a região continuou atraindo interessados

em ocupá-las principalmente pela disponibilidade de terras para o cultivo, bom clima

com chuvas normalmente abundantes, tornando-se, também, produtora de café,

madeira e, posteriormente, gado de corte. Neste ponto da história do município,

percebemos o surgimento de outro personagem travestido de empreendedor, o

engenheiro Miguel de Teive e Argolo, que começou a fazer os estudos de uma

estrada de ferro que ligasse o Norte de Minas Gerais ao Sul da Bahia e oceano. Em

se tratando de ambição, podemos estabelecer semelhanças com o Ottoni,

destacando o enfrentamento político de opositores e as dificuldades financeiras para

dar início à sua obra, que se tornaria o marco da chegada da “civilização” à região.

O que a civilização pode fazer dos industriosos habitantes d’aquela rica zona, quando a lei da permuta e da divisão do trabalho lhes for imposta por esse grande elemento civilizador a que se chama estrada de ferro, é o que

48 Cf. TETEROO. Op. Cit. p. 70.

42

só tempo pode dizer e é o que a Companhia Bahia e Minas deseja mostrar.49

Em A Colonização Alemã no Vale do Mucuri, Ottoni é apresentado como

grande empreendedor, um homem de visão comercial, “Político, homem de

negócios, empresário, reuniu em Minas Gerais todo o espírito de Mauá”.50 Sabemos,

no entanto, que além dos ganhos nos negócios, Ottoni acabou beneficiado

politicamente, uma vez que a sua família por muito tempo representou a liderança

política na cidade fundada por ele.51

Aquilo que eles (Ottoni, Argolo, Reunalt) denominavam de civilização, ou o

ato de civilizar, conforme constatamos na leitura das fontes, foi a idéia de civilização

que esteve presente na história de Teófilo Otoni – desde seu fundador, muito

comum no século XIX, tal como aponta Cardoso:

Na vertente francesa, a civilização, [...] foi vista tradicionalmente numa perspectiva evolucionista e otimista. As civilizações seriam “altas culturas” caracterizadas pela urbanização, a escrita, o desenvolvimento das ciências, a metalurgia, o surgimento de um poder separado do parentesco (o Estado), o desenvolvimento da divisão social do trabalho e das diferenças de status entre indivíduos e grupos [...]52

Percebe-se, então, que a idéia de “civilização” presente na memória da

população de Teófilo Otoni, sobretudo em relação a “sua” estrada de ferro, pode ser

apreendida por meio da visão que associa o uso da máquina a vapor – símbolo do

desenvolvimento tecnológico da época – à idéia uma de civilização (aquela

defendida principalmente pelos franceses no século XIX), quando substituiu o

transporte de mercadorias no lombo de burros e mulas.

49 ARGOLO, Miguel de Teive e. Op.Cit. p. 8.50 FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO. CENTRO DE ESTUDOS HISTÓRICOS E CULTURAIS. Op. Cit. p. 20.51 Idem. p. 52.52 CARDODO, Ciro Flamarion e VAINFAS, Ronaldo (Org) “Domínios da História”. Rio de Janeiro: Campus, 1997. P. 1.

43

Nesta época (século XIX), em decorrência da Estrada de Ferro, surgiu na

cidade um novo grupo, os funcionários da Bahia-Minas, ou “bahiminas” como eram

chamados. Um grupo forte, coeso na defesa de seus direitos e na consciência de

grupo e, bem remunerados, comparando-se com a renda do trabalhador do campo

ou pequeno comerciante de uma cidade do interior naquela época, fazendo a

economia da cidade, dar um salto qualitativo.

Se na memória dos cidadãos teófilo-otonenses ficou registrado importante

avanço no desenvolvimento econômico e social da cidade, podemos comprová-lo ao

observar os dados estatísticos colhidos em diferentes épocas. Assim, vejamos:

Um pouco antes da inauguração da ferrovia, segundo o censo de 1890, a

cidade contava com um total de 6.259 habitantes, sendo quase metade deste

número composto de estrangeiros; possuía apenas 870 casas. Já em 1950, em

decorrência da existência da ferrovia, segundo o anuário estatístico de Minas

Gerais, indica uma população em Teófilo Otoni de 87.971 habitantes ocupando

16.635 prédios.

Considerando-se que a ferrovia chegou à cidade em 1898, em pouco mais de

60 anos de sua atividade na região, observamos um aumento de quase 82 mil

habitantes. Um número bastante respeitável, levando em consideração que entre o

final do século XIX e início do século XX, quase metade da área do município era

coberto de matas.53 Uma região que há pouco mais de 60 anos era considerada

sertão, Teófilo Otoni passou a representar a 6ª maior população do Estado de Minas

em 1950.54

53 Segundo o Anuário Estatístico de Minas Gerais de 1921 (Vol. 1) p. 60, a área total do município de Teófilo Otoni era de 620.000 Km2, sendo 300.000 Km2 em matas.54 Cf. Anuário Estatístico de Minas Gerais de 1950, p. 106.

44

A idéia que se tem é de que a ferrovia chegou trazendo para a cidade todo o

desenvolvimento que se esperava dela. Trouxe toda a modernidade que a própria

ferrovia representava no ideário do século XIX. De alguma forma, na memória do

teófilo-otonense estão praticamente esquecidos os tempos “pré-modernização”, os

tempos anteriores a chegada da Bahia-Minas, fato que observamos na maioria dos

textos publicados sobre a história da cidade, onde tudo o que existia antes de 1898

tem sua importância reduzida – exceto, é claro, a imigração alemã. Têm-se a

sensação de que a história da cidade começa, de fato, com a ferrovia, o que não é

verdade.

Acontece que toda a paisagem muda com a chegada da ferrovia vista por

todos os moradores da cidade como símbolo da chegada da modernidade. Como

bem expressa BERMAN:

Se nos adiantarmos cerca de um século, para tentar identificar os timbres e ritmos peculiares da modernidade do século XIX, a primeira coisa que observaremos será a nova paisagem, altamente desenvolvida, diferenciada e dinâmica, na qual tem lugar a experiência moderna. Trata-se de uma paisagem de engenhos a vapor, fábricas automatizadas, ferrovias, amplas novas zonas industriais; prolíficas cidades que cresceram do dia para a noite; [...] 55

Compreendemos que essa nova paisagem, conformada pela construção da

ferrovia, apresentar-se-ia tão embriagadora como introdutora de novidades e

inovações, tenha marcado mais profundamente a memória do teófilo-otonense,

apesar da cidade não contar, de imediato, com fábricas e amplas zonas industriais.

No entanto, as construções de grandes armazéns, serrarias, empresas comerciais,

além das instalações da própria ferrovia modificam o cenário da cidade.

55 BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: A aventura da modernidade. 2.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p. 19.

45

Não por acaso, todo o desenvolvimento urbano da cidade está relacionado

com a chegada da ferrovia, que necessitava de infra-estrutura adequada para seu

funcionamento, conforme podemos perceber em TETEROO:

É a cidade servida desde 3 de Maio de 1898 pela Estrada de Ferro Bahia e Minas, que a liga ao Oceano Atlântico, a uma distância de 376 kilometros, e ao município de Arassuahy na estação S. Bento, a inaugurar-se brevemente. É servida pelo telegrapho nacional dese 23 de outubro de 1910. Tem um posto de observações meteorológicas desde 1911. É abastecida de água encanada desde 15 de abril de 1915; [...] em virtude das leis municipaes de 12 de janeiro de 1907 e de 8 de abril de 1912 foi posto em hasta publica o fornecimento de energia elétrica para a illuminação publica e particular aos 29 de abril de 1918.56

Conforme FALCON (2000), “Não existem critérios consensuais para definir a

modernidade enquanto conceito”. 57 O que ele propõe é a definição de que,

historicamente, o fim do século XVIII e o início do século XIX “correspondem ao

período de constituição e auto-afirmação da modernidade. Interessa-nos,

sobremaneira, o conceito levantado por Falcon, onde “com a modernidade se

modifica radicalmente a própria experiência do presente.”58

Em fins do século XVIII e início do XIX a ferrovia era considerada um legítimo

instrumento promotor do progresso, da modernização da sociedade. A estrada de

ferro modifica o cenário, obras gigantescas exigem o esforço de inúmeros

trabalhadores que muitas vezes deixam sua vida e sua saúde nessa empreitada.

Modifica as populações das cidades às margens das linhas – criam a circulação de

pessoas, atraídas por trabalho, por mercados, por novas possibilidades de vida. Tal

realidade fora observada por Lima, conforme destacamos no início desse capítulo. O

mesmo pode-se dizer em relação ao discurso do engenheiro Argolo ao afirmar que

56 TETEROO, Samuel. Op. Cit. p. 71.57 FALCON. Francisco José Calazans. Moderno e Modernidade. In: RODRIGUES, Antonio Edmilson M.; FALCON, Francisco José Calazans. Tempos Modernos: ensaios de História Cultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. p.229.58 Idem, p. 230.

46

“a fraqueza e o atrazo (Sic.)” 59 do Brasil são decorrentes da diminuta extensão de

sua malha ferroviária.

Nenhum paiz precisa mais de vias de communicação do que o Brazil. Com uma área de 8,307.806 Kilometro quadrados tem apenas 9,963.747 habitantes ou pouco mais de um habitante e sómente 48 centímetros de estrada de ferro em trafego para cada kilometro quadrado de superfície.

O que era Teófilo Otoni e todo o Vale do Mucuri nos fins do século XIX?

Tratava-se de uma região potencialmente rica em termos de recursos naturais. Uma

riqueza já antes percebida pelos pioneiros que vieram com o Ottoni e participaram

da construção da cidade. Entretanto, suas vias de comunicação eram deficientes. A

Estrada Santa Clara, sua principal via de escoamento da produção carecia de

reparos para sua manutenção. O transporte feito em lombo de burros dificultava o

comércio e a vida daqueles que persistiam em viver na região. Por este motivo a

chegada da Bahia-Minas foi comemorada como sendo a chegada do “futuro”, e do

“moderno” em Teófilo Otoni. A festa da inauguração, conforme citamos no relato da

revista Confronto, significou apenas as primeiras das várias mudanças para a vida

na cidade. Uma cidade com características típicas do interior, com a economia

voltada para a zona rural, com uma sociedade cuja classe dominante era formada

por proprietários rurais, com hábitos e costumes modestos, passa a ter sua rotina

estabelecida pelo horário dos trens, conforme destaca o cientista social Bruno Dias

Bento em sua monografia de conclusão de curso:

O tempo, considerado pelos capitalistas como dinheiro, é elemento inerente às novas práticas e relações sociais de consumo, produção, etc., a precisão da marcação do tempo ditará o ritmo da sociedade moderna. Entretanto, esta afirmação perderá totalmente o sentido no momento em que o Trem, aquele qual o progresso prometido vem a reboque chega aos sertões vários e ao Vale: o horário, que no Mucuri significava também a composição do trem é a expressão máxima do controle humano por meio do tempo.60

59 ARGOLO, Miguel de Teive. Op. Cit. p. 7.60 GIDDENS. Apud. BENTO, Bruno Dias. (monografia). UFMG, 2002.

47

Essa idéia de moderno, presente na Teófilo Otoni de 1898, como podemos

perceber na citação que fala da inauguração da Estação da cidade, citado na página

25 deste capítulo, não era exclusividade do povo deste pedaço de Minas Gerais. Era

uma idéia comum aos homens daquela época, onde se pensava que a “as forças da

moderna organização industrial tornam possível o progresso em curto tempo”.61 O

vapor era a força que movia a indústria no princípio. É esse mesmo vapor que

movimentava a locomotiva e que cobriu toda aquela gente que esperava o primeiro

trem chegar na estação de Teófilo Otoni em 1898. Tudo mudaria na cidade a partir

de então. A forma de ver o mundo e até mesmo as relações interpessoais e de

trabalho. A Estrada de Ferro, mantendo seus escritórios na cidade, trazia um

movimento intenso ao comércio local. Novos moradores para a cidade, pessoas que

passavam por aqui vindas no trem, novas mercadorias... dinheiro que circulava a

partir da ferrovia. A Estrada de Ferro criava empregos diretos e indiretos. Os quase

dois mil funcionários tinham seus pagamentos efetuados a partir de Teófilo Otoni,

criavam, assim, um vínculo com a cidade.

Com a extinção da Bahia-Minas na década de 60 do século passado, ficou a

impressão, sobretudo nos moradores mais antigos, de que a cidade estagnou, ou,

para alguns, entrou em declínio, situação que só recentemente vai sendo superada,

principalmente com a tendência à transformação da cidade em pólo educacional,

com a abertura de várias faculdades, atraindo mão-de-obra qualificada e

qualificando cidadãos de Teófilo Otoni, além de fixar grande parte dos jovens, que

anteriormente eram obrigados a se dirigir a Belo Horizonte, ou outros centros em

busca de um futuro melhor.

1.2. A Chegada da Estrada de Ferro Bahia-Minas à região

61 BERMAN, Marshal. Op. Cit. p.73.

48

A Estrada de Ferro Bahia-Minas fora idealizada pelo engenheiro Miguel de

Teive e Argolo com o objetivo de promover a integração da região Norte/Nordeste de

Minas Gerais, dotando-a de uma saída para o mar.

Mapa extraído do Atlas Geográfico escolar destaque do trajeto da Estrada de Ferro Bahia Minas62

A obra atenderia aos anseios de uma região promissora, como apontava o

próprio Argolo, mas que, no entanto praticamente não possuía meios para escoar

sua produção.

Esta estrada liga o ubérrimo solo do norte da província de Minas Geraes ao porto de mar por onde com menos dispêndio podem ter sahida os seus productos, e será de grande vantagem a toda essa região, porque além d’esse porto, Caravellas, ser um dos melhores, sinão o melhor porto entre o Rio de Janeiro e a Bahia, a estrada que o ligar ao norte de Minas não só é a mais curta como também a de traçado e conservação menos dispendiosa, de maneira que nenhuma outra poderá em época alguma sustentar tarifas tão commodas aos productores, o que a colloca livre da competência de qualquer outra.63

A Estrada foi pensada num contexto onde se privilegiava o desenvolvimento

tecnológico, como símbolo de modernidade, como promotor da civilização e do

desenvolvimento econômico. Tal impressão fora muito bem captada pelo professor

Lima ao estudar registros de memórias de viajantes brasileiros e estrangeiros nas

62 SIMIELLI, Maria Elena, DE BIASI, Mário. Atlas Geográfico Escolar. 14.ed. São Paulo: Ática,1990. p.30.63 ARGOLO, Miguel de Teive. Op. Cit. P. 57.

49

estradas de ferro Oeste de Minas e Goiás entre o final do século XIX e princípio do

XX:

Nestes textos de memória, a ferrovia seria o instrumento capaz de possibilitar o rompimento com a situação de atraso cultural através da transformação do país em nação civilizada.64

Obviamente trata-se de uma visão positivista dos progressos tecnológicos

trazidos pela “civilização”. Pensamento corrente no Brasil do século XIX. Segundo

LIMA, havia no Brasil argumentos favoráveis à modernização, “desde propostas de

políticas de expansão do controle efetivo do Estado pelo território até a defesa da

necessidade de mudanças nos hábitos das populações sertanejas”.65 Esse

pensamente muito facilmente pode ser transportado para o Mucuri e a EFBM.

Os primeiros estudos do engenheiro Miguel de Teive e Argolo para a

construção de uma estrada de ferro que ligasse o Norte de Minas Gerais com o

litoral Sul da Bahia foi publicado com o título “Viação Férrea do Norte de Minas” e

para a surpresa do engenheiro, logo foi acatado pela Assembléia Provincial de

Minas Gerais que concedeu o privilégio para a construção do trecho mineiro. Era

preciso naquele momento, conseguir o mesmo para o trecho baiano. Desta vez,

porém, o projeto não foi aceito de imediato e circulou por todas as instâncias

políticas e jurídicas das províncias da Bahia e Rio de Janeiro (não sem enfrentar

dificuldades impostas pelo interesse, ou desinteresse, dos políticos da época), até

que no dia 6 de agosto de 1879, após certa pressão exercida pela imprensa

bahiana, foi concedido o privilégio para a construção da estrada no trecho de

Caravelas à divisa com Minas Gerais.

Chegado á Bahia requeri privilegio para uma estrada de ferro que ligasse o porto de Caravellas com a estrada que me tinha sido concedida em Minas,

64 LIMA, Pablo Luiz de Oliveira. A Máquina, tração do progresso. Memória da Ferrovia no Oeste de Minas: Entre o Sertão e a Civilização. 1880 – 1930. 2003. 202 f. Dissertação (Mestrado em História). UFMG, Belo Horizonte, 2003. p. 26.65 LIMA, Pablo Luiz de Oliveira. Op. Cit p. 26.

50

porém era preciso que se cumprisse o provérbio de que ninguém é propheta em sua terra, e apezar de ter encontrado o apoio dos deputados da ordem do preclaro Sr. Dr. Arthur César Rios, que defendeu o projecto, não deixou de ser elle impugnado por muitos que eram então deputados provinciaes. [...] A imprensa também não se calou emquanto o projecto d’esta estrada esteve em discussão na assembléa, muitos artigos foram escriptos pró e contra com título de Estrada de Ferro do Norte de Minas, tendo sido em 24 de julho de 1879 lido na assembléa uma rperesentação assignada pelos principaes negociantes da praça da Bahia, pedindo-lhe de legislar de maneira que a estrada de ferro de Caravellas se tornasse uma realidade no mais breve tempo que fosse possível.Finalmente passou em terceira discussão, no dia 6 de Agosto, o projecto que me concedia privilegio para a estrada de ferro de Caravellas ás divisas da província de Minas Geraes, tendo o meu requerimento para esse privilegio sido apresentado na assembléa em sessão de 1 de maio de 1879.66

Levantar capital para a construção não foi tarefa fácil para Argolo, com o

governo imperial pouco favorável à obra. Assim, Argolo somente conseguiu os

valores necessários para iniciar sua empreitada ao entrar em contato com Carlos

Theodoro de Bustamante e os Comendadores Francisco de Paula Mayrink e José

Pereira da Rocha Paranhos, que se tornaram sócios da empresa, agora totalmente

de capital privado. Obviamente esses sócios capitalistas não investiram seu dinheiro

apenas pelo espírito de aventura, mas, visando o lucro que as terras cortadas pela

ferrovia trariam no futuro. Pensando nisso, conseguiram comprar as tais terras

devolutas em toda a extensão da estrada e numa largura de seis quilômetros para

cada lado do eixo da linha.

Não desanimei no meu intento de tornar esta estrada de ferro uma realidade e, depois de muitos dissabores e desillusões, tive a felicidade de me relacionar com os distinctos cavalheiros que foram sócios proprietários d’esta estrada, os Srs. Dr. Carlos Theodoro de Bustamante e Commendadores Francisco de Paula Mayrink e José Pereira da Rocha Paranhos.Estes senhores, que juntam intelligencia cultivada, patriotismo e qualidades pouco communs que os collocam em uma esphera superior pelo merecimento, não trepidaram em arriscar suas fortunas em uma empreza que só poderia ter como rival a estrada de ferro do Pacífico. Como ella, esta estrada une pontos longínquos povoados e separados por mattas virgens ainda em poder das feras e do gentio bravio, onde ella vai implantar a civilisação. 67

66 ARGOLO, Miguel de Teive. Op. Cit. p. 28-29.67 Idem. P. 31.

51

Tendo resolvido os problemas financeiros, então, era só fechar contrato com

a província de Minas Gerais e começar as obras. Após difíceis negociações com o

Diretor das Obras Públicas, tal contrato foi fechado com o presidente de Minas

Graciliano Aristides de Prado Pimentel. Da mesma forma, o governo do Rio de

Janeiro aprovou a construção em 6 de julho de 1880.

Somente no dia 9 de setembro de 1880, todas as pendências burocráticas

estavam resolvidas e a empresa poderia começar a contratar os técnicos que fariam

o projeto da estrada.

A cidade de Caravelas abrigava na época um promissor porto marítimo,

estrategicamente localizado e que já contava com sete fábricas conhecidas como

“armações” onde atracavam navios baleeiros e preparava-se o óleo para a

exportação. Caravelas já dominava todo o comércio da região Sul da Bahia, sendo a

mais importante daquela região e ponto de entrada para os sertões de Minas Gerais.

Era presumível, portanto, que os comerciantes locais contassem com a construção

da estação inicial da Bahia – Minas nas imediações do centro da cidade. Como nos

afirma Eleutério: “Cognominada “Princesa dos Abrolhos”, [Caravelas] era o ponto

referencial marítimo, em razão dos seus recursos naturais, já apresentava

conceituada posição agrícola”.68

No entanto, após estudos cuidadosos, os técnicos contratados para fazer a

obra, verificaram que para chegar até o centro de Caravelas, a estrada teria que dar

uma volta de aproximadamente três quilômetros, atravessando diversos terrenos

instáveis e brejos, dificultando a construção, além disso, não existia em Caravelas

um bom ponto para a construção de uma ponte marítima, tão necessária para a

estrada. Assim, o Engenheiro Argolo solucionou o problema com a construção da

68 ELEUTÉRIO, Arysbure Batista. Estrada de Ferro Bahia e Minas: A ferrovia do Adeus. Relato Histórico da Estrada de Ferro Bahia e Minas, 1879 – 1966 – produção autônoma.p. 19.

52

estação num terreno localizado entre a parte comercial da cidade e a barra de

Caravelas, denominado Ponta de Areia, que lhe fora doado com a condição de que

fosse loteado, com ruas largas e praças, facilitando a expansão da cidade para

aquela região.

Ponta de Areia tornou-se o ponto inicial da construção da Estrada de Ferro

Bahia – Minas e, ao mesmo tempo, ponto final da viagem do interior de Minas para o

litoral. Esta decisão causou polêmica e até protestos dos comerciantes de Caravelas

que se sentiram prejudicados. No dia 25 de janeiro de 1881 teve início a construção

da estrada, sendo seu primeiro trilho fixado no dia 16 de maio daquele ano. As obras

continuaram em ritmo acelerado, com material chegando da Inglaterra direto para o

porto de Caravelas e isento de cobranças alfandegárias. No dia 25 de julho chegou

um navio norueguês de nome “Mathilde” trazendo o primeiro material rodante da

estrada de ferro, inclusive a primeira locomotiva, denominada Joviana69 que foi

montada nas oficinas de Ponta de Areia, percorrendo os primeiros 10 quilômetros da

linha no dia 24 de agosto.

O contrato com a província da Bahia havia estabelecido uma subvenção de

9:000$000 por quilômetro construído. Chegado o vencimento dessa subvenção, a

província alegando não ter dinheiro suficiente, pagou em apólices provinciais cujo

valor já estava depreciado.

A construção continuou sofrendo com as dificuldades financeiras, uma vez

que, com os títulos que receberam em pagamento das subvenções, não conseguiam

ter liquidez suficiente para honrar seus débitos, além disso, os sócios não

esperavam que a província não pagasse sequer a primeira subvenção. Além dos

problemas financeiros, outros, de ordem humana surgiram. Abrir uma estrada em

69 Hoje, uma cópia desta locomotiva, batizada pelos índios de Poxixá – forte, poderosa – “descansa” na Praça Tiradentes, no centro de Teófilo Otoni, onde atiça a memória dos cidadãos, sobretudo os mais antigos, saudosos dos tempos da ferrovia.

53

região tropical, com terrenos alagadiços e infestados de insetos, produziu uma

epidemia de febres que muitas vezes degeneravam em tifo, trazendo muitas baixas

entre os trabalhadores e espantando outros que nem mesmo vieram para a região.

Seria fastidioso narrar todas as peripécias que se deram durante a cosntrução da estrada. Logo no seu principio, sendo o terreno baixo, foi ella construída em aterro, tendo a terra sido tirada das valletas lateraes. Esse movimento de terra, em térreo do qual parte era alagadiço, produzio uma epidemia de febres perniciosas [...] Essa epidemia não attendeu a nada, tanto ferio sub-emrpeiteiros como trabalhadores, e muitos d’esses fugiam da estrada como quem foge da morte, de maneira que era preciso constantemente importar trabalhadores e, por todos os vapores, vinha novo pessoal substituir o que no vapor anterior havia fugido. Muitas vezes, aconteceu de virem trabalhadores do Rio que, ao chegarem, ouvindo a notícia da epidemia, voltavam pelo mesmo vapor, sem mesmo desembarcarem.70

Esse “progresso” construído sobre o sacrifício de muitas vidas não era

interessante para Argolo, que se poupou de narrar nas memórias da ferrovia às

páginas difíceis de sua construção. Um símbolo do bem-estar da sociedade não

poderia estar relacionado com a morte de trabalhadores em plena ação quando as

condições de trabalho não eram das melhores.

A estrada até Aymorés (MG) ficou pronta no dia 9 de outubro de 1882, sendo

inaugurada no dia 9 de novembro, recebendo autoridades da corte, bem como da

Bahia e de Minas Gerais. No ano seguinte organizou-se finalmente a Companhia da

Estrada de Ferro Bahia e Minas, com capital de 12.000:000$000, em substituição da

Empresa Estrada de Ferro Bahia e Minas, responsável pela construção. Dentre os

estatutos da Cia. constava a intenção de prolongar os trilhos até Philadelphia

(Teófilo Otoni) e seus ramais, conforme contrato assinado com a província de Minas

Gerais em 1880.

Após a inauguração da estrada até Aymorés, houve uma paralisação nas

obra. Os estudos para o prolongamento dos trilhos até Teófilo Otoni foram feitos em

três turnos. Uma equipe chefiada pelo engenheiro Hilário Stuart Le Page, partindo

70 ARGOLO, Miguel de Teive. Op. Cit. p. 50.

54

de Aymorés em direção a Teófilo Otoni; outra, chefiada pelo engenheiro Luiz Sobral

Pinto Junior, saindo de Teófilo Otoni até Aymorés. Outra equipe, ainda, sob

coordenação do engenheiro Eugenio Fabris foi encarregada de fazer as

modificações necessárias em ambos os estudos. Somente em 1885, sob a direção

do engenheiro Rodolfo Alexandre Heei, uma empreiteira começa o prolongamento

dos trilhos, chegando até Presidente Pena. Outra empreiteira, comandada por

Zoroastro Pires Gustavo Mainich, encarregou-se por terminar a obra, no entanto,

repassou o serviço para uma terceira, sob a chefia de Francisco das Chagas Pinto

Sales, que também não obteve sucesso. Tal situação ocorreu devido a falta de

recursos financeiros da Companhia, obrigando a uma nova interrupção nas obras.

O secretário de Viação de Minas Gerais, Francisco Sá, interessou-se pela

estrada e resolveu passar ao Estado os serviços de construção da ferrovia,

contratando os engenheiros Pedro Versiane e Domingos Campagnani para fiscalizar

as obras. Para tanto, o governo mineiro liberou um importante empréstimo a Miguel

Argolo, sob hipoteca. Posteriormente, o Estado mineiro assumiria o controle da

Companhia e seus direitos de exploração da estrada no lado mineiro. O governo

mineiro adicionou mais verbas para a construção, que retomou o ritmo acelerado,

sendo inaugurada em 1892 a estação de Urucu (Carlos Chagas).

Novamente surgiram obstáculos à ferrovia, além da falta de dinheiro, as

chuvas torrenciais que caiam na região provocavam deslizamentos, destruindo

trechos já terminados da estrada. É nesse contexto que acontece a primeira greve

da Cia. em 1886, da qual não conseguimos muitos registros apenas sabemos que a

situação fora resolvida após intensas negociações com pagamento de salários

atrasados e troca da diretoria. Conforme o advogado e ex-ferroviário Eleutério71, o

71 ELEUTÉRIO, Arysbure Batista. Estrada de Ferro Bahia e Minas: A ferrovia do Adeus. Relato Histórico da Estrada de Ferro Bahia e Minas, 1879 – 1966 – produção autônoma.

55

que contribuiu para a rápida solução do impasse com os trabalhadores foi uma

comissão de comerciantes de Teófilo Otoni que pressionou a diretoria da Estrada

para a resolução do impasse. Vale ressaltar que o comércio em Teófilo Otoni era

sustentado, em parte, pelos funcionários da ferrovia, sendo a única grande empresa

da cidade naquela época, a paralisação dos trabalhadores e a falta de pagamento

de salários levaram a uma queda em todo o comércio da cidade, causando prejuízo

aos comerciantes.

Para cumprir os prazos previamente estabelecidos, o engenheiro Pedro

Versiane determinou a abertura de uma nova frente de trabalho em meados de

1897, partindo de Teófilo Otoni. A empreitada deu certo e no dia 3 de maio de 1898

foi inaugurada a estação de Teófilo Otoni, com muita festa e a presença de ilustres

autoridades. O país respirava os ares da República, a ferrovia cumpriria seu papel

nessa nova fase da política brasileira e as autoridades presentes na inauguração

evidenciam a divisão dos poderes – presidente da Câmara, deputados, juízes, além

de militares e autoridades eclesiásticas.

Abaixo, segue a descrição da enorme festa preparada pelos teófilo-otonenses

para a inauguração da sua estação ferroviária. Percebe-se facilmente no agir e no

reagir do povo, a força da imagem de progresso, construída pela ferrovia,

Teófilo Otoni, 3 de maio de 1898, terça-feira. – antes mesmo do badalar do sino da Igreja Matriz, às cinco horas, a maior parte da população já se movimentava na agradável manhã, sob grande expectativa, enquanto grupos de exaltados com instrumentos musicais improvisados percorriam as ruas centrais, acordando os retardatários, convocando-os para o maior acontecimento do primeiro século da existência da Cidade, a inauguração da Estação da Estrada de Ferro Bahia e Minas. Sem qualquer aviso, subitamente, a Cidade é sacudida por estrondos ensurdecedores. Do Morro do Cruzeiro, morteiros Cabeça de Negro ribombam nos ares, bombas de choque e foguetes explodem em vários pontos, cobrindo de fumaça o céu azul-claro. Tambores, bombons e matracas, sanfonas, violas e gaitas, sons reunidos e jamais conhecidos em conjunto, importunam os que ainda teimam em continuar recolhidos [...] as ruas amanheceram enfeitadas de bandeirolas, girândolas, estandartes e galhos de coqueiros [...] Um gigantesco Arco do Triunfo chama as atenções [...] A Cidade, o povo e as autoridades esperam a chegada da composição inaugural para qualquer momento.

56

A Banda de Música do Rio de Janeiro era a grande novidade [...] Os músicos de Minas Novas não deram por menos [...] A Presidência da Câmara (Prefeitura Municipal) nos últimos dias realizara diversas providências: vinte novos lampeoes de Kerozene Jacaré foram colocados em pontos estratégicos, próximos ao leito da Estrada de Ferro [...] Pessoas desconhecidas eram vistas por todas as ruas, o famoso Hotel Philadelphia e a Pensão de Dona Clara estavam super lotados com viajantes da Bahia e do Rio de Janeiro [...] O foguetório continuava intenso pelas dez da manhã [...] A espectativa domina a todos e os convidados especiais continuam chegando. Neste momento, onze horas e trinta minutos, um apito longo e distante começa a ser ouvido e ganha intensidade; a massa popular fica silenciosa, poucos são tomados de pavor, ninguém fala, [...] o barulho já é estridente e dominador, emocionou a todos e, num instante surge na reta a grande locomotiva, vista de frente, negra, arfando ruidosa e bufando, solta fumaça por todos os lados; estremece o palanque de madeira, a máquina avança a incrível velocidade, um, dois, três, quatro carros de passageiros e pranchas cheias de pessoas desconhecidas. [...] os freios guincham, as rodas nos trilhos provocam faíscas e a máquina ruidosa começa a parar. Um vozerio tem início mas é abafado por palmas e vivas, enquanto a locomotiva continua resfolegante. Alguém no meio da massa popular grita: “Viva o Brasil!!”72

O jornalista da Confronto ao descrever a grande festa de inauguração da linha

de Teófilo Otoni não se preocupou em dimensionar a criação dessa imagem do

progresso em Teófilo Otoni. Tratada como o “maior acontecimento do primeiro

século de existência da cidade” a inauguração da estação – e ainda não era a

estação definitiva, apenas um galpão de madeira improvisado – supera toda a

história da cidade até então – abertura da primeira rua, a elevação da cidade ao

nível de município, a construção da igreja matriz, da câmara municipal... – tudo é

rebaixado a um segundo plano. É o novo que chega para sepultar o velho.

Tantos fogos, tanto barulho que mais parece descrever uma guerra deixam

claro a imagem de confronto do novo com o antigo. Aliás, a vitória do novo já estava

garantida, afinal, até um “arco do triunfo” fora erguido para a inauguração. Como

teria sido surpreendido o povo que ainda dormia às cinco da manhã de uma terça-

feira com tanto barulho, inclusive de uma banda que teria vindo do Rio de Janeiro,

ninguém sabe por quais vias, afinal, era missão da estrada de ferro ligar Teófilo

Otoni aos grandes centros e ela estava sendo inaugurada neste dia. Os músicos de

72 Trecho retirado da Revista Confronto, Junho de 1979. p. 10-13.

57

Minas Novas provavelmente devem ter vindo pelas estradas de terra usadas pelos

tropeiros – o novo e o velho; o interior e a capital. Tudo isso reunido num dia de

trabalho, numa festa que demorou grande parte desse dia – pela descrição da festa,

as pessoas esperaram das cinco às onze da manhã e as festas devem ter-se

prolongado por mais algumas horas da tarde deste dia, que seria o primeiro de uma

nova história da cidade.

Os preparativos que antecederam essa grande festa movimentaram a cidade.

Poucos eram os hotéis, destacando o Hotel Philadélphia, assim, as pensões

também ficaram lotadas. Conforme o mesmo trecho da revista Confronto, a

prefeitura havia tomado várias providências para que tudo parecesse muito limpo e

organizado, como a compra de vinte novos lampiões de querosene afim de

melhorar a iluminação das ruas, a contratação de trabalhadores extras para a capina

da grama das praças da cidade, a limpeza das ruas e o aumento da fiscalização

sobre os vendedores de frutas, tudo no intuito de evitar que se sujassem as vias.

A cidade que se preparava para a chegada do trem, que naquele momento

representava a entrada de uma nova era, precisava se adequar às novas exigências

da modernidade que acompanhava os trilhos, animais soltos na rua, frutos pelo

chão, nada disso poderia ser concebido nessa “nova” Teófilo Otoni.

Para dar continuidade aos trabalhos de prolongamento dos trilhos, até a

cidade de Araçuaí, no Vale do Jequitinhonha, toda uma variedade de relevos teve

que ser desbravada, desde pântanos e planícies secas até rochas que tiveram que

ser cortadas com instrumentos rudimentares. Entre Teófilo Otoni e Ladainha, por

exemplo, foram construídos dois túneis, que resistem até os dias de hoje.

Diante de tão grandes desafios, o Governo Federal, que havia encampado a

ferrovia em 1910, entregou a direção da EFBM à companhia francesa “Chemins de

58

Fer Federaux de L”Est Brésilien”, em 1912, quando a ferrovia foi dotada de

locomotivas americanas mais modernas, o que representou um importante

progresso para a empresa, ação que se tivesse sido efetivada em diretorias

posteriores, poderia ter melhorado os serviços da Bahia-Minas e talvez até evitado

os déficits em seus últimos anos de existência.

Novos estudos foram feitos para o prolongamento a partir de 1913, entre eles

a construção da oficina geral da estrada, no local onde hoje está a cidade de

Ladainha, cuja estação foi inaugurada em 1918, assim como as estações de Valão e

Coporanga. Sempre com o objetivo de chegar até a cidade de Arassuay (Araçuaí), a

Bahia-Minas chegaria a Novo Cruzeiro (1924), Engenheiro Schnoor (1930), Alfredo

Graça (1941) e, finalmente, Araçuaí (1942).

Conforme informação de Arysbure73 a ferrovia operou com sucesso nos anos

seguintes à sua construção. Ligar Araçuaí a Ponta de Areia não era a única ambição

dos administradores da Bahia-Minas, tanto que, já em 1906, o engenheiro Emílio

Schnoor fez estudos com o objetivo de ligar a ferrovia de Teófilo Otoni até a atual

Governador Valadares, uma união com a ferrovia Vitória-Minas, obra que

obviamente não foi concretizada e a Bahia-Minas continuou isolada. Tal projeto seria

relembrado em 1961, quando a Estrada já enfrentava problemas financeiros,

conforme reportagem do jornal Estado de Minas citado pelo ex-secretário de turismo

de Teófilo Otoni, José Nogueira Filho num livreto publicado em 1998:

[...] Hoje quando se fala na possibilidade de extinção da Estrada de Ferro Bahia e Minas, por ser deficitária, este problema merece ser tratado com uma atenção especial por todos aqueles que se interessam pelo progresso daquela vasta região. A ligação da Bahia e Minas à Vitória-Minas em Governador Valadares – obra perfeitamente viável – permitirá a imediata recuperação financeira da ferrovia que tem a sua sede em Teófilo Otoni. Estendendo-a até Montes Claros, ficaria interligada com a Central do Brasil e Leste Brasileira, que é parte do sistema ferroviário do Nordeste, e futuramente poderá atingir Brasília, através de Formosa com o que se

73 Conforme ELEUTÉRIO, Arysbure Batista. Estrada de Ferro Bahia e Minas: A ferrovia do Adeus. Relato Histórico da Estrada de Ferro Bahia e Minas, 1879 – 1966 – produção autônoma.

59

transformaria no sistema dorsal do transporte ferroviário de uma ampla região.74

Tal prolongamento não foi construído, nem em 1906 e muito menos em 1961,

mesmo contando tal projeto com o apoio do Presidente do Conselho de Ministros,

Tancredo Neves.

Nos anos 50 a Estrada de Ferro Bahia-Minas manteve a rota de Ponta de

Areia a Teófilo Otoni e de Teófilo Otoni para Araçuaí diariamente, apesar das

dificuldades financeiras, uma vez que a cafeicultura, principal atividade da região

havia entrado em crise desde a década de 30, sendo substituído pela extração de

madeira para a construção e para alimentar as máquinas a vapor e posteriormente

pela pecuária.

No mapa75 abaixo, percebemos o percurso da ferrovia, destacando as

estações cortadas por ela:

Mapa extraído do Guia de Horários da EFBM (marcações e destaques nossos)76

74 ESTADO DE MINAS, 31 de agosto de 1961.75 Fonte do mapa: Guia e Horários da Estrada de Ferro Bahia e Minas, 15 Out, 1948, p. 58. (O leito e as principais estações foram destacadas pelo autor deste trabalho).76 Guia e Horários da Estrada de Ferro Bahia e Minas, 15 Out, 1948,

60

A primeira cidade que aparece à esquerda do Mapa (em fonte de cor azul) é

Araçuaí, ponto final da estrada no interior de Minas, seguindo o leito, destacado em

vermelho, encontramos Ladainha, Teófilo Otoni, Nanuque, Argolo, Ponta de Areia e

Caravelas, permeadas por outras estações de menor destaque. A linha verde divide,

aproximadamente, o trecho mineiro (à esquerda) e o trecho bahiano (à direita).

Vale destacar, ainda, que ao longo dos pouco mais de 435 quilômetros, a

Estrada de Ferro Bahia-Minas contava com quase dois mil funcionários, fora os

empregos indiretos gerados pela movimentação dos trens nas estações.

Para agravar a crise financeira da EFBM, em 1948 foi inaugurada a rodovia

BR 116 (Rio-Bahia), ligando Teófilo Otoni aos grandes centros e constituindo-se

num importante elemento para a economia da cidade e região. Vale lembrar que

neste período o transporte rodoviário estava substituindo o ferroviário em seu

significado de elemento do progresso e motor de política publica. Apesar de uma

política nacionalista defendida por Vargas, estávamos alinhados com os americanos

na “Guerra Fria”, e com a chegada de Kubitschek ao poder, a entrada de

multinacionais – sobretudo do ramo automobilístico, ganhava destaque. Neste

período a ferrovia, antigo símbolo de progresso era visto como um meio de

transporte ultrapassado. Caminhões a diesel, cortando estradas pavimentadas com

asfalto por todo o Brasil era a idéia de modernidade criada pelo Estado. Ao

abordarmos o tema “A desativação da ferrovia” no último capítulo deste trabalho,

faremos uma reflexão mais aprofundada do assunto.

Assumindo pela segunda vez a direção da Companhia em 1950, após ter

passado um período na Estrada de Ferro Centro-Oeste, Wenefredo Barcelar Portela

possibilitou a efetivação de muitos benefícios foram para região, como a construção

61

de moderno hospital77 para atendimento aos ferroviários e demais cidadãos, a

construção de uma usina hidrelétrica em Ladainha para suprir a cidade com a

energia necessária também para mover as oficinas da Companhia, a fundação de

escolas, poços artesianos, edificação de casas e serviços de recreação e cultura

para os ferroviários. Não é de se admirar o saudosismo dos ex-ferroviários e

familiares ainda residentes na região. Foram devidamente amparados em todos os

aspectos – saúde, educação, entretenimento e consumo pela Bahia-Minas. Sobre

este importante aspecto da Bahia-Minas trabalharemos no próximo capítulo.

Levantamos dados econômicos das estradas de ferro no Estado de Minas

Gerais, com o objetivo de ilustrar a importância desse meio de transporte para a vida

financeira das cidades atendidas por elas. Tal relevância econômica marcou a

memória das populações, mesmo daqueles que não usufruíam da riqueza produzida

diretamente pelo transporte de mercadorias, mas que de alguma forma percebiam

que a movimentação financeira trazia algum benefício para eles.

Verificando o Anuário de Minas Gerais (Ano I, 1906), pudemos verificar a

importância dada à Estrada de Ferro naquele período cujo nível de desenvolvimento

do Estado podia ser apurado a partir da quilometragem de suas vias férreas.

No referido anuário encontramos uma descrição detalhada da malha

ferroviária de Minas até aquele ano:

As vias de communicação do Estado de Minas são férreas, fluviais e de rodagem. A rede ferroviária do nosso Estado attingia, em 1º de janeiro de 1902, a 3.622 km, em trafego, o que representa uma quarta parte da rede total dos caminhos de ferro do Brasil (15.088 km em trafego a 1º de janeiro de 1902). Depois disso, em 1903, augmentou-se em Minas a extensão em tráfego, que era de 3.648,277 Km em fins de 1903; de 3.731,256 em fins de 1904 e hoje(dezembro de 1905), com os augmentos da Central, Oeste e Mogyana, anda perto de 4.000 km.78

77 Desde 1913 já funcionava, à Rua do Jardim (atual Marcelo Guedes), o Hospital João Américo Machado, construído pela Cia. com o mesmo fim.78 ANNUARIO DE MINAS GERAIS. Ano I, 1906. p. 81-83.

62

Constatamos que os esforços do governo em aumentar a malha ferroviária

eram significativos. Além disso, a malha mineira, diante dos números da malha

Nacional era de significativa importância. Quando falamos em esforços do governo,

levamos em consideração os gastos totais com a ampliação das estradas, que até

fins de 1901, conforme dados do mesmo anuário, eram de 57.122:235$777,

evidenciando a importância dispensada a essa modalidade de transporte. Para

termos uma idéia melhor sobre o significado desse montante, a arrecadação do

Estado com a cafeicultura, principal produto estadual, fechou em 1902 o valor de

83.361:074$000, ou seja, o valor gasto com ferrovias no ano anterior é mais da

metade do arrecadado com o principal produto do Estado. A província do Rio de

Janeiro teve um gasto com Estradas de Ferro deficitárias, no mesmo período, de

aproximadamente 1.012:810$00079.

Na tabela abaixo, podemos observar a extensão da Estrada de Ferro Bahia e

Minas e podemos compará-la com outras ferrovias brasileiras no ano de 1906:

Ferrovia Extensão em KM.Estrada de Ferro Oeste de Minas 872Leopoldina Railway Company 832,255Estrada de Ferro Central do Brasil 660Cia. de Viação Férrea Sapucahy 369Estrada de Ferro Mogyana 302Cia. Estrada de Ferro Muzambinho 238,895Estrada de Ferro Bahia-Minas 233,87080

Estrada de Ferro Minas e Rio 147Estrada de Ferro Juiz de Fora ao Piau 58,101Estrada de Ferro Guaxupé 50E. F. João Gomes a Piranga 26,561Cia. Estrada de Ferro Paraopeba 12

Fonte: Anuário de Minas Gerais, 1906

Entre as principais estradas de ferro do Brasil a E.F. Bahia-Minas tem

importante destaque. Vale lembrar que, após a conclusão do seu prolongamento até

79 Valor aproximado. Fonte: http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u871/000046.html.80 Até a confecção deste anuário, a E. F. Bahia-Minas possuía um percurso de Ponta de Areia a Teófilo Otoni, seu prolongamento até Araçuaí ainda não havia sido realizado.

63

Araçuaí, ela ultrapassou os 400 km, superando a Sapucaí e a Muzambinho, o que a

coloca entre as maiores do país. 81 Tais dados vão de encontro ao decreto do

governo militar que extinguiu os “ramais” deficitários. A E.F. Bahia-Minas até podia

ser deficitária na época de sua extinção devido à falta de investimentos e, melhorias

nos equipamentos e no pessoal, entre outros fatores, não se tratava, portanto, de

um simples “ramal”, mas de uma ferrovia independente.

Se no princípio do século os esforços do governo para construir ferrovias

eram significativos, o mesmo não se pode dizer em relação aos gastos com a

manutenção destas mesmas estradas. A falta de investimentos em máquinas e

equipamentos e na conservação do patrimônio construído ajudaram a dar à Bahia-

Minas a fama de ultrapassada. Em discurso proferido em 1930, o superintendente

da Companhia demonstra a necessidade de investimentos nesse sentido:

[...] “Assim é que iria obter da Cia. Ferroviária Este Brasileiro a aquisição de 2 vapores para cargas e passageiros, e que terão suas viagens em correspondência com os trens da estrada.”Além desse notável melhoramento, um outro tem ele em vista introduzir, que muito beneficiará a nossa zona: um trem especial e respectivo carro restaurante.Quem conhece a pobreza das estações, em geral, verá que é de grande alcance o melhoramento anunciado, pois só assim as viagens da Bahia-Minas poderão tornar-se menos fastidiosas, longas quais são elas e atravessando os trens lugares de verdadeira penúria. 82

A pobreza da região cortada pela estrada nesta época refletia-se na

precariedade das máquinas e instrumentos da Bahia-Minas. Melhoramentos eram

urgentes para a boa sobrevivência da ferrovia.

Nesta época a crise da produção cafeeira assolava as regiões que dependiam

deste produto. A movimentação de cargas nos trens evidentemente diminuiu e as

dificuldades financeiras também atingiram a Estrada de Ferro. Apesar das

81 Conforme o Anuário de Minas Gerais. Ano IV, 1950, p. 279, a Estrada de Ferro Bahia-Minas possuía uma extensão de 435,385 Km, enquanto a rede mineira possuía um total de 8.610 Km82 O MUCURY. No. 1575. 14 Set 1930, p.1.

64

dificuldades, o governo passou a subvencionar a ferrovia dada sua importância

estratégica para a região.

Após a desativação das ferrovias, ficou um sentimento de perda nas pessoas.

A riqueza transportada pelo trem trazia consigo um sentimento de diminuição da

miséria, mesmo naqueles que não eram beneficiados, que não tinham, talvez,

acesso às mercadorias transportadas, mas que conseguiam sobreviver de pequenos

trabalhos prestados aos ferroviários – trabalhos domésticos, empregos indiretos,

pequenos serviços – ou, àqueles que se beneficiavam no comércio de “miudezas” –

doces, bolos, frutas, sanduíches que eram vendidos nos vagões durante as viagens.

Sabemos que esses pequenos ganhos apenas mascaravam a pobreza, mas na

memória dessas pessoas, a ferrovia foi solução para seus problemas imediatos e,

ela se foi deixando saudades.

A interferência do Estado em assuntos técnicos da ferrovia e a indicação de

funcionários inadequados para postos importantes na Companhia, aliado à falta de

investimento para a modernização dos equipamentos83 e entrada dos militares no

poder, que passam a cortar “gastos desnecessários”, teriam sido demais para a

EFBM. Assim, em 1965, mesmo ano em que inaugurou mais uma rodovia na região,

a BR 418 (a “Estrada do Boi”), o governo federal decretou a extinção da ferrovia, sob

a justificativa de que a mesma não conseguia obter lucros pois faltavam produtos

para transportar e a manutenção era muito cara. Em maio de 1966 a Bahia-Minas

começou a ser destruída, com todos os funcionários sendo transferidos para outras

ferrovias pertencentes à Rede Ferroviária Nacional, que encampou os espólios da

EFBM.

83 Em 1964 foi indicado o engenheiro Oscar Leite Pires como diretor da EFBM. Ele tentou junto a empresários locais resgatar o interesse pela Cia. fazendo com que transportassem suas mercadorias pela ferrovia. Além disso, conseguiu trazer para a ferrovia quatro locomotivas diesel-elétricas a fim de acelerar as viagens. No entanto, tudo isso foi insuficiente.

65

Muito se fala sobre os motivos da desativação da Bahia-Minas. O senso

comum entre os ex-ferroviários, ou pessoas que de uma forma ou de outra tiveram

suas vidas envolvidas com a Bahia-Minas, é de que os tempos da ferrovia eram

tempos de muita fartura, de abundância de alimentos, de facilidades de transporte,

de grande riqueza no comércio. A Revista Arcaica, de junho de 1953, por exemplo,

relata que:

[...] resulta do seu movimento [da EFBM] uma renda bruta, anual de 15 à 20 milhões de cruzeiros, totais êstes (sic) que constituem, sem dúvida, um índice de progresso para a região, tendo-se em vista que a Bahia-Minas é relativamente, uma estrada de Kilometragem (sic) não muito extensa.

O ex-ferroviário Antônio Simões, filho de ex-ferroviário também, em nosso

primeiro contato em 2005, lembrava que “todos os anos, durante a Quaresma,

comia-se bacalhau importado em todas as semanas, não apenas na Sexta-feira da

Paixão” dada a opulência da época.

Evidentemente essa margem de lucro não se manteve até os últimos anos da

ferrovia, mas, há que se levar em consideração a falta de um plano de exploração

da estrada de ferro, que fosse realmente levado a sério, operando as necessárias e

devidas modernizações na linha e no material rodante, além de uma seleção mais

criteriosa dos funcionários responsáveis por sua administração.

Se a ferrovia não dava lucro o suficiente para manter-se, ela no entanto,

mantinha as pequenas cidades por onde passava. Percebemos que Teófilo Otoni

possuía um comércio extremamente dependente da estrada de ferro e que ficou

órfão com sua desativação. Tal situação marcou a memória das pessoas da cidade,

no entanto, sabemos que a rodovia BR 116 passou a representar essa via de

ligação da cidade com as cidades mais importantes do Centro-Sul do país,

permitindo, inclusive, a diversificação do comércio com a abertura de empresas

ligadas ao ramo automobilístico.

66

A “modernidade” da ferrovia acabou sendo ultrapassada pela “modernidade”

da rodovia asfaltada. A “moderna” locomotiva foi substituída pela “moderna” carreta

movida a diesel.

Cada época histórica tende a afirmar seu caráter “moderno” – “moderna” foi a “via” proposta pelos nominalistas medievais; “modernos” se consideravam também os humanistas do Renascimento. Neste nível, portanto, não existe uma época que possa ser considerada, por definição, “moderna”, ou seja, que retire a todas as outras o “direito” de se sentirem também “modernas” à sua maneira, no seu próprio tempo. 84

Se a ferrovia veio para superar o “atraso” do transporte tropeiro, a partir do

século XX, a própria estrada de ferro, com suas locomotivas a vapor, torna-se o

símbolo do atraso. Assim pensavam os governantes que ordenaram a desativação

das ferrovias. Sabemos que esta mudança na forma de ver as coisas não era

gratuita. Havia interesses por trás dessa transformação. Aliás transformação que

não ocorreu em todo o mundo, pois nos países desenvolvidos a ferrovia continua

cumprindo seu importante papel como meio de transporte de cargas e passageiros.

Ferrovias “modernizadas”, coisa que até se ventilou na época da extinção da Bahia-

Minas, mas que não foi efetivada .

As cidades que praticamente surgiram com a ferrovia hoje são vilarejos,

largados à própria sorte, dependentes de ajuda do governo – que dificilmente chega

a contento, com comércio moribundo e habitantes sem expectativas, uma terra de

grande beleza natural, mas de um sentimento de tristeza e abandono.

Nas palavras do pescador Adão Moreira, morador da cidade de Mayrink, “...

tiraram ela [a ferrovia] daí, não sei o que levou essa decisão”85. A desativação da

Companhia nunca foi satisfatoriamente explicada, provocando tristeza e indignação

àqueles que dela dependiam. Trata-se, indubitavelmente de um tema de grande

84 FALCON, Francisco José Calazans. Op. Cit. p. 225.85 ESTRADA DE FERRO BAHIA-MINAS. Belo Horizonte: Globo, 2004. 20 min. Color. Son. DVD.

67

relevância, no entanto, em função do nosso recorte espacial, não nos

aprofundaremos na análise da situação das cidades antes atendidas pela ferrovia,

resumindo nosso estudo à cidade de Teófilo Otoni.

Capítulo 2

A BAHIMINAS E A VIDA NA CIDADE: DA PROSPERIDADE À

DESATIVAÇÃO

Conforme vimos no capítulo anterior, a Estrada de Ferro Bahia-Minas foi

concebida dentro de um contexto em que a ferrovia aparecia como símbolo da

modernidade e do progresso. Em Teófilo Otoni a Bahia-Minas seria a mola

propulsora do desenvolvimento econômico e cultural, promovendo a cidade e toda a

região a um status mais elevado em Minas Gerais. O sertão de Minas seria,

finalmente, ligado ao mar através de um meio de transporte eficiente.

Em suas primeiras décadas de atuação a Bahia-Minas realmente promoveu

intensas mudanças nas vidas das pessoas nas cidades que percorria. Algumas

delas nasceram em decorrência do movimento da ferrovia; outras, realmente

cresceram, deixando de ser povoados e transformando-se em cidades. A população

68

desses lugares também passou por mudanças, principalmente onde o número de

habitantes cresceu significativamente, sobretudo com a chegada de famílias de

funcionários da ferrovia – as famosas “turmas” do pessoal que cuidava da

conservação da linha. “Essas turmas, localizadas de 10 em 10 kilômetros, ao longo

das linhas férreas, compõem-se de cinco famílias com um total aproximado de 25

crianças”.86 A Bahia-Minas contava em todo o seu trajeto, com 57 turmas de

“conserva da linha”.

Teófilo Otoni, que em suas origens já possuía uma população formada por

colonos estrangeiros – suíços, alemães, austríacos, holandeses, portugueses,

chineses e libaneses – com a Bahia-Minas recebe dezenas de trabalhadores da

ferrovia, que vêm ocupar os mais diversos postos na cidade. Além disso, como Sede

da companhia, tudo o que estivesse relacionado com os quase dois mil funcionários

da Estrada, deveria ser tratado em Teófilo Otoni – inclusive no que se refere ao

pagamento dos salários.

Tudo mudou a partir da inauguração da ferrovia em Teófilo Otoni. O ritmo de

vida das pessoas, algumas atividades cotidianas passaram a ser determinados pela

escala dos trens que receberam até a alcunha de “horal” (horário). Havia, por

exemplo, os trens que partiam nas segundas e sextas-feiras às 5 horas, partindo em

direção a Ponta de Areia, certamente seu apito funcionou para muitos como

despertador; nas terças, quintas e sábados, chegava de Araçuaí às 16 e 50,

marcando o fim de tarde com o movimento na estação. Ainda nas terças-feiras e

sábados, o trem chegava de Ponta de Areia após as 20 horas, horário em que o

teófilo-otonense, reunido em casa preparava-se, após o jantar, para o merecido

repouso.

86 ACAIACA, n. 51. Junho de 1953. p.69.

69

O comércio cresceu, surgiram empresas exportadoras de café, madeiras e

cereais, como a “Sá & Abrantes”, a de “Ruy Gervasio Avellar”, a “Casa Martiniano”, a

de “Alberto Lima Rodrigues”, além de comerciantes varejistas de “secos e

molhados”, tecidos, confecções e ferragens, farmácias e material de construção,

entre outras. Interessante observar que na maioria dos anúncios impressos no livro

Guia e Horários publicado pela Bahia-Minas, as empresas dedicavam-se à

“exportação” de mercadorias, o que associamos com a função primordial da estrada

de ferro, de escoar a produção do interior para o porto no litoral. Há, ainda, um

número significativo de anúncios de empresas do Rio de Janeiro, evidenciando o

tipo de exploração comercial da região.87 Toda a produção estava voltada para o

mercado externo, favorecendo grandes empresas que seriam “atravessadores”,

adquirindo dos produtores da região e comercializando nos principais mercados

nacionais, e até internacionais, ficando, obviamente, com a maior parte dos lucros

Dessa forma, a riqueza gerada em função da Bahia-Minas era evidente.

Muitos benefícios materiais e culturais foram trazidos à cidade com a ferrovia, mas

não foram Teófilo Otoni e circunvizinhança os maiores beneficiários de tal

movimentação financeira, o maior rendimento ficava para as empresas que

exploravam o comércio das mercadorias em grande escala e que, eram de fora da

cidade.

Além dos benefícios materiais, a Bahia-Minas trouxe outros, imateriais. No fim

da década de 1940 e princípio da década de 1950, a Bahia-Minas já havia

organizado setores que objetivavam atender às necessidades de seus funcionários.

Em 1948, a ferrovia possuía um sistema próprio de saúde, atendendo o médico José

87 Os anúncios aos quais fazemos referências são encontrados Revista ACAIACA, já citada anteriormente e no próprio Boletim/Guia de Horários da EFBM.

70

Basto Marques exclusivamente aos ferroviários, conforme podemos perceber no

primeiro Guia e Horários publicado pela EFBM daquele ano:

Dos serviços que a S.S. vem prestando, podemos apontar:Assistência e tratamento aos acidentados do trabalho; fornecimento de laudos médicos para efeito de licenças e ausências do serviço;visitas hospitalares e domiciliares ao ferroviário doente;estabelecimento de medidas para socorros de urgência, fornecimento de atestado de sanidade e capacidade física às pessoas propostas para funções de extra-numerários;adoção de medidas para higienização dos locais de trabalho e conforto do pessoal;verificação de doença em pessoa da família e ausências ao serviço por motivo de doença;providencias necessárias ou úteis aos servidores e aos serviços tais como: transferências, readaptação, remoção e licença ex-oficio. 88

A adoção de tais medidas acabava por garantir o controle total dos

trabalhadores por parte da empresa, que sabia com exatidão a incidência de casos

de doenças entre os seus funcionários – o que poderia motivar a ausência no

trabalho e conseqüente prejuízo para a Companhia.

Diante de um quadro de carência do trabalhador ferroviário, a direção da

EFBM planejava criar um hospital com condições adequadas para o atendimento:

É motivo de cogitações da Direção da Estrada instalar uma sede para o Serviço Social da S.S.; um serviço ambulatório e um hospital com 30 leitos; crêar um quadro médico com o mínimo de 6 facultativos e 2 dentistas; uma ambulância auto-linha para atender os casos de doenças dos ferroviários e suas famílias ao longo da linha; aparelhamento médico-cirurgici e serviço de abreugrafia. 89

Esse hospital, mais tarde batizado de “Balbina Bragança”, começou a ser

construído em 1950, já na administração de Wenefredo Bacelar Portela, homem

admirado até os dias de hoje pelos ex-ferroviários, como sendo de “grande coração”

– na verdade, é exatamente aí que está a crítica a esse administrador – cuidava dos

negócios da ferrovia mais com a caridade do que com a razão.

Conforme os planos da diretoria da Estrada, esse hospital teria:

88 EFBM, Guia e Horários. Outubro de 1948. p. 42.89 EFBM Guia e Horários. Outubro de 1948. p. 46.

71

2 pavimentos, para os ferroviários, situado no perímetro da Estrada compreendendo:

a) 2 grandes enfermarias com 70 leitos;b) sala para maternidade;c) salas creches;d) salas para “Raio X”;e) sala para gabinete dentário;f) salas de cirurgia;g) salas de injeções;h) salas para curativos;i) salas para Capela;j) outras dependências. 90

Por esta época o hospital ferroviário já existente e que posteriormente seria

demolido, já possuía, conforme a mesma fonte, os seguintes equipamentos.

a) uma enfermaria com 10 leitos;b) aparelhagem de “Raio X”;c) infra vermelho;d) radioscopia;e) pequena cirurgia;f) ambulatório;g) farmácia;h) gabinete dentário;i) prótese.91

Os funcionários da EFBM eram atendidos também no Hospital Santa Rosália,

uma entidade particular ainda hoje existente em Teófilo Otoni.

Os ferroviários contavam, ainda, com o apoio da CACEFF (Centro de

Assistência e Cooperação Educacional à Família do Ferroviário), um centro

existente em todas as ferrovias do Brasil que prestavam assistência à saúde e à

educação. A EFBM, em todo o seu percurso possuía 57 turmas, das quais apenas

18 possuíam escolas públicas. Tal carência foi resolvida pela ferrovia que instalou

39 escolas primárias nas turmas em que o Estado não cumpria essa função. Além

dos filhos dos ferroviários, os próprios tinham oportunidade de estudar, afinal,

Para maior facilidade dos interessados, as aulas funcionaram em 3 turnos, e foram fraqueadas às crianças e adultos da vizinhança num alto espírito de cooperação em prol da nobre e elevada campanha de combate ao analfabetismo.92

90 ACAIACA, n. 51. Junho de 1953. p. 63.91 Idem. P. 64.92 Idem, p. 65.

72

A Bahia-Minas cumpria como vimos um papel muito mais amplo que

simplesmente o transporte de mercadorias, atendia a população carente onde o

governo era falho, promovendo a educação e a possibilidade de ascensão social.

Em atas da Câmara Municipal de Teófilo Otoni, encontramos pedidos, bem

como agradecimentos aos diretores da EFBM por obras como calçamento de ruas,

manutenção de pontes, além das já citadas obras de infra-estrutura, como

fornecimento de água tratada e iluminação elétrica para setores da cidade. Em

depoimento, a filha de um ex-ferroviário, Benedita Lopes, afirma que a função

política da ferrovia na cidade era

[...] administrativa mesmo! Eu me lembro do meu pai e de outros companheiros dele lá no bairro, um bairro onde 80% da população era de ferroviários, então todas as lutas lá, do calçamento, do esgoto, a nossa água potável que a gente recebia era da Bahia-Minas, então, calçamento da rua José Cirino, no bairro Palmeiras, aquilo ali foi os ferroviários que trabalharam, lutaram para calçar aquela rua. Nós tínhamos aqui, toda a questão social era envolvida por funcionários da Bahia-Minas. Eu me lembro que quando foi criado aqui o orfanato, cada funcionário deu um dia de trabalho, hoje onde funciona a UNEC, então, todo o desenvolvimento era em torno... você lembrou muito bem do hospital, onde hoje funciona o Pronto-socorro municipal, e era da Bahia-Minas, então o próprio tratamento era de primeiríssima qualidade.93

O bairro citado por LOPES até a atualidade é considerado um reduto de

famílias de ex-ferroviários e foi um dos setores mais beneficiados com as obras de

infra-estrutura promovidas, não casualmente, pela ferrovia, que exercia também o

papel da prefeitura nessa ocasião. É compreensível tal exercício visto que a Bahia-

Minas era a única grande empresa da cidade e, portanto, possuía uma influência

muito grande sobre os políticos locais.

Obviamente as medidas tomadas pela Bahia-Minas criavam um exército de

mão-de-obra qualificada para o serviço na própria ferrovia. Dessa forma, além de

garantir a qualidade dos seus trabalhadores, a formação ideológica dessas pessoas,

93 LOPES, Benedita. Entrevista concedida dia 18 de julho de 2007.

73

podemos inferir, estava de acordo com os interesses da própria ferrovia. Vale a pena

notar o planejamento apresentado em 1953 para ampliação e conservação do

sistema educacional fornecido pela Estrada:

É bastante ter em vista que o Sr. Diretor da Estrada de Ferro Bahia-Minas vem fazendo dentro das normas traçadas pelo S.A.C.E.F.F., no que diz respeito à promoção do ensino às crianças das turmas e de adultos, - ficou sugerido o seguinte plano.1º. Em cada turma, além das confortáveis residências que as Estradas vêm construindo para a Família ferroviária – seria feito um prédio a mais, bastante simples, destinado ao ensino primário, doméstico-profissional, com uma sala trabalhos manuais.2º. A esposa ou filha de uma das famílias da turma, de melhor preparo e habilitação, seria contratada para ensinar as crianças da própria turma.3º. Na falta de elementos idôneos e habilitados numa ou outra turma, adotar-se-ia o seguinte critério:a) Verifica-se nas diferentes turmas, mediante estatística, quais as

pessoas e filhos de ferroviários, capazes de satisfazer as condições do item 2º.

b) Promover com esses elementos o ensino nas turmas carecidas de quem saiba ensinar, - pelo processo de troca, de uma para outra turma, das famílias que preenchem as condições do item 2º. , existentes a mais numa ou noutra turma.94

A preocupação com a educação dos ferroviários promovia até a remoção de

famílias melhor preparadas para locais mais carentes, a fim de aproveitar as

pessoas mais qualificadas para auxiliar na alfabetização das demais. Criava-se,

assim, um vínculo entre os profissionais formados no âmbito da Estrada de Ferro e a

entidade formadora, garantindo a construção de uma fidelidade e praticamente, a

ausência de manifestações de insatisfação com a empresa.

As casas citadas no artigo da Acaiaca foram construídas na gestão de

Wenefredo Bacerlar Portela, que em substituição aos antigos ranchos das turmas,

mandou construir 336 casas ao longo da linha, melhorando a infra-estrutura para os

trabalhadores da ferrovia.

É inegável que tal assistência marque profundamente a vida das pessoas,

sobretudo as mais humildes, na forma de enxergarem a empresa na qual trabalham.

Além dos salários, a empresa se preocupava com seus funcionários, esta idéia só

94 Idem, p. 66.

74

pode deixar uma imagem positiva, no sentido de todos acharem ser algo de muito

bom para os empregados.

E a assistência não ficava apenas na educação, na moradia e na saúde.

Havia também a preocupação com o entretenimento. Existiam, vinculadas à estrada

associações esportivas autônomas que praticavam futebol, vôlei e basquete. O time

dos ferroviários da Bahia-Minas ganhou da diretoria da estrada um campo de

futebol, construído na cidade de Ladainha e outros semelhantes em Ponta de Areia

e Teófilo Otoni.

Le Goff afirma que vários fatores interferem diretamente sobre a memória

individual – interesses, afetividade, desejos, etc. O mesmo pode ser levado à

memória coletiva. “Tornar-se senhores da memória e do esquecimento é uma das

grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e

dominam as sociedades históricas.” 95As memórias relativas à Bahia-Minas em

Teófilo Otoni não escaparam deste preceito, o que explica o discurso quase

unânime entre os ferroviários de que a ferrovia era, de fato, a “mãe” de Teófilo Otoni.

Aque não faziam parte de um grupo de funcionários privilegiados, que ocupavam

postos mais elevados dentro da empresa e, conseqüentemente tinham um salários

muito menor, possuem uma visão um pouco diferenciada, sem , no entanto, deixar

de exaltar a ferrovia.

É senso comum em Teófilo Otoni que o comércio era mantido pelo dinheiro

dos “bahiminas”. Certamente a circulação de dinheiro era maior devido ao número

de funcionários da Estrada que recebiam seu pagamento em Teófilo Otoni e por aqui

gastava grande parte do mesmo. No entanto, a existência de uma Cooperativa de

Consumo dos ferroviários, indica que a maior parte dos salários acabava pagando

95 Cf. LE GOFF, Jacques. Memória. In: ___________ História e Memória. 5.ed. Campinas. UNICAMP, 2003. p.422.

75

as feiras mensais, adquiridas junto à própria cooperativa, que possuía quatro

armazéns sendo um geral em Teófilo Otoni, e os outros em Ladainha, Nanuque e

Ponta de Areia.

Empreendimento esse de tão elevado alcance social, veio corresponder a um justo anseio da classe ferroviária e de tal sorte tem atingido suas finalidades que o volume de vendas tem sido superior à Cr$ 700.000,00 (setecentos mil cruzeiros mensais).96

Tal pensamento é endossado pelo depoimento de Benedita Lopes, já citada

anteriormente:

Nós tínhamos ainda, uma cooperativa, o que era essa cooperativa da Bahia-Minas. Nós tínhamos do pão ao vestuário. Nós tínhamos um meio de sobrevivência muito bom. Eu acho a questão do social da Bahia-Minas, do econômico da Bahia-Minas, de Teófilo Otoni se deu mesmo com perfeição com a vinda da Bahia-Minas. Foi com a vinda, porque depois dela, veio o desemprego, não veio uma grande indústria para substituí-la, né,

Sabemos que a ferrovia, aproveitando-se das facilidades de transporte e com

o frete bancado pela própria Estrada, tinha condições de oferecer os melhores

produtos pelos melhores preços. Daí podemos compreender o que alguns ex-

ferroviários contatados chamam de “época de grande fartura”. A Bahia-Minas não

deixava faltar víveres aos seus funcionários, não deixava de pagar os salários

(apesar de atrasos de até um mês), cuidava da educação, da saúde e do lazer. Essa

imagem ficou marcada na memória e é sempre evidenciada pelo teófilo-otonense

quando se trata da extinta ferrovia. Esta imagem é corroborada com a falta de

perspectivas que se instalou na cidade após a desativação da ferrovia. Um

sentimento de estagnação econômica sobreviveu por muitos anos, com um

comércio reduzido e voltado para o regional – com exceção do comércio de pedras

preciosas, que, no entanto favorece um número reduzido de cidadãos. Tal situação

só vem sendo alterada há pouco, quando a preocupação do governo municipal

96 Idem, p. 67.

76

volta-se para a educação, promovendo a abertura de várias faculdades, conforme já

adiantamos no primeiro capítulo.

Tal bonança era possível porque nesta época a ferrovia dava lucro, conforme

pudemos verificar na reportagem da Acaiaca:

Segundo pudemos apurar, nos últimos anos tem se avolumado consideravelmente o movimento da Estrada, que recolhe quase o total da produção mineral e agro-pecuária da zona, distribuindo-o pelas cidades que margeiam o seu percurso inter-estadual.Assim, resulta do seu movimento uma renda bruta, anual de 15 à 20 milhões de cruzeiros, totais estes que constituem, sem dúvida, um índice de progresso para a região, tendo-se em vista que a Bahia-Minas é relativamente, uma estrada de Kilometragem não muito extensa.97

Achamos importante citar esses dois parágrafos, que contradizem com o

argumento de que a ferrovia, desde 1930, vinha dando prejuízos para o Estado, o

que mais tarde justificaria a sua extinção. O crescimento da cidade pode ser

comprovado ao olharmos o resultado do censo de 1960, que aponta um crescimento

populacional de 107% em relação aos dois últimos. E um número de 50

estabelecimentos industriais que geravam em média de 287 empregos. Em 1965

esse número subiria para 64 estabelecimentos, além de 70 estabelecimentos

comerciais atacadistas. O censo agrícola de 1965 apontou um valor da produção de

NCr$ 2,7 milhões entre arroz, café, milho e feijão, entre outros.

Havia movimento de mercadorias, dinheiro e pessoas em Teófilo Otoni. A

população que originariamente ocupava-se da pequena plantação em suas

propriedades agora presenciava uma cidade que crescia e ganhava ares de

verdadeiro pólo regional.

Ora, se a maior parte dos lucros e das empresas que negociavam com a

Bahia-Minas eram “estrangeiras”, ou seja, estavam localizadas em outros mercados

e voltadas para os interesses do grande comércio de exportação, a diminuição da

97 Idem, p. 68.

77

produção de café e madeira, os principais produtos exportáveis, passou a

representar prejuízo para a ferrovia. A produção de víveres, que aumentava em

Teófilo Otoni e região, não despertava tanto interesse desses grandes comerciantes

e assim, o movimento da ferrovia diminuía.

Tal crescimento é também atribuído ao fato de que em 1948 ter sido

inaugurada a rodovia Rio-Bahia (BR 116) que corta a cidade. Importante enquanto

infra-estrutura, teria contribuído para as comunicações de Teófilo Otoni,

proporcionando o surgimento do comércio e da prestação de serviços ligados ao

setor rodoviário.

A rodovia forçaria ainda, a passagem por Teófilo Otoni de todo o fluxo migratório do Nordeste para o Centro Sul do país, o que contribuiu para o grande crescimento demográfico apresentado pela cidade nas décadas de 50 e 60.98

Por outro lado, a BR 116 liga Teófilo Otoni à extrema pobreza do Vale do

Jequitinhonha, região cuja perspectiva de vida é ainda pior. Onde a seca assola o

ano inteiro e a falta de recursos faz o homem do campo sair de sua terra em busca

de melhoras, provocando graves problemas sociais em cidades como Teófilo Otoni,

pólo regional. Mas este problema não foi provocado pela extinção da ferrovia e nem

seria resolvido com a existência da estrada.

Aos poucos a ferrovia vai perdendo sua importância como elemento promotor

do progresso. Vai sendo substituída nesse quesito pela rodovia, dentro de um

contexto político-econômico de valorização do automóvel no Brasil. Foi o símbolo da

modernidade da época da monarquia sendo substituído pelo símbolo da

modernidade na era do capitalismo moderno, trazendo consigo a idéia de que o que

foi ultrapassado precisa ser destruído, esquecido e novos valores devem ser

estabelecidos em seu lugar.98 COSTA, Luzinete de Almeida. Teófilo Otoni. FAFITO, 1992. (monografia de Conclusão de Curso). P. 26.

78

2.1. A Desativação da Estrada de Ferro Bahia-Minas

Apesar de todos os benefícios proporcionados pela ferrovia aos municípios

cortados por ela – benefícios indiretos, na maioria das vezes – é evidente que a falta

de investimentos para a modernização da linha aliado ao interesse do governo em

substituir o modal ferroviário pelo rodoviário acabou por condenar a Bahia-Minas.

Conforme observa Paula,

Entre 1965 e 1985, a rede ferroviária foi reduzida de 33.864 a 29.777 km. Somente no período de 1966 a 1970, foram arrancados 3.926 km de caminhos de ferro. Na década de 60 foram destinados 80% dos investimentos na área de transportes às rodovias.99

Havia mais de uma causa para que o governo decretasse a extinção dos

ramais ferroviários deficitários. No entanto, além do fato de que não houve um

estudo aprofundado para verificar as conseqüências da desativação, a Bahia-Minas

não poderia ter sido desativada no conjunto dos demais ramais, uma vez que se

tratava de uma ferrovia autônoma, e não de um ramal.

Segundo DE PAULA,

Desde 1930, aproximadamente, as ferrovias começaram um processo de franca decadência, devido à falta de investimentos, à mudança no padrão de desenvolvimento econômico (com a queda no comércio internacional do café) e à preferência progressiva pelo transporte rodoviário. 100

Alguns ex-ferroviários culpam os políticos locais, como o então Deputado

Federal Aécio Cunha, que na época, além de não se mobilizarem em defesa da

99 DE PAULA, Dilma Andrade. Regime Militar, Ferrovias e Ferroviários. In; CARDOSO, Heloísa Helena Pacheco e MACHADO, Maria Clara Tomaz (Orgs.) História: narrativas plurais, múltiplas linguagens. Uberlândia: EDUFU, 2005. p. 94.100 Idem. p. 93.

79

ferrovia, terem contribuído para seu fim. Como é o caso do depoimento do Sr. José

Ferreira, controlador de movimento da ferrovia, que acusa alguns políticos de agirem

com má-fé, inclusive boicotando a ferrovia, queimando pontes e destruindo “mata-

burros”.

[...] houve muita covardia do pessoal, dos políticos e eu não posso afirmar com certeza, porque eu não tenho provas, mas, Dr. Aécio Cunha e Dr. Geraldo Landi conluiado com alguns ferroviários, até queimar mata-burros, o que nunca aconteceu antes, mesmo quando as locomotivas eram todas a vapor, tudo movido a lenha, onde cai brasa, cai tudo nunca havia queimado mata-burro, nunca queimou ponte. Quando começou a diesel, queimou exatamente para parar. Houve uma parada de uma semana e tanto, porque queimou a ponte mas, recuperaram, voltou a rodar, mas aí eles tiraram o Dr. Oscar daqui e encamparam a ferrovia quando veio a tal da “revolução”. Eu acho que ela acabou mais foi por causa da revolução (golpe de 1964).101

Esta opinião não é unânime entre os ex-ferroviários. Inclusive, Aécio Cunha,

junto com políticos da região, liderou a comissão que procurou o então presidente da

República, o Gen. Castello Branco para pedir pela manutenção da ferrovia, como

afirma o ex-prefeito de Ladainha, o Sr. Jean Elias, quando falou à rádio Teófilo Otoni

sobre a formação da

comissão formada por jornalistas, pelo Deputado. Aécio Cunha e pelo Bispo D. Quirino, foi até o Gen. Castelo Branco para tentar evitar a desativação, mas ele permaneceu irredutível.102

Outro ex-ferroviário que retira a responsabilidade dos políticos da região pela

desativação é o Sr. Antônio Simões, anteriormente citado: “Dizem que Aécio Cunha

e Petrônio Mendes e Tristão da Cunha tiveram culpa, mas eu acho que não. Porque

eles todos morreram pobres.”103.

Sabemos que os políticos regionais, por mais que desejassem agir de

maneira diferente, pouco poder teriam diante do regime militar instalado no Brasil

101 FERREIRA, José. Entrevista concedida dia 10 de agosto de 2006.102 NOS TEMPOS DA BAHIA-MINAS. Teófilo Otoni. Rádio Teófilo Otoni, 2004. 60 min. Son. CD.

103 SIMÕES, Antônio. Depoimento concedido dia 15 de março de 2005.

80

após 1964, conforme já discutimos no capítulo anterior, além disso devemos

ressaltar que o Deputado Aécio Cunha, principal político da cidade no momento, era

membro da oposição, o que dificultava ainda mais qualquer ação favorável à EFBM.

Isso confirma nossa idéia de que a substituição das mercadorias

transportadas, no caso o café e a madeira, por produtos de menor interesse no

mercado – sobretudo externo – teria contribuído para identificar a Bahia-Minas como

deficitária. Não havia interesse das grandes empresas em continuar contratando os

serviços da ferrovia já que não havia o seu principal produto para o transporte.

Havia muito tempo que o sistema ferroviário sofria com o descaso do governo

e a influência do capital internacional. Durante o governo Juscelino Kubitschek, com

a criação da Rede Ferroviária Federal S.A. (RFFSA), as ferrovias passaram a ser

diretamente assunto do governo federal. Sabemos, no entanto, que exatamente

nesse governo os investimentos nas rodovias foram significativos, sobretudo com a

construção de Brasília e a política de integração do interior do Brasil com os grandes

centros por meio de estradas asfaltadas. Neste mesmo período, apesar de haver

investimentos no transporte ferroviário, estes eram destinados, sobretudo ao

transporte de grãos e minérios para exportação, ficando o transporte de passageiros

praticamente sem investimentos.

A Bahia-Minas não tinha mais um grande volume de grãos a ser transportado,

restava ainda, o transporte de passageiros, que não representava, obviamente, o

maior filão a ser explorado pela ferrovia, já que o valor das passagens e o número

de passageiros por trem não cobriam totalmente seus custos.

Giffoni em sua tese de doutorado104 aborda o tema trazendo detalhes que

contribuem para a nossa pesquisa, como podemos observar no seguinte texto:

104 GIFFONI, José Marcello Salles. Trilhos arrancados: História da Estrada de Ferro Bahia e Minas (1878 – 1966). Belo Horizonte: UFMG. Tese de doutorado, 2006.

81

A partir do último governo Vargas, verificamos uma forte tendência para uma retração do setor ferroviário e influência da CMBEU [Comissão Mista Brasil Estados Unidos] na política de desenvolvimento do país. Influência que se firmou nos governos seguintes apesar do complexo e instável quadro político-econômico nacional e internacional. 105

Citando Ianni, GIFFONI destaca as relações entre Estado e Economia

estabelecidos durante o governo JK, tudo dentro do seu ambicioso plano

“desenvolvimentista” para o Brasil. Neste sentido houve realmente um foco voltado

para o investimento nas áreas de infra-estrutura e transporte, apoiado, sobretudo

com a abertura para o capital estrangeiro (leia-se norte-americano) que, em

conformação com a Doutrina Truman, criava um “programa de desenvolvimento

baseado em conceitos democráticos de negociações francas” 106. O Plano de Metas

do governo brasileiro fora montado numa conjuntura de hegemonia dos Estados

Unidos sobre os países da América Latina, onde o capitalismo se expande de

maneira dependente ou associada à potência do Norte. Percebemos, nesta época,

uma concentração intensa do capital nas mãos de capitalistas estrangeiros –

empresas multinacionais – que demandavam investimentos em infra-estrutura a fim

de dar suporte ao desenvolvimento pretendido. No entanto,

O programa econômico ambicioso de Kubitschek tinha um calcanhar de Aquiles: o financiamento. Esperava-se em 1956 que fundos suficientes pudessem ser obtidos de fontes públicas e privadas no exterior, através de lucros nas exportações brasileiras. Embora a primeira fonte se mostrasse satisfatória, a incisiva deterioração no balanço de pagamentos do Brasil, deficitária desde 1955, continuou desse modo a esgotar os lucros das exportações. Os sintomas do desequilíbrio financeiro logo apareceram, porque o governo recusou comprometer seus ambiciosos planos de industrialização. 107

Para sanar as contas, o Brasil entrou num crescente endividamento externo e,

internamente, havia um agravante quadro de desequilíbrio entre indústria e

105 Idem, p. 159.106 Doutrina Truman – discurso em 20/01/1949 In: IANNI, Octávio. Estado e Planejamento Econômico no Brasil (1930-1970). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977. Apud. GIFFONI, José Marcello Salles. Op. Cit. p. 160.107 SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Getúlio a Castelo. 13.ed. São Paulo: Paz e Terra, 2003. p.215-216.

82

agricultura, aumentando a população urbana, gerando crises de abastecimento e

alta inflação.

Como tratamos anteriormente, em Teófilo Otoni e região, a produção agrícola

aumentava, o que poderia contribuir para a diminuição do problema de

abastecimento, pelo menos em Minas Gerais e sul da Bahia, caso houvesse um

investimento maior na área, com a fixação do homem no campo e a modernização

do nosso principal meio de transporte de mercadorias, a Estrada de Ferro.

Entretanto, não foi o que aconteceu e a cidade entrou no contexto de crise

juntamente com todo o país.

GIFFONI destaca os altos investimentos no Brasil do capital norte-americano,

que entre 1955 e 1959 teriam chegado “perto da cifra de 400 milhões de dólares” 108,

sendo que grande parte deste investimento teria sido no setor de máquinas e

automóveis, “consolidando a indústria automobilística como líder do processo de

industrialização”. 109 Daí a importância dada no governo Kubitschek à construção de

rodovias em todo o território nacional.

GIFFONI afirma que

é a partir da década de 50, com suas missões bilaterais e a formação do aparato da administração paralela de JK, que vamos encontrar sinais fortes de uma política de desativação de trechos ferroviários com o argumento antieconômico. 110

Os planos para a erradicação de parte da malha ferroviária brasileira estavam

sendo traçados. Ainda na década de 50 e por um período de apenas um mês, foi

formado um Grupo Informal de Trabalhos sobre Transportes Ferroviários que,

108 GIFFONI, José Marcello Salles. Op. Cit. p. 163.109 GIFFONI, José Marcello Salles. Op. Cit. p. 164.110 Idem, ibidem. – Grifo nosso.

83

analisando a situação das nossas ferrovias, diagnosticou nossa malha como

“sistema ferroviário heterogêneo e ineconômico”. 111

Não se questionou a formação de tal grupo, muito menos a quais interesses

realmente atendiam. Na verdade, olhando o contexto da política econômica do

governo na época, sobretudo no que se refere à sua política de transportes, tal

Grupo veio corroborar com os interesses da indústria automobilística e de petróleo

para condenar o transporte ferroviário e justificar a abertura de rodovias por todo o

território nacional.

O quadro apresentado pelo Grupo mostrava a situação das ferrovias –

conservação inadequada ou inexistente, aparelhos obsoletos, material rodante idem.

Tal situação prejudicava o escoamento da produção, provocava acidentes e

prejuízos aos transportadores e para sanar isso, o Grupo sugere a formação da

Rede Ferroviária Federal, órgão criado em 1957 pela Lei 3.115, de 16 de março

daquele ano. Na verdade, para sanar os prejuízos provocados pela (e na) malha

ferroviária, seria necessário modernizá-la, torná-la eficiente, no sentido de diminuir

os custos por viagem e diminuir o tempo que as locomotivas a vapor levavam em

sua trajetória. Assim, tornaria o transporte ferroviário consequentemente, mais

rentável. No entanto, isso não aconteceu e a explicação para tal encontramos em

GIFFONI ao citar trecho do artigo da Revista Ferroviária onde se lê: “o sistema

deficitário das ferrovias brasileiras foi, ao mesmo tempo, causa e efeito da não

realização dos investimentos necessários à expansão e melhoria da capacidade de

transporte [...]”. Usaram o fato de que ficaria muito caro para reformar, modernizar

as ferrovias que eram deficitárias e, as mesmas eram deficitárias justamente por

falta de investimentos em modernização, o que acabou por condená-las.

111 Grupo Informal de trabalho sobre Transportes Ferroviários. C.D. Relatório. Doc. N. 9. Rio de Janeiro, 1956 (mimeo.). Apud. GIFFONI, José Marcello Salles. Op. Cit. p. 165.

84

Acabar com as ferrovias deficitárias seria muito mais fácil para o governo do

que investir em seu reaparelhamento e modernização das linhas. Afinal, a rodovia se

incumbiria do tráfego leve de distribuição, cabendo à ferrovia apenas o transporte

pesado de cargas por longas distâncias.

A erradicação dos ramais antieconômicos somente seria efetivada durante o

governo militar. Tal solução econômica não considerava o prejuízo social. O número

de pessoas beneficiadas com o transporte barato e seguro das ferrovias era

significativo. Muitos são os órgãos públicos, até na atualidade, que são deficitários

no Brasil. No entanto, tais órgãos são fundamentais para a assistência ao público, e

por isso o governo os mantém. No caso da Bahia-Minas, ela deixou de dar lucro

para o grande comércio de exportações, mas, para o pequeno comércio de Teófilo

Otoni e também das outras cidades cuja população vivia em função da ferrovia, foi

uma medida extremamente negativa.

Dentro do aparelho do Estado também ocorreram dúvidas, sobretudo em

relação aos dados levantados sobre o déficit do transporte ferroviário, resistência

que aos poucos foram debeladas112. O governo militar não precisava da aprovação

popular e as resistências eram facilmente silenciadas, o que jamais poderia ser

admitido num governo democrático. Destacamos, ainda, o interesse particular da

indústria automobilística, que inicia no governo JK e ganha impulso na ditadura.

O Plano Nacional de Viação, de 1964 deixa evidente o favorecimento da

política rodoviária e o rompimento com o transporte ferroviário no Brasil. As ferrovias

focalizariam, a partir de então, o transporte de minérios, além dos transportes de

massa, ocupando uma posição estratégica de segurança nacional.

112 GIFFONI, José Cf. Marcello. Op. Cit. p.166.

85

Durante o Regime Militar, um dos setores mais importantes do investimento estrangeiro foi o da indústria automobilística, que liderou o crescimento industrial com taxas anuais acima de 30%.113

PAULA, no artigo citado, relaciona a desativação dos ramais com a coerção

social, onde o governo, além do aspecto econômico, preocupava-se com a

organização dos movimentos de militantes ferroviários; uma força de mobilização

que já havia se mostrado em 1960 com a “greve da Paridade”, organizada por

ferroviários, marítimos e portuários.

Outro movimento onde a participação dos ferroviários destacou-se foi a greve

geral convocada pela CGT (Central Geral dos Trabalhadores) no dia 31 de março de

1964, diante do Golpe Militar, quando os trens pararam e a cidade do Rio de Janeiro

teve uma diminuição significativa de circulação de pessoas – supostamente esse

movimento inviabilizou qualquer resistência popular ao golpe, funcionando ao

contrário, esvaziando o movimento de contestação e resistência, mas mostrou a

força dos ferroviários. Tanto assim, que durante o governo militar, algumas medidas

foram tomadas no intuito de enfraquecer a classe, com a perseguição a líderes de

movimentos e a contratação de pessoas sem qualquer ligação com o transporte

ferroviário, dificultando a unificação da categoria.

Entrevistando ex-ferroviários percebemos a importância que havia a chamada

“família ferroviária”. Eram gerações seguidas de uma mesma família que

trabalhavam na ferrovia:

Eu sou neto e filho de ferroviários, vários tios foram ferroviários. Meu avô, inclusive, falam na época, ele era italiano. Naquela época ele trabalhava numa estrada de ferro na Bahia, pro lado da Bahia, no Nordeste, e com aquelas idéias comunistas dele, logo no início, logo que surgiu a Bahia-Minas, ele foi transferido para Caravelas.114

113 PAULA, Dilma Andrade. Op. Cit. p. 94.114 FARINA, Glair. Entrevista concedida no dia 16 de julho de 2006.

86

O envolvimento político entre os ferroviários era muito forte e, reforçado pelos

laços de parentesco, conforme pudemos perceber nas palavras do Sr. Glair Farina.

Como já tratamos anteriormente, o papel exercido pela ferrovia em Teófilo Otoni era

mais que o transporte de mercadorias, chegando, às vezes, a fazer o papel que

cabia à prefeitura, no que diz respeito a obras na cidade. Sendo o número de

funcionários da ferrovia bastante significativo diante da população da cidade naquela

época, inferimos que tenha interferido na política local no sentido de atrair a atenção

dos políticos. Não podemos afirmar que havia algo como um “curral eleitoral” na

ferrovia, mas, de acordo com vários ferroviários contatados, a união do grupo em

qualquer circunstância, merecia atenção especial.

A desativação foi tomada como ação repressiva do governo, percebida por

GIFFONI que ao entrevistar ex-ferroviários encontra sinais da verdadeira acusação

contra a Bahia-Minas – ela seria um “foco comunista”. Dessa forma, homens do

exército brasileiro estiveram presentes na sede da Estrada de Ferro investigando

possíveis subversivos, inclusive com prisões de líderes ferroviários de Teófilo Otoni

que teriam promovido greves e interrupção do tráfego. 115

O macarthismo atingia todas as instâncias e a classe dos ferroviários,

caracterizada pela união e pela organização e força de seus movimentos não

escaparia da perseguição desmedida por parte dos defensores da “moral

capitalista”.

Retomando a Estrada de Ferro Bahia-Minas, encontramos evidências de que

realmente era deficitária – como já adiantamos anteriormente, de acordo com os

interesses do mercado de exportações – mas tal situação foi muito mais provocada

por uma questão de política de desenvolvimento econômico e de transporte do que

por ineficácia do modal ferroviário,que atendia prontamente aos interesses regionais

115 Cf. GIFFONI, José Marcello Salles. Op. Cit. p. 179.

87

de transporte de pessoas e mercadorias. Com a prioridade das políticas públicas

voltadas para o modal rodoviário, a Bahia-Minas passou, desde a década de 40 a ter

como concorrente a BR 116 – Rio-Bahia, além de um total abandono em termos de

investimentos da União para a manutenção da via permanente. O papel da ferrovia

como instrumento de modernidade, de ampliação de fronteiras no interior do país foi

transferido para as rodovias e então, as Estradas de Ferro passaram a ter a

obrigação de gerar lucro.

Deficitária, acusada de manter um foco comunista, ultrapassada em suas

máquinas e equipamentos, a Bahia-Minas foi incluída no Decreto 58.341, de 3 de

maio de 1966 que erradicava os ramais deficitários.

GIFFONI nos aponta em sua tese um aspecto importante. O artigo nono do

Decreto 58.341 subordina a desativação dos ramais deficitários à existência ou

construção de outra via de transporte em condições de atender satisfatoriamente ao

tráfego de cargas ou passageiros a todos os núcleos populacionais atingidos pela

linha desativada. Tal premissa não foi cumprida e até a atualidade, as rodovias que

ligam Teófilo Otoni a Araçuaí e Teófilo Otoni a Nanuque e daí para o Sul baiano

encontram-se em estado lastimável.

Não houve, por parte do governo, preocupação em atender satisfatoriamente

a população que dependia de alguma forma, da Bahia-Minas. Até os dias atuais, o

transporte nessa região é difícil, caro e ineficiente. Mas, não poderíamos esperar

uma ação diferente por parte do governo, sobretudo dos militares que promoveram a

erradicação dos trilhos. Atender aos anseios da população era uma preocupação

menor para os políticos. O que interessava era alinhar-se com a política norte-

americana e atender aos interesses do capital internacional. O povo deveria se

adaptar à nova realidade econômica.

88

A Bahia-Minas enquadrava-se, como vimos, na justificativa do prejuízo

econômico destacado pelo governo. Mas, além dele, outras foram as justificativas

para a desativação, o que analisaremos a partir de então.

2.2. O PREJUÍZO SOCIAL

A desativação da Estrada de Ferro Bahia-Minas não trouxe apenas o prejuízo

econômico para a região de Teófilo Otoni. Trouxe consigo um prejuízo social enorme

e que fora literalmente desmedido pelo governo ao tomar a decisão de erradicar

seus trilhos. Muitas famílias viram-se num curto intervalo de tempo, obrigados a

mudar de cidade, mudar de hábitos. Muitos profissionais, obrigados a mudar de

função ou, obrigados a se aposentar, num tempo que consideravam prematuro. Até

hoje, ao longo da antiga linha, muitos são os órfãos da ferrovia, como percebemos

nos depoimentos dos entrevistados do programa “Terra de Minas” da Rede Globo de

televisão, que foi ao ar no dia 21 de janeiro de 2005: “Conhecia o tempo viajando

nele, que passava direto aqui. Vinha muita gente, carregava lenha muita coisa,

contou o pescador Adão Moreira”. Outros têm saudades do movimento do comércio:

A estação, aquela parte de lá, era a agência onde se comprava as passagens, você despachava a mercadoria, a parte de cá era o depósito, o armazém. O comércio, era muito bom, tinha muito comércio, porque a zona rural era bastante aplicada, tinha fazenda com 60 famílias morando, contou o comerciante Antônio Campos.116

116 ESTRADA DE FERRO BAHIA-MINAS. Belo Horizonte: Globo, 2004. 20 min. Color. Son. DVD.

89

Noutro trecho do mesmo programa, fica patente o sentimento comum às

pessoas que viveram naquela época:

Dá pra ver do alto, bem na beira da estrada, fica a casa do violeiro Antônio Xavier. Entre os gerânios do jardim e a vista da Pedra da Ladainha, seu Antônio, 86 anos, vive abraçado à companheira: a viola. Até hoje, ele se impressiona com a lembrança da composição que passava na porta de casa. Dezesseis carros! Uma maquinária só puxava dezesseis carros. Era importante, né? Eu não sei como é que dava, numa estrada dessas cheias de curvas, afirmou o violeiro Antônio. 117

Em 1949 a direção da ferrovia havia pedido ao governo federal medidas que a

modernizassem, com a construção de novos trechos que ligariam a Bahia-Minas a

outras ferrovias, como a Central do Brasil e a Vitória-Minas, melhorando o tráfego de

mercadorias e atendendo a uma região muito maior. Tal medida desafogaria os

portos de Santos e do Rio de Janeiro, assim que fosse normalizado o trânsito de

navios no porto de Caravelas. No entanto, tal projeto não foi colocado em prática e,

a partir de 1961, com a saída do engenheiro Wenefredo Portela da direção da

Estrada, teve início um verdadeiro rodízio de diretores, marcando a crise por que

passava aquela instituição. Wenefredo Portela marcou seu mandato na direção da

EFBM, ficando positivamente impresso na memória dos ferroviários. Outro que

ganhou destaque foi seu sucessor direto, o engenheiro Oscar Leite Pires, que, de

certa forma, conseguiu manter um bom funcionamento da ferrovia, com trens

cumprindo seus horários e com maior rigor nas relações de trabalho. Durante seu

mandato, Pires conseguiu reduzir déficits, mas não obteve lucro suficiente para

salvar a linha. Os diretores que se seguiram não permaneceram no cargo por tempo

suficiente para promover mudanças importantes. Foram eles: Roberto Costa de

Almeida, Josias Coelho Jr., José Pena Magalhães Gomes e Lélio Garcia Porfírio.

117 Idem.

90

Praticamente não houve resistência à desativação por parte da população de

Teófilo Otoni. GIFFONI cita um depoimento do engenheiro Eloy de Almeida, que

retrata bem a situação da ferrovia na época da sua erradicação. Trata-se de um

depoimento longo, mas que traz informações que nos ajudam a entender o processo

que levou ao fim da Bahia-Minas.

Em 1965 eu fui mais três ou quatro engenheiros para tentar recuperar economicamente a estrada de ferro que na época arrecadava onze milhões de cruzeiros e sua despesa era de 600 milhões de cruzeiros. Com muito esforço conseguimos elevar a receita para 57 milhões de cruzeiros, mas a despesa continuava 600 milhões de cruzeiros. O governo viu que era inviável. A Bahia e Minas teve sua falência decretada depois da construção da rodovia Rio-Bahia. Tudo que poderia ser transportado por estrada de ferro passou a ser transportado por caminhão. Ela não tinha mais nada o que transportar. Só transportava um pouco de passageiros. Não tinha como subsistir. O Jânio Quadros quando foi eleito decretou a extinção da estrada de ferro. Quando vio a revolução me mandaram para lá fazer a extinção da estrada, mas primeiro com a tentativa de procurar aumentar a receita, o que foi impossível porque não tinha nada o que transportar. Ela ligava Caravelas a Araçuaí. Uma região muito pobre em material para a ferrovia transportar. Ferrovia é carga a grandes distâncias.A gente fazia de tudo para arranjar dinheiro, mas era impraticável. Assim foi até que em 1966, o trem estava tão atrasado que ele chegou numa ponte. Ele deveria passar nesse local à noite, mas ele chegou lá de dia. Ele estava com 196 passageiros. Quando o trem se aproximou e viu que a ponte estava queimada ainda deu tempo de parar. Se fosse à noite possivelmente ele não pararia. Eu fui mandado para lá tinha dois anos de formado. Então eu, um engenheiro novo, me comprometer com um acidente desta ordem eu fiquei apavorado. Dei um rádio para o meu chefe dizendo que a partir daquele dia nenhum trem rodaria mais na Bahia e Minas sob minha responsabilidade. Me chamaram para conversar com o governador. Estou salvando minha responsabilidade. Qualquer coisa que acontecia na Bahia e Minas eu era o responsável. Se o pagamento atrasava eu era o responsável. Se havia uma punição lá eu era o responsável. Imagina eu ser responsável por um acidente desta ordem? Eu fique em pânico.Me perguntaram se eu faria um relatório a respeito. Então, eu cheguei em Teófilo Otoni, peguei um fotógrafo bom e nós viemos de Caravelas a Teófilo Otoni tirando retratos dessas [pontes] provisórias. O estado de podridão, de carência era fantástico. Foi trazido para o governador e concluíram que não tinha condições de recuperar. 118

Economicamente inviável, pelos motivos que já apontamos nesse estudo, o

governo federal nomeia o engenheiro Eloy de Almeida para tentar sanar as contas

da ferrovia – algo impossível já que seu déficit era muito grande. Diante de todos os

118 ALMEIDA, Luiz Eloy de – Depoimento – Belo Horizonte, 31/10/2003, p. 255. Apud. GIFFONI, José Marcello Salles. Op. Cit. p. 174-175.

91

desafios, o jovem engenheiro apavora-se diante de uma eminente catástrofe, um

acidente envolvendo quase 200 pessoas. Teria sido o ponto final da ferrovia, já que

o engenheiro-diretor não se responsabilizaria diante de tudo o que lhe era exigido.

Em seu depoimento, fica clara a situação da linha, com pontes ainda de madeira em

estado de putrefação – denunciando o total abandono e colocando em risco o

transporte por ali. Faz-nos pensar o fato de que, após tantos anos de abandono,

nomeiam um engenheiro recém-formado, ou seja, inexperiente para o cargo, como

diretor da Estrada de Ferro. Este mesmo engenheiro, diante da possibilidade de um

grave acidente – uma ponte incendiada – como? Por que motivo? – promove uma

vistoria no decorrer da linha e constata seu abandono, suas condições precárias de

segurança para o trânsito dos trens.

É intrigante, também, o fato de que nos últimos dias da ferrovia que era

“deficitária”, haver um transporte de 196 passageiros num único trem (quase quatro

lotações de ônibus se considerarmos uma média de 50 passageiros por veículo).

O fato na época levantou suspeitas entre os ferroviários que, evidentemente,

foram, ainda que indiretamente, caladas, como podemos perceber no depoimento do

Sr. José Ferreira, ex-controlador de Movimento da EFBM:

Dr. Oscar Leite Pires veio e assumiu a diretoria da Bahia-Minas e conseguiu locomotivas diesel, aí melhorou o transporte, o trem começou a andar no horário, porque o trem andava sempre atrasado, mas houve muita covardia do pessoal, dos políticos e eu não posso afirmar com certeza, porque eu não tenho provas, mas, Dr. Aécio Cunha e Dr. Geraldo Landi conluiado com alguns ferroviários, até queimar mata-burros, o que nunca aconteceu antes, mesmo quando as locomotivas eram todas a vapor, tudo movido a lenha, onde cai brasa, cai tudo nunca havia queimado mata-burro, nunca queimou ponte. Qdo começou a diesel, queimou exatamente para parar. Houve uma parada de uma semana e tanto, porque queimou a ponte mas, recuperaram, voltou a rodar, mas aí eles tiraram o Dr. Oscar daqui e encamparam a ferrovia quando veio a tal da “revolução”. Eu acho que ela acabou mais foi por causa da revolução.119

119 FERREIRA, José. Entrevista concedida dia 10 de agosto de 2006.

92

GIFFONI aponta um movimento político, abraçado por uma suposta elite

local, cuja proposta seria a manutenção da estrada através de um projeto político

maior:

Uma série de artigos do Jornal Folha de Nanuque nos mostra um movimento político que propunha a formação de um Estado que abrangeria os vales do Jequitinhonha/Mucuri e o extremo sul da Bahia de Belmonte até a fronteira com o Espírito Santo. Para esse projeto, a EFBM era ponto importante de infra-estrutura sendo elemento de integração regional. Propõem soluções econômicas para a mesma e reproduzem um dos grandes argumentos de Teófilo Otoni [o fundador da cidade homônima] para justificar a exploração e colonização do nordeste mineiro que seria a opção de conexão do centro do país com o porto de Caravelas para desafogar os portos de Santos e Rio de Janeiro. 120

Tal projeto, na verdade, transformaria o porto de Caravelas no porto do Brasil

central. Toda a região servida pela ferrovia, então interligada com outras importantes

estradas de ferro, seria amplamente beneficiada em sua economia, beneficiando

uma região que, segundo a Folha de Nanuque121 aproximava-se de um milhão de

habitantes, que teria à sua disposição meio de transporte eficiente e barato para

promover o seu desenvolvimento econômico.

No entanto, o próprio Regime Militar calou este discurso. GIFFONI aponta o

fim da publicação dos artigos que defendiam tal projeto no últimos meses de 1964.

Se o projeto de um novo Estado não deslanchou, a idéia de que a ferrovia poderia

ter sobrevivido permaneceu, como podemos apurar em artigo da mesma Folha de

Nanuque:

A paralisação da EFBM, apesar de deficientíssima, está causando enormes prejuízos em todo o vale do Mucuri, onde ela servia, inclusive grande parte do extremo sul da Bahia até Caravelas.A suspensão temporária da Bahia e Minas deixou milhares de pessoas pobres sem condições de viajarem, além de prejudicar seriamente todos os lugarejos por onde ela passava, prestando serviços.Segundo circular expendida à estação da Bahia-Minas de Nanuque pelo Diretor Superintendente da VFCO [Viação Férrea Centro-Oeste] Ten. Cel. Julio Ribeiro Gontijo, a suspensão do tráfego de passageiros e cargas da ex-EFBM foi decretada devido a deficiência e insegurança da ferrovia.A propósito da paralisação da Bahia-Minas o Diário de Minas teceu severa crítica ao Governo Federal no seu editorial do dia 10 deste mês

120 GIFFONI, José Marcello Salles. Op. Cit. p. 175.121 Idem, p. 177.

93

asseverando: “A desculpa não muda: acabar com serviços em situação deficitária.Seria o caso de perguntar-se, no momento de condenar a Estrada, o Governo não pensou também na possibilidade de recuperá-la. É uma opção para ser considerada...”E o vespertino da capital mineira, com sua independência de sempre, comenta ainda no editorial que: “A Bahia-Minas não vem produzindo o que se esperou dela. Correto. Mas, também, não lhe acrescentaram nada, nos seus anos de funcionamento claudicante...”É verdade que muitos perderam a vida nos trens da Bahia-Minas, por causa de seu lamentável estado de trafegação, mas agora acontece coisa também dolorosa a este respeito: é que a própria Bahia-Minas que matou tanta gente, também acaba de morrer abandonada e desprestigiada pelos poderes públicos que a enxergaram toda vida como uma velha mendiga e nada mais. 122

Tal artigo expressa o descaso do poder público com o lado social da ferrovia.

Pensaram na desativação apenas como uma justificativa econômico – livrar o país

de um estorvo deficitário. Não olharam para as milhares de pessoas que tiravam seu

sustento da ferrovia. Quando dizemos “tiravam seu sustento”, queremos salientar os

ganhos diretos e indiretos apurados com o movimento da ferrovia. Vale lembrar,

ainda, que a região não fora servida de pronto com rodovias que pudessem, de

maneira adequada, atender às necessidades de transporte na região. A própria

justificativa de ineficiência econômica não pode ser vista desatrelada do descaso e

do abandono da ferrovia em suas oito décadas de existência.

Onde estavam as resistências à desativação? Onde estavam os políticos

locais? O jornal Tribuna do Mucuri aponta a indignação generalizada acerca da

atuação desses últimos

No corre-corre para evitar a saída da Bahia e Minas somente a Associação Comercial e os clubes de serviços atuaram de maneira significativa. Políticos? Estes desapareceram como por encanto da região. Nossos deputados? Quais deputados? Demos um azar danado de não se ter dado o fato em época de eleições, senão seria aquele berreiro. E a defesa da Bahia e Minas seria feita a ferro e fogo, porque dela dependeria o voto dos ferroviários, da população que vivia em função da Bahia e Minas nos 23 núcleos populacionais que praticamente deixaram de existir, e nas cidades que perderam a possibilidade de comercializar seus produtos.Os políticos não apareceram. Agora já começaram as visitas cordiais, depois virão as visitas eleitorais, depois as campanhas, e finalmente, será

122 FOLHA DE NANUQUE – “Paralisação da Bahia e Minas deixa Milhares de Pobres sem condições de Viajarem” – 21/05/1966 – p. 06. HEMG. Apud. GIFFONI, José Marcello Salles. Op. Cit. p. 181.

94

eleito mais um salvador da região. Ó senhores deputados. Salvai-nos de vez da ameaça do progresso. Ninguém suporta viver aqui com o barulho do progresso.

O discurso contestador do Tribuna poderia ser encarado como um ato de

defesa dos interesses do povo da região. O que poderiam fazer os políticos da

região, cuja expressão não era assim tão destacada? Lutar contra os generais do

Regime? Prometer uma mudança na situação vivida nos Vales do Jequitinhonha e

Mucuri? De que forma?

Diante de todos os interesses e motivos que já apresentamos aqui,

constatamos que a decisão já estava tomada e a ferrovia há muito tempo, estava

condenada por sua própria ineficiência em gerar lucros. O governo sofria influência

poderosíssima do capital estrangeiro, interessado nas longas rodovias, repletas de

automóveis movidos a derivados de petróleo, que estavam sendo construídas por

todo o território nacional. O que poderiam significar vozes fracas vindas do interior

do nordeste mineiro? Além disso, as vozes da região estavam divididas, como

pudemos perceber nos discursos aqui apontados. Hora uns atacam a ferrovia como

deficitária e sem possibilidades de recuperação, hora outros defendem o

reaparelhamento da Estrada viabilizando economicamente seu funcionamento. Não

havia consenso. Provavelmente o próprio sistema político e econômico do governo

promovesse tal confusão de idéias.

Onde fica a população neste processo? Como “nau sem rumo”, ficou à deriva,

órfã da ferrovia, mas alienada pelo discurso da empresa deficitária. Falava-se em

corrupção, em “cabide de empregos” e isso inevitavelmente marcou a opinião do

povo simples do sertão mineiro. Tal imagem negativa corroborou para a desativação

da Bahia-Minas num processo sem resistências populares.

95

Aquilo era demais, só servia aos grandes. A gente sofria. A gente tinha o quadro de provisórios, mensalistas, diaristas e titulados. Titulados eram os funcionários bem velhos que tinham uma nomeação dada por Getúlio Vargas. Então esses se consideravam os donos da estrada. Eram os funcionários públicos federais mesmo. Depois disso tinha os diaristas e nós provisórios é o que é hoje a CLT, não tinha nenhum valor, qualquer coisinha mandava embora. Então com isso ficava um ano sem pagar nós. O dinheiro vinha todo mês lá do Ministério só que não pagavam. E nós passando dificuldade, trabalhando todo dia sem dinheiro para comprar nem um pão. Eu não sofria porque era solteiro (...) mas meus colegas que não tinham como correr por fora? Levavam desvantagem. Muitos largaram o emprego naquela época. Não agüentavam ficar seis, oito meses sem receber. Como fazia? Então é isso aí. O regulamento era muito pesado e tinha essa parte de safadeza demais e aquilo tinha que acabar. E para acabar, acabaram com a estrada. Foi o único recurso. 123

As memórias que cercam da Bahia-Minas são cheias de controvérsias.

Interesses diversos forjaram histórias diferentes para cada indivíduo que a reconta.

No caso da ferrovia de Teófilo Otoni esta complexidade ajuda-nos a compreender o

contexto político, econômico e social da desativação da ferrovia e da vida da cidade.

Sobre essas memórias, estaremos tratando no terceiro capítulo deste trabalho.

O que restou da Bahia-Minas foi a saudade nos moradores mais antigos.

Além de ruínas esquecidas no meio do mato – pontes, passagens, túneis e a velha

locomotiva, deixada na praça como marco de um tempo. Tempo que se construiu na

memória coletiva como tempo de bonança, onde havia movimento na cidade, onde

Teófilo Otoni começou a ganhar status no cenário econômico nacional. Foi, sem

dúvida um tempo onde muita gente (comerciantes, vendedores ambulantes,

prestadores de serviços) ganhou dinheiro, mas pouca gente (empresários

exportadores de produtos primários) fez fortuna. Tempo em que a cidade conheceu

um grupo fortemente unido, conhecido como “bahiminas”, pessoas que surgiram na

história da cidade como promotores do progresso e, que de alguma forma, foram

idealizados como heróis – sobretudo os maquinistas, “pilotos” de outrora, que

atraíam o respeito e a admiração das pessoas simples da cidade, cidadãos

123 CAJÁ, Epaminondas Conceição – Depoimento – Betim, 18/12/2002. p. 226. Apud. GIFFONI, José Marcello Salles. Op. Cit. p.184.

96

“comuns” que passaram adiante a idéia de que a Bahia-Minas fora vital para a

cidade e que não haveria futuro sem ela.

CAPÍTULO 3

BAHIMINAS: LUGAR DE MEMÓRIA EM TEÓFILO OTONI

Como vimos, a Estrada de Ferro Bahia-Minas foi um importante marco na

história de Teófilo Otoni. Desde seu planejamento e construção, a ferrovia provocou

transformações profundas não apenas na cidade, mas em todas as regiões cortadas

por ela. Essas transformações marcaram os aspectos naturais, com a derrubada de

matas, o trabalho de terraplanagem, e a construção de pontes, e também os

aspectos econômicos, com a vinda de trabalhadores de várias partes do mundo,com

a facilidade nos transportes – preços dos fretes, velocidades nas entregas, a

diminuição das distâncias, também com o uso do telégrafo, acabam por provocar

transformações em toda a vida social da cidade e, consequentemente, contribuíram

definitivamente para a formação das memórias dos cidadãos.

Sabemos que o advento das ferrovias, dentre outras inovações técnicas e

tecnológicas ocorridas desde o final do século XVIII, passando pelo século XIX e

início do XX, provocou uma série de rupturas em sociedades “brindadas” com a

chegada da indústria. Tais rupturas poderiam ser relacionadas com o que se

97

convencionou chamar de “modernidade”, sobretudo no século XIX. A ferrovia

proporciona para essa época uma nova perspectiva de transporte, de circulação –

de mercadorias e pessoas, e uma nova perspectiva de tempo e organização. Em

Teófilo Otoni, a ferrovia foi responsável pelo aumento significativo da população, em

especial com a chegada técnicos para trabalhar diretamente com as máquinas,

oficinas, telégrafos e nos escritórios da empresa, bem como proporcionou a

circulação de pessoas vindas de várias partes do Brasil e que, chegando à cidade,

se estabeleceram abrindo seus próprios negócios.

Segundo ORTIZ (1991) “o princípio de circulação” é um elemento estruturante

da modernidade que emerge no século XIX” 124. Os limites que antes promoviam a

separação das pessoas, das classes sociais, até mesmo dos diferentes espaços

socioeconômicos – cidade/campo, por exemplo – deixam de existir com o trem de

ferro. A ferrovia surge como um instrumento de unidade, de “intercambio”, para

utilizar as palavras do autor acima citado, que aprofundando em seu raciocínio, diz :

Evidentemente a intensificação da circulação é uma decorrência das transformações mais amplas que ocorrem na sociedade; a materialidade dos transportes as expressa. 125

A circulação de mercadorias, que se expandiu; a organização social que se

desenvolveu, exigiram inovações nos transportes, essas, materializadas na ferrovia.

Ele afirma ao estudar o transporte ferroviário em Paris, mas podemos trazer suas

conclusões também para o caso da nossa Teófilo Otoni.

Conforme Ortiz, essa idéia de circulação como algo vital para a modernidade

só faz sentido quando se trata de um sistema. Assim, falar da circulação de

mercadorias através de vias férreas como algo imprescindível para sociedade que

se beneficia dela só faz sentido a partir do momento em que tal via férrea faz parte

124 ORTIZ, Renato. Cultura e Modernidade. São Paulo: Brasiliense, 1991. p. 195.125 Idem, p. 199.

98

de um complexo viário, de uma rede ferroviária: “A estrada de ferro e os vagões que

ela carrega formam uma espécie de máquina complexa, cujas partes não podem ser

consideradas isoladamente” 126. Assim, para a França do princípio do século XIX,

enquanto as ferrovias apenas serviam para o transporte de mercadorias entre

trechos pequenos e isolados, ou, para empresas privadas tais como mineradoras e

indústrias, não havia uma percepção da ferrovia como parte desse complexo vital da

circulação. Somente a partir da década de 30 essa realidade começou a mudar e

O trem é visto como um veículo radicalmente novo, e as estradas de ferro uma forma de se colocar em contato espaços distantes. Elas quebram o isolamento local, são “cosmopolitas”. Daí a necessidade de se representar o território nacional como uma rede complexa, tendo paris como o seu centro. 127

A formação de redes ferroviárias evidenciou a importância da circulação das

mercadorias (e de pessoas) através das linhas férreas, com toda a potência e a

velocidade proporcionadas pelas máquinas a vapor usadas naquela época.

Abrindo um parêntese, podemos inferir sobre os motivos da desativação da

Bahia-Minas. Ora, analisando por este raciocínio, justifica-se a pouca importância

dada pelos militares à ferrovia. A Estrada de Ferro Bahia-Minas, embora gerasse

renda e sustento para muitas pessoas ao longo do seu percurso, não estava

integrada à Rede Ferroviária Nacional, embora fosse administrada por ela. A Bahia-

Minas era uma ferrovia isolada, não fazia parte do sistema, no sentido abordado por

Ortiz.

Como evidenciamos no primeiro capítulo dessa dissertação, o trem passou a

representar a “modernidade” também em Teófilo Otoni nos fins do século XIX. Toda

a economia e a vida social da cidade passou a girar em função da ferrovia que

chegava em 1898. Transformações profundas ocorreram nesta sociedade

126 ORTIZ, Renato. Op. Cit. p. 205.127 Idem, p. 206.

99

específica, conforme trabalhamos no segundo capítulo dessa dissertação, e tais

transformações forjaram “novas memórias” no cidadão teófilo-otonense. A história

da cidade está profundamente ligada à história da ferrovia. É inevitável, em qualquer

círculo de debate acerca dos acontecimentos da cidade, que se fale da “Bahiminas”.

Mas, como se construíram – ou se forjaram – essas memórias? Segundo POLLAK

(1992) “a memória deve ser entendida [...] como um fenômeno coletivo e social [...]”

128 ou ainda conforme ORTIZ (1991), citando Halbwachs:

[...] a memória coletiva é um conjunto de lembranças ativadas pelo filtro do presente. Elas constituem assim um patrimônio que, vivenciado por um grupo de pessoas, se atualiza no momento de cada rememorização. 129

Para que essas memórias se formem e se mantenham, é preciso que elas

sejam sempre sendo relembradas. E para isso concorrem várias maneiras de se

rememorá-las, não é diferente do caso da nossa ferrovia, em particular.

Ao lado dos encontros dos ex-ferroviários por meio da sua Associação, há na

praça central da cidade uma réplica da primeira locomotiva a circular pela Estrada

de Ferro Bahia-Minas. Trata-se de uma locomotiva Baldwin, de pequeno porte que,

segundo alguns ferroviários, tinha capacidade de tracionar apenas um ou dois

vagões, além do Tender, uma espécie de vagão onde era transportado o

combustível – carvão ou madeira – para a caldeira da locomotiva. Essa locomotiva

hoje, traciona não apenas seus poucos vagões – aliás, pelo seu estado de

conservação, ou pela falta dela, a “maquinazinha” como é chamada pelos ex-

ferroviários, não conseguiria puxar nada – mas, arrasta consigo todo um conjunto de

lembranças dos tempos em que havia “circulação” na cidade.

128 POLLAK, Michael. Memória e identidade Social. In: Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol. 5. n. 10. 1992. p. 200-212.129 ORTIZ, Renato. Op. Cit. p. 189.

100

Trata-se de um suporte material, marco para a memória da Bahiminas. Uma

máquina pequena, mas de grande significado. Pequena como fora aquela estrada

de ferro, completamente isolada da Rede Mineira ou Federal. Criada para ser

caminho da esperança e do progresso, para ser a alternativa que poria fim ao

isolamento do interior do Nordeste de Minas Gerais.

“Olhar a ‘maquinazinha’ na Praça Tiradentes faz meus olhos encherem de lágrimas... trás lembranças de outro tempo. Hoje, virou banheiro público para moleques (...)130

“Aquela Maria-Fumaça na Praça Tiradentes, eu parei em frente a ela umas duas ou três vezes. Eu não queria que ela estivesse ali.vou ser bem preciso com você. Eu queria que ela estivesse em cima dos trilhos, rodando daqui para Pedro Versiani, ou pelo menos daqui a Carlos Chagas como trem turístico (...) ou daqui a Nanuque ou Araçuaí. Daria emprego, ia gerar emprego.” 131

“Eles colocaram aquilo lá (a locomotiva) como uma lembrança. É bonito, deixaram como enfeite para as crianças verem. Para saberem como é que era.

Quem conheceu, conheceu, quem não conheceu.... inclusive aquela máquina, é a primeira que rodou por aqui, ela é muito pequena, as outras que vieram depois eram muito maiores, imagina, o tanto de vagão que aquilo puxava. 132

Aliás, andando pela região que compunha o antigo leito da ferrovia

desativada, vários são esses marcos. Se na praça central da cidade de Teófilo

Otoni, a Praça Tiradentes, descansa a “Poxixá”, nome dado à primeira locomotiva a

rodar pela Bahia-Minas, ao longo do trecho urbano do leito existem casarões das

oficinas (hoje usados para diversos fins, como a Secretaria Municipal de Saúde e a

sede da União Estudantil de Teófilo Otoni), o pontilhão metálico sobre o córrego

Santo Antônio e os túneis na zona rural próximo à cidade, uma sólida lembrança do

que representou a Bahia-Minas para Teófilo Otoni.

Seguindo essas construções é possível refazer o trajeto da ferrovia na zona

urbana. E ao fazê-lo, percebe-se que muitas ruas, aproveitando o leito da ferrovia

extinta, permanecem extremamente estreitas, como eram nos tempos da linha.

130 SIMÕES, Antônio. Depoimento dado em março de 2005.131 RODRIGUES, Sidônio. Depoimento dado em 17 de novembro de 2005.132 BRANDÃO, Ana Violeta. Depoimento dado em março de 2005.

101

Algumas casas construídas na época da atividade da ferrovia ainda permanecem de

pé; as crianças ainda brincam nas ruas estreitas, como brincavam as crianças

daquela época em que o apito do trem fazia-nas correr para a segurança da casa,

de onde assistiam a composição passando. Em alguns trechos, mergulhando-se na

história da Bahia-Minas e deixando-se levar pela emoção, pode-se ouvir o apito

estridente do trem aproximando-se.

Ouvindo pessoas que todos os dias vêem esses marcos pela cidade,

moradores antigos destas ruas, percebemos o quanto a ferrovia ficou marcada na

memória dos mesmos. “A memória freqüenta as ruínas”, diz Paula. Na memória de

todas as pessoas, ainda é viva a imagem da “bahiminas”, como costumam dizer. É a

imagem da saudade, que não tem endereço certo, nem grupo social. Em qualquer

lugar na cidade, dos bairros mais ricos aos mais pobres, encontram-se saudosos

apaixonados pela ferrovia, que sonham com uma possível reativação, mesmo

sabendo que este sonho é praticamente impossível.

NORA (1993) afirma que “A memória emerge de um grupo que ela une, o que

quer dizer, como Halbwachs o fez, que há tantas memórias quantos grupos existem;

que ela é, por natureza, múltipla e desacelerada, coletiva, plural e individualizada”.

Percebemos a existência dessas “memórias” da Bahiminas conforme conversamos

com os diversos personagens, principalmente entre os membros da Associação

Cultural Ferroviários Bahia-Minas da qual trataremos adiante, que não deixam a

história da ferrovia desaparecer. Cada um em sua experiência traçou seu retrato da

ferrovia, ou desta em sua vida. Assim, tivemos o discurso da viúva de um

escriturário, cargo mais elevado na empresa, que relatou tempos de bonança:

Quando tinha a Bahia-Minas aqui era aquele “farturão”, você precisava ver. Tinha trem que ia e voltava, era aquele “movimentão”, sabe, tinha muitas coisas, ele passava em vários lugares, inclusive Nanuque. [Teófilo Otoni] Era uma cidade boa, tinha muita fartura na época da Bahia-Minas. Era

102

tanta fruta, verdura, creme que vinha de fora, a gente fazia muita manteiga.133

Por outro lado, em depoimento da filha de um pedreiro da Bahia-Minas, não

encontramos tanta fartura assim, pelo contrário, muito trabalho pesado, atrasos em

pagamentos de salário e dificuldades na manutenção da casa:

Eu tive a vida, exatamente a vida de filha de ferroviário. Eu convivi com a família ferroviária durante mais de trinta anos. Era... eu me lembro que meu pai tinha um bom relacionamento com todos os seus colegas de trabalho e era uma vida apertada. Era muito apertada. Tanto financeiramente, quanto de trabalho. O trabalho era um pouco pesado. Meu pai viajava para essas turmas com seus ajudantes, com os outros pedreiros, ele era o chefe dos pedreiros, então, eles iam pra lá para fazer as construções. Ele chegava aqui no escritório central da Bahiminas e eles falavam assim: “ah, João Panattieri (ele chamava Giovvani Panatttieri, mas eles chamavam de João) amanhã você vai para Queixada, que é uma estação perto de Novo Cruzeiro, você vai fazer uma caixa d’água porque a caixa de lá está pequena”. Então meu pai ia com a turma dele, iam levando ferramentas, levando tudo o que era necessário. Levavam utensílios de cozinha, cobertor, munição, coisas pra fazer comida, porque às vezes eles ficavam lá até dois meses, cozinhando, eles mesmos cozinhavam e fazia o serviço. Eles não tinham nada. Praticamente eles ficavam na beira da estrada onde não tinha nada. Não era no comércio que eles ficavam.134

Este não foi o único caso de trabalhadores que passaram por dificuldades. No

entanto, mesmo nos discursos onde não havia exaltação da ferrovia no sentido de

conferir-lhe uma imagem de empresa ideal, ou seja, que se preocupava com o bem-

estar de todas as pessoas, não houve uma crítica mais contundente. Mesmo diante

de todas as dificuldades, essas pessoas sofreram com a desativação e consideram-

na como uma medida infeliz do governo federal. Segundo os ferroviários, os

benefícios que a ferrovia trazia superavam os problemas que eles enfrentavam.

Esse discurso comum pode ser percebido nas reuniões da Associação Cultural

Ferroviários da Bahia-Minas, como trataremos a seguir.

3.1. A ASSOCIAÇÃO CULTURAL FERROVIÁRIOS DA BAHIA-MINAS133 BRANDÃO, Ana Violeta. Entrevista concedida no dia 22 de novembro de 2005.134 PANATTIERI, Ignez. Entrevista concedida no dia 31 de julho de 2007.

103

“A Associação foi criada em cima de uma necessidade de resgate da

memória da extinta Estrada de Ferro Bahia-Minas”.135

Nas palavras acima, proferidas pela então presidente da Associação,

percebemos a preocupação dos ferroviários e descendentes de ferroviários com a

preservação da memória da Bahia-Minas em Teófilo Otoni, que, segundo a direção

da referida Associação, corria o risco de desaparecer com a morte dos ferroviários

ainda vivos. Só há poucos anos (menos de 10) é que houve realmente atitudes

efetivas no sentido de procurar preservar e resgatar a história da cidade e também

da ferrovia.

Nas palavras da presidente Benedita, percebemos que, sobretudo entre os

ferroviários e seus familiares e descendentes, há uma tristeza e um lamento em

torno da memória da Estrada de Ferro. Para eles esse abandono é fruto do descaso

das pessoas em relação ao resgate da memória na cidade.

Segundo Benedita Lopes, a Associação dos ferroviários, criada em 1997,

portanto trinta anos (!) após a extinção da ferrovia, nasceu de uma querela política

com o poder público municipal:

Eu como filha de ferroviário... a gente tinha um desejo de juntar as pessoas, fazer um encontro das pessoas e para ver, matar as saudades, uma coisa até meio romântica, né? Então, em cima disso, eu, o Antônio Simões e o Arysbure, resolvemos criar uma Associação. Agora veja bem como foi fundada a Associação: toda associação nasce de uma necessidade. Nós temos uma casa onde será a futura sede. Essa casa pertencia à extinta Estrada de Ferro Bahia-Minas e esta casa estava sendo usada pela prefeitura como centro de triagem. Com o decorrer do temo, esta casa foi transformada quase que num hospício e levou a sofrer um incêndio, e de repente, o prefeito daquela época, junto com os promotores, queria transformar aquela casa numa casa de presos albergados. E foi daí que surgiu a necessidade. Em cima daquela briga, por causa da casa que a gente não deixou que ela se transformasse numa casa para presos albergados, nós resolvemos criar a Associação. 136

135 LOPES, Benedita. Entrevista concedida no dia 18 de julho de 2007.136 LOPES, Benedita. Entrevista.

104

Para os membros da Associação dos ferroviários, esta surgiu da necessidade

de resgatar as memórias da ferrovia. Além disso, há a preocupação com a

manutenção dos bens da antiga Estrada de Ferro, apesar da omissão dos políticos

locais. Assim, foi se desenhando o caminhar dessa Associação, que, com a ajuda de

ferroviários, filhos de ferroviários ou suas viúvas, concedem à Associação alguns

poucos documentos que restam da ferrovia. Dessa forma, além de documentos

pessoais, velhas fotografias e muitas histórias sobre “o tempo da ferrovia”, a

Associação tenta organizar um pequeno museu, que funcionará na sede da

Associação assim que for possível – já que a casa, como vimos no depoimento aqui

transcrito, sofreu um incêndio no qual perdeu todo o seu telhado e a Associação

ainda não recebeu fundos para uma reforma, apesar de ter seu projeto aprovado

pela prefeitura. Para este museu os ferroviários contam com doações por parte da

Rede Ferroviária Federal de algumas peças da antiga Estrada de Ferro Bahia-

Minas, tais como sino e torneira de locomotivas a vapor, bageiro, marcador de

passagens e antigos boletins da ferrovia.

“Os lugares de memória são, antes de tudo, restos” NORA (1993). Acumular

esses “restos” da ferrovia, não apenas por acumular, mas dando um sentido ritual a

essas peças transforma-as em lugares de memória, uma vez que passam a ter além

do sentido material, o simbólico, e o funcional, intrínseco da peça.137 Nesse sentido,

a própria ferrovia torna-se lugar de memória para Teófilo Otoni, em seus vestígios,

no traçado de algumas ruas, na permanência de pontilhões e túneis em sua área

rural, como marcos de outro tempo.

137 De acordo com Pierre Nora, esses três sentidos são indispensáveis na caracterização dos lugares de memória. NORA, Pierre. Entre a memória e a história. In: Estudos Históricos, n.3, 1989.

105

Atualmente, além de agrupar a memória material da Estrada de Ferro, os

associados organizam encontros, bailes, festas para angariar fundos e discutir a

história da ferrovia.

Nós temos as peças e temos um livro, né, que entre nós é uma referência, que foi escrito pelo engenheiro Argolo, e no mais a gente tem dado uma contribuição com palestras nas escolas, com reuniões e também envolvendo a questão do lazer. Recentemente nós fizemos o quarto baile “Nos Tempos da Bahiminas” [...] Nós fizemos bailes com o Waldir Silva e com o César Porto e no mais a gente tem feito... a gente reúne para mobilizar... no ano passado (2006), nós, através da Câmara Municipal, nós conseguimos criar o Dia do Ferroviário Bahiminas, que é o dia 30 de abril. Então essa foi uma iniciativa da Associação e junto com a Câmara Municipal conseguimos realizar esse desejo. E também conseguimos mais um avanço, né, o tombamento da nossa locomotiva, então é dessa forma que a gente vai conseguindo resgatar a memória apesar das dificuldades [...]

A promoção cultural também é uma preocupação por parte dos ferroviários.

Seu envolvimento com a organização de bailes populares recorda a época em que

os ferroviários da Bahiminas levavam uma vida social intensa, conforme relatou a

própria Benedita, freqüentando clubes, bailes com boa música e comida à vontade.

Nos atuais bailes, descendentes de ex-ferroviários divertem-se, os mais velhos,

trocam lembranças dos tempos de bonança, tempos que, conforme eles mesmos

afirmam, “não voltam mais”.

3.2. AS MEMÓRIAS E HISTÓRIAS DA BAHIMINAS

Reconstruir a história da Bahia-Minas à luz de todas as memórias existentes,

implica num trabalho muito difícil, que requer um trato muito específico e exposto a

críticas, como afirma FENELON (2004)

106

“Ao definirmos a memória como campo de nossa reflexão e diálogo,

apontávamos a existência de um ‘campo social onde memórias

hegemônicas e alternativas são produzidas na vida cotidiana’, o que nos

colocou a importância e o compromisso de reavivar lembranças e

narrativas de sujeitos excluídos e dissidentes”.138

Assim, sendo, buscamos ao longo deste trabalho, reconstituir a história da

Estrada de Ferro Bahia-Minas, focalizando o impacto sócio-econômico e cultural na

formação da memória na cidade de Teófilo Otoni, também através de depoimentos

de várias pessoas envolvidas direta ou indiretamente com a ferrovia, sobretudo aos

ferroviários da Associação. Neste sentido, houve um esforço de interpretação das

informações obtidas através de entrevistas, programas gravados em rádio e

televisão e em periódicos.

Inicialmente buscamos relatos de ex-ferroviários, concedidos à Rádio local, na

ocasião de um programa especial em lembrança aos trinta anos da desativação da

Bahia-Minas – alguns dos quais já apresentamos aqui anteriormente.139

Poderíamos nos perguntar o porquê de se comemorar uma data tão triste

para a história da cidade. De acordo com o produtor e apresentador do programa, o

mesmo tinha por objetivo “resgatar a memória da ferrovia”. Conforme NORA (1993),

“Os lugares de memória nascem e vivem do sentimento que não há memória

espontânea, que é preciso criar arquivos, que é preciso manter aniversários,

organizar celebrações, pronunciar elogios fúnebres, [...]” se o objetivo era resgatar a

memória, então os produtores esforçaram-se em criar este arquivo. Em estabelecer

um conjunto de informações que comporiam essa memória da ferrovia. Ao realizar

este trabalho, coletaram diversos relatos em várias partes ao longo do antigo leito.

138 FENELON, Déa Ribeiro et. al. (Orgs). Muitas Memórias, Outras Histórias. São Paulo: Olho d’Água, 2004. p.10.139 A gravação do programa foi gentilmente cedida pelo jornalista responsável pela Rádio Teófilo Otoni, o Sr. Evandro Pechir.

107

Ou seja, juntaram várias memórias na composição deste lugar de memória140. São

relatos marcados pela emoção e pela saudade, relatos individuais, mas que mantém

uma coerência suficiente para que se constitua uma memória coletiva.

O programa começa com o som estridente do apito do trem e um convite a

viajar pela lembrança daqueles que estiveram, de alguma forma, relacionados com a

Estrada de Ferro. Numa linguagem que descreveríamos como excessivamente

poética, o narrador convida a se fazer uma viagem pelos túneis do tempo, a fim de

se resgatar a história da ferrovia.

O primeiro entrevistado pelo programa foi um ex-maquinista, o Sr. Manoel

Feliciano de Castro, que, do alto dos seus 79 anos, com a voz embargada pela

saudade e num esforço por se lembrar de cada detalhe, relata todos os preparativos

para uma viagem entre Teófilo Otoni e Araçuaí.

A gente trazia a licença então depois nós “dava” uma apito e um agente batia no sino [...] e nós “ia” embora [...]. Quando parte o trem, por exemplo, de Queixada a Novo Cruzeiro, bate o sino duas vezes. Quando é daqui pra lá, é uma batida só. Os passageiros entravam no vagão [...] cada estação [...] tinha os minutos de parada né. Ladainha, por exemplo, era de vinte e cinco minutos. O pessoal tomava café, comia tira-gosto – tinha muita galinha frita, cozida, carne frita...[...]. Então nós “saia” de Ladainha e ia pra Brejaúba. Lá demorava dez minutos por causa do depósito de lenha. Então nós “saia” de Brejaúba e chegava em Novo Cruzeiro. Novo Cruzeiro era ponto de almoço. [Lá se demorava] trinta minutos. De lá nós “saia” e ia pra Queixada. Em Queixada era depósito de lenha, demorava dez minutos. Chegava em Schnoor, demorava cinco minutos. [pergunta: De Teófilo Otoni a Ponta de Areia fazia em quantos minutos?] Depende da máquina. Quando “nós topava” com uma máquina boa, então, nós “gastava” de Nanuque até aqui era oito horas de viagem [...] de Nanuque a Ponta de Areia era mais perto. Era cento e sessenta e quatro quilômetos.141

Achamos importante constar uma parte tão grande do relato para que se

possa identificar a riqueza dos detalhes da viagem, contada por este velho usuário,

140 NORA (1993), considera lugar de memória todos os marcos que apresentam os três sentidos, material, simbólico e funcional, constituídos de um jogo da memória e da história, cuja vontade de memória é indispensável.141 NOS TEMPOS DA BAHIA-MINAS. Teófilo Otoni. Rádio Teófilo Otoni, 2004. 60 min. Son. CD.

108

passados trinta anos do fim da ferrovia. Percebemos que eram viagens longas, com

paradas que hoje consideraríamos excessivas para percursos relativamente curtos,

estas, entretanto promoviam a integração entre os usuários, por isto foram poucos

aqueles que reclamavam da demora. Tempos distantes! A memória permite que se

faça a história como se fosse de um passado e não do presente como é. No caso

específico da Bahia-Minas, de uma época em que o tempo não era tão valioso;de

uma época em que o trem esperava por um passageiro que se atrasava na hora da

partida, algo impensável hoje.

As velhas “Marias-fumaças” precisavam de muita lenha para produzir a força

necessária para vencer as subidas do trajeto, além de consumir bastante água nas

caldeiras, obrigando as locomotivas a pararem para “beber” água, como dizem os

ferroviários. Todas essas paradas prolongavam a viagem que chegava a atingir mais

de dez horas entre Teófilo Otoni e Ponta de Areia, puxando uma média de vinte

vagões. A voz embargada pela emoção e mesmo o fato de dar à máquina

características humanas – “beber água” – denota a afetividade desenvolvida pelos

ferroviários em relação à Bahia-Minas.

O depoimento do maquinista vai ao encontro do depoimento de outro ex-

funcionário dos escritórios da ferrovia, o Sr. Glair Farina,142 filho de outro maquinista

da Bahia-Minas, segundo o qual os trens enfrentavam grande dificuldade para

vencer as subidas, chegando ao ponto de, em alguns trechos mais íngremes, o

maquinista ser obrigado a subir o morro acelerando a máquina, ao mesmo tempo

em que acionava os freios dos vagões, que faziam força para baixo, puxando a

locomotiva.

Tais dificuldades revelam as razões do déficit apresentado pela ferrovia.

Apesar de ter facilitado, a vida daqueles que não contavam com melhores condições

142 FARINA, Glair. Entrevista concedida dia 16 de julho de 2006.

109

de transporte na região, a falta de investimentos no sentido de melhorar os

equipamentos da via, modernizar as máquinas, adequando a ferrovia às

necessidades da região, provocavam atrasos, quebras e acidentes. Tais problemas

ficam evidentes no depoimento concedido à rádio Teófilo Otoni pelo Sr. Antônio

Gonçalves, responsável pelo gerenciamento das finanças da ferrovia na cidade.

Segundo o ex-ferroviário, “A receita era bem distante do que a Bahia-Minas gastava

com a folha de pagamento. Era deficitária como todas as do Brasil.” O Sr. Antônio

aponta, ainda, outro eventual motivo para o déficit da ferrovia:

A intensa movimentação da economia da região com a Bahia-Minas em atividade proporcionava bons lucros para os comerciantes, no entanto a arrecadação para os cofres da empresa era deficitária e sequer dava para cobrir a folha de pagamento dos funcionários. [...] O motivo da desativação da Bahia-Minas foi gerado pela escassez da madeira na região. Com o fim da madeira, ela ficou só pra transportar produtos como manga, pequi, de Araçuaí, Helvécia.

O que percebemos em todos os depoimentos que colhemos foi o fato de que

a maioria absoluta dos depoentes referira-se ao “tempo da Bahiminas” como um

tempo de bonança, de fartura e de desenvolvimento para a cidade e região. Assim,

destacamos abaixo alguns trechos gravados que consideramos de suma

importância ao evidenciarmos este fato:

Quando tinha a Bahia-Minas aqui era aquele “farturão”, você precisava ver. Tinha trem que ia e voltava, era aquele “movimentão”, sabe, tinha muitas coisas[...]. Era uma cidade boa, tinha muita fartura na época da Bahia-Minas. Era tanta fruta, verdura, creme que vinha de fora, a gente fazia muita manteiga.Era uma vida muito boa. Muita fartura. Todo mundo trabalhava, todo mundo ganhava bem. Meu marido era contador na Bahia-Minas. 143

Eu tenho saudade e sinto muita falta. Pois uma cidade quando tem uma malha ferroviária ela, na área econômica rende mais, todo mundo tem, todo mundo dá, todo mundo compra, todo mundo vende e o dinheiro circula no município de uma forma que hoje fica a desejar.De forma que, em minha família, como eu fui criado, nunca faltou nada na minha casa, na minha vó, no meu avô... minha avó falava que enquanto tinha a Bahia-Minas em T. Otoni, todo mundo estava vivendo, mas ela via os rumores de que a Bahia-Minas ia acabar um dia e ela ficava muito abalada.

143 BRANDÃO, Ana Violeta.

110

Eu sei que nós matava 15 vacas todo dia de manhã, de segunda a sexta e os bahiminas comprava tudo. Porco, nós matava 18 a 20 porcos a cada três dias. Eles compravam tudo, nós vendia muito, todo mundo comia, todo mundo bebia e era uma fartura imensa. E em T. Otoni de um modo geral, as poucas lojas que tinha, mas as que tinha vendiam, inclusive não tinha esse negócio de vender roupa pronta como tem hoje, era corte de pano, aqueles rolos de pano e quando a gente chegava pra comprar eles iam desenrolando aquilo. Eu via tudo, aquele movimento, o dinheiro circulava em T. Otoni. 144

Então houve, realmente, uma queda muito grande para Teófilo Otoni porque vinha para cá, como pagamento para funcionários, uma nota preta que entrava. E também o transporte era muito mais barato, de passageiros... por exemplo, quem queria comprar alguma coisa lá em Carlos Chagas – gado, material de construção, etc. o transporte era muito mais barato e isso não trazia prejuízo para a ferrovia não, porque enquanto um caminhão trás trinta toneladas numa estrada boa, uma ferrovia, mesmo deficitária, transportava trinta e cinco toneladas em cada veículo, isso eu posso garantir porque era eu quem controlava. E locomotivas dessas a vapor, puxava 8, 10 veículos numa estrada toda sinuosa, é muito mais vantagem do que colocar 10 carretas para transportar essa mercadoria.145

A cidade era outra, assim, naquele tempo não existia banco, o pagamento era feito na empresa. Tinha o tesoureiro, ele ia ao banco, tirava aquele dinheiro, e colocava o dinheiro dentro do envelope, eu entregava pra cada um. Não tinha aquele negócio de depositar em conta bancária. Isso veio surgir depois da década de 60. 146

Eles (os ferroviários) formavam uma classe bastante fortalecida, como viria a ser, anos mais tarde, os funcionários do Banco do Brasil. O comércio girava em torno deles, pois eles tinham um salário, uma remuneração muito boa.Quanto terminou essa Bahia-Minas foi um caos para a cidade em todos os aspectos. Social, econômico.A produção escoava, havia movimento, etc. e tudo isso acabou com a extinção da Bahia-Minas.147

Percebemos que há um consenso entre os habitantes da cidade de que o

período de funcionamento da ferrovia foi um período de grande desenvolvimento

econômico e social para a cidade. Os recursos proporcionados pela Bahia-Minas

através do pagamento dos salários para os funcionários promoveu o fortalecimento

do comércio, gerando empregos indiretos e melhoria para todos. Não pode ser

esquecida aqui a importante contribuição para a vida cultural da cidade que contava

144 OLIVEIRA, Sidônio Rodrigues. Entrevista concedida no dia 17 de novembro de 2005145 FERREIRA, José. Entrevista concedida no dia 10 de agosto de 2006.146 FARINA, Glair. Entrevista concedida no dia 16 de julho de 2006.147 BRUNO, Laura. Entrevista concedida no dia 29 de dezembro de 2005.

111

com festas e bailes organizados pelos ferroviários, bem como da formação

intelectual promovida pela ferrovia através dos cursos profissionalizantes que eram

ministrados em Ladainha.

A organização profissional dos ferroviários poderia ter sido um modelo para

as outras classes trabalhadoras, o que não aconteceu. Sabemos, no entanto, que,

apesar de todo o pagamento da ferrovia ser feito através do escritório em Teófilo

Otoni, grande parte dos funcionários morava ao longo da ferrovia e, geralmente,

recebiam em seus locais de trabalho. Concluímos, então, que os salários gerados

pela ferrovia não seriam o principal motor do crescimento econômico. Entretanto, a

economia da cidade foi inegavelmente influenciada pelo movimento da ferrovia. Não

apenas os salários dos trabalhadores devem ser considerados, mas, sobretudo, a

facilidade proporcionada pelo transporte ferroviário – maior quantidade de

mercadorias por viagem e frete mais barato.

Houve um crescimento da população de Teófilo Otoni entre o final do século

XIX até a primeira metade do século XX, como podemos perceber comparando os

dados abaixo:

Ano População Construções1890148 6.230 8761950149 87.971 2.911150

Trata-se de um crescimento populacional considerável, não por acaso

coincidindo com o período de maior atividade da ferrovia na cidade. Em 1950,

conforme o Anuário Estatístico de Minas Gerais, a cidade ocupava a sexta posição

do Estado, segundo a sua população e sua produção cafeeira, num total de 247.500

arrobas representava mais de 10% da produção total de Minas Gerais, que chegava

148 Synopse do recenseamento de 1890.149 Annuário Estatístico de Minas Gerais. Ano IV, 1950.150 Construções na zona urbana.

112

a aproximadamente 217 milhões de arrobas. A cidade possuía ainda, duas usinas

de força e luz, garantindo o fornecimento de energia para a população.

São dados como esses que sustentam a idéia de que nos tempos da Estrada

de Ferro a cidade crescia e se desenvolvia. Com certeza esse desenvolvimento não

surgiu como milagre após a inauguração da estação de Teófilo Otoni, nem sequer

atingia diretamente toda a população, mas é fruto de toda uma conjuntura política e

econômica, da qual a ferrovia ocupa espaço importante. Por ser um símbolo clássico

do progresso, estabeleceu-se na memória como principal responsável pela riqueza

da região. Riqueza também cultural, uma vez que pessoas vindas de várias partes

do Brasil aqui se estabeleceram trazendo consigo toda uma carga de costumes e

cultura de suas regiões de origem.

A extinção da Bahia-Minas, no entanto, não apagou a memória dos bons

momentos da mesma sobre a população. Contribuem para a manutenção da

memória as ruínas, marcos remanescentes daquela estrada, como a já mencionada

locomotiva da Praça Tiradentes, reforçando o sentimento nostálgico naqueles que

se identificam com a história da ferrovia:

Aquela Maria-Fumaça na Praça Tiradentes, eu parei em frente a ela umas duas ou três vezes. Eu não queria que ela estivesse ali.vou ser bem preciso com você. Eu queria que ela estivesse em cima dos trilhos, rodando daqui para Pedro Versiani, ou pelo menos daqui a Carlos Chagas como trem turístico (...) ou daqui a Nanuque ou Araçuaí. Daria emprego, ia gerar emprego.151

Eu me lembro demais. Eu chorava, e Carlos chorava... eu falava “deixa de ser tolo, não é só de Bahia-Minas que se vive não”! Eles colocaram aquilo (a locomotiva) lá como uma lembrança. É bonito, deixaram como enfeite para as crianças verem. Para saberem como é que era. Quem conheceu, conheceu, quem não conheceu.... inclusive aquela máquina, é a primeira que rodou por aqui, ela é muito pequena, as outras que vieram depois eram muito maiores, imagina, o tanto de vagão que aquilo puxava!152

151 OLIVEIRA, Sidônio Rodrigues. Entrevista.152 BRANDÃO, Ana Violeta. Entrevista.

113

Quando eu vejo uma locomotiva a vapor, aquilo me corta o coração153

Conforme Paula,

“No Brasil, o incentivo às construções ferroviárias veio acompanhado de um deslumbre: o trem era difundido (embora, na prática, seus traçados não correspondessem a esse ideal) como o veículo por excelência da integração nacional e O condutor da civilização aos mais distantes rincões.”154

Acontece que esse deslumbre acabou. Desativaram ferrovias inteiras.

Demitiram, aposentaram ou remanejaram trabalhadores. Provocaram profundas

transformações nas vidas das cidades cortadas pelas estradas de ferro. Mas, a

memória sobreviveu,sobreviveu “nas ruínas”, como diz PAULA, nos símbolos

concretos:

Os trilhos abandonados e/ou arrancados, os maquinários jogados em algum depósito ou apodrecendo às vistas públicas estimulam a produção de novos símbolos, ou de recordações, na produção de um sentido para o passado. O trem não mais existe, mas, como na letra da música Ponta de Areia, de Milton Nascimento, as “casas esquecidas” e as “viúvas nos portais” sugerem sua sobrevivência como símbolo de uma época. 155

São esses símbolos que não deixam a Estrada de Ferro Bahia-Minas morrer

na memória do teófilo-otonense – a locomotiva na praça, as pontes e túneis e as

construções semi-utilizadas. Marcos de uma época de ouro na história da cidade e

da região.

NORA (1993) insiste na necessidade da construção de arquivos, cuja

prioridade é exatamente a “vontade de memória”, ou seja, a intenção de se

preservar a viva essa memória. Assim, a memória da Bahia-Minas está presente,

também, nas manifestações artísticas. Se a arte imita a vida, como dito popular,

153 FARINA, Glair. Entrevista.154 DE PAULA, Dilma Andrade. O futuro traído pelo passado: a produção do esquecimento sobre as ferrovias brasileiras. In: FENELON, Déa. et.al. (Orgs). Muitas Memórias, outras histórias.São Paulo: Olho D’Água, 2000. p. 50.155 Idem, p. 50.

114

diríamos que a arte, além de imitar a vida, preserva viva a memória, em certos

casos. As vinte e cinco estações construídas pela Bahia-Minas já seriam marcos

concretos da passagem de um tempo marcado pela abundância (para uns), pelo

trabalho duro (para outros), pela velocidade das transformações, pelo

desenvolvimento econômico e social. Tempo que ficou na saudade a partir da

segunda metade da década de 1960, quando a ferrovia foi extinta.

A ação predatória de governos municipais despreocupados com a

preservação do patrimônio fez com que e algumas cidades, as estações

abandonadas fossem completamente demolidas, noutras, foram descaracterizadas e

utilizadas para fins diversos – pelo menos permanecem de pé.

Certamente a produção artística mais conhecida que homenageia a Bahia-

Minas é a música “Ponta de Areia” de Fernando Brant e Milton Nascimento.

Belíssima canção trata a ferrovia como “estrada natural” entre Minas e o porto

marítimo na Bahia. Fala do “caminho de ferro” mandado arrancar pelos militares,

deixando muitas cidades desamparadas, isoladas e saudosas. Fala da “Maria-

Fumaça” que não “canta mais”, das “casas esquecidas”, das “viúvas nos portais”.

Enfim, fala do envolvimento do povo, principalmente dos mais humildes com a

história da Bahiminas.

As “casas esquecidas”, cantadas por Milton Nascimento podem referir-se às

estações desativadas após 1966. Algumas, belíssimas construções, outras, mais

simples, mas sempre destacando a robustez da estrutura, variações que surgiram

de acordo com a época que contextualiza cada construção, bem como, com o

significado e a importância de cada uma no funcionamento da ferrovia.

A maioria dessas estações foi retratada pelo artista plástico João Eduardo

Pereira de Freitas, que colocou em tela não apenas os detalhes arquitetônicos das

115

estações, sem com uma locomotiva estacionada ao seu lado e a vida ao redor de

cada uma.

João Eduardo é nascido em Teófilo Otoni, era um artista praticamente

desconhecido, quando se interessou pelo tema ferroviário. Segundo o próprio autor,

desde criança, quando aluno da Escola Estadual Dr. Geraldo Landi, havia se

apaixonado pelo desenho de uma locomotiva retratada em meio à floresta (ele

acredita ser da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré), tentava copiar o desenho em

seus cadernos, mas não saiam a contento, uma vez que ele nunca estudara

desenho e desconhecia a técnica de perspectiva, luz e sombra, ou outras técnicas.

Já mais velho, ingressou num curso de desenho e a partir daí passou a pintar

quadros variados – florais e murais sob encomenda e outros pequenos trabalhos. A

idéia de pintar os trens da Bahia-Minas teria surgido, conforme nos relatou, a partir

de uma encomenda do advogado Arisbure Batista Eleutério, quando do lançamento

do seu livro “Estrada de Ferro Bahia e Minas: A ferrovia do Adeus”, no ano de 1998.

João Eduardo deveria pintar algumas telas que serviriam para ornamentar o salão

onde ocorreria o lançamento do livro. O artista teve como fonte de inspiração para

suas telas, velhas fotografias cedidas pelo autor do livro, além de relatos detalhados

da construção das locomotivas e das estações. Outro elemento motivador foi a

lembrança da ferrovia. De sua casa de infância, era possível ver os trens chegando

à estação. “O som estridente do apito da locomotiva marcou minha memória, mais

até do que a própria imagem da mesma”, disse o pintor.

A seguir, apresentamos algumas obras pintadas pelo artista, tentando

percorrer o itinerário da Bahia-Minas através dos quadros e de uma memória.

Começamos pelo ponto inicial, Ponta de Areia, cidade que nasceu a partir do

terreno adquirido pela ferrovia e doado à prefeitura de Caravelas para ser povoado,

116

ao lado das construções que seriam ocupadas pela própria Estrada de Ferro.

Localizada a apenas quatro quilômetros do Porto de Caravelas, um dos principais

entrepostos marítimos do Brasil no século XIX, Ponta de Areia sobrevivia do

comércio proporcionado pela ferrovia, chegando, em pouco tempo, a rivalizar com

Caravelas, cuja estação, vista abaixo, só seria construída em 1926.

Estação Ponta de Areia156

A estação de Ponta de Areia seguia o estilo neoclássico157 luxuosamente acabada,

com duas plataformas paralelas. Com a extinção da ferrovia, o prédio foi

abandonado e posteriormente demolido. As famílias que deram vida à cidade, em

grande parte foram transferidas para outras cidades. Encontramos um quadro

pintado, com base em antigas fotos que restaram da estação. É compreensível que

na obra do João Eduardo apresentada abaixo, apenas o local do porto onde os

vagões eram descarregados esteja retratado, com uma poderosa locomotiva

156 Todas as imagens apresentadas a seguir são reproduções de fotografias cedidas pelo pintor.157 Cf. GOMES, Jaime. Um trem passou em minha vida: Contos, Crônicas e Artigos – painel histórico ilustrado da extinta Estrada de Ferro Bahia-Minas. Teófilo Otoni: Gráfica Expresso, 2006. p. 30.

117

entrando de ré na ponte de madeira que acessava o porto, onde um guindaste

estava de prontidão para retirar a carga de madeira do vagão.

Porto de Ponta de Areia

A madeira, como vimos é a carga mais constante nas representações de João

Eduardo, enfatizando a mercadoria que, ao lado do café, justificou a construção da

ferrovia.

A próxima parada é a estação Presidente Bueno, atual Nanuque, cidade que

surgiu a partir de serrarias que alimentavam a Estrada de Ferro com madeira-de-lei

beneficiada ou em estado ainda bruto.

118

Estação Presidente Bueno

A estação, após a extinção da ferrovia, foi demolida, dando lugar a uma praça

denominada “Praça dos Pioneiros”. Na tela, novamente a presença marcante da

madeira estocada ao lado dos trilhos.

Depois de Nanuque, viajando sempre no sentido ao interior, rumo a Araçuaí,

a estação mais importante é a de Teófilo Otoni. Inaugurada a três de maio de 1898,

com grande festa na cidade, a estação de fato só seria construída alguns anos

depois. Tratava-se de um belo edifício, com uma torre em estilo neoclássico-

gótico158, que possuía ogivas ornamentadas por um relógio.

Estação de Teófilo Otoni

158 GOMES, Jaime. Op. Cit. 43.

119

Estação Teófilo Otoni

Desta construção restam-nos apenas fotografias e as pinturas do João

Eduardo, uma vez que, pouco tempo depois da desativação, o edifício fora vendido,

assim como as outras construções do complexo ferroviário na cidade, a uma Loja

Maçônica. Os novos proprietários não tiveram o cuidado em preservar as

construções, descaracterizando-as. Com a estação não foi diferente. Demolida em

partes, deu lugar à atual rodoviária da cidade, uma construção que, na época era

considerada “moderna”, com linhas retas, sem qualquer ornamento ou qualquer

referência ao prédio que lhe deu origem.

No quadro que retrata esta estação, o pintor deixa evidente a tristeza que

assola o local. A estação sem movimento de pessoas, apenas as paredes claras,

com portas semi-abertas; um carro estacionado na entrada parece denunciar o triste

destino da ferrovia, substituída pelo transporte rodoviário. Em primeiro plano

aparece a figura de um carroceiro que dirige seu olhar para a porta da frente da

estação como quem não acredita naquela cena de abandono. Um local que sempre

fora marcado pelo incessante movimento de pessoas e mercadorias, pelo calor das

120

locomotivas, o vapor, a fumaça, a poeira... agora silenciosa, sem vida. Fica evidente

neste quadro o conflito entre o “moderno” e o “antigo” – o automóvel é o novo

símbolo da modernidade, o progresso, nos moldes capitalistas exige velocidade e

agilidade; ao mesmo tempo, o carroceiro representa um passado até mesmo

anterior à ferrovia, quando toda a mercadoria transportada na região era feita em

lombo de burro, pelos antigos tropeiros, classe “substituída” pelos ferroviários.

A extinção da ferrovia em 1966 foi um duro golpe para a cidade, que teve seu

comércio diminuído com parte importante da população economicamente ativa

transferida para outras cidades e com o fim do transporte barato de mercadorias

pela ferrovia.

Próximo a Teófilo Otoni está localizado o distrito de Valão. Hoje marcado por

festas populares que acontecem aos domingos num “galpão” de um bar. Pequena

povoação, completamente dependente das economias das cidades vizinhas –

Teófilo Otoni, Poté, Ladainha. Vilarejo que por pouco não desapareceu. Não deixou

desaparecer também a pequena estação, relativamente bem cuidada até os dias de

hoje, quando é ocupada por um posto da polícia militar.

Estação Valão

121

O clima de festa que ainda pode ser presenciado nos fins de semana em

Valão foi retratado pelo artista na tela que representa a chegada do trem na estação.

A locomotiva ainda “arfando”, solta fumaça e vapor por todos os lados enquanto as

pessoas, na plataforma, esperam a ordem para embarcar. Percebe-se, também,

toras de madeira de pequeno porte, que provavelmente seriam utilizadas como

combustível para as locomotivas, encontram-se em dois montes, sendo um

cuidadosamente arranjado e outro, num plano mais próximo do observador,

completamente desordenado. Podemos ver ainda, um número grande de mulas

utilizado para o transporte de mercadorias que vinham dos rincões mais distantes e

isolados, onde praticamente não havia estradas, apenas picadas abertas no meio da

selva. Transporte substituído em parte pela ferrovia, não deixava de ser importante

contribuição para a economia local, fazendo a integração dos pontos mais distantes

da região com a estrada de ferro.

Sucanga é a próxima parada antes de Ladainha. Semelhante ao que

acontece com Valão, é um vilarejo onde se tem a impressão de que o tempo parou.

Um fraquíssimo comércio mantido pelos agricultores da região, poucas casas

antigas em sua maioria – uma vez que os moradores vivem na zona rural. A antiga

estação permanece de pé, apesar de não receber maiores cuidados por parte do

poder público ou mesmo dos moradores.

122

Estação Sucanga

Em Ladainha, encontramos um maior conjunto arquitetônico, um patrimônio

que mantêm viva a lembrança da Bahia-Minas: a estação, obviamente, e as oficinas

– hoje só existe a fachada do edifício, reconstruído pela Prefeitura para abrigar um

ginásio poliesportivo. Além destes edifícios diretamente ligados às atividades da

ferrovia, existem ainda o estádio de futebol e a usina de força construídos pela

EFBM. O campo de futebol foi um dos primeiros do interior de Minas Gerais a contar

com iluminação artificial. A energia provinha da usina hidrelétrica construída pela

Estrada de Ferro, nas proximidades da cidade e que fornecia eletricidade não só

para as oficinas, mas para toda a população.

A cidade de Ladainha nasceu a partir da ferrovia. Até então, existia uma

fazenda isolada entre os vales dos rios Mucuri e Bonsucesso e uma aldeia indígena

da tribo dos Pôdos. Índios provavelmente já “civilizados” pela ação de missionários,

uma vez que a cidade veio a receber este nome graças às rezas do chefe indígena –

“Ladainha dos Pôdos”. Em 1918 foi inaugurada a estação da ferrovia, além de um

conjunto de 60 casas para funcionários, almoxarifado, depósitos e as oficinas.

123

A Estrada de Ferro Bahia-Minas proporcionou um desenvolvimento

tecnológico significativo naquela pequena cidade, uma vez que para as atividades

das oficinas era necessária uma mão-de-obra altamente especializada, já que

existiam máquinas de última geração, tais como prensas hidráulicas, altos fornos,

plainas, tornos, serrarias, entre outros. Obviamente os primeiros técnicos vieram de

outros centros, como o Rio de Janeiro, Teófilo Otoni e também da Bahia. Em pouco

tempo, graças à demanda da ferrovia, foi fundado na cidade uma escola técnica a

fim de suprir as oficinas com trabalhadores especializados. Tais técnicos, depois de

formados trabalhavam na própria ferrovia ou eram facilmente locados em outras,

graças à qualidade da sua formação.

Com a extinção, mais da metade da população foi transferida para outras

cidades, sobretudo Belo Horizonte e Divinópolis159: “A cidade quase foi excluída do

mapa, tal a desolação em que caiu, num aspecto quase de cidade-fantasma.”160

Oficinas da EFBM em Ladainha

159 Cf. GOMES, Jaime.Op. Cit. p. 46.160 Idem, Ibidem.

124

Dentre as imagens retratadas por João Eduardo, o quadro retratando duas

locomotivas deixando a oficina é de beleza surpreendente. Podem-se ver outras

máquinas, provavelmente sendo recuperadas, mas chama à atenção do observador

a locomotiva que está em primeiro plano. Têm-se a impressão de que se trata de

uma locomotiva nova, com toda a sua força e esplendor, quando sabemos que as

locomotivas que rodaram eram locomotivas geralmente velhas e reformadas em

oficinas como as de Ladainha. A imagem remete, ainda, a uma sensação de intensa

atividade na cidade, com máquinas chegando e saindo, com todo o burburinho dos

homens trabalhando na recuperação de locomotivas defeituosas ou acidentadas.

Seguindo viagem rumo a Araçuaí, encontramos a cidade de Novo Cruzeiro.

Região que já chamava a atenção de aventureiros desde o século XIX, em busca de

ouro e pedras preciosas. A economia do velho povoado de Gravatá, no entanto,

fixou-se com a produção agrícola, sobretudo do alho. A estação da Estrada de Ferro

Bahia-Minas foi inaugurada em 1924, quando o povoado ainda era distrito de

Araçuaí. Apenas em 1942 a cidade foi emancipada com o nome de Novo Cruzeiro.

125

Estação Novo Cruzeiro

A velha estação ainda existe na praça central da cidade, hoje, completamente

restaurada, abriga uma estação dos correios.

Entre Novo Cruzeiro e Araçuaí, as pequenas Queixada e Schnoor ainda

exibem suas estações. Estas não estão conservadas como a de Novo Cruzeiro, mas

ainda despertam a curiosidade e as lembranças dos moradores, como pudemos

perceber em programa “Terra de Minas” da Rede Globo, especial sobre a Bahia-

Minas no dia 21 de janeiro de 2005. O programa apresenta, em Queixada, a família

de um “benzedor”161, que vive protegida pelas fortes paredes da antiga estação,

além de um posto telefônico. Visitando esses lugares, tem-se a impressão de que o

tempo passa muito vagarosamente nesses rincões. As casas muito simples,

crianças brincando no vasto espaço existente entre as casas na área central, pouco

movimento de veículos numa tranqüila vila do interior. No quadro pintado por João

Eduardo, fica nítida a formação da cidade, onde numa casa ao lado da estação, uma

criança observa a locomotiva, que soltando muita fumaça, estacionava no terminal.

As pessoas na plataforma, com malas nas mãos, aguardam o momento para

embarcar, deixando ao fundo as casinhas, muito semelhantes às existentes ainda

hoje.

161 Conforme documentário realizado pela Rede Globo, exibido no dia 21 de janeiro de 2005, no programa “Terra de Minas”.

126

Estação Queixada

A viagem termina em Araçuaí. Fundada entre os anos de 1830 e 1840,

quando alguns aventureiros buscavam riquezas minerais no nordeste de Minas,

tornou-se cidade em 1871. Tornou-se importante cidade pólo na região do Vale do

Jequitinhonha, recebendo mercadorias oriundas de toda aquela região, muitas delas

chegando em canoas pelos rios Jequitinhonha e Araçuaí.

A EFBM inaugurou sua estação em 1942 com grande festa. Aquela região

outrora isolada do interior de Minas agora estava interligada com o Oceano. Toda a

região, hoje considerada uma das mais pobres do Brasil recebia a ferrovia com a

expectativa da chegada da modernidade, da bonança que a Estrada de Ferro

representava desde o século XIX.

Hoje a estação, que nunca foi uma das mais belas, encontra-se num estado

de conservação lastimável. Praticamente abandonada pelo poder público, abriga um

centro cultural, que pouco tem haver com sua história. Curiosamente tal estação,

127

que não é um primor de beleza, não foi pintada por João Eduardo, talvez por falta de

conhecimento do local pelo pintor, ou mesmo porque as linhas sem requintes da

estação não se enquadrem na idéia de luxo e riqueza que o mesmo tem na

memória.

Se as estações transformam-se em “santuários” de memória, em Teófilo

Otoni, esta já não existe mais. Fora em partes demolida para a construção da

estação rodoviária, como já informamos anteriormente. Esforço de acabar com este

lugar de memória na produção do esquecimento sobre as ferrovias, conforme

ressaltou PAULA162, resultou em inútil, como pudemos constatar, já que as

memórias da Bahiminas estão presentes nas histórias de vida dos ferroviários.

162 DE PAULA, Dilma Andrade. O futuro traído pelo passado: A Produção do Esquecimento sobre as ferrovias brasileiras. In: FENELON, Déa Ribeiro. MACIEL, Laura Antunes. ALMEIDA, Paulo Roberto. KHOURY, Yara Aun (Orgs.) Muitas Memórias, Outras Histórias.São Paulo: Olho dágua, 2004. p.41-67.

128

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em sua obra “História e Memória” 163, Le Goff cita Pierre Nora quando este ao

definir a memória coletiva como “o que fica do passado no vivido dos grupos, ou o

que os grupos fazem do passado”,164 abre possibilidade de opô-la à memória

histórica, o que, segundo o autor, iria de encontro às tendências da historiografia

atual, onde ‘“história e memória’ confluíram-se praticamente e a história parece ter-

se desenvolvido ‘sobre o modelo da rememoração, da anamnese e da

memorização’”.165 Não há como negar a importância da memória no processo da

pesquisa histórica, assim, com este precedente, abraçamos o projeto desta

dissertação.

Várias vezes mencionamos as dificuldades encontradas, sobretudo em

relação a fontes escritas que se referem à Estrada de Ferro Bahia-Minas. Entretanto,

diante da riqueza da memória acerca desta ferrovia, decidimos abraçar o projeto,

mas sabendo ser este campo um terreno conflituoso e, algumas vezes, impreciso.

Notamos que, no geral, o discurso que cerca a história da Bahia-Minas é bastante

coerente. As pessoas contatadas e mesmo em conversas informais durante a nossa

pesquisa, informaram-nos que o período de atividade da Estrada de Ferro foi um

momento de extremo significado para o desenvolvimento urbano, comercial e

cultural de Teófilo Otoni. Foi o momento e que a cidade finalmente deu sinais de sua

163 LE GOFF, Jacques. História e Memória. 5.ed. Campinas:UNICAMP, 2003.164 NORA, Pierre. Apud. LE GOFF. Op. Cit. p. 467.165 LE GOFF. Op.Cit. p.467.

129

“vocação” de pólo regional, transformando-se no principal ponto de ligação do

interior do Nordeste de Minas Gerais com o litoral e daí com os principais mercados

nacionais e internacionais. Neste período a população aumentou, a zona urbana da

cidade desenvolveu-se, houve um aquecimento do comércio e a vida social tornou-

se mais requintada com a existência de clubes e bailes, além da riqueza cultural

proporcionada pelo encontro de culturas diversas que chegaram à cidade por via

férrea, na pessoa dos funcionários da Bahia-Minas oriundos de diversas partes do

Brasil e do mundo.

No primeiro capítulo, procuramos narrar a história da cidade de Teófilo Otoni

no intuito de contextualizar a história da ferrovia, cuja justificativa da construção, a

necessidade de promover o desenvolvimento desta parte de Minas Gerais, não

coincidentemente é a mesma para o projeto de Theóphilo Benedito Ottoni. Por mais

de uma vez tentou-se integrar o interior de Minas Gerais com o sul da Bahia. Por

mais de uma vez tal projeto teve vida curta, o que, para nós, evidencia que

interesses maiores que as necessidades de infra-estrutura e de logística para a

empobrecida região nordeste Minas, sempre atravessaram a história dessa região.

Enquanto houve vontade política, projetos como esses tiveram apoio do governo,

quando os políticos interessados na região perdiam suas bases de apoio no governo

central, a situação se revertia. Assim o foi com a Estrada Santa Clara de Theóphilo

Ottoni, assim o foi com a Bahia-Minas. A história da cidade é marcada com altos e

baixos, mas permanecem na memória os momentos de sorte, de euforia e

esperança.

Reunidos em sua Associação Cultural, os ex-ferroviários e filhos de ex-

ferroviários discursam emocionados na tentativa de recordar os tempos da ferrovia.

Comum a todos os discursos está a memória de uma época de alegria, onde havia

130

dinheiro, onde havia movimento, onde a “família Bahiminas” era verdadeiramente

uma força por sua união. Percebemos, no entanto, que não só de sucessos foi a

história da ferrovia em Teófilo Otoni. Ao tratar da memória, devemos estar sempre

atentos ao que o discurso informa e, principalmente ao que não foi falado ou

assumido. Mais ainda, temos que estar atentos à diversidade de memórias com as

quais deparamos – memória dos ferroviários, memórias dos comerciantes,

memórias dos cidadãos mais antigos da cidade. O papel do historiador ao organizar

essas diversas memórias é maior que o de um simples arquivista. Segundo NORA

(1993), “É ele [o historiador] o instrumento do metabolismo que dá sentido e vida a

quem, em si e sem ele, não teria nem sentido nem vida”. O mesmo Nora afirma que

“memória é vida”. Tratar então de memória é tratar de vida. Tratar das memórias da

Bahiminas é reviver os tempos do trens correndo pelos trilhos, apitando soltando

fumaça para todos os lados. É reviver tempos em que a vida na cidade estava

conectada com o mundo por via férrea.

No segundo capítulo desta dissertação esforçamo-nos para expor os

benefícios que a Bahia-Minas trouxe para os ferroviários e para a cidade de Teófilo

Otoni de uma maneira geral. Ficou evidente que tais benefícios expostos na

memória das pessoas contatadas estão diretamente relacionados ao econômico, ao

desenvolvimento do comércio e de eventuais melhorias materiais promovidos pela

ferrovia na cidade. Comerciantes membros de uma “elite” urbana, bem como

funcionários mais graduados da Estrada de Ferro foram os maiores beneficiários do

período de sua atividade. Ao lado destes certamente viviam os mais pobres, aqueles

que deixaram o sertão do Nordeste de Minas e dirigiram-se para a cidade que mais

crescia como centro do movimento da Estrada de Ferro. Haveria emprego para

todos eles? Evidente que não. Apesar de não aparecerem nos discursos – assim

131

como os escravos que trabalharam na Santa Clara do Liberal Theóphilo Ottoni –

sabemos que existiram. Não esquecendo ainda, daqueles funcionários menos

graduados, que viviam com suas famílias até em barracos de madeira nos fundos

das estações espalhadas ao longo do leito da ferrovia.

Assim, percebemos que nem todos os grupos de funcionários da Estrada

eram beneficiados com todos os recursos da Bahia-Minas. Desde a época da sua

construção, sempre houve aqueles que se sacrificaram por esta obra e, no entanto,

sempre foram excluídos de suas benesses. Sobre esses, os discursos se calam.

Alguns ex-ferroviários até se negam veementemente a falar de “coisas de política”,

como disseram.

Se houve quem foi pouco remunerado, quem foi explorado pela empresa

Estrada de Ferro Bahia-Minas, por que, então o senso comum formado em torno

dessa história, relata apenas passagens de sucesso e bonança? Concluímos, ao

longo dessa pesquisa, que a própria ferrovia, enquanto instituição política e

econômica, contribuiu para a construção dessa memória. Durante sua plena

atividade, envolveu-se diretamente com o desenrolar da história de Teófilo Otoni,

contribuindo não apenas para o desenvolvimento do comércio da cidade, mas

participando ativamente da administração da mesma. A ação “beneficente” da

empresa para com seus funcionários criava um exército de mão-de-obra altamente

qualificada para trabalhar na Estrada e altamente fiel, grata à empresa que

possibilitou sua qualificação. A família Bahia-Minas, ou “Bahiminas” como queiram,

formava um grupo sólido, coeso em defesa da Companhia onde traballhavam,

estudavam e moravam – já que suas casas eram construídas em terrenos da EFBM.

Tal união e coesão, aliás, acabou gerando problemas para alguns membros,

perseguidos pelos militares sob a acusação de serem comunistas. Essas histórias e

132

experiências foram sendo passadas de geração em geração, formando a memória

da ferrovia em Teófilo Otoni.

Como evidenciamos no terceiro capítulo, contribuiu, ainda, para a formação

dessa memória a existência de marcos concretos da existência da ferrovia: ruas

estreitas do antigo leito, casarões, pontes metálicas – todos lugares monumentais166,

que guardam, apenas pela sua passiva existência, a história daquela Estrada.

Símbolo maior seria, talvez, a presença da pequena “Poxixá”, a locomotiva a vapor

na praça central da cidade. Praça que traz consigo toda uma carga simbólica,

retratando o espírito liberal da fundação da cidade, começando por seu nome: Praça

Tiradentes. Dividida ao meio por uma avenida, de um lado encontramos o

monumento ao fundador, o político “liberal” Theophilo Benedicto Ottoni, político

empreendedor que viu a possibilidade de ouro na ligação do interior mineiro com o

litoral sul baiano e assim, abriu a primeira estrada, originando a cidade de Filadélfia,

que mais tarde receberia seu próprio nome. No lado oposto, simbolizando a

efetivação dos planos de Ottoni, a locomotiva. Dois momentos podemos estabelecer

nesta praça: a expansão capitalismo liberal através da abertura da estrada Santa

Clara por Ottoni na metade do século XIX e o progresso técnico que permitiu, de

fato, que este primeiro projeto se efetivasse.

Por outro lado, podemos ver, dentro de outras possibilidades, dois símbolos

de sucesso efêmero. A estrada de Ottoni não atingiu os objetivos planejados por seu

idealizador, ficando ultrapassada. Da mesma forma, a Estrada de Ferro, cujo

planejamento não levou em consideração uma eventual falência dos recursos que a

motivaram – a exploração da madeira e a cultura cafeeira, principalmente. Óbvio que

em ambos os casos, o sucesso ou fracasso dos projetos dependia de interesses

166 Cf. LE GOFF, Jacques. Op. Cit. p. 467.

133

políticos, o que, para a infelicidade de ambos, mostrou-se oposto aos interesses

tanto de Ottoni quanto da EFBM.

Com o golpe militar de 1964 mudaram os interesses políticos do país. A

Bahia-Minas, como outras várias ferrovias, significavam um entrave aos interesses

dos grupos políticos-econômicos e ideológicos que levaram os militares ao poder. A

falta de investimentos para a modernização das vias corroborou com sua extinção.

Houve resistências. Parcas resistências diante de um governo que pouco importava

com opinião pública ou com políticos de oposição. Nos fins da década de 1960,

muitos trilhos foram arrancados, máquinas e equipamentos sucateados, comprados

provavelmente por siderúrgicas – como ocorrera na décadade 70 com os trilhos da

extinta Madeira-Mamoré, no Norte do país.

Símbolo do progresso no final do século XIX, a ferrovia passa a ser vista na

segunda metade do século XX como símbolo do atraso e da ineficiência econômica.

Aliás, Le Goff aponta o século XX como marco para o que chama de “revolução do

moderno”.

A revolução do moderno data do século XX. A modernidade, analisada até então apenas no plano das “superestruturas”, define-se, daqui em diante, em todos os planos considerados importantes pelos homens do século XX: a economia, a política, a vida cotidiana,a mentalidade.O critério econômico torna-se primordial, como se viu, com a introdução da modernidade no Terceiro Mundo. E, no complexo da economia moderna, a pedra de toque da modernidade é a mecanização, ou melhor, a industrialização. 167

Exatamente esse critério econômico trouxe a ferrovia, fundamental naquele

momento para o escoamento da produção e integração das regiões produtoras com

os pontos mais efervescentes do comércio nacional. A madeira, matéria-prima tão

importante naquele momento, acabou sendo explorada sem a preocupação de uma

167 LE GOFF, Jacques. Op. Cit. p. 197.

134

manutenção das florestas, vindo a desaparecer após alguns anos de desmatamento.

Como o critério econômico realmente torna-se o primordial, e mais que isso, uma

economia voltada à industrialização, não houve chance para a Bahia-Minas, uma

ferrovia sabidamente deficitária, de manter-se em atividade. Um “moderno” é

substituído por outro com a adoção do modal rodoviário para os transportes na

região. Aliás, tal substituição já havia ocorrido quando a ferrovia simbolizava o

desenvolvimento econômico em detrimento do transporte efetuado por tropeiros.168 É

a ideologia do progresso, como interpretação da história como uma busca

incansável do homem pela felicidade.169 Felicidade que o capitalista identifica com o

lucro – ainda que advindo da exploração de uma classes sobre a outra.

Para nós fica evidente que, se a imagem da ferrovia como estrutura

indispensável para o desenvolvimento da cidade apresenta, em determinados

discursos, um certo exagero, não podemos deixar de considerar que, mesmo

deficitária para o grande transporte de mercadorias, era de suma importância para a

sobrevivência do pequeno comércio varejista da cidade e região. Se não promovia

riqueza ou uma melhor distribuição desta entre os ferroviários, garantia-lhes, pela

facilidade que tinham devido ao acesso do trem, uma qualidade de vida melhor,com

boa alimentação, com possibilidade de crescimento via educação dos filhos em

escolas da ferrovia, com assistência do serviço próprio de saúde e com a garantia

de uma aposentadoria digna.170 São essas pessoas que hoje compõem o grupo que

uniu-se na Associação Cultural Ferroviários Bahia-Minas, para defenderem os

interesses dos ex-ferroviários bem como de seus descendentes, além de promover a

168 Sobre o conceito de moderno relacionado com “desenvolvimento” V. LE GOFF, Jacques. Op. Cit. p. 198.169 Idem, idem.170 Muitas são as famílias de ex-ferroviários que ainda sobrevivem graças às pensões recebidas do Ministério dos Transportes ou Previdência Social.

135

memória da ferrovia que tanto significa para a vida de cada um deles. Esta

Associação é a maior responsável por manter viva a memória da Bahia-Minas.

Foram-se os trilhos, permaneceram as lembranças onde vivem a memória,

contribuindo para a construção da nossa História Regional. A História de Teófilo

Otoni e região é muito rica, mas pouco pesquisada. Assim, sobram histórias

pitorescas e curiosidades, que acabam sendo incorporadas à memória, uma vez que

fazem parte do imaginário da comunidade, dificultando o trabalho de reconstrução

da História da cidade, já que para integrá-las é preciso buscar o sentido e o que

representam estas curiosidades para a comunidade, como pudemos comprovar ao

longo de toda essa pesquisa.

Percorremos por todo esse caminho tentando, responder qual foi o impacto

sócio-cultural e econômico da Estrada de Ferro Bahia-Minas em Teófilo Otoni e sua

importância na formação da memória do teófilo-otonense. Vimos que a história

econômica da cidade pode ser dividida em “antes”, “durante” e “depois” da ferrovia,

o que é óbvio para uma cidade que era praticamente isolada no sertão do nordeste

mineiro e que com o advento do trem de ferro, passa a ser exercer efetivamente o

papel de pólo regional. Grande impacto foi causado no imaginário das pessoas. A

ferrovia passou a ser palco de inúmeras histórias e de personagens que atribuem à

locomotiva uma personalidade fantástica e transformam o trem no herói salvador da

vida da cidade.

Vale notar que as memórias sobre a ferrovia não se desviam do fato de que

tal sistema de transporte necessita de grande quantidade de mercadoria para

transportar, ou a falência é inevitável. Assim, a Bahiminas, surge para o transporte

de café, atendendo a uma demanda que não se confirmou ao longo dos anos, bem

como a extração da madeira na região. Tais deficiências motivaram a desativação

136

da ferrovia, mas, no entanto, não foram suficientes para convencer aqueles que a

consideravam sua família, os ferroviários, sobretudo. A memória vai além do

econômico, por tudo isso usamos o termo “bahiminas” apelido carinhoso que retrata

melhor o valor, a importância dessa ferrovia para a comunidade. Memórias que

sobrevivem mesmo nas ruínas, nos monumentos, nas associações, nos botequins,

nesses lugares de memória em Teófilo Otoni.

137

FONTES

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ELEUTÉRIO. Arysbure Batista. Estrada de Ferro Bahia e Minas “A Ferrovia do Adeus”: Relato Histórico da Estrada de Ferro Bahia e Minas – 1879 – 1966. 158p. Teófilo Otoni: [199-?]

GOMES, Jaime. Um trem passou em minha vida. Teófilo Otoni,

TETEROO, Samuel. O Município de Theophilo Ottoni: Notas Históricas e Chorográphicas. Belo Horizonte: Imprensa Official de Minas Gerais, 1922.

ANAIS DA CÂMARA MUNICIPAL DE TEÓFILO OTONI – 1960 A 1961.

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MINISTÉRIO DA INDÚSTRIA, VIAÇÃO E OBRAS PÚBLICAS. Synopse do

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1898.

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ESTRADA DE FERRO BAHIA-MINAS. Belo Horizonte: Globo, 2004. 20 min. Color. Son. DVD.

NOS TEMPOS DA BAHIA-MINAS. Teófilo Otoni. Rádio Teófilo Otoni, 2004. 60 min.

Son. CD.

JORNAIS E REVISTAS:

O MUCURY. Ano III, 1901. n. 124.

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O MUCURY. Ano XXVII. n. 1927.

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O Norte de Minas Gerais. Ano XXXIII, 1960. n.1752.ACAIACA. Belo Horizonte, Junho de 1953.

CONFRONTO. Teófilo Otoni, Junho de 1979.

138

ENTREVISTAS:

BRANDÃO, Ana Violeta. Entrevista concedida no dia 22 de novembro de 2005.

BRUNO, Anabeth. Entrevista concedida no dia 29 de dezembro de 2005.

BRUNO, Laura. Entrevista concedida no dia 29 de dezembro de 2005.

FARINA, Glair. Entrevista concedida no dia 16 de julho de 2006.

FERREIRA, José. Entrevista concedida dia 10 de agosto de 2006.

LOPES, Benedita. Entrevista concedida dia 18 de julho de 2007.

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