COMENSALIDADE E CANIBALISMO na Amazônia - Carlos Fausto

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    Nosso corpo no outra coisa que um edifcio de almas mltiplas.Leffet, cest moi (F. Nietzsche, Alm do Bem e do Mal ).

    Este texto um ensaio no sentido estrito do termo: uma prosa que versasobre um tema especfico, sem esgot-lo, reunindo idias e dados deoutros autores, de forma a ressaltar certas articulaes ainda pouco explo-radas. De maneira geral, ele trata da caa e da guerra na Amaznia e, emparticular, focaliza a relao entre comensalidade e predao. Meu intui-to aproximar os estudos sobre predao guerreira daqueles sobre a fa-bricao do parentesco, tratando a predao e a comensalidade como for-mas distintas, mas dinamicamente articuladas, de produo de pessoas eda socialidade na Amaznia.

    O ensaio tambm uma tentativa de complementar idias que res-taram inexploradas em meu livro sobre os Parakan, no qual procurei de-senvolver um modelo da guerra e do xamanismo indgenas que articulas-se a predao no exterior produo no interior. Esse modelo focaliza so-bretudo a produo ritual do interior o rito enquanto momento da pre-dao familiarizante , deixando em segundo plano a produo cotidia-na do interior, objeto privilegiado dos estudos da escola americanista bri-tnica1. Detive-me, sobretudo, no momento dinmico em que exteriori-dade e interioridade se definem como plos de um mesmo movimento. Noenfrentei, porm, a questo de como pessoas apropriadas no exterior soefetivamente produzidas enquanto parentes. Em particular, no articulei,para usar o vocabulrio marxiano, o consumo produtivo produo con-sumptiva. No eplogo do livro, limitei-me a distinguir as atividades guer-reiras e cinegticas como duas formas de consumo: a primeira visando produo ontolgica de pessoas; a segunda, ao crescimento vegetativo doindivduo (Fausto 2001:538). A distino entre canibalismo e alimentaoaparecia, assim, como equivalente quela entre um consumo voltado para

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    COMENSALIDADE E CANIBALISMONA AMAZNIA*

    Carlos Fausto

    MANA 8(2):7-44, 2002

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    o desenvolvimento das capacidades subjetivas da pessoa e outro voltadopara a produo do corpo fsico.

    Relendo hoje essa formulao, identifico nela duas insuficincias: deum lado, ela no explica como as duas formas de consumo se articulam;de outro, ela parece pressupor um dualismo simples e global entre corpoe alma. O objetivo deste texto , justamente, superar essas insuficincias.Para tanto, vou tomar a alimentao menos como uma atividade que visa produo de um corpo fsico indeterminado, e mais como um dispositivode produo de corpos aparentados. Foi justamente esse passo que meescapou na formulao do livro, embora vrios autores j tivessem cha-

    mado a ateno para a importncia da comensalidade como dispositivoidentificatrio. Este fenmeno tem sido elaborado pelos etnlogos amazo-nistas desde os estudos j do projeto Harvard-Brasil Central e, no inciodos anos 90, foi refinado pelos trabalhos de Gow (1991) e Vilaa (1992).Ora, se a idia de fabricao do parentesco converge, na Amaznia, parao universo da cozinha e da partilha alimentar, nossa questo passa a sero encadeamento de dois processos de transformao: um que resulta docomer algum (o canibalismo), outro que decorre de se comer como e comalgum (a comensalidade) 2.

    A fim de examinar esse problema, vou comear por uma exposiogeral sobre a relao entre caa e guerra, comparando a literatura sobre oSubrtico Americano quela sobre a Amaznia. Essa exposio fornecero contexto da discusso posterior, que trata do consumo de animais e dasnoes indgenas de doena, resguardo e transformao, na qual insiro acaa em um conjunto mais amplo de prticas e concepes acerca da rela-o entre humanos e animais. Elaborarei progressivamente o modo peloqual canibalismo e comensalidade podem ser, simultaneamente, distin-guidos e articulados, trilhando um caminho aberto pelo perspectivismo(Lima 1996; Viveiros de Castro 1996), para fazer o conceito de predaofamiliarizante reencontrar o de aparentamento. Essa elaborao se darao lado do desenvolvimento de um argumento sobre a partibilidade dapessoa nas cosmologias amaznicas, inspirado em Strathern (1988), como qual procuro complexificar a relao entre corpo e alma.

    A ddiva animal

    Na esteira do trabalho pioneiro de Descola (1986), vrios autores contem-porneos tm focalizado as relaes entre humanos e no-humanos nopensamento e prtica indgenas. A proposio de base que norteia essa

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    reflexo a de que, nas ontologias amerndias, a intencionalidade e aconscincia reflexiva no so atributos exclusivos da humanidade, mas,

    potencialmente, de todos os seres do cosmos. Em outras palavras, animais,vegetais, deuses e monstros podem tambm ser pessoas e ocupar a po-sio de sujeito na relao com os seres humanos. Dessa indistino onto-lgica decorre uma srie de problemas terico-etnogrficos, sendo que,aqui, nos interessa aquele que diz respeito ao estatuto da caa. Se predaranimais equivale a matar pessoas, a caa resvala imediatamente na guer-ra; se ambos os fenmenos inscrevem-se no campo das relaes sociaisentre sujeitos dotados de inteno, o consumo alimentar resvala imediata-

    mente no canibalismo. Pode-se, pois, perguntar, parafraseando Clastres,se o horizonte da caa no o canibalismo generalizado, se a caa no de fato uma guerra aos animais? 3

    Essas questes foram postas, nestes ou em outros termos, pela lite-ratura recente sobre sistemas ditos animistas, um conceito renascido dascinzas tylorianas na esteira da reviso das noes de natureza e cultura.Alguns desses estudos estabeleceram uma ruptura forte entre caa eguerra. Autores como Bird-David e Ingold, por exemplo, caracterizaramas relaes entre humanos e no-humanos nas sociedades caadoras-coletoras como sendo essencialmente no-violentas, pois fundadas emuma economia csmica da partilha (Bird-David 1990), em que o valorcardinal a confiana ( trust ), definida como uma combinao peculiarde dependncia e autonomia, envolvendo relaes positivas e no coer-citivas (Ingold 2000). Nesse paradigma, a caa aparece como uma parti-lha entre humanos e animais e, enquanto tal, ope-se relao guerreiraentre humanos.

    O exemplo clssico dessa concepo seria o dos caadores da flores-ta boreal americana, falantes de lnguas algonquinas e atapascanas. Naliteratura, esse caso ocupa uma posio privilegiada por apresentar a for-ma mais acabada de converso da predao cinegtica em relao moral-mente positiva. Para os caadores boreais, os animais s so mortos por-que se dispem a morrer, sendo sua motivao descrita ora no idioma doamor-amizade e da compaixo, ora naquele do interesse e da reciproci-dade: os animais cedem seu corpo porque gostam do caador (ou dele seapiedam), e tambm o fazem porque os humanos lhes oferecem contra-prestaes durante refeies cerimoniais 4. A caa descrita, portanto, co-mo uma relao positiva para ambas as partes, garantindo a reproduoda vida humana sem implicar a destruio do potencial de vida animal.Da decorre uma forte nfase ideolgica na regenerao da caa e emuma etiqueta rigorosa que determina os modos de matar, consumir e falar

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    sobre os animais. preciso observar uma tica cuidadosa no tratamentodas presas: morte rpida e limpa, corte e preparao apropriados, oferen-

    das, deposio adequada dos ossos, consumo completo da carne. preci-so respeitar os animais sob pena de dificultar o processo de sua regenera-o, de perder a comunicao onrica com eles, levando-os assim a desa-parecer do territrio de caa.

    Se esse modelo da caa responde ao problema moral da predao,ele no resolve, porm, o problema ontolgico do canibalismo. Brightman,em seu livro sobre os Rock Cree, enfrenta a questo ao constatar a insta-bilidade das categorias ontolgicas de animais e humanos: se eles parti-

    lham uma condio comum de pessoa, como diferenciar o caador de umfeiticeiro ou de um witiko, um canibal, que come humanos porque os vcomo animais? Para o autor, a viso benvola da caa, hegemnica noSubrtico, ofereceria um compromisso apaziguador para esse paradoxoinsolvel, pois negaria seu carter de guerra e canibalismo (Brightman1993:203)5. A redefinio da presa como doador, porm, dependeria dadistino entre um corpo zoomorfo e uma alma antropomrfica:

    A carne e a pele dos animais so representadas como distintas e repetida-mente destacveis da essncia e identidade humanides: o corpo compara-do a uma roupa que o animal descarta [...]. No h canibalismo porque s hsimilitude do humano e do animal em relao alma (Brightman 1993:205-206).

    Temos aqui uma verso forte da idia de regenerao, que supe adescartabilidade de uma parte da pessoa animal: os animais s morremaos olhos dos caadores, pois o que eles cedem aos humanos seus cor-pos como uma roupa da qual se desfazem no momento em que soalvejados6. Tanto a noo de regenerao como a de roupa apontam paraa separao entre aquilo de que os humanos se apropriam e o potencialde vida que os animais conservam a despeito da caa. O problema onto-lgico do canibalismo resolver-se-ia, assim, por meio de uma separabili-dade entre corpo e alma (a carne-comida distinguindo-se do animal-sujei-to), enquanto o problema moral se resolveria pela nfase na partilha e nacompaixo entre humanos e animais. Eis, enfim, a resposta dos caado-res boreais (ou da literatura sobre eles) questo de Clastres: a caa no guerra, nem a alimentao carnvora uma forma de canibalismo.

    A seguir, procurarei mostrar que a resposta preponderante na Ama-znia diversa desta, e que ela s pode ser compreendida se inscrever-mos a caa no campo mais amplo das relaes de predao transespecfi-

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    ca, as quais, como veremos, se vinculam ao desejo csmico de produzir oparentesco.

    Os animais em guerra

    Quando passamos da floresta boreal para a tropical, parece haver uma in-verso de dominncia entre os esquemas de relao humano-animal: seno Subrtico, a ddiva e a reciprocidade imperam, na Amaznia, o esque-ma mais produtivo parece ser o da predao. difcil dizer se esse con-

    traste apenas emprico ou se resulta tambm das diferenas de aborda-gens dos pesquisadores de cada regio; tampouco sabemos se correspon-de a uma distino de longa durao ou se um fenmeno historicamen-te recente. Para os fins deste artigo, o contraste, seja ele literal ou liter-rio, permite apontar no apenas maneiras diferentes de conceitualizar aatividade cinegtica algo que, como mostrou Descola (1992), pode apli-car-se internamente Amaznia , mas sobretudo chamar a ateno pa-ra um aspecto pouco explorado no caso boreal e que me parece centralna floresta tropical: o fato de que a predao um vetor de socialidadetransespecfica. Interessa-me menos sugerir que os modelos da ddiva eda reciprocidade tm relativamente uma produtividade menor na Ama-znia, do que inserir a caa em um conjunto de relaes predatrias entrediferentes tipos de gente. Meu argumento supe que humanos e animaisesto imersos em um sistema sociocsmico no qual o objeto em disputa a direo da predao e a produo do parentesco.

    Essa nfase amaznica na predao transespecfica modula certostemas extremamente elaborados no Subrtico americano. Tomemos anoo de que os animais no morrem definitivamente, mas se regeneram. possvel citar vrios exemplos dessa concepo na Amaznia (rhem1996:196; Karadimas 1997:406; Vilaa 1992:61). No entanto, se no Subr-tico h uma verdadeira obsesso pela deposio correta dos ossos das pre-sas para permitir sua regenerao, na Amaznia h um relativo descuido,quando no uma total displicncia, com relao aos restos dos animais.Em um contexto no qual os mestres da caa so tidos como xams e osxams so reputados capazes de revivificar um morto a partir dos ossos,esse menor cuidado sugere que a regenerao das vtimas no a preo-cupao central do caador amaznico. Minha hiptese que esse fatoest relacionado ao foco na transformabilidade dos entes. Explico-me. Omodelo benvolo da caa tende a postular uma srie de ciclos fechadosprprios a cada espcie o caribu renasce como caribu, o urso como ur-

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    so, e assim por diante. No caso amaznico, ao contrrio, esses ciclos ten-dem a confundir-se: o humano passa a no-humano e vice-versa. Essa

    passagem pode ser tanto um evento particular diferenciado (a morte deX causada pela espcie agressora W; a concepo de Y produto da preda-o Z), como uma condio geral (os humanos quando mortos se tornamanimais; uma vida concebida apropriao de princpios vitais de outrasespcies). certo que, em alguns casos, como o do Noroeste Amaznico,onde h transmisso vertical de identidade, o ideal manter os ciclos fe-chados, inclusive no plano dos cls exogmicos: almas humanas devemvoltar s Casas dos ancestrais e renascer como o mesmo tipo de gente.

    O problema que h sempre o risco de, por meio da doena, tornar-se umanimal ou, por meio da guerra, tornar-se um inimigo.Nesse mesmo contexto rio-negrino, onde alm do ideal de recursivi-

    dade vertical h uma forte valorizao da reciprocidade, a predao deanimais encadeia-se de humanos. Os Desana dizem que os mestres dosanimais s liberam seus protegidos para serem caados se forem pagosem almas humanas. Essa troca interespecfica s possvel, porm, gra-as negao da reciprocidade alhures, pois ela supe a predao no-recproca entre humanos: os xams no trocam seus parentes pelos ani-mais familiares do mestre, mas sim seus inimigos (Reichel-Dolmatoff1973:160). A negociao implica a predao contra outros humanos naforma de feitiaria, ato que pode ser concebido maneira de uma caada,como aponta Chaumeil para os Ygua (1983:233), ou maneira de umaguerra invisvel, como indica Albert para os Yanomami (1985).

    O encadeamento dos ciclos predatrios costuma, com maior freqn-cia, opor diretamente humanos e animais, e esse fato inflete outro temacrucial para os caadores do Subrtico: o respeito presa animal. Regrasimpondo formas prprias de matar, cuidados no trato da caa, limitaoda predao foram tambm descritas pela literatura amaznica. Noentanto, mesmo quando essas prescries e proibies so ditas na lin-guagem do respeito, o desrespeito d antes lugar guerra de vinganado que ao desaparecimento da caa de um certo territrio (ver Gray1997:50). Enquanto no Subrtico se afirma ser imperativo encontrar ani-mais feridos, pois deixar a presa morrer sofrendo inutilmente perturba aharmonia que deve imperar nas relaes entre humanos e animais (Bright-man 1993:110), na Amaznia, esse mesmo cuidado justificado pelo te-mor do caador de ser alvo de uma contrapredao. Assim, entre os Tiku-na, a fuga de um animal ferido leva a uma busca obsessiva, pois se a pre-sa retornar sua casa e contar o que lhe sucedeu, o caador encontrar-se- ameaado pela vingana do pai daquela espcie (Goulard 1998:414).

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    O conjunto de prticas e crenas relativas ao tratamento da presa,que costumamos designar tica da caa, remete sobretudo a esse peri-

    go de inverso das posies respectivas de predador e de presa. Por isso,na Amaznia, a conseqncia do no-cumprimento dessas prticas ex-pressa em termos de vendeta: o que se quer evitar, sobretudo, ter quepagar a morte do animal com a prpria vida ou com aquela de um paren-te. Em certos casos, quando j se instaurou o ciclo da vingana, a agressopode mesmo sobrepor-se s prescries para o tratamento adequado dapresa. O caador miraa, movido pelo desejo de retaliao, pode impedira regenerao de sua vtima: em vez de deixar o sangue verter sobre o

    cho da floresta e abandonar a cabea e as tripas do animal, ele o retalhana gua, uma prtica corrente quando se trata de uma anta que se sus-peita ser particularmente responsvel por vrias doenas. (Karadimas1997:407). Aqui, a caa resvala intencionalmente na guerra de vingana,mas a imbricao dos dois fenmenos muito mais generalizada, e ganhaenorme produtividade na nosologia indgena.

    Guerra e doena podem prestar-se a significar diferentes perspecti-vas sobre um mesmo evento: o que doena para os humanos pode serguerra para os animais. Aos olhos humanos, temos um ato de feitiariaque conduz a estados mrbidos, mas da perspectiva dos animais, trata-seantes de uma guerra de captura. Assim, os Miraa afirmam que a huma-nidade est exposta agresso dos espritos de animais, pois estes podemperseguir os descendentes dos humanos para rapt-los e lev-los parabaixo da terra onde se encontram suas malocas, transformando-os em suaprpria descendncia [...] (Karadimas 1997:404). Entre os Wari, muitasdoenas so tidas como resultado do ataque de um animal que retmconsigo a alma da pessoa. Se seu corpo definha diante dos parentes,aos olhos do xam que tenta cur-lo, ele est se transformando e adqui-rindo as caractersticas do animal agressor (Vilaa 1992; 2002), i.e., estganhando um novo corpo e novos hbitos, capacidades e afetos, da mes-ma forma que uma pessoa capturada na guerra deve ser familiarizadapor seus raptores. Lagrou, por sua vez, sugere que os Kaxinaw conce-bem a doena como um processo perigoso e incontrolvel de alterao(1998:45), uma metamorfose na qual o humano estaria sendo predado efamiliarizado pela espcie animal agressora. A doena por rapto da al-ma comporta, em suma, duas ordens de realidade: para os parentes hu-manos do paciente que o vem definhar, perder a fora e esvair-se ,trata-se de uma morte; j para a entidade que roubou a alma, trata-se datransformao de um outro em parente. A doena seria, enfim, a preda-o familiarizante dos animais.

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    A tica da caa visaria evitar que a atividade cinegtica aparecessesimultaneamente para animais e para humanos como uma guerra de cap-

    tura. Esse parece ser, como mostra Lima (1996), o significado da modera-o verbal que caracteriza a caada aos porcos entre os Juruna. Um caa-dor que abusa da linguagem condena-se morte, ou ainda, condena-sea se tornar um animal. Seu corpo morto ser encontrado pelos compa-nheiros, mas sua pessoa ser incorporada vara de porcos, adquirindopouco a pouco um corpo porcino at virar completamente um deles. Essaforma de apropriao da alma ou da pessoa do inimigo caracterstica daguerra entre humanos: o homicdio detona um processo de familiarizao

    da vtima que desemboca, por intermdio de resguardos e rituais, na pro-duo de novas pessoas na comunidade do matador. No caso juruna, por-tanto, os porcos fazem de fato a guerra ao serem caados, capturando hu-manos e transformando-os em porcos e parentes. Mas, para que isso ocor-ra, preciso que o caador, por meio da imoderao verbal, partilhe daperspectiva de suas presas.

    Na Amaznia, enfim, ao contrrio do Subrtico, a caa pode ser, daperspectiva dos animais, uma guerra. Diramos, pois, a contrapelo deClastres, que ela sim uma guerra aos bises, mas somente deve s-lodo ponto de vista dos bises. Esta restrio fundamental. Vejamos porqu.

    Da caa comida

    Humanos e animais esto imersos em uma rede sociocsmica onde se dis-putam potencialidades de existncia e capacidades reprodutivas (em sen-tido amplo). Nessa rede, a oposio fundamental no entre ser ou noser humano, mas sim entre ser ou no ser parente (e entre ter ou no terparente). A noo de predao familiarizante com que procurei caracte-rizar a atividade guerreira e o xamanismo na Amaznia aplica-se ao con- junto dessas relaes de captura, que articulam de modo dinmico o exte-rior ao interior, o outro ao mesmo. Nesse universo em que nada se cria etudo se apropria, diferentes grupos, humanos ou no-humanos, vivos oumortos, relacionados como meta-afins (Taylor 2000:312), procuram captu-rar pessoas para transform-las em parentes. Xams capturam espritosde animais e guerreiros capturam espritos de inimigos, fertilizando asmulheres, dando nomes s crianas, produzindo cantos para os rituais, fa-vorecendo a caa. Mas os no-humanos tambm capturam humanos, se-duzindo-os e/ou predando-os, para transform-los igualmente em mem-

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    bros de sua comunidade. A predao est, assim, intimamente associadaao desejo csmico de produzir o parentesco. Todo movimento de apropria-

    o detona um outro processo de fabricao-familiarizao, que consisteem dar corpo ao princpio exterior de existncia e faz-lo interior. Issosignifica dot-lo das disposies caractersticas da espcie do captor e,assim, aparent-lo. Na feliz expresso de Vilaa (2002), a familiarizao um meio de fazer parentes out of others .

    E aqui se recoloca o problema da caa: para que os humanos consti-tuam afetos e disposies humanas e produzam o parentesco entre si preciso caar: Porcos mortos so comidos, escreve Gow, para satisfa-

    zer o intenso desejo humano de comer caa e, por meio da satisfao des-se desejo, criar laos de parentesco. (2001:70). A partilha da carne e a co-mensalidade no apenas marcam as relaes entre parentes, como as pro-duzem. Comer como algum e com algum um forte vetor de identida-de, assim como se abster por ou com algum 7. A partilha do alimento e docdigo culinrio fabrica, portanto, pessoas da mesma espcie. O caador juruna, aps ser capturado, precisa ser feito porco: alimentando-se decocos e minhocas, participando das danas e bebendo o cauim barrento,o caador infeliz, com o passar do tempo, vai assumindo o aspecto do ani-mal (Lima 1996:25). Segundo a mesma lgica, o xam wari encontra nocorpo de seu paciente comida da espcie animal responsvel pela doen-a, testemunhando que animal e humano se esto tornando comensais e,portanto, aparentando-se, no duplo sentido de tornar-se parente e pareci-do (Vilaa 2002).

    A comensalidade um vetor de identificao que no se aplica ape-nas s relaes sociologicamente visveis entre parentes humanos. Ela um dispositivo geral que serve para pensar a passagem de uma condiode parentesco outra e, portanto, aquilo que chamei de familiarizao 8.Em um mito parakan, que a verso local do desaninhador de araras,essa idia se manifesta na forma de um alerta. Aps descer da rvore emque fora abandonado, o protagonista procura seus parentes. Ele chega aldeia das antas, onde bem acolhido, mas como sente saudades dos seusresolve partir. As antas indicam-lhe o caminho, mas alertam-no para queno coma o mingau de minhoca na aldeia dos tatus. A concluso clara:comer com e como os tatus produziria o esquecimento do seu parentes-co com os humanos. No comer como e com recusar o aparentamentoe tal recusa equivale a se colocar na posio de inimigo. Assim, ocorreucom um menino que os Parakan raptaram junto com a me em umaexcurso guerreira na dcada de 40. Cativos, eles tentaram escapar, masos Parakan foram em busca deles e os interceptaram. Antes de mat-

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    los, um homem repreendeu o menino, em tom de lamento: eu disse paravoc comer a anta que eu caara, foi o que eu disse em vo para voc.

    Esse mesmo dispositivo de identificao est presente nas escatolo-gias amaznicas, nas quais, amide, a morte s se torna definitiva quandoa pessoa aceita a comida ou a bebida que lhe oferecida pelos mortos 9.Esse ato alimentar o desfecho de um processo detonado pela predaoontolgica que produziu a doena e deu incio transformao do pacien-te em uma outra espcie de pessoa, transformao esta que, muitas vezes, concebida como uma passagem do humano ao animal.

    H, enfim, uma concepo difundida de que comer como e com al-

    gum inicia ou completa um processo de transformao que conduz identificao com este algum. O problema complexifica-se, no entanto,pelo fato de que igualmente difundida a noo de que comer algumdesencadeia outro processo de transformao, que conduz identificaoentre o predador e a presa uma identificao que, como sabemos, ambivalente, pois no se d em uma nica direo 10. A questo geral quese nos apresenta, portanto, : qual a relao entre esses dois processos detransformao, um produzido pelo comer como e com algum, o outrodesencadeado pelo comer algum ? No contexto especfico deste ensaio,trata-se de saber como possvel produzir o parentesco entre humanos ecomer animais que so pessoas. Ou, mais precisamente, como os huma-nos podem identificar-se entre si ao comerem juntos comida prpria aoshumanos sem, no entanto, se identificarem com aquilo que comem?

    A resposta simples: preciso separar cuidadosamente as duas ope-raes. Comer e dar de comer para produzir o parentesco deve ser distin-to do comer para identificar-se ao outro ingerido. Mas isso implica traba-lho, pois a caa tem que ser produzida como comida, j que ela no na-turalmente um objeto. Em outras palavras, preciso reduzir um animal-sujeito condio de objeto-inerte, preciso desagentiv-lo. A lnguaparakan possui uma maneira elegante de marcar essa reduo: uma ca-a morta antes do tratamento culinrio dita temiara , um termo formadopela agregao de um marcador de paciente a um marcador de agente.Aps ser cozida, ela ser dita temioa, onde o marcador de agente subs-titudo pelo verbo comer ( o) e por um nominalizador no-agentivo.Transformar uma caa em comida desprov-la da capacidade de agir ede entrar em relao com um outro, capacidade que prpria aos seresem sua condio de pessoa. A relao sujeito-ativo e objeto-inerte no re-sulta imediatamente do ato predatrio, da passagem de uma tenso pre-datria (Taylor 2000) a um estado de predao, requerendo, portanto, umtrabalho suplementar de reduo da caa comida.

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    nas os queixadas, antes a praticavam com quase todas as espcies preda-das (Vilaa 1992:61). Xamanizar o animal morto, porm, no basta. pre-

    ciso neutralizar sua condio subjetiva por meio do cozimento. O fogo decozinha um operador central na reduo de animais-sujeitos em animais-objetos. A tcnica empregada no , porm, indiferente: o cozido oferecemenos risco que o assado, pois, como j indicara Lvi-Strauss (1965), esteltimo se aproxima do cru. Os Arakmbut do Peru, por exemplo, evitam oassado por temerem um cozimento incompleto (Gray 1996:154), enquantoo caador de jaguar miraa assa ligeiramente sua presa para com-la maneira crua (ver abaixo) 12. Tampouco so iguais as partes do corpo: a

    cabea costuma ser cercada de interditos especiais, mas sobretudo osangue (e seu odor) que funciona como indexador sensvel de agnciatransformativa. Por isso, qualquer trao de sangue pode oferecer risco, ea comida na Amaznia costuma ser hipercozida. Mesmo em um contextocomo o do Alto Xingu, onde a alimentao animal se resume basicamenteao pescado, pode-se ouvir a acusao contra uma aldeia vizinha de quesua gente come peixe mal cozido (Gregor 1990).

    A oposio entre comer cru e comer cozido fundamental, pois mar-ca duas formas muito diversas de consumo: devorar cru define, de sa-da, tanto a inteno quanto o resultado do ato de consumo, enquanto co-mer (bem) cozido define a inteno, mas guarda sempre uma ambigida-de, pois no se sabe jamais se o alimento foi completamente objetificado.A mesma diferena de cozinha central no Subrtico Americano 13. Bright-man afirma que o processo de cozimento bloqueia a aquisio, por par-te daquele que come, de propriedades imateriais [...] contidas na comidacrua (1993:143), enquanto a omofagia implica justamente a ingesto des-sas propriedades. Haveria, pois, duas modalidades de consumo: uma, co-zida, cujo objetivo alimentar em sentido estrito; outra, crua, cujo fim se-ria apropriar-se de capacidades anmicas da vtima.

    Deixem-me refrasear essa oposio para que no se a confunda comum dualismo cartesiano, hoje rejeitado quase unanimemente na carac-terizao das ontologias amerndias 14. Esse dualismo no nos permite ex-plicar, por exemplo, por que beber sangue ou comer carne crua partessubstantivas do corpo implica a apropriao de capacidades subjetivasda vtima. Que no haja uma fratura absoluta entre corpo-material e al-ma-imaterial no significa, porm, a inexistncia de outra distino que,provisoriamente , marcaremos como sendo aquela entre um consumo dooutro enquanto pessoa (ou em sua condio de pessoa) e seu consumo nacondio de comida (ver Fausto 2001:538). Essa distino pode ser apro-ximada daquela entre sujeito e objeto, desde que entendamos que o valor

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    no-marcado dos animais o de sujeito. Isso no quer dizer que todos osindivduos de uma espcie, ou que todas as espcies, realizem esse valor

    da mesma maneira e em todos os momentos. Trata-se, porm, de uma pre-missa das ontologias amerndias. Ora, se os animais ou certos animais sopessoas, devor-los nessa condio apropriar-se de suas qualidades en-quanto sujeito: isto que se faz ao com-lo cru. Ao contrrio, cozinh-lo desprov-lo dessa condio, transform-lo em objeto, tornando-o pr-prio ao consumo cotidiano.

    Redefinamos, pois, a noo de canibalismo: canibal toda devorao(literal ou simblica) do outro em sua condio (crua) de pessoa, condio

    que o valor default . J o consumo no-canibal supe um processo dedessubjetivao da presa, de reduo a objeto, no qual o fogo culinriotem um papel central. Na alimentao cotidiana, preciso que o animalenquanto sujeito esteja ausente para que a identificao possa se produ-zir entre os humanos. necessrio bloquear a relao, sempre possvel,entre o humano e o animal, a fim de que, por meio da carne deste ltimo,os comensais possam se produzir enquanto humanos e parentes. A ali-mentao cotidiana, porm, nem sempre desejvel ou segura. Por ve-zes, preciso ficar aqum dela, por vezes preciso ir alm. Na seo se-guinte, trato do primeiro caso, na subseqente, do segundo.

    Resguardo e transformao

    H momentos em que o comer torna-se foco de restries estritas, que sediferenciam dos interditos e precaues cotidianos. Trata-se de perodosem que processos de transformao j esto em curso e so marcados pe-lo resguardo. O nascimento um bom exemplo disso. O parto a exterio-rizao de um processo interno de transformao, que costuma remontar captura de um princpio vital externo 15. A fabricao-transformao dacriana no se interrompe, contudo, com o nascimento; ao contrrio, o pe-rodo ps-natal crucial para a definio da espcie do beb: pai, mee sua parentela concentram esforos para fabric-lo como pessoa humanae aparentada (ver Gow 1997). Como aponta Vilaa em seu ensaio sobre acouvade , o corpo do recm-nascido, no processo de sua criao, corre orisco de ser feito igual ao corpo de outros tipos de pessoas (ou simples-mente de animais). (2002:359). Eis por que as mulheres parakan pas-sam horas e horas a massagear o beb. Segundo dizem, so essas opera-es que tornam os corpos humanos diferentes dos corpos dos animais,os quais, com exceo dos bichos de estimao, no so jamais modelados.

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    As aes sobre o corpo servem, assim, para fixar uma forma e um desti-no: Aplicaes ocasionais de jenipapo, escreve McCallum sobre os Kaxi-

    naw, parecem fixar a forma fabricada pelo trabalho intenso dos paren-tes tanto durante quanto aps a gravidez; ao mesmo tempo, o jenipapotorna o beb invisvel aos espritos. (2001:21).

    O tornar-se invisvel aos espritos remete-nos novamente ao proble-ma da captura. comum, na Amaznia, conceber-se que o princpio vitaldo beb no est seguramente ligado ao corpo e que, por isso, pode sercapturado. O beb ainda no foi inteiramente fabricado como membro desua comunidade, e pode ser feito parente de outra gente, animais ou ini-

    migos. No momento da couvade , deve-se, portanto, fechar as portas inte-rao com o exterior, algo que se evidencia, entre outras coisas, pela in-terdio ao pai de participar da caa, da guerra, dos rituais e das ativida-des xamnicas. O risco aqui no diz respeito apenas criana, pois o paitambm est em transformao e pode tornar-se outro. Segundo Schaden,os Guarani andeva denominam odjepot essa ameaa que paira sobre ogenitor16:

    O odjepot o destino de todo homem que, desrespeitando o resguardo, saipara caar: o primeiro animal que encontra afigura-se-lhe como gente, atrai-o e torna-o odjepot ; no dizer de um informante andva do Bananal, obicho se mistura com a gente e a gente fica vivendo com o bicho toda a vida(Schaden 1954:102).

    Esse mesmo perigo, o de transformar-se em animal, afeta a meninaguarani em resguardo da menarca e o homem parakan em resguardops-homicdio. No primeiro caso, diz-se que ela pode ser atrada por umbicho-homem que a leva consigo. Crescem-lhe ento plos sobre o cor-po e ela se torna uma ameaa para os humanos. J o matador parakan,assim como o pai em couvade , no pode sair para caar. O destino daque-le que desrespeita esse interdito explicitado nos mitos. Conta um delesque um homem em resguardo teve que sair para caar, pois seu filho ti-nha fome e ningum na aldeia o alimentava. Ele encontrou uma vara deporcos e comeou a mat-los. Como estava s, acabou desarmado e refu-giou-se nos galhos de uma rvore. Foi ento derrubado e os porcos o leva-ram embora para sempre.

    O mito inicia-se pela recusa do parentesco (os aldeos no reconhe-cem a criana como parente e lhe negam comida) e termina com a captu-ra do matador pelos porcos. Estabelece-se, pois, um vnculo entre a nega-o da primeira relao (entre humanos) e a produo de uma segunda

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    relao (entre o humano e os animais). Essa mesma idia aparece entreos Kayabi: uma pessoa maltratada pelos parentes est exposta a ter sua

    alma raptada pelos espritos, que fazem dela um familiar (Oakdale 1998).Os Kaxinaw, por sua vez, afirmam que pessoas tristes ou enraivecidas,insatisfeitas com sua relao com parentes prximos ou esposos, [...] ten-dem a dar ouvido aos chamados de yuxin noite, e ento desaparecemao sonambular pela floresta. (Lagrou 1998:45). Esse processo de desafei-o por parte dos parentes equivale, assim, a um processo patolgico. Emum artigo ainda indito, Taylor (s/d) mostra como, entre os Jvaro, a ero-so da teia de relaes que constitui a pessoa induz a um tipo de anemia

    sociolgica que se traduz em sintomas de doena e reclamos de se es-tar rfo. A doena vivida como orfandade aponta para esse duplo movi-mento que envolve o rompimento de relaes de parentesco e sua recria-o alhures. A doena, essa metamorfose indesejada, tem como agenteum sujeito-outro que deseja produzir o seu prprio parentesco. A transfor-mao vista, do lado de c, como doena-desafeio , do lado de l, umapredao-afeio. A diferena entre doena e guerra, portanto, no daordem do processo, mas do ponto de vista.

    Em suma, se h uma competio potencial entre diferentes esp-cies, humanas e animais, por pessoas que se quer fabricar como paren-tes, se a recusa do parentesco abre caminho para a produo de uma novarelao, que passa necessariamente por uma metamorfose, por que ascondies ps-natal, ps-menarca e ps-homicdio so particularmentesensveis, por que devem ser cercadas de interditos? O perigo parece de-rivar do fato de que j h uma metamorfose em curso, que se evidenciapela presena e o odor do sangue, substncia transformativa por exceln-cia. Mas que metamorfose essa, qual o risco envolvido?

    No caso do homicdio, o que est em jogo a direo da familiariza-o: o matador, em vez de controlar a vtima, corre o risco de ser controla-do por ela, assumindo em definitivo sua perspectiva. Por isso, seus paren-tes colocam-no em recluso: por um lado, foram-no a focalizar a relaocom sua vtima, interditando alimentos e atividades que poderiam condu-zi-lo a interagir com outros sujeitos e lev-lo a um desvio de rota; por ou-tro, lembram-lhe com insistncia que ele um parente e no um inimi-go17. Pode-se dizer, assim, que enquanto o matador familiariza a vtima,os parentes refamiliarizam o matador e a sua vtima. O mesmo pode serdito da couvade . Como vimos, o nascimento de uma criana requer a apro-priao de um potencial de existncia que exterior ao corpo de parentese que, portanto, precisa ser aparentada. Tambm aqui necessrio foca-lizar certas relaes e bloquear outras. Assim, enquanto pai e me fami-

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    liarizam a criana, a comunidade de parentes familiariza os pais e a crian-a. No caso da menarca, contudo, no h apropriao de um novo sujeito

    (no h vtima, nem beb); h, sim, a produo de uma condio que per-mitir mulher ser receptculo ativo para uma transformao no-visvel(a gestao), que serve de modelo-analgico para outra transformao, ado matador, tambm s objetivvel em suas manifestaes externas (oscantos e nomes providos pela vtima e transferidos comunidade).

    Em suma, os resguardos procuram controlar processos de transfor-mao, evitando que tomem direo errada. No se trata de obvi-los, masde evitar que esse potencial de movimento seja apropriado por outros su-

    jeitos do cosmos. Por isso, nesses momentos, o universo relacional deveser limitado. O nmero expressivo de restries alimentares durante os res-guardos sugere que comer uma atividade particularmente delicada, poispode converter-se em uma relao social entre sujeitos. Mesmo todo oprocessamento xamnico e culinrio no suficiente para transformar oconsumo alimentar em uma relao segura entre um sujeito-ativo e umobjeto-neutro; resta sempre um trao de atividade e subjetividade no ani-mal, de tal modo que, em certas circunstncias, preciso de quase tudose abster 18.

    Da comida pessoa

    A comida na Amaznia no deve ser sempre apenas comida. Se h mo-mentos em que se multiplicam as proibies, h outros em que se trata dedesencadear processos de transformao por meio do consumo de animaisinterditos. Estes animais so normalmente predadores e costumam serconsumidos crus ou assados. Para desenvolver a capacidade onrica dos jovens parakan, os adultos davam-lhes para comer certas partes assa-das da ariranha, equiparada na Amaznia a um jaguar aqutico. J oshomens kaxinaw consumiam cru o corao e a lngua da jibia (as mu-lheres comiam os olhos), para adquirir suas capacidades (Lagrou 1998:62). Entre os Ygua, um homem que matasse um jaguar deveria comerseu corao ainda pulsante para adquirir fora e coragem (Chaumeil, inf.pessoal).

    A essa ingesto real de animais interditos, especialmente predado-res, soma-se uma srie de outras prticas rituais que visam ao mesmo ob- jetivo, mas que no implicam o consumo da carne. Assim, por exemplo, osTupinamb substituam o cativo humano por um jaguar para iniciar os jo-vens na praa. O felino era morto ritualmente, mas, ao contrrio do inimi-

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    go, no era comido. Os Parakan danam com um jaguar morto para trans-fazer-se no predador: vestido com sua pele e dotado de suas capacidades,

    o sonhador sai noite para caar. J os Yanomami realizam um ritual an-tes de partirem para a guerra, cujo objetivo incorporar imagens vitais decertos animais, notadamente do urubu, que devoraro a vtima durante oresguardo ps-homicdio (Albert 1985:363). Em todos esses exemplos, tra-ta-se de produzir transformaes em certas pessoas para que elas possaminteragir com no-parentes e familiariz-los. Visa-se, aqui, constitu-lascomo termos potenciais de uma relao futura de predao familiarizante.

    A essas prticas alimentares nas quais os animais no so tomados

    como comida mas como fonte de capacidades, pode-se acrescentar aindao consumo de narcticos e de alucingenos. Explorei em outro texto asconexes entre o tabaco e o jaguar na Amrica do Sul (Fausto no prelo).Quanto aos alucingenos, noto a recorrente associao da ayahuasca(Banisteriopsis caapi) aos grandes predadores. Segundo Harner (1973:160), cobras (em especial, a anaconda) e jaguares so os animais mais ci-tados nas descries dos ndios sobre os efeitos da bebida. Os Maw esta-belecem uma associao direta entre a droga e os feldeos: segundo umxam o mestre do /kapi/ uma ona-pintada [...] quando o cultivamoscom gua tingida de sangue [i.e., aquela com que se lavou a caa], ele setorna muito selvagem ( apud Giraldo-Figueroa 1997:276). A associaoentre hematofagia e psicotrpicos encontra-se ainda entre os Miraa: acoca guardada em um saquinho designado bolso do esprito devora-dor, esprito que um comedor de carne crua e de sangue (Karadimas1997:376, 576). No Noroeste Amaznico, a coca e a ayahuasca so conce-bidas como partes dos corpos dos ancestrais, que so, eles mesmos, pre-dadores (Hugh-Jones, inf. pessoal) 19.

    Finalmente, e aqui retorno ingesto efetiva de carne de animaisinterditos, temos um exemplo que explicita a correlao entre essa moda-lidade de consumo e a predao guerreira. Os Miraa praticavam no pas-sado o exocanibalismo e confeccionavam colares com os dentes das vti-mas. A retirada dos dentes era o ltimo estgio de um processo de fami-liarizao-consanginizao do inimigo, que tinha incio com o prprioato homicida. Ao portar o colar, o matador mobilizava o potencial preda-dor de sua vtima, seu gws , e podia utiliz-lo contra os ex-consang-neos do morto. A mesma prtica visa, hoje como no passado, ao jaguar.Aps mat-lo, o caador extrai os caninos e entrega-os a um xam. Cortatambm a cauda (ou retira o fgado), que comer ligeiramente assadapara no temer o encontro com o esprito do jaguar. O xam convoca-o en-to, e tomado por ele engaja-se em um dilogo com o matador, cujo objeti-

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    vo transformar o jaguar em um auxiliar xamnico. Os dentes caninos se-ro a nova morada do gws do felino e sempre que precisar da ajuda de

    seu auxiliar, o xam-caador tomar o colar e invocar o esprito do jaguar(Karadimas 1997:395).Essa prtica miraa fornece um bom exemplo do que denominei pre-

    dao familiarizante: a converso de relaes de predao em familiari-zao, modelizada como uma passagem da afinidade consanginidade.A predao familiarizante caracteriza tanto a operao de domesticaoda vtima humana na guerra, como a da vtima animal no xamanismo.Neste, porm, a articulao entre caa e familiarizao no imediata, a

    no ser quando o animal devorado (literal ou simbolicamente) em suacondio de pessoa, como nos casos descritos acima. Mas nestes casos apresa animal equivalente a uma vtima humana, e a caa no se distin-gue do homicdio guerreiro. No cotidiano, ao contrrio, a caa deve serdistinguida da guerra, e mesmo o consumo de um animal no interditoprecisa, em determinados momentos e circunstncias, ser cercado de pre-caues rituais para transform-lo em comida.

    Caando porcos

    Eis por que, finalmente, a caa s pode ser guerra do ponto de vista dosanimais. Se no h barreira ontolgica entre humano e no-humano, oshumanos devem trabalhar para distinguir o consumo do animal comocomida de seu consumo enquanto pessoa. Confundir a caa com a guerra, como diz Lima a propsito dos Juruna, afirmar o ponto de vista dos por-cos: uma luta [...] est em curso luta entre a caa de um e a guerra deoutro. O infortnio do caador o resvalamento da caada na guerra.(1996:37-38). O interdito verbal juruna implicaria, pois, antes que umaafirmao da perspectiva do caador, a construo dessa perspectiva.Nesse sentido, ele j parte do processo de dessubjetivao do futuroalimento, de transformao da pessoa em comida (sendo que o prprio atode comer um momento desse processo). O pressuposto de que os por-cos so humanos continua l, mas negado pela posio de um inter-dito, que instaura uma assimetria entre a posio da presa e a do preda-dor. preciso afirmar a inteno de comer carne e no de fazer guerra.Essa diferena pode ser marcada por um afastamento mnimo, como ocor-ria entre os Kaxinaw que utilizavam a mesma borduna para dar cabo deporcos e de inimigos, mas jamais o mesmo lado da borduna (Kensinger1975 apud Erikson 1986:205).

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    Como afirma Erikson, se os predadores so por vezes inimigos, a ca-a no deve, sobretudo, ser tratada como um inimigo (1986:194). Para

    tanto, preciso produzir diferenas. Assim, os Xaranaw matavam jagua-res com lanas de guerra, mas os animais que lhes servem de alimentoeram mortos com arco-e-flecha (Siskind 1973:174). A utilizao da dife-rena entre tcnicas cinegticas para produzir uma distino entre guerrae caa recorrente na Amaznia, mas ela no recorta a fauna sempre damesma maneira. Se a predao de jaguares quase universalmente equi-parada morte de inimigos, a caa de outros grandes mamferos terres-tres tambm pode ser aproximada guerra. A espcie-foco aqui costu-

    ma ser o queixada, que fornece um modelo da prpria condio humanagenrica : eles no so pura capacidade predatria, mas antes mortais aserem predados, que se defendem bravamente, vivem em grupo, comemmandioca e tm um chefe. Eles se aproximam dos humanos pelo gregaris-mo (conotando sua capacidade em produzir o parentesco), pela organiza-o social da vara (conotando o reconhecimento de outras relaes assi-mtricas que no a devorao) e pela sua condio ambivalente, a meiocaminho entre a presa e o predador. O jaguar, ao contrrio, marcado pelasolido e por uma capacidade predatria quase ilimitada, que desigual-mente distribuda entre os humanos (pois um suplemento caractersticode guerreiros, xams e caadores) e aponta para a superao da prpriacondio humana (seja positivamente como imortalidade ou negativa-mente como anti-sociabilidade).

    A pregnncia dos queixadas como metfora da condio humana fazde sua caada, no apenas por razes tcnicas, um evento saliente dentreas demais atividades cinegticas. No por acaso que vrios povos ama-znicos aproximam a caa aos porcos da guerra, destacando-a da preda-o de outros animais. As populaes que utilizam a zarabatana, por exem-plo, costumam opor essa tcnica, dirigida a espcies arborcolas, quelaque decorre do uso do arco ou da lana, utilizados para matar mamferosterrestres e, em particular, porcos. O uso da zarabatana causa pouco san-gramento na presa (que morta no pelo ferimento mas pelo veneno) eimplica maior distncia entre caa e caador, enquanto o uso de armas deperfurao causa intenso sangramento e uma relao menos mediada en-tre matador e vtima. Temos, pois, situaes em que, diferentemente da-quela descrita por Lima para os Juruna, a caa aos porcos parece ser po-sitivamente marcada como uma predao de inimigos. Como interpretareste fato no quadro que vim at aqui delineando?

    A salincia dos queixadas est associada ao fato de serem demasia-damente comida e demasiadamente humanos. o mamfero menos proi-

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    bido em toda a Amaznia raros so os povos que o excluem de sua co-zinha , mas tambm a caa que costuma exigir maior esforo de des-

    subjetivao, seja pela ao de xams, seja pela comensalidade por ve-zes ritualizada. Se a anta pode ocupar esse mesmo lugar (como pareceser o caso no Noroeste Amaznico), ela, no entanto, no tem costumes gre-grios, no envolve o mesmo esforo coletivo da caada aos porcos e tam-pouco resulta na mesma quantidade de alimento. Da por que sobre osporcos, mais do que sobre qualquer outro animal, recaia o imperativo mo-ral de partilhar amplamente sua carne, cujo no cumprimento pode con-duzir a estados mrbidos (Conklin 2001:163). Partilhar , sobretudo, no

    se comportar como um predador solitrio: o egosmo alimentar visto co-mo uma deriva canibal, algo que os Guarani exprimem claramente ao apro-ximar o comportamento mesquinho ao do jaguar (H. Clastres 1975:113-134). A comensalidade e a xamanizao marcam, portanto, uma distn-cia em relao ao canibalismo: mesmo sendo inimigos, no os comemoscomo inimigos, no desejamos sua parte-sujeito, mas sua parte-objeto.

    A ambivalncia dos porcos expressa-se, ainda, na maneira ritualiza-da em que podem ser consumidos, misturando-se os registros das duasmodalidades de consumo (ontolgica e alimentar). Os Huaorani do Equa-dor distinguem a predao de animais arborcolas por meio da zarabatana(expressa pelo eufemismo ir soprar) da caada aos porcos realizada comlanas de guerra. Essa distino d ensejo, quando porcos so mortos, auma festa orgistica. Ao voltar ao acampamento, os caadores colocamas mos das crianas sobre a pele ainda palpitante e ensangentada dosqueixadas para que elas absorvam sua fora e energia. A caa aos por-cos, diz Rival, especial; uma matana coletiva seguida de uma festa.[...] A carne dos porcos considerada [...] extremamente intoxicante, e spode ser consumida de modo infreqente, em um tipo de orgia, pelo gru-po huaomoni em cujo territrio a vara foi caada. (1996:156)

    Essa ambivalncia do consumo de porcos que parece resvalar cons-tantemente no canibalismo, obriga-nos a colocar uma ltima questo: oque dizer, ento, da antropofagia?

    A comensalidade antropofgica

    Antes de responder a essa questo, permitam-me retomar o fio da mea-da. At aqui argumentei que a distino entre caa e guerra na Amaz-nia no dada, em virtude da inexistncia de uma barreira ontolgicaentre humanos e no-humanos, mas construda. Sugeri, em seguida, que

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    h dois modos de produzir identidade e diferena por meio do comer: deum lado, come-se com e como algum para identificar-se com esse algum

    e produzir-se mutuamente como parente; de outro, come-se algum pa-ra capturar algo deste algum, sem no entanto se tornar inteiramente ou-tro. Essas duas operaes devem ser distinguidas prtica e teoricamente,embora estejam articuladas em um mesmo movimento de reproduo so-cial: a captura de algo de algum abre caminho familiarizao, que seprocessa, entre outras coisas, pela comensalidade. Sugeri ainda que exis-tem ndices sensveis, bem como prticas culinrias e rituais, que inde-xam essa distino. Assim, por exemplo, a oposio entre cru e cozinhado

    (ou, em bemol, assado e cozido) central para marcar a diferena entrecanibalismo (comer algum) e alimentao (comer com e como algum).Resta-nos enfrentar um ltimo problema antes de concluir o texto.

    Eis a questo: a antropofagia necessariamente uma prtica canibal oupode-se comer humanos como se fossem mera comida? Se, como vimos,h momentos em que certos animais so consumidos como inimigos (isto, na sua condio de pessoa), -nos legtimo perguntar se no h momen-tos em que os humanos so consumidos como simples comida (isto , co-mo objeto-inerte, suporte de outras relaes). Vejamos.

    Um dos elementos invariantes na antropofagia guerreira nas terrasbaixas da Amrica do Sul a disjuno entre matadores e comedores. Oshomicidas no consomem a carne de suas vtimas, tendo, ao contrrio,que dela se abster. Essa proibio estrita contrasta com a gama irrestritade pessoas a quem permitido comer um inimigo. Segundo os cronistasque descreveram o ritual antropofgico tupinamb, homens, mulheres,crianas e at bebs de colo deveriam faz-lo. De modo idntico, entreos Wari de Rondnia, qualquer pessoa, com exceo dos matadores,podia comer a carne de wijam [inimigo], inclusive as mulheres e crian-as. (Vilaa 1992: 102). Havia, de um lado, uma proibio estrita (o mata-dor jamais comia) e, de outro, uma liberalidade irrestrita (mesmo as crian-as comiam).

    A antropofagia guerreira tupinamb expressava-se na linguagem dodesejo alimentar e da vingana. A carne humana era consumida porquedoce e saborosa, e porque todos queriam ou deviam vingar-se do inimigo.O ato antropofgico definia um conjunto de posies relacionais. De umlado, produzia a aliana entre os que comiam juntos e a separao entreaqueles que eram, potencialmente, comida um do outro. De outro lado, oato produzia os comedores enquanto predadores e a comida enquanto pre-sa. Da a clebre blague de Cunhambebe que, entre uma e outra mordi-dela na perna assada de um inimigo, teria respondido a Hans Staden, que

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    o admoestava por comer seu semelhante, que ele, Cunhambebe, era um jaguar. Aquilo que o chefe tupinamb consumia no era, porm, a par-

    te-predador do inimigo, pois esta quem devorara fora o matador recluso.A frao do inimigo que lhe cabia era, pois, sua parte-caa. Em outraspalavras, tudo indica que os humanos eram aqui consumidos como se fos-sem simples comida e que, portanto, o repasto era um comer com e comoalgum em que a subjetividade do objeto devorado estava ausente. As-sim, conforme a definio que propus, a antropofagia tupinamb no eraum canibalismo. Comia-se um corpo humano reduzido condio de ob- jeto, por meio do qual os comedores se identificavam entre si e produziam

    uma condio comum20

    . No parece ser por outra razo que todos, mesmoas crianas, deveriam comer tudo.J o matador, pelo simples ato de matar, consumia outra coisa que a

    carne, detonando um processo de transformao, marcado publicamentepela recluso. Mas o que era essa outra coisa? Na literatura sobre guer-ra indgena na Amaznia, encontramos vrios termos para designar o quese adquire ao matar um inimigo. Temos desde atributos corriqueiros comofora e coragem, at categorias da filosofia e da psicologia, como subjeti-vidade, atividade e intencionalidade, passando por conceitos metafsicoscomo esprito, sopro e alma. Esses termos traduzem categorias nativas quepossuem em comum a idia de que esse algo adquirido corresponde auma capacidade que pertence ao outro (humano ou no-humano), queao ser capturada por meio da predao, torna-se parte integrante da pes-soa do predador como um suplemento. Esse suplemento pode ser conce-bido como um sujeito-outro que se funde ao matador, estabelecendo comele uma relao assimtrica ( o caso arawet, por exemplo), ou comouma capacidade no hipostasiada em uma forma-sujeito, mas que impli-ca a possibilidade futura de estabelecer relaes assimtricas com sujei-tos-outros ( o caso parakan).

    Gostaria de sugerir que, em ambos os casos, esse suplemento captu-rado corresponde parte-predador do inimigo, ou, para nos aproximarmosdos conceitos nativos, sua parte-jaguar, que destacvel e pode ser trans-ferida de um sujeito para outro. Para os Parakan, por exemplo, o homi-cdio no conduz apropriao de um esprito: o matador simplesmentecontaminado pelo odor de sangue e pela gordura-mgica ( kawahiwa )da vtima, que lhe conferem uma capacidade predatria e criativa 21. Estacapacidade est associada quela de sonhar, por meio da qual se familia-rizam inimigos que transferem cantos aos sonhadores. Estes cantos sodenominados, eles mesmos, jaguar ( jawara ), e o sonhador dito ser ummestre dos jaguares ( jawajara ). Ao oferecer um canto, o inimigo d uma

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    parte de si mesmo para o sonhador, sua parte-jaguar. Mas o que umaparte-jaguar? Trata-se daquilo que permite a um sujeito, em uma relao

    com outro sujeito, determinar a direo do movimento da predao fami-liarizante.O matador, em suma, por meio do ato homicida captura a parte-ja-

    guar da vtima. O que resta, pois, aos comedores uma outra parte, obje-tivada em um corpo, e em particular na sua carne, que poderamos cha-mar de parte-caa, que sua potncia enquanto comida. Cada uma de-las corresponde, assim, a uma das posies em uma relao de predao.Nem todos os seres, porm, possuem-nas em igual medida, pois a parti-

    o indexada pela cadeia alimentar. Assim, o jaguar encontra-se emum plo extremo, pois tudo nele remete parte-predador; embora pos-sua carne, ele no visto como contendo uma parte-comida e, portanto,raramente consumido para fins alimentares 22. Isso talvez explique porque os Tupinamb realizavam um simulacro do ritual antropofgico utili-zando o jaguar como vtima, mas, ao contrrio do que faziam com o ini-migo humano, no o comiam. J os porcos, como vimos, possuem umaparte-comida nada negligencivel e, ao mesmo tempo, grande atividade.A separabilidade desses dois componentes se expressa na distino entreo mestre dos porcos (ou o chefe da vara) e seus animais: o primeiro repre-senta a parte-jaguar, enquanto os segundos, um coletivo annimo, cono-tam o que h de passividade nos porcos. Alis, os Piro afirmam explicita-mente que o mestre dos porcos o jaguar de sua espcie (Gow 2001: 69).

    Em resumo, pode-se admitir que, na antropofagia guerreira, a distin-o entre matadores e comedores corresponde quela entre comer algume comer com e como algum, e que, portanto, o ato de comer um humanoera, antes de tudo, uma prtica comensal. Consumia-se um corpo-outropara produzir-se como corpo de parentes.

    Resta-nos agora saber se a mesma anlise se aplica antropofagiafunerria. Nesta, costuma-se reencontrar a distino entre os que comeme os que no comem, distino que recortada pelo parentesco, mas nemsempre da mesma maneira. Parece haver uma diferena, por exemplo,entre o consumo da carne e dos ossos do morto. Se, no primeiro caso, osparentes prximos no comem (enquanto os afins ou parentes distantescomem), no segundo, so os parentes do morto que costumam comer econtrolar quem pode comer com eles. A distino, no entanto, bem maiscomplexa, pois alguns povos consumiam tanto a carne como os ossos domorto, e por vezes estabeleciam proibies e prescries de natureza va-riada. No posso aqui dar conta dessa variabilidade. Por isso, coloco-meuma nica condio para que a anlise sobre a antropofagia guerreira pos-

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    sa ser estendida funerria: preciso, minimamente, que eu possa afir-mar que a carne que se come a parte-caa do parente morto.

    o que nos prope Vilaa (2000) para o caso wari. Os mortos eramconsumidos como comida, uma assimilao expressa ritualmente em doismomentos: primeiro, quando os afins comiam o cadver cortado e assadocomo caa; em seguida, no rito que encerrava o luto, quando todos, inclu-sive os parentes prximos, comiam caa animal como se esta fosse o cad-ver humano. O trabalho do luto, realizado no intervalo entre o primeiro eo segundo momento do rito, permitia aos consangneos desfamiliarizaro morto e, assim, partilhar da viso dos afins, identificando-o comida

    (Vilaa 2000:96), i.e., a um objeto que suporte-inerte de outras relaes.A antropofagia funerria wari seria, pois, um comer como e com, mesmosendo um humano o suporte da comensalidade. Da a exigncia de quetodos os parentes do falecido estivessem presentes, inclusive aqueles dis-tantes e habitando em outras aldeias, embora isto acarretasse com fre-qncia a putrefao do cadver.

    A distino entre aqueles que comiam e os que no comiam no era,porm, da mesma ordem daquela existente na antropofagia guerreira. Aabstinncia dos parentes manifesta o processo de desfamiliarizao deum morto-mesmo operada pelo complexo ritual, enquanto a do matadorexprime um processo de familiarizao de um morto-outro. Os movimen-tos so em direes opostas, mas correspondem a duas perspectivas deum mesmo processo, pois a desfamiliarizao para uns corresponde fa-miliarizao para outros. Se o funeral wari cesurava as relaes de paren-tesco construdas ao longo da vida, produzindo o esquecimento, ele per-mitia, ao mesmo tempo, a familiarizao do morto por outra espcie degente, j que ele era incorporado espcie agressora responsvel porsua morte ou ao mundo subaqutico dos mortos (Vilaa 1992:61; Conklin2001:166).

    A identificao do cadver comida parece ter caracterizado tam-bm, como chamou a ateno Vilaa (2000), a antropofagia funerria dealguns povos pano (Dole 1962:570-571) e dos Guayaki (P. Clastres 1968).Nestes casos, havia uma nfase no carter alimentar do ato a carne saborosa, os que no a comem ficam magros , bem como a noo de quetodos, exceo dos parentes prximos, podiam ou deviam comer o mor-to. Assim, por exemplo, entre os Guayaki, embora o consumissem geral-mente assado, quando se tratava de uma criana pequena preferiam cozi-nh-la para que houvesse lquido suficiente para todo mundo (P. Clas-tres 1968:39). Essa comensalidade funerria estendida era um ndice deci-sivo para determinar as redes de aliana entre os diferentes bandos gua-

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    yaki: grupos amigos deveriam ser convidados (ou deveriam receber umaparte do cadver), sob pena de irem flechar aqueles que os haviam es-

    quecido. (P. Clastres 1968:40-41). Outra idia que reencontramos no casoguayaki a de que a antropofagia produzia ou favorecia a dissociao en-tre o corpo e a alma, uma noo que me parece referir-se dupla opera-o de esquecer-se o morto e ser esquecido por ele, i.e., sua desfamiliari-zao aqui e sua familiarizao alhures.

    Os Kaxinaw, povo de lngua pano, fornecem evidncias suplemen-tares para nossa anlise. Conforme McCallum (1996:66), a antropofagiano era uma prtica funerria universal, mas reservada a homens e mu-

    lheres de idade mais avanada, respeitados na comunidade, i.e., pessoasque encarnavam mltiplas relaes de parentesco, constituindo-se emns centrais da rede relacional (da porque mortos sem parentes eramsimplesmente enterrados). Ser comido era privilgio de alguns, mas co-mer, um dever de todos. A carne era aqui tambm consumida como caa.Ao oferec-la aos convivas, o lder da cerimnia dizia: Comam, comam,o filho da anta que noite morreu (McCallum 1996:67). Enquanto car-ne, ele podia servir comensalidade entre parentes: como se o mor-to, afirma McCallum, efetivamente fizesse um ltimo ato constitutivodo parentesco. Em vez de oferecer carne de caa e peixe comunidade[...] ele oferece seu prprio corpo (1996:72). No entanto, trata-se da co-mensalidade entre parentes excluso do morto-parente, que deve seresquecido, o nome apagado, a casa destruda, o caminho varrido.

    Se a parte-caa do morto servia produo do parentesco entre osvivos, a alma do corpo e a alma do olho deviam partir e constituir umaexistncia alhures, agora como um estrangeiro (um Nawa ) a primeira junto aos animais da floresta, a segunda junto ao Inka . Temos aqui umconjunto de correspondncias reproduzidas em diferentes escalas: o corpoest para as almas, assim como a carne est para os ossos, assim como aalma do corpo est para a alma do olho. O primeiro termo aparece co-mo a parte-presa do segundo termo, parte-predador, como se cada pessoacontivesse em si vrias relaes de predao. Assim, se o festim da carneestava associado liberao da alma do corpo, o festim dos ossos esta-va associado liberao da alma dos olhos, ossos referidos pelo kaxina-w Pudicho Torres como os ossos do Nawa , do homem poderoso, do ho-mem do cu, do jaguar, do jiadama (gigante) [...] (McCallum 1996:67)23.

    Essa replicao de figuras da presa e do predador, objetivadas empartes distintas do corpo do morto e em diferentes escalas, pode ser re-encontrada em outros contextos rituais onde no se praticava a antropo-fagia. Assim, por exemplo, os Jvaro utilizavam a cabea do inimigo, sua

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    parte-jaguar, como um objeto-sujeito; ao mesmo tempo, capturavam por-cos que eram engordados, mortos e servidos aos convivas como substitu-

    to (imiak) do inimigo i.e., da parte-caa do inimigo (Descola 1993:303).Contudo, essa partio no era simples, pois os porcos-vivos familiariza-dos no so a mesma coisa que os porcos-mortos cozidos, replicando a dis-tino mais geral entre a cabea e os porcos (Fausto 2001:460). O mesmoprincpio pode ser aplicado escatologia. No caso pirah, por exemplo,corpo e nome tm destinos distintos. Cada nome que um corpo recebeuem vida se divide, na morte, em dois componentes antagnicos, kaoaibo -ge e toipe , que representam grosso modo a parte-presa e a parte-preda-

    dor da pessoa (ou uma capacidade gregria e socivel em oposio a ou-tra guerreira e canibal). Os toipe vivem querendo predar os kaoaiboge ,que podem sofrer at duas mortes, mas na terceira transformam-se em jaguar; j os toipe quando mortos pela primeira vez viram um super- toi-pe , mas se forem mortos de novo tornam-se um kaoaiboge , que ento se-gue seu destino de presa at virar jaguar (Gonalves 2001:204-205).

    A complexidade de cada exemplo etnogrfico mereceria uma anli-se cuidadosa que aqui no posso fazer. Minha leitura da antropofagia nodeve, pois, ser confundida com uma anlise dos ritos antropofgicos. Hmuito mais a dizer sobre eles, a comear sobre as inverses das posiesde presa e predador e sobre as formas complexas pelas quais as relaesso postas em ao. Dito isso, porm, insisto que possvel afirmar e is-to o bastante para os objetivos deste texto que na antropofagia a car-ne do morto humano consumida como comida, que h uma disjunoentre predao ontolgica e comensalidade, e que essa disjuno se er-gue sobre a possibilidade de separar a pessoa humana em uma parte-predador e uma parte-presa, ou, se quiserem, em uma parte-ativa e outrapassiva, indexada freqentemente, mas no exclusivamente , pela rela-o de predao.

    A moral do canibal

    Ao longo deste texto, afastei-me progressivamente da formulao corren-te de que os animais e vegetais tambm so pessoas, formulao esta queestabelece uma equivalncia, no contexto das relaes entre humanos eno-humanos, entre pessoa e parte-ativa ou essncia antropomrfica deplantas e animais. Preferi tratar a pessoa como um amlgama de ativida-de e passividade, como algum que contm em si as duas perspectivaspossveis de uma relao de predao. A passagem da potncia ao ato,

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    da tenso ao predatria, o que produziria a disjuno dessas pers-pectivas na forma de partes. Procurei chamar a ateno tambm, embo-

    ra sem elaborar devidamente, que essa partio no simples, mas com-plexa, pois replicvel em diferentes escalas e sujeita a inverses e con-densaes. Uma anlise cerrada de certos rituais iluminaria esse tipo decomplexidade, digamos, fractal, que congnita ao modelo da socialida-de amaznica recentemente proposto por Viveiros de Castro (2001) (ver,tambm, Kelly Luciani 2001).

    Minha tentativa de reconceitualizar o dualismo corpo e alma teve co-mo ponto de partida a proposio de Brightman para o caso algonquino

    da floresta boreal. Sua questo inicial a mesma que a minha e de ou-tros amazonistas (Descola 1998; Hugh-Jones 1996): em ontologias em quetanto humanos como animais so pessoas, como diferenciar o consumoda caa do canibalismo? Como vimos, sua resposta consistia, por um lado,em postular a distinguibilidade entre corpo zoomorfo e alma antropomr-fica, e, por outro, em adotar a idia dominante de que o canibalismo sedefine como consumo do semelhante. Na medida em que a similitude en-tre animais e humanos se d no plano da alma, comer o corpo da presano seria uma forma de canibalismo. Neste artigo, afastei-me dessa nooe busquei redefinir o canibalismo como consumo da parte-ativa do outro.Em seguida, procurei mostrar que, se a formulao de Brightman em ter-mos do dualismo corpo e alma econmica, ela leva a uma simplificaoindevida dos materiais etnogrficos. Ao dizer que no h um dualismosimples, no estou afirmando que inexistam distines entre componen-tes mais ou menos materiais, mais ou menos representacionais, mais oumenos relacionais que constituem a pessoa humana e no-humana. Con-tudo, tais distines no esto organizadas por um dualismo global, sejaporque as almas so mltiplas, seja porque o corpo no uma unidadediscreta, seja porque a alma tem corpo e certas partes do corpo tm maisalma do que outras, ou ainda porque o corpo no contm nenhuma almadentro de si, sendo a presena da alma a manifestao da ausncia docorpo.

    Tampouco a distino entre roupa-animal e essncia-humanide pa-rece aplicar-se bem Amaznia. De um lado, muitas das capacidadesagentivas e subjetivas que conferem intencionalidade e potncia aos hu-manos encontram-se privilegiadamente em alguns animais, em especialnos predadores (e, dentre estes, naqueles que possuem desenho, comoo jaguar e a anaconda). De outro, os humanos tambm possuem uma pe-le-roupa que os diferencia de outros tipos de seres (sejam animais ou ini-migos), e que pode ser decorada, vestida ou mesmo trocada. Essas pe-

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    les ou roupas representam, muitas vezes, a parte-ativa da pessoa, seusuplemento de beleza e de capacidade agentiva. Eis por que, por exem-

    plo, os Barasana queimam as penas e plos dos animais que querem des-subjetivar para que sirvam de alimento, e usam-nas como ornamentosquando querem se apropriar do poder potencialmente perigoso de suasarmas (Hugh-Jones 1996:141). O corpo zoomorfo no , assim, uma uni-dade monoltica, substrato mecnico habitado por uma essncia humani-de. Cada uma de suas partes, e em diferentes medidas, um edifcio dealmas mltiplas.

    Para evitar, pois, a oposio simples entre corpo e alma (ou entre apa-

    rncia-animal e essncia-humana), propus a distino entre um consumodo outro na condio de sujeito e seu consumo na condio de objeto. Es-sa distino, porm, dinmica e complexa, pois supe que cada sujeitodo cosmos possui, em propores prprias sua espcie e condio, umapotncia positiva para ocupar a posio de agente e outra negativa paraocupar a de paciente em uma relao de predao. Essa dupla potncia interna ao sujeito e constitutiva de sua condio especfica; ele , por as-sim dizer, um amlgama de predador e de presa. Quando se estabeleceuma interao predatria de dois sujeitos assim constitudos, define-seuma meta-relao na qual um dos sujeitos ocupa a posio ativa e o outroa passiva. O ato predatrio, porm, no eclipsa a constituio dual do su- jeito; ao contrrio, manifesta-a por meio de uma fratura que pode condu-zir a dois tipos de consumo: de um lado, aquele prprio guerra e ao ca-nibalismo, no qual se consome a parte-predador da vtima; de outro,aquele caracterstico da cozinha alimentar, no qual se consome a parte-presa da vtima.

    Essas modalidades, porm, exigem trabalho suplementar, pois emambos os casos h o risco de reverso de posies. De um lado, ao consu-mir a parte-predador da presa, o guerreiro corre o risco de tornar-se elemesmo uma presa por isso, ao homicdio, segue-se o resguardo no quala parte-predador da presa feita parte-predador do predador 24. De outro,o ato predatrio no faz da caa imediatamente um objeto-inerte pre-ciso continuar a desconstituir o sujeito, retirando progressivamente a ati-vidade nele contida por meio de uma srie de operaes xamnicas e cu-linrias. Esse processo de objetificao reduz a presa condio de comi-da, que serve para produzir os corpos dos parentes e o corpo de paren-tes, isto , a socialidade do parentesco (Vilaa 1999).

    Ao contrrio do jaguar, temvel predador solitrio, os humanos pos-suem recursos para distinguir a alimentao cotidiana do canibalismo.Da a importncia do fogo culinrio nos mitos analisados por Lvi-Strauss

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    em Le Cru et le Cuit (1964). Esses mitos no falam da instaurao de umaruptura definitiva entre cultura e natureza, mas sim da constituio de

    dois cdigos predatrios, o do jaguar e o dos humanos, que faz do primei-ro um mestre entre mestres e permite aos segundos produzir o parentes-co25. O fogo culinrio torna possvel a alimentao carnvora no-canibal,permitindo aos parentes produzirem-se como parentes. Se s consumis-sem animais-agentes terminariam por ou bem identificar-se com eles (tor-nando-se um deles), ou bem por no reconhecer outra forma de relaoalm da devorao. Eis por que alguns caadores no comem sua prpriapresa, ou no a transportam, ou evitam certas partes como a cabea. Eles

    querem continuar a ser humanos, provendo de carne suas esposas, filhose afins. Da por que a generosidade e a moderao so indexadores bsi-cos da aceitao do parentesco, enquanto a gula e o egosmo so asso-ciados ao feiticeiro, ao jaguar e solido.

    A questo tica na Amaznia parece, assim, incidir antes sobre asrelaes entre os parentes do que sobre as relaes entre humanos e ani-mais. Mesmo porque no se trata de excluir o canibalismo, no h rupturadefinitiva entre o cdigo predatrio do jaguar e aquele dos humanos. Tra-ta-se, isso sim, de tornar o canibalismo no excessivo, mediatizado por es-pecialistas e praticado em ocasies rituais. Se assim no fosse, a predaocanibal tornar-se-ia a medida das relaes interiores e no haveria pro-duo do parentesco. Seramos todos s jaguares e isto s alguns deuseso so.

    Recebido em 10 de maro de 2002

    Aprovado em 5 de julho de 2002

    Carlos Fausto professor do PPGAS, Museu Nacional/ UFRJ, e pesquisadordo CNPq. autor de Os ndios Antes do Brasil (2000) e de Inimigos Fiis: His-tria, Guerra e Xamanismo na Amaznia (2001).

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    Notas

    * Uma primeira verso deste artigo foi apresentada na cole des Hautes tu-des en Sciences Sociales, em 2001. Agradeo a Philippe Descola pelo convite ecomentrios, que me auxiliaram a precisar a anlise, e CAPESpela bolsa de ps-doutorado. Agradeo tambm a Jean-Pierre Goulard, Dimitri Karadimas, Jean-Pierre Chaumeil, Isabelle Daillant, Marcia Damaso e Carolina P. de Arajo pelasidias e dados que compartilharam comigo. Sou grato a Marcela Coelho de Sou-za, Federico Neiburg e Steve Hugh-Jones pela leitura do manuscrito e peloscomentrios valiosos que fizeram. Steve ofereceu-me ainda vrios dados sobre o

    Noroeste Amaznico. Finalmente, agradeo a Aparecida Vilaa que me influen-ciou decisivamente na concepo deste texto, tanto na formulao do problema,como nas respostas que forneo. A responsabilidade pelos erros e desvios de rota do autor.

    1 Refiro-me aos trabalhos de Overing (1991; 1999) e de seus ex-estudantes,formados na London School of Economics na dcada de 80, em especial Gow(1991), McCallum (2001), Belaunde (2001) e Santos-Granero (1991).

    2 Vilaa (1992:292) colocou-se essa questo no final de seu livro e forneceurespostas pontuais em textos subseqentes (1999; 2000; 2002). A discusso queaqui desenvolvo busca alinhavar vrios de seus argumentos com o fio da preda-o familiarizante (Fausto 1999a; 2001).

    3 Para rejeitar a identificao entre caa e guerra, P. Clastres vale-se de umargumento irnico. Ele parte de uma proposio caracterstica dos materialistas echega a uma concluso que lhes seria inaceitvel: [...] se a guerra caa ento aguerra a caa ao homem. A caa deveria ento ser a guerra aos bises, por exem-plo. (1982:176). A concluso, porm, s inaceitvel se a equivalncia entre caae guerra for traada pelo lado da natureza, e no da cultura.

    4 Sobre a aquisio de bens por animais, ver Brightman (1993:163); paraexemplo semelhante na Amaznia, ver Conklin (1995:97).

    5 O modelo benvolo convive com outro esquema relacional, que Brightmandenomina adversativo, no qual a caa se manifesta como violncia mascarada.Esse segundo modelo se coaduna com uma noo mais geral que associa a capa-cidade predatria ao poder; a cadeia alimentar funciona como ndice pragmticodo poder relativo de diferentes seres, [dispostos] em uma hierarquia intransitiva

    (Brightman 1993:197). Esse modelo adversativo, indexado pela relao predador-presa, seria minoritrio no contexto boreal.

    6 Um mito cree, que narra uma caada da perspectiva de um jovem humanocasado com uma fmea caribu, ilustra essa concepo: Os seres humanos vemos caribus correndo dos caadores, e quando um deles alvejado, o animal cai e

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    morre; mas o jovem, assistindo ao mesmo evento, v uma pessoa fugindo, vestidaem uma capa branca, que ela joga fora e que o caador pega como o animal mor-to. (Tanner 1979:137). Compare-se com uma narrativa amaznica (yaminawa)em que a dupla perspectiva de um caador desafortunado, que fora adotado poruma vara de porcos e recuperado por seus irmos humanos, serve predao. Ohomem-porco lidera uma caada contra seus ex-parentes-porcos, apontando osanimais e dizendo: esse era meu sogro, dispara!, essa era minha mulher, dis-para! (Calavia Sez 2001:163).

    7 Sobre a noo de comunidade de abstinncia, ver Viveiros de Castro(1992:192) e Rival (1999:65).

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    A conexo entre a noo de familiarizao e o universo alimentar expl-cita entre os Barasana. Segundo Hugh-Jones (inf. pessoal), o verbo ekaa-re signi-fica tanto alimentar como domesticar, e os xerimbabos so denominados eka -riera , aqueles que alimentamos. O verbo ekaa-re , dar comida, distingue-sede isi-re, dar e de waha yi-re , trocar, vender, implicando justamente a noode domesticar, amansar, familiarizar (algo que se aplica tambm oferta cerimo-nial de comida e comensalidade entre afins no ritual).

    9 A reverso desse processo tambm pode ser pensada como reinstituiodos laos de comensalidade. Entre os Asurini do Tocantins, a ressurreio de umxam passa pelo oferecimento de mingau doce de palmito para seu esprito, quedeve beb-lo, noite aps noite, at acostumar-se novamente aos vivos e voltar vida a partir dos ossos (Andrade 1992:220-222).

    10 Remeto o leitor aos exemplos arquinotrios sobre o homicdio guerreiro ea devorao dos mortos por deuses ou animais, que bem ilustram esse tipo de ope-rao identificatria por englobamento.

    11 H vrios elementos que podem servir como ndice de potncia subjetiva,como a longevidade (Lagrou 1998:41; Harner 1978:138), a capacidade de vocali-zao, o comportamento matrimonial de certas espcies (Descola 1998:27) e assimpor diante. A quantidade e a cor do sangue so tambm ndices importantes decapacidade transformativa, prestando-se a justificar interditos e preferncias ali-mentares, como ocorre entre os Pirah, que distinguem os animais em trs cate-gorias de comestibilidade segundo esses critrios (Gonalves 2001:359).

    12 As tcnicas mais radicais so anticulinrias: a incinerao que reduz acapacidade transformativa (da por que utilizada comumente contra feiticeiros,xams e missionrios) e a putrefao que, ao contrrio, intensifica a tenso trans-

    formativa (ver Lagrou 1998:38-39).13 Os Cree parecem ter praticado o canibalismo nas guerras contra os Inuit

    no sculo XVIII, comendo pedaos de carne crua do inimigo. Brightman (1993:142)relaciona essa prtica a uma outra, de caa, que consiste em beber o sangue fres-co do caribu ou do alce.

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    de equivaler a um processo de subjetivao (veja-se, por exemplo, o caso jurunaem Lima 1995).

    20 A socializao do ato homicida (i.e., da predao ontolgica) dava-se emoutro momento do ritual. Como apontei alhures (Fausto 1999b:270-271), entre osTupinamb, as mulheres podiam beneficiar-se da predao ontolgica e ser reno-meadas por meio da participao nos eventos que precediam execuo, como arecaptura simblica do cativo. O mesmo ocorria com as mulheres nivacle, que dan-avam com o escalpo-trofu ainda ensangentado para que um pouco da alma-esprito da vtima passasse para elas (Sterpin 1993:42).

    21 Isto, porm, s ocorre quando se mata um homem adulto. Crianas no tm

    gordura-mgica, e mulheres tm-na escassamente. O assassinato de uma mu-lher no produz o estado de enfurecimento criativo que conduz o matador a novaspredaes ontolgicas, mas apenas faz ter fome, levando-o a ser mesquinhocom os parentes. Ele se torna um jaguar em bemol, pois no partilhar a caa, comodisse, um comportamento associado ao felino e oposto comensalidade entreparentes.

    22 A lngua muinane da Colmbia, rica em classificadores nominais, parecerefletir essa concepo. O classificador -gai, que se aplica a todos os seres anima-dos, jamais afixado aos termos jaguar ( hwku) e cacique (ke??i), como seestes fossem exemplares no-marcados dessa classe, os prottipos de animao(Vengoechea 2001).

    23 No Alto Rio Negro, o consumo de ossos calcinados parece tambm ter essamesma conotao, pois eles representam a parte-predador da pessoa, estando as-sociados aos ancestrais, s flautas jurupari, ao jaguar e anaconda (Hugh-Jones,inf. pessoal).

    24 Como sugeri alhures, o esquema mais comum para se pensar esse acmu-lo de potncia predatria o da relao senhor-xerimbabo.

    25 Notem que os mitos j insistem no fato de que o jaguar completamentedespossudo do fogo que lhe pertencera: mesmo as brasas que caem no caminhodurante a fuga so cuidadosamente recuperadas ou extintas. Note-se, ainda, quea verso wari desse mito faz do fogo culinrio um fogo funerrio: os humanos de-finem-se como comedores de parentes mortos assados.

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