BARREIRA Marcos BOTELHO Maurilio O Exercito Nas Ruas

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    O Exrcito nas ruas: da Operao Rio

    ocupao do Complexo do Alemo

    Notas para uma reconstituio da exceo urbana

    Marcos Barreira e Maurilio Lima Botelho

    Em novembro de 2010, o mundo acompanhou as imagens do incio da maior

    ao militar em favelas que a cidade do Rio de Janeiro j viveu. E, alm disso, a mais

    duradoura. Mais de um ano depois dos eventos da Vila Cruzeiro, as tropas do Exrcito

    permanecem no conjunto de favelas do Complexo do Alemo, uma rea que, de acordo

    com os dados do Censo das Favelas (2008/2009), abrange mais de 90 mil habitantes.1 A

    ocupao permanente , at o momento, o acontecimento mais importante da chamada

    guerra contra o trfico de drogas desencadeada pelo governo do estado em parceria

    com as Foras Armadas. No entanto, a populao sabe muito pouco sobre essa guerra

    a despeito do ineditismo e das grandes propores da operao e poucos se

    interessam em saber algo mais: o que importa que a batalha do bem contra o mal

    est sendo travada.

    Antes de descrevermos alguns aspectos das incurses militares no Complexo do

    Alemo, convm retornar um pouco no tempo. Um antecedente que bem poderia figurar

    como o ensaio geral do processo de militarizao da segurana, a Operao Rio,

    realizada em meados da dcada de 1990, merece ser reconstituda, pois nela j

    encontramos muitos dos ingredientes da batalha travada atualmente nas ruas e

    favelas da cidade do Rio. Se retornarmos ainda mais, deparamos com outras

    intervenes militares para conter a onda de reivindicaes sindicais que se seguiu ao

    fracasso dos planos de estabilizao econmica, a exemplo da ocorrida na greve da CSN

    em 1988, ano em que, com a promulgao da Constituio, consolidou-se nossa

    1 O censo realizado pelo Escritrio de Gerenciamento de Projetos do Governo do Estado do Rio de

    Janeiro. Se considerarmos tambm o Complexo da Penha, que inclui a Vila Cruzeiro, os nmeros sobem, conforme o clculo operacional dos comandantes militares, para mais de 200 mil habitantes vivendo nas maiores favelas da regio.

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    transio democrtica militarmente tutelada. Naquele ano, 1.300 soldados do Exrcito

    e policiais invadiram a usina de Volta Redonda (a 127 km da capital fluminense) e

    abriram fogo contra uma multido de trabalhadores, matando trs metalrgicos. O

    episdio pode ser interpretado como uma expresso extempornea do regime militar,

    quando o Exrcito acionado em nome da segurana nacional, e novamente revela o

    trato violento com os movimentos sociais e a reivindicao por direitos civis. Em que

    pesem as mudanas institucionais posteriores, o aparato militar no deixar de

    comparecer em momentos considerados cruciais, mas, a partir da, em uma conjuntura

    distinta, alegadamente para a garantia da segurana pblica.

    Em 1992, houve um novo emprego das foras militares, agora na cidade do Rio

    de Janeiro: ao invs da represso ao movimento sindical, o patrulhamento das ruas era

    para garantir a segurana de um importante encontro internacional, a ECO-92. Na

    ocasio, o centro da cidade e suas reas nobres, ocupadas militarmente pelo Exrcito,

    [viveram] dias de calma e tranqilidade com os miserveis compulsoriamente

    deslocados, naquelas semanas, para as periferias ou abrigos provisrios (Coimbra,

    2001: 142)2.

    Com a Operao Rio, lanada em outubro de 1994, a utilizao das Foras

    Armadas no combate criminalidade atingiu um novo patamar. Por meio de

    denncias contra a instituio policial e da desmoralizao do poder executivo estadual,

    o ambiente para a interveno militar foi criado pela imprensa, que enaltecia os

    momentos de paz obtidos durante a ECO-923. Produziu-se, alm disso, a ideia de que

    a poltica de segurana estadual teria permanecido, por convenincia eleitoral,

    indiferente ao processo de estruturao do trfico de drogas nas favelas. A manchete de

    um grande jornal resume o caso: trfico pe o Rio em situao de emergncia.4 E a

    concluso era bvia: com uma polcia inoperante e um governo permissivo, restava ao

    Exrcito a misso de combater a escalada do novo inimigo da segurana pblica, o

    crime organizado. Foi a partir desse quadro que se consolidou, na cidade do Rio, um

    2 Ceclia Coimbra, Operao Rio: o mito das classes perigosas. Rio de Janeiro, Oficina do Autor, 2001, p.

    142. 3 Durante a preparao da Operao-Rio, que ocorreu no perodo da sucesso presidencial, cogitou-se,

    com assentimento do prefeito Csar Maia, a interveno do Exrcito nas favelas cariocas em um regime de estado de defesa baseado na suspenso de garantias constitucionais.

    4 O Estado de So Paulo, 07 de agosto de 1994.

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    consenso conservador em torno no mais da antiga ideia de subverso poltica, mas da

    violncia urbana, uma categoria, como diz Loc Wacquant, sob a qual cada um pode

    colocar o que lhe convier (2001: 67).5

    A estratgia para a construo do consenso dependia da desvinculao entre o

    debate sobre a segurana pblica e o problema da crise do modelo econmico, o que

    transformava a pobreza em alvo policial. Ao mesmo tempo, a acumulao de fora das

    quadrilhas do trfico, sempre alimentadas pela corrupo policial, tornava-se a

    justificativa ideal para a manuteno dos moradores das favelas em uma situao de

    excluso, fora do regime jurdico legal e submetidos a uma forte discriminao. No Rio

    de Janeiro, o que se convencionou chamar de crime organizado refere-se apenas a um

    mercado varejista de drogas que, mesmo contando com algum nvel de organizao,

    opera de modo essencialmente fragmentado e rudimentar. Mas o crime organizado

    funcional para a manuteno de um eficiente controle social. Nesse aspecto, a histeria

    produzida pelos meios de comunicaes inversamente proporcional ao torpor em

    relao ao crime que se organiza por dentro da polcia e que alimenta as conexes do

    trfico de drogas e de armamentos.6

    Na cidade do Rio e em alguns municpios vizinhos, a violncia atingiu patamares

    bastante elevados no final dos anos 1970, o que coincidiu com o fim do nosso ciclo

    incompleto de modernizao e o incio de uma dinmica de excluso social, cujo trao

    mais visvel foi o processo de favelizao em larga escala. E as grandes periferias

    cresceram desassistidas, tornando-se territrios sob a influncia de grupos armados. Os

    nmeros da violncia continuaram subindo, sem grandes saltos, nos anos seguintes. J

    em 1981, uma reportagem de capa da revista Veja anunciava a Guerra civil no Rio:

    dois mil mortos na Baixada Fluminense e um recorde do comrcio clandestino de

    5 O depoimento, em livro recente, de um importante agente da represso poltica do Regime Militar atesta

    que esse tema foi introduzido no meio universitrio pelos rgos de segurana oficiais durante o Primeiro congresso brasileiro sobre violncia urbana e suas implicaes, realizado na cidade do Rio de Janeiro, em 1980, e em cujos bastidores desenvolvia-se a articulao clandestina da chamada Operao Condor. Cf. Netto, Marcelo e Medeiros, Rogrio. Memrias de uma guerra suja. Rio de Janeiro: Topbooks, 2012. [N. E.: ver tambm a entrevista de L. Wacquant na Sinal de Menos #3].

    6Praticamente nada dessa estrutura mafiosa nos dado a saber. Do mesmo modo, nunca se sabe com exatido quais as relaes entre os representantes do Estado e o crime organizado e os meios de informao profissionais se encarregam de manter as coisas assim; sabemos apenas que as instituies democrticas tornam-se cada vez mais repressivas para combat-lo. Em todo caso, as populaes devem saber o suficiente para se convencer de que, em relao a esse inimigo, tudo mais deve lhes parecer aceitvel ou, no mnimo, mais racional e mais democrtico (Debord, 1992:40).

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    armas.7 Na seqncia, como se buscasse as razes estruturais da violncia, a matria

    seguinte conclua que a causa de tudo demogrfica: dramaticamente, constatava um

    especialista, a reduo da fecundidade demasiado lenta para corrigir, por si s, os

    desnveis que afligem os defensores do planejamento familiar.8

    No incio dos anos 1980, verifica-se uma mudana da relao entre o poder pblico e

    a favela. Isso porque, entre as camadas mdias da sociedade e os formadores de opinio,

    at esta poca ainda predominava a ideia da remoo da pobreza. Quando Leonel

    Brizola foi eleito governador, em 1982, o problema da segurana passou a ser pensado

    de maneira integrada a uma poltica de ampliao dos direitos, com nfase na

    construo de escolas pblicas e em obras de infraestrutura nas favelas, que passaram a

    ser vistas como uma parte da cidade e no como um aglomerado de pobreza a ser

    deslocado para as periferias. Sem se deixar guiar pelas campanhas movidas pela

    imprensa, que exigiam do Estado uma atitude de confronto que ignorava direitos

    elementares das populaes de baixa renda, o governo de Brizola tentou fazer do

    respeito aos direitos humanos uma premissa das polticas de segurana pblica, o que

    provocou resistncia no interior da corporao policial. A perspectiva includente contida

    em tais posies produziu forte rejeio nas camadas mdias, que associavam o discurso

    em favor da universalizao dos direitos expanso do crime violento: nessas

    condies, a simples meno aos direitos de presos e criminosos e/ou a oposio

    explcita ao vigilantismo tradicional conduta brutal das foras policiais diante de

    suspeitos de origem popular , peas importantes do discurso e da atuao brizolista, se

    apresentavam como uma afronta para significativos setores da opinio pblica

    (Machado da Silva, et alli, 2005: 9). Desde ento, o Rio passou a ser visto nacionalmente

    como um caso exemplar de violncia urbana, o que resultou em uma drstica

    mudana de rumo na poltica de segurana. Foi assim que, de 1986 at a derradeira

    derrota eleitoral do trabalhismo, no final da dcada seguinte, estiveram em disputa, em

    um movimento pendular, a proposta criada pelos partidrios de Brizola, que haviam

    cooptado numerosas associaes comunitrias surgidas no final dos anos 1970, e as

    7 O Rio ferido a bala, Veja, 7 de janeiro de 1981, pp. 14-22. 8 O provo aprova: 71 % dos brasileiros querem famlias menores, Veja, 7 de janeiro de 1981, pp. 23-26.

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    promessas de acabar com a violncia atravs dos mtodos tradicionais de represso.9

    A partir de 1994, a chamada guerra no Rio est oficialmente deflagrada.10 O

    Exrcito o ltimo recurso para restabelecer a ordem lia-se nos jornais, depois da

    presso para que o governo estadual aceitasse uma interveno no declarada.

    Gradualmente, as tropas ocuparam vrios locais da cidade e deram incio pacificao

    de zonas conflagradas. O objetivo declarado era asfixiar economicamente os pontos de

    venda de drogas por meio do bloqueio de suas vias de acesso. Seguiu-se a invaso de

    favelas estratgicas, todas situadas em bairros considerados nobres, nos quais a

    sensao de segurana artificialmente produzida foi usada como mercadoria poltica. A

    Operao Rio foi apenas um experimento, mas todo o repertrio miditico atual j podia

    ser encontrado na cobertura da poca, quase como parte integrante da operao, pois se

    tratava de construir a atmosfera adequada e as justificativas mais imediatas para o cerco

    e ocupao dos morros, no que foi chamado de o dia D para a ao, a chance do

    carioca reassumir o Rio.

    A Operao Rio limitou sua ao a incurses violentas nos territrios de pobreza.

    Ocorreu com a brutalidade habitual e, por conseguinte, foi logo cingida de denncias.

    Em sua segunda fase, j no incio de 1995, por um convnio entre o Exrcito e o governo

    estadual recm-eleito, firmou-se um novo acordo segundo o qual o Exrcito participaria

    apenas da Operao Rubi, patrulhando as grandes vias e as rotas de fuga. Somente em

    casos especiais as Foras Armadas seriam convocadas a atuar em incurses nos morros

    e, segundo os termos do acordo, nos demais locais suspeitos. A mudana estratgica

    ocorreu em funo das denncias de ineficincia da etapa anterior da operao e,

    sobretudo, por causa das constantes violaes dos direitos humanos, que no raro

    envolviam prticas de tortura e prises clandestinas. Os casos mais comuns de maus

    9 Moreira Franco, que governou o estado do Rio de Janeiro entre 1987-91, se elegeu com a promessa

    demaggica de acabar com a violncia em 6 meses. Inutilmente. Foi sucedido por Brizola (e Nilo Batista, seu vice), que continuou a denunciar, em guerra aberta com as principais empresas de mdia, a conivncia das autoridades com as execues de jovens nas favelas e periferias. A eleio de Marcello Alencar, um quadro egresso do brizolismo e com uma trajetria marcada pela defesa de presos polticos durante a ditadura militar, inverteu novamente a perspectiva do tratamento da segurana. Marcello Alencar cedeu s presses da opinio pblica e adotou medidas extremamente violentas contra a populao pobre do Rio: durante o seu governo, iniciado em 1995, registrou-se um aumento significativo dos homicdios cometidos por policiais, uma prtica estimulada pela premiao por bravura. O ciclo se fecha com o governo de Anthony Garotinho, ltimo governador vinculado ao trabalhismo, mas que j coloca em questo a atitude de Brizola, considerada por seu secretrio de segurana, Luiz Eduardo Soares, um absentesmo de esquerda.

    10 Jornal do Brasil, 01 de novembro de 1994.

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    tratos infligidos a moradores das favelas ocupadas eram conforme os exemplos

    citados nos Inquritos Policais-Militares (IPMs) algumas das antigas especialidades

    dos agentes de segurana, ou seja, choque eltrico e afogamento, alm de prticas que,

    at onde se sabe, eram menos usuais do que so hoje, como o furto de objetos em

    residncias11. Depois da Operao Rio, os nmeros da violncia prosseguiram sem

    grandes alteraes e s Foras Armadas coube apenas uma discreta sada de cena para

    evitar desgaste diante da opinio pblica. Ao protagonizarem essa violenta encenao

    de segurana, as foras militares deixaram um legado: de acordo com os registros de

    ocorrncia da Polcia Civil, o Rio registrou um crescimento atpico de mais de 20% do

    nmero de homicdios dolosos entre novembro e dezembro de 1994.12

    O aumento da violncia no foi o nico resultado das operaes do Exrcito.

    Temos dois elementos novos a respeito da participao das Foras Armadas no quadro

    da segurana pblica do Rio depois de 1995. Os primeiros so as operaes com

    objetivos limitados: no perodo compreendido entre 1995 e 2004 houve vrias aes do

    Exrcito, mas nenhuma se revestiu do vis ideolgico da Operao Rio. O que estava em

    questo em tais aes eram problemas pontuais.

    Em junho de 1999, as Foras Armadas contriburam para a segurana da Cimeira

    do Rio, encontro dos governos da Amrica Latina e Unio Europia. Em novembro de

    2002, o Exrcito foi convocado novamente pelo governo estadual, dessa vez para

    garantir a segurana da Regio Metropolitana durante as eleies daquele ano. Estava

    mais em questo a falncia do aparato policial do que a ideologia da segurana militar,

    desvalorizada aps o fracasso verificado na dcada anterior entretanto, a prpria

    polcia que comea a sofrer, a partir da, um clere processo de militarizao, tanto no

    que diz respeito s formas de ao quanto aos equipamentos utilizados.13

    11 Ceclia Coimbra, Operao Rio, cit., p. 231. 12 [...] vrios dos objetivos da Operao Rio I fracassaram: as favelas no foram desarmadas, o trfico de

    drogas continuou em vigor, o ndice de criminalidade permaneceu alto e as favelas no foram incorporadas ao resto da cidade no sentido de seus habitantes poderem usufruir do direito de cidadania (Zaverucha, 2000: 196). significativo que as operaes de ocupao da Vila Cruzeiro e da Rocinha, ao longo de 2011, tenham sido denominadas pelas Foras Armadas Operao Rio III e IV, respectivamente, o que no foi divulgado pela imprensa, dado o fracasso das operaes da dcada de 1990.

    13De certo modo, o que ocorre uma remilitarizao das polcias, pois a segurana pblica civil era responsabilidade das foras militares durante a ditadura (sobre isso, ver Clvis Brigago, A militarizao da sociedade, Rio de Janeiro, Zahar, 1985). Algumas medidas tomadas durante a dcada de 1980, principalmente no governo Brizola, tentaram desmilitarizar a polcia, mas houve uma reviravolta nas dcadas posteriores.

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    Em junho de 2002, a sede da prefeitura municipal foi alvejada por mais de

    duzentos tiros e as ameaas segurana continuaram at culminar, em 24 de fevereiro

    de 2003, no que a imprensa carioca denominou segunda-feira sem lei, uma srie de

    ataques atribudos a traficantes. Durante cinco dias o pnico tomou conta da cidade, o

    comrcio permaneceu fechado e vrios veculos foram incendiados em diferentes

    bairros. Em resposta, o governo estadual desencadeou a Operao Guanabara, que

    novamente recorreu ao Exrcito para ocupar reas crticas e suprir a falta de efetivos

    policiais. Em novembro de 2004, as tropas voltaram s ruas para uma misso de

    policiamento provisrio, durante a Cpula do Grupo do Rio, que recebeu chefes de

    Estado de toda a Amrica Latina. Ao contrrio de 1992, a ao amparou-se em

    tentativas de respaldo legal; um decreto presidencial, de 2001, conferia poder de polcia

    s Foras Armadas e outro, de 2004, descaracterizava a interveno federal nos

    governos estaduais. Mas os fundamentos jurdicos dessas operaes eram frgeis, pois

    entravam em conflito com princpios constitucionais que no previam o uso de foras

    militares na segurana pblica civil.

    O segundo elemento que devemos considerar um efeito inesperado dessa

    sequncia de operaes que, a julgar pelos eventos subsequentes, parece ter resultado

    no envolvimento das quadrilhas responsveis pelo trfico de armas e drogas com

    efetivos das Foras Armadas. So numerosos os casos de desvio de material blico nos

    quartis com a participao direta ou indireta de militares.14 O padro mais comum do

    desvio, que no exclui aes externas instituio militar, a cooptao de soldados

    pelas quadrilhas que operam a venda de drogas nas favelas prximas aos batalhes. So

    igualmente numerosos os relatos de casos envolvendo militares ou ex-militares que

    oferecem servio de treinamento s quadrilhas em troca de uma remunerao muito

    14 O jornal O Globo noticiou: Em 2009, o Exrcito recuperou um fuzil que havia sido roubado no 26

    Batalho de Infantaria Paraquedista, unidade considerada de elite, durante uma operao nos morros da Pedreira e da Lagartixa, em Costa Barros, no subrbio do Rio. Na poca, todos os cerca de 700 homens lotados no batalho, localizado na Vila Militar, ficaram presos at que a arma reaparecesse e fossem identificados os responsveis pelo roubo. Cf. Desvio de armas em quartis um desafio para as Foras Armadas, 12 de dezembro de 2010. Outra reportagem do mesmo jornal, essa de 29 de junho de 2011, relata que Pelo menos dois mil projteis de armamento de grosso calibre desapareceram no ltimo dia 22, vspera do feriado de Corpus Christi, do Batalho Escola de Comunicaes, na Avenida Duque de Caxias, na Vila Militar. Alguns soldados da unidade esto, desde a semana passada, aquartelados por causa do furto do material.

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    superior ao soldo militar.15 Somente entre 2004 e 2008 ocorreram mais de cem casos de

    desvios de armamentos dos quartis do Rio, o que corresponde a algo em torno de 50%

    dos casos registrados no Brasil. Em mais um caso rotineiro, em meados de 2004, fuzis

    roubados em um quartel do Exrcito foram encontrados na favela de Antares, em Santa

    Cruz, bairro da zona oeste do Rio. O resultado final da operao foi um novo escndalo,

    noticiado pela imprensa como uma negociao dos comandantes militares com os

    chefes locais do trfico. Pouco depois, outro desvio de armas, no quartel de So

    Cristvo, bairro da rea central, teve como consequncia uma grande operao cujo

    desfecho foi mais uma vez envolvido em denncias de negociao com as lideranas do

    trfico.

    O pice de todo esse processo, no entanto, s ocorreu em 14 de junho de 2008,16

    quando a imagem do Exrcito se vinculou de modo inapagvel lgica da violncia:

    uma ao com onze militares resultou na priso irregular de trs moradores do morro

    da Providncia (ento dominada por uma faco do trfico) que, em seguida, foram

    levados pelos militares at o morro vizinho (dominado por uma faco rival) e

    executados pelos traficantes locais. Com a repercusso nacional do episdio, evidenciou-

    se como a instituio militar, a exemplo de outras instituies estatais, havia se deixado

    permear pela lgica da faccionalizao que divide a maior parte das favelas cariocas.

    Constatou-se, alm disso, que a presena militar na Providncia para a fiscalizao de

    obras de um projeto federal era completamente ilegal.

    Outro caso de grandes propores j havia ocorrido dois anos antes, durante uma

    srie de ocupaes de favelas (treze ao todo) prximas rea central do Rio incluindo

    o prprio morro da Providncia. Mais uma vez, os militares saram s ruas para

    15 De acordo com o jornal O Globo, de 03/02/2002, Ex-militares do Exrcito treinam traficantes no Rio:

    cursos dados por cabos e soldados da reserva custam at R$ 8 mil por ms. Igualmente, o Jornal do Brasil noticiou, em 04/04/2002, que Em uniformes camuflados, armados de fuzis, metralhadoras e granadas, 32 ex-militares, oriundos da Brigada Paraquedista do Exrcito estariam cruzando as ruas do Rio em misses tticas encomendadas por faces criminosas, em guerra por pontos de venda de drogas. Apelidado de bonde verde, o grupo no guardaria fidelidade a qualquer faco, atuando sempre como mercenrio.

    16 Considere-se que, ainda em 27 de junho de 2007, nos preparativos da cidade do Rio para a realizao dos jogos Pan-Americanos, uma operao no Complexo do Alemo conhecida como Chacina do Pan, envolvendo policiais militares e a nova Fora Nacional de Segurana, resultou em 19 pessoas mortas e 62 feridos por armas de fogo. Criada em 2004, a Fora Nacional de Segurana outra expresso da mlitarizao policial. Como tropa federal subordinada ao Ministrio da Justia, operando atravs de convnios com governos estaduais para intervir em conflitos urbanos, a FNS tambm, para muitos juristas, um exemplo flagrante de inconstitucionalidade.

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    recuperar armas roubadas. E, mais uma vez, as operaes no possuam respaldo

    jurdico, pois nenhuma medida necessria para a utilizao das Foras Armadas na

    chamada garantia da lei e da ordem foi tomada pelo governo. A Providncia

    permaneceu dez dias sob interveno do Exrcito e, como de costume, os procedimentos

    legais mais elementares foram ignorados: nenhum mandado de busca e apreenso para

    vasculhar casas e estabelecimentos comerciais, agresses e danos materiais,

    cerceamento do trabalho da imprensa etc. Surgiram at denncias de simulaes de

    conflitos armados. Outros relatos de moradores, descritos em A Guerra da Providncia

    estudo que analisa a referida ocupao do Exrcito, em maro de 200617 , apontam

    aes ainda mais violentas e arbitrrias que as usualmente praticadas pela Polcia

    Militar. Uma moradora da Mangueira, favela ocupada na mesma poca, relata: Hoje, o

    morro da Mangueira parou. Fomos impedidos de sair de casa, ir ao trabalho, estudar, ir

    e vir. Ficamos sob a mira de um tanque de guerra direcionado para nossas cabeas18.

    Para os autores do estudo, todos os relatos e as evidncias confirmam que as foras

    militares entraram na favela da Providncia atirando a esmo, aparentemente com o fim

    de intimidar os criminosos ou, talvez, a prpria populao civil. Para ocultar esse fato, a

    verso oficial se referiu sempre a troca de tiros com o narcotrfico19. E adiante: os

    moradores afirmam peremptoriamente que no houve confronto pois os

    narcotraficantes fugiram no primeiro momento. As autoridades se inclinam a

    corroborar essa verso a partir das marcas de tiros e cpsulas recolhidas20. Das cinco

    vtimas da operao, uma delas letal, nenhuma foi formalmente acusada e nenhuma

    priso foi efetuada. No mesmo relatrio, h meno a casos de perda de postos de

    trabalho em funo da ausncia obrigada pelo toque de recolher.21

    Tal como a ao de 2006, a megaoperao de 2010, na Vila Cruzeiro, prxima ao

    complexo de favelas do Alemo, no estava prevista por nenhum plano de segurana.

    Foi uma situao ocasional, motivada pela obrigao de responder aos ataques do

    crime organizado ocorridos em toda a cidade nos dias anteriores, mas, sobretudo,

    17 Jos Trajano Sento-S et al., A guerra da Providncia: uma anlise da ocupao pelo Exrcito da favela

    da Providncia no Rio de Janeiro em maro de 2006, Laboratrio de Anlise da Violncia, Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006. Disponvel em: .

    18 Ibidem, p. 11 19 Ibidem, p. 23. 20 Idem. 21 Ibidem, p. 24.

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    derivava de uma redistribuio territorial das atividades do trfico que j vinha

    ocorrendo desde o incio da implementao das Unidades de Polcia Pacificadora

    (UPPs) em reas estratgicas da cidade e do avano das reas sob o controle de grupos

    milicianos. Entre 2009 e 2010, o nmero de integrantes da faco que controlava a

    venda de drogas local triplicou nos complexos do Alemo e da Penha. Muitos chefes e

    gerentes do trfico em pequenas favelas da cidade concentraram-se ali, juntamente com

    seus soldados, depois de terem perdido o controle de seus pontos de venda. A Vila

    Cruzeiro e suas adjacncias haviam se tornado basties da principal faco criminosa do

    trfico. Essa concentrao imprevista das atividades de distribuio de drogas e

    armamentos para outras favelas tornou inevitvel a chamada operao de retomada

    da regio. Por isso mesmo, no estava prevista a instalao de UPPs nas favelas que

    compem os Complexos do Alemo e da Penha. Para realizar uma grande interveno

    nesse complexo seria necessrio mobilizar um contingente igual ou maior ao que atuava

    nas favelas onde j funcionavam as UPPs. Desse modo, recorreu-se ao Exrcito,

    novamente em uma situao jurdica nebulosa, isto , margem da lei, no apenas para

    o suporte da operao de pacificao, mas igualmente para empreender uma ocupao

    capaz de realizar de modo duradouro a administrao repressiva desse grande territrio

    para o qual a Polcia Militar no dispunha de efetivo suficiente.

    A interveno militar permanente no Complexo do Alemo o resultado de um

    tipo de poltica de segurana preocupada com a ocupao de reas estratgicas com alto

    potencial de valorizao e com o deslocamento dos conflitos armados para as regies

    perifricas com menor visibilidade. O que se assistiu pela televiso em novembro de

    2010 foi a repetio, em escala ampliada e, por assim dizer, mais espetacular, dos

    mesmos procedimentos verificados na guerra da Providncia. Durante a retomada

    da Vila Cruzeiro, foram abundantes os arrombamentos de residncias e saques

    praticados por policiais, alm do desvio de armas e dinheiro apreendido e suspeitas de

    acordos de fuga.22

    Se durante a operao as condutas ilegais foram a regra, especialmente no caso

    da Polcia Militar, as situaes de abuso de autoridade e violncia contra moradores

    praticadas pelas Foras Armadas se multiplicaram ao longo de 2011. O Complexo do

    22 Em janeiro de 2011, 30 militares do Exrcito e 23 policias militares foram afastados por atos ilcitos

    praticados, diante das cmeras de TV, na operao de novembro.

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    Alemo vive atualmente uma situao no declarada de estado de stio. Para

    caracteriz-la basta lembrar que a prtica dos mandados de busca coletivos continua

    vigorando e com ela as aes em cumprimento da lei e da ordem que englobam e

    criminalizam favelas inteiras.23 certo que o Brasil no construiu um Estado de

    direito inteiramente desenvolvido e, como lembra Wacquant, as duas dcadas de

    ditadura militar continuam a pesar bastante tanto sobre o funcionamento do Estado

    como sobre as mentalidades coletivas.24 Por isso, acumulam-se as situaes em que a

    alegao do estado de necessidade legitima atos ilcitos praticados por agentes de

    segurana do Estado. A rigor, a inexistncia da regra plena muitas vezes torna suprflua

    a exceo entendida como suspenso provisria dos direitos. Os moradores, que

    sofriam com a violncia que sempre caracterizou o trfico e as invases policiais, que

    incluem aes sistemticas de extermnio, continuam privados de direitos bsicos:

    prises abusivas por desacato e imposio de restries so comuns, mas agora sob o

    comando arbitrrio do Exrcito. O fenecimento das garantias individuais consolida-se,

    neste laboratrio de controle social, com o toque de recolher anunciado pelos alto

    falantes em aes militares de rotina: o Exrcito est realizando um mandado judicial

    em cumprimento da lei. Fechem suas portas e janelas e aguardem orientao. Quando

    solicitado, abra a porta e aja de maneira educada. Obedeam todas as instrues.

    Qualquer ao contrria ser considerada como ato hostil e receber a resposta

    necessria.25

    Na ocasio da retomada do Complexo do Alemo, os meios de informao trataram

    de infundir na populao o sentimento de impotncia capaz de produzir o estado de

    esprito adequado s intervenes discricionrias e ao projeto de ocupao prolongada

    de favelas, pois quanto maior a sensao de insegurana, maior a chance de o aparelho

    estatal impor seu controle sem contestao. Aqui, os clichs habituais da

    23 A Operao Rio I tambm utilizou os mandados genricos de busca e apreenso, mas, naquele

    momento, talvez em virtude da lembrana da Constituinte, a imprensa denunciou os abusos: No final de 1994, o Brasil ressuscitou as lettres de cachet, que permitiram aos oficiais da polcia francesa, no sculo XVIII, prender, em nome do rei, quem bem entendessem (Jorge Zaverucha, Frgil democracia, cit., p. 185). A comparao ressalta o carter totalmente ilegal da prtica: todo mandado deve ser despachado contra algum em particular, pois no se trata de uma carta-branca.

    24 Loc Wacquant, As prises da misria, cit., p. 10. 25 O Complexo do Alemo em Estado de Stio, Veja, 26 de outubro de 2010.

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    cobertura jornalstica, referidos guerra civil no Rio, reduziram-se a isto: a maior

    parte dessa escria conseguiu escapulir, porque, naquele momento, no havia efetivo

    suficiente (...) mas eles no perdem por esperar.26 Apenas as mdias alternativas com

    insero nas favelas relatavam casos em que policiais atuavam como saqueadores

    durante a operao, praticando a chamada garimpagem. Pouco a pouco, comeou a

    aparecer tambm no interior do monoplio empresarial da mdia a descrio dos fatos

    inicialmente omitidos, como o roubo de bens de moradores durante as revistas em suas

    casas. Muitos acreditam que tal omisso era indispensvel para produzir a adeso da

    populao operao militar. Mas seria errneo condicionar a possibilidade das aes

    repressivas ignorncia do pblico em relao aos abusos cometidos pelas autoridades.

    Fartamente conhecidos, tais abusos foram tolerados e at mesmo exigidos, durante a

    operao da Vila Cruzeiro, por uma parcela significativa da populao. Afinal, quem

    consentiu com prticas de tortura e execuo sumria nas telas do cinema, agora clama

    sem qualquer acanhamento por aes reais de extermnio nas favelas.27 Esse quadro nos

    coloca diante de uma situao original: quando os ndices de criminalidade violenta

    explodiram na Regio Metropolitana do Rio de Janeiro, o pas vivia o fim do milagre

    econmico que ajudou a legitimar a represso poltica, e o incio das lutas pelas

    liberdades democrticas e pelos direitos sociais, todos consagrados, como letra

    morta, na Constituio de 1988. Desde ento, o fato dos setores militares conservadores

    terem perdido a capacidade de atuar como poder tutelar em momentos de crise poltica

    contrasta com a ampliao da presena das tropas nas ruas. Com o esgotamento do

    nosso ciclo de desenvolvimento, o que restou no foi uma sociedade com pretenses de

    incluso e participao popular, mas uma democracia feita para minorias com poder de

    consumo, o que exige o controle de uma populao cuja perspectiva de absoro pelo

    sistema produtivo cada vez menor. No contexto da Operao Rio I, j era possvel

    observar que a incapacidade do Estado de exercer o controle, ainda que mnimo, da

    26 Veja, 1o dez. 2010, p. 137. 27 A violncia tem se generalizado nas diferentes camadas da sociedade: o uniforme preto e a faca na

    caveira no so smbolos que proliferam apenas no universo de alguma subcultura juvenil e extremista, como a cruz gamada ou as runas da SS na Alemanha unificada, e sim os produtos da cultura de massa voltados para o pblico em geral e exibidos at mesmo na programao matinal da TV. Na cobertura jornalstica, a estetizao dos homens de preto que figuraram nas capas de jornais e revistas servia unicamente para garantir a legitimidade de uma misso auto-atribuida pelos policiais: entrar na favela e deixar corpos no cho.

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    situao social (...) encontra no recurso da utilizao das Foras Armadas no combate ao

    narcotrfico dos morros cariocas, sua definitiva e cabal demonstrao28 Dessa forma, o

    aumento dos gastos ligados ao aparato policial-militar, que fortalecem a dimenso

    punitiva do Estado, torna-se uma compensao negativa para a ausncia de polticas

    econmicas e sociais inclusivas.

    Mais de 30 anos separam a interveno militar na greve da CSN e a ocupao do

    Complexo do Alemo. Embora as confusas intersees entre as esferas civil e militar

    sejam comuns aos dois momentos, o horizonte histrico diferente: em 1988, tratava-se

    da represso s organizaes poltico-sindicais que lutavam, no contexto do processo de

    democratizao, por melhores condies de trabalho e pela universalizao dos direitos.

    A funcionalidade econmica desses trabalhadores despertava o desejo de

    reconhecimento jurdico e de integrao social, at ento negada pela exceo

    construda militarmente. No entanto, tais expectativas no se concretizaram e os

    aspectos democrticos do sistema jurdico e poltico comearam a dar sinais de

    esgotamento, antes de se consolidarem. Em 2010, o recurso ocupao militar criou

    mais uma situao de violncia externa ao ordenamento jurdico, que incide sobre os

    habitantes das favelas que deixaram de ser funcionais ao patamar econmico atingido

    pelo espetculo do crescimento.29 Para a maior parte deles, que permanece, a despeito

    das miragens econmicas da ltima dcada, muito distante de algum tipo de integrao,

    a pobreza segue como o problema fundamental.30 E o avano do processo de favelizao

    na cidade do Rio o desmentido mais flagrante da retrica poltica sobre o crescimento

    econmico. Assim, as polticas pblicas so reduzidas a um gerenciamento de

    emergncias e o contingente populacional sobrante torna-se um simples problema

    28 Oliveira, Francisco de. Quem tem medo da governabilidade? Novos Estudos. So Paulo: Cebrap, n.o 41,

    maro de 1995. 29 Se a Ditadura constituiu um perodo de exceo que aboliu, em nome da defesa da ordem, uma srie de

    direitos individuais e coletivos, o perodo da transio democrtica tratou de manter intacta a estrutura social. Da a situao paradoxal: na nova ordem democrtica, os segmentos marginalizados da populao continuam merc do mesmo poder punitivo que atingiu os dissidentes polticos e as organizaes sindicais. S que agora, para manter a base da pirmide social em seu lugar, no se faz necessrio o recurso suspenso das liberdades.

    30 Especialmente entre os jovens elevado o nmero dos que permanecem sem escolaridade bsica e sem acesso ao mercado de trabalho. Para jovens de favelas com UPP, a pobreza o maior inimigo, diz uma reportagem, a partir dos dados colhidos pelo Ibope. Para 24 % dos 700 jovens moradores de favelas ocupadas a pobreza aparece como o problema principal, na frente da violncia e do desemprego. A mesma pesquisa constatou que 26% dos entrevistados no estudam nem trabalham. Disponvel em: http://oglobo.globo.com/rio/para-jovens-de-favelas-com-upp-pobreza-o-maior-inimigo-3298717

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    demogrfico. O prprio governador do estado do Rio de Janeiro, Sergio Cabral, deixaria

    isso claro, em outubro de 2007, com um discurso que reciclava velhas fantasias

    malthusianas sob um verniz progressista e defendia o aborto como mtodo para se

    reduzir a fbrica de marginais nas favelas cariocas.31

    Essa escalada de intervenes militares na segurana pblica, na vida civil

    urbana, demonstra, juntamente com a adeso de amplos segmentos da populao

    violncia, um estreitamento do horizonte de sociabilidade: a camada marginalizada

    dessa populao passa a ser controlada violentamente pelo uso da logstica militar mais

    avanada e, no limite, pode ser considerada eliminvel.

    As intervenes do Exrcito so a expresso mais clara da militarizao social em

    curso, que se prolonga no controle policial de parte do espao urbano carioca e no

    controle informal paramilitar. O processo de militarizao, transitando entre o oficial

    e o ilegal, um laboratrio de controle social que substitui as pretenses universalistas

    da mediao jurdico-poltica, ela mesma ambivalente, pela legitimao do trato armado

    com a parte indesejvel da sociedade civil.

    ** Bibliografia

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    31 Sou favorvel ao direito da mulher de interromper uma gravidez indesejada. Sou cristo, catlico, mas

    que viso essa? Esses atrasos so muito graves. No vejo a classe poltica discutir isso. Fico muito aflito. Tem tudo a ver com violncia. Voc pega o nmero de filhos por me na Lagoa Rodrigo de Freitas, Tijuca, Mier e Copacabana, padro sueco. Agora, pega na Rocinha. padro Zmbia, Gabo. Isso uma fbrica de produzir marginal. Estado no d conta. No tem oferta da rede pblica para que essas meninas possam interromper a gravidez. Isso uma maluquice s. (Cabral defende aborto contra violncia no Rio de Janeiro, G1, 24 de outubro de 2007).

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