BELMONTE, Alexandre. Canibalismo à Francesa - Revista de História

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 Canibalismo à francesa Além de presenciar episódio de antropofagia no Novo Mundo, o calvinista Jean de Léry viveu maus momentos na França cristã do século XVI Alexandre Belmonte 3/5/2013 Imagem que ilustra livro de Jean de Léry / FBN  Acusad o de herege, o ex emp lar calvinista Jean de Léry (1 5341611 ) descrev eu os tupinamb ás com riqueza de detalhes, do parto ao funeral. O relato virou um verdadeiro bestseller, publicado na Europa, no século dos Descobrimentos. N a edição de maio da Revista de História, a aventura antropofágica vivida pelo homem de letras foi relatada pelo pesquisador Alexandre Belmonte, em Saudades do Novo Mundo. Abaixo, o professor visitante da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, conta mais uma peripécia  pres enciada por Léry. Desta vez, o episódio se  passou n a França cristã. Depois de voltar do Brasil e antes de publicar seu relato História de uma viagem feita à terra do Brasil , Jean de Léry teve mais uma experiência capaz de impactar seus conceitos sobre “selvagens” e “civilizados”. Corria o ano de 1573. A cidade protestante de Sancerre, no centro da França, encontravase sitiada pelos católicos. A cidadela perdera sua identidade com a destruição de suas torres e de seu relógio, e com a imposição da fé católica. A destruição do relógio retirou Sancerre de seu tempo: passaram a confundirse, ali, velhas e recentes histórias de intolerância religiosa, fome e carestia, tabus e violações. Em março iniciouse a escassez de comida. Um cavalo morto a tiro de canhão foi comido pela população. “Ele foi esfolado, cortado, arrebatado e comido pelos mais pobres vinhateiros e trabalhadores, os quais relatavam a qualquer um não terem nunca comido carne melhor”. Mesmo acuada pela fome, a população ainda atentava ao prazer gastronômico. Léry é o narrador desses episódios, e dá atenção ao gosto e ao tempero. Em maio começaram a matar cavalos, a vendêlos e comêlos. Entre julho e agosto, disparou o preço da carne de cavalo no famélico comércio de Sancerre. Cães e gatos foram transformados em iguarias, estes últimos condimentados e preparados como se fossem coelhos. Quando não restavam mais nem cães nem gatos, recorriase aos famintos ratos. Passouse a comer quase de tudo na Sancerre sitiada: pergaminhos, couro de cintos, sapatos. Até mesmo excrementos. E eis que, em fins de julho, a desesperada gastronomia dá espaço ao grotesco. Pratos e tigelas sobre a mesa, a família preparase para a ceia. Mas Symon Potard, sua mulher Eugene e uma

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  • Canibalismo francesaAlm de presenciar episdio de antropofagia no Novo Mundo, o calvinistaJean de Lry viveu maus momentos na Frana crist do sculo XVI

    Alexandre Belmonte3/5/2013

    Imagem que ilustra livro de Jean de Lry /FBN

    Acusado de herege, o exemplar calvinista Jeande Lry (15341611) descreveu os tupinambscom riqueza de detalhes, do parto ao funeral. Orelato virou um verdadeiro bestseller, publicadona Europa, no sculo dos Descobrimentos. Naedio de maio da Revista de Histria, aaventura antropofgica vivida pelo homem deletras foi relatada pelo pesquisador AlexandreBelmonte, em Saudades do Novo Mundo. Abaixo,o professor visitante da Universidade Estadual doRio de Janeiro, conta mais uma peripciapresenciada por Lry. Desta vez, o episdio sepassou na Frana crist.

    Depois de voltar do Brasil e antes de publicar seurelato Histria de uma viagem feita terra doBrasil, Jean de Lry teve mais uma experinciacapaz de impactar seus conceitos sobreselvagens e civilizados. Corria o ano de1573. A cidade protestante de Sancerre, nocentro da Frana, encontravase sitiada peloscatlicos. A cidadela perdera sua identidade coma destruio de suas torres e de seu relgio, ecom a imposio da f catlica. A destruio dorelgio retirou Sancerre de seu tempo: passarama confundirse, ali, velhas e recentes histrias deintolerncia religiosa, fome e carestia, tabus eviolaes. Em maro iniciouse a escassez decomida.

    Um cavalo morto a tiro de canho foi comido pelapopulao. Ele foi esfolado, cortado, arrebatadoe comido pelos mais pobres vinhateiros e

    trabalhadores, os quais relatavam a qualquer um no terem nunca comido carne melhor. Mesmoacuada pela fome, a populao ainda atentava ao prazer gastronmico. Lry o narrador dessesepisdios, e d ateno ao gosto e ao tempero. Em maio comearam a matar cavalos, a vendlos e comlos. Entre julho e agosto, disparou o preo da carne de cavalo no famlico comrciode Sancerre. Ces e gatos foram transformados em iguarias, estes ltimos condimentados epreparados como se fossem coelhos. Quando no restavam mais nem ces nem gatos, recorriaseaos famintos ratos. Passouse a comer quase de tudo na Sancerre sitiada: pergaminhos, couro decintos, sapatos. At mesmo excrementos.

    E eis que, em fins de julho, a desesperada gastronomia d espao ao grotesco. Pratos e tigelassobre a mesa, a famlia preparase para a ceia. Mas Symon Potard, sua mulher Eugene e uma

  • velha chamada Philippes de la Fuille so surpreendidos no banquete: o prato principal o corpoda filha dos Potard, uma menina de aproximadamente 3 anos, morta de fome. Seu corpofranzino foi cuidadosamente cortado nas articulaes, salgado, condimentado e cozido. Napanela podem ser vistas as pernas da menina.

    O ambiente cheira a vinagre e condimentos. A famlia e a velha de la Fuille come as orelhas, alngua, a cabea, o crebro e o fgado da criana. Entre os que testemunham o evento est Jeande Lry, deparandose com o canibalismo pela segunda vez. claro que se lembra dostupinambs. A essa altura, considera o ato dos nativos do Novo Mundo uma prticaperfeitamente aceitvel, pois j compreende seu sentido dentro da cosmoviso e das prticas deguerra tupinambs. A antropofagia da famlia francesa, entretanto, deixa Lry aterrorizado, aoconstatar que o luto pela menina morta de fome ironicamente acompanhado pelo banquete deseu prprio cadver. Situao absurda, perturbadora. Em primeiro lugar, porque a famlia crist, e no selvagem. Em segundo lugar, porque o ato extremo consequncia, em ltimainstncia, do cerco provocado pelos catlicos aos protestantes.

    Alexandre Belmonte professor visitante da Universidade Estadual do Rio de Janeiro e autor dadissertao A construo do outro e do si mesmo: vnculos de identidade e alteridade no relatode Jean de Lry, UERJ, 2006.