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    Heidegger e a poesia

    Benedito NunesProfessor-titular aposentado da Universidade Federal do Par

    Natureza Humana 2(1):103-127, 2000

    Resumo: A dialogao com a poesia, para Heidegger, consiste nadoao da linguagem aos outros, que preserva a palavra e sua aber-tura. Essa dialogao se estabelece entre o pensador que l e a poesiaque a ele se doa na leitura. Aproveitando a ddiva, Heidegger utili-

    za-a quer no papel de tradutor quer no papel de escritor-poeta.Palavras-chave: Ereignis, Rede, Gestell, Gelassenheit.

    Abstract: In Heidegger, the dialogue with poetry consists of an actof gibing to others, that preserves the words and its openness. Thedialogue is settled between the thinker, who reads the poetry, and

    the poetry that gives itself in the writing (literature). Takingadvantage of this donatio, Heidegger uses poetry in his role oftranslator as well as of poet-writer.Key-words:

    Ereignis, Rede, Gestell, Gelassenheit.

    Em nossa poca, tende o pensamento filosfico a interrogar apoesia quando no a interrogar-se perante a poesia. W. M. Urban e G.Bachelard, por exemplo, interrogaram a poesia tentando avaliar o alcan-ce cognoscitivo das imagens poticas. Sartre e Merleau-Ponty adotariama segunda atitude, de interrogao da filosofia perante a poesia, essa lti-

    ma um limite desafiador filosofia, espcie discordante de pensamento,autnomo ou irredutvel ao discurso filosfico. Mas quaisquer que sejam

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    as diferenas entre esses filsofos na maneira de avaliarem o nexo entrefilosofia e poesia, nenhum deles adotou quaisquer dos dois modelos tradi-

    cionais, o disciplinar e o transdisciplinar, pelos quais se costuma pautar orelacionamento dessas instncias do pensamento.

    Domnios heterogneos, a poesia proviria da imaginao e a fi-losofia, da razo. Aquela est, por isso, subordinada ltima, como rbi-tro racional da verdade, que lhe compete estabelecer e disciplinar. A essemodelo disciplinar, ainda seguido por Hegel em sua Esttica, ope-se osupradisciplinar dos romnticos alemes: pela imaginao, que concorre

    com a razo, tambm entramos no reino do saber, e s vezes a poesia capaz de alcanar verdades superiores s filosficas. Os romnticos con-trariaram a hierarquia tradicionalmente admitida e inverteram a supe-rioridade do racional na do imaginrio. Exclusivistas, os dois modelosobrigam-nos a escolher ou a poesia ou a filosofia. Quero crer que sob ainfluncia de Heidegger, Sartre e Merleau-Ponty optariam por um ter-ceiro modelo, de carter transacional: o movimento de vai e vem, ora da

    poesia para a filosofia ora da filosofia para a poesia.Essa transao o que se particulariza em Heidegger, de acordo

    com a sua inteno de dialogar com a poesia. Em que consiste, porm,essa dialogao? Quais os locutores desse dilogo, e como ele possvel?No se pode enfrentar essas perguntas sem saber de antemo que cir-cunstncias predispuseram a filosofia heideggeriana, nas duas fases porque passou, a primeira de 1927 a 1936e a segunda de 1936 a 1976, data

    da morte do ltimo grande pensador deste sculo prestes a findar, a transar,como transou, com a poesia. Em ambas as fases, essa filosofia se orientoupela questo do sentido do ser, interligada, desde o incio, mas no damesma maneira, questo da linguagem.

    Na primeira fase, correspondente elaborao de uma ontologiafundamental, nascida em Ser e tempo (1927), o esforo de Heidegger seconcentra no trabalho de analisar o ente que ns mesmos somos, o Dasein,

    definindo a fala (die Rede), a caminho da elucidao do problema atacadonaquela obra, como uma das estruturas constitutivas do ser desse ente.

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    Heidegger e a poesia

    Estruturas constitutivas seriam aquelas articuladoras dos com-ponentes da conduta desse ente, que a anlise pode descobrir no seu cor-

    riqueiro agir de todos os dias, na sua lida cotidiana: manejar coisas prxi-mas, teis (das Zuhandene), ao alcance da mo, instrumentando-as; cir-cunscrever as coisas distantes, fora do alcance da ao imediata, que avista abrange (dasVorhandene); entrosar-se com os semelhantes, conviven-do com os outros Dasein, como capaz de conviver consigo mesmo, nageneralidade dos casos, no modo da gente, do sujeito impessoal e annimoque frases tais como pensa-se, diz-se, faz-se exprimem tudo isso no ciclo

    das atividades cotidianas, estabilizadas, externalizadas e pblicas, que nossolicitam, preocupam-nos, ocupam-nos e envolvem-nos. Solicitao,preocupao, ocupao e envolvncia que, como espcies da lida diria, fixama imediata compreenso que temos de ns mesmos e do mundo no espelho doser-em-comum (dasMitsein), do mundo compartilhado. Compreender-nos ecompreender o mundo implica, nesse plano, em nos conduzir como ser-no-mundo, mas no como elementos nele includos, posto que damos a ns e ao

    que nos rodeia um sentido e, portanto, mesmo de maneira vaga, admitindoque tal coisa, tal utenslio, tal pessoa, isso ou aquilo. Registre-se, ento, apressuposio da investigao heideggeriana o Dasein o ente que compre-ende o ser, nisso se distinguindo dos demais entes de que resultou, naspginas de Ser e tempo, a ontologia fundamental.

    Mas a dificuldade peculiar da anlise, apoiada em tal pressupo-sio, est na circunstncia de que esse ente, cujo ser investigamos, tam-

    bm existe buscando-se a si mesmo, ora na direo da existncia autnti-ca como poder- ser, ora na direo das inautnticas modalidades do annimoe pblico ser-com-os-outros. O investigador no pode seno descrever essasdirees, porque procede como fenomenlogo, e no pode seno lograr, por-que tambm procede como hermeneuta, desencobrir-lhes o sentido latente.Assim ele descreve aqueles movimentos diretivos, o primeiro como o para-ser(dasZu-sein), implicado na busca, e o segundo, como o de decada, objetificadora

    e alienadora, na direo do que annimo, pblico. O Dasein, certo, estsempre se movimentando numa ou noutra direo.

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    Concluir, portanto, o mesmo investigador, que as estruturas,tais como ser-com-os-outros e, paralelamente, ser-no-mundo, so estru-

    turas constitutivas nossas, retiradas do estado de latncia, em que nor-malmente se encontram, para o estado manifesto em que os coloca omtodo fenomenolgico-hermenutico adotado pelo analista. Quem dizlatncia diz o que no completamente ocluso; refere-se, portanto, antesde a qualquer conhecimento terico e independentemente dele, abertu-ra do ser do Dasein. Um tanto paradoxalmente, abertura significa o con-junto de condies preliminares ontolgicas, dir Heidegger que nos

    habilitam a agir, a pensar, a conhecer, condies que correspondem aestruturas do comportamento e, como tais, constitutivas do Dasein e desua compreenso do ser. Ora, dado que a existncia desse ente no sedetermina por uma essncia prvia maneira de um objeto, o que querque ele compreende acha-se iluminado por essa prvia compreenso doser e, dessa maneira, comensurado a uma sua possibilidade, segundo aterminologia heideggeriana, a um seu projeto. Mas, ao mesmo tempo que

    essa iluminada compreenso a forma heideggeriana do lumen naturaleescolstico , um sentimento, um mood, um tom, preconfigura a possibi-lidade de compreenso, e assim preconfigurando-a, marca a situao emque nos encontramos, o Da, o a do Dasein, lanado como existente nuncaimune a uma disposio de nimo (Stimmung), sentindo sempre, entreguea si mesmo, desta e daquela maneira.

    Contudo, o sentimento da angstia nos leva, quebrando a bar-

    reira daquela incluso que nos familiariza com as coisas e pessoas emtorno, a transcender os entes e, por esse modo, a defrontar-nos com omundo, tornado infamiliar sob o foco dessa disposio afetiva. Atranscendncia, que tambm integra a conduta do Dasein, possvel por-que esse ente, vivendo numa tenso, por ele mesmo escamoteada, dianteda expectativa de sua prpria morte, da qual comumente foge, descobre-se temporal e finito: temporal, na medida do futuro que essa expectativa

    presume e que sua experincia do momento se antecipa, ligando o pas-sado ao presente, e finito, dado que, nessa dimenso, a temporalidade,

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    confirma-se a distintiva conotao o cuidado (die Sorge) de seu ser, queexiste historicamente, eis que suas decises possibilitam o fazer e o escre-

    ver a histria. Sua abertura permite-lhe sentir e compreender temporal ehistoricamente; dessa forma, interpreta-se a qualquer momento e a qualquermomento interpreta o mundo, luz da disposio de nimo e do projeto.

    Interpretar desenvolver, a partir de um pressuposto e deacordo com uma perspectiva j dada, as possibilidades de compre-enso do ser, especificado como isso ou como aquilo, antes que o conhe-cimento terico, concretizando apenas uma das possibilidades de com-

    preenso, venha traduzir-se em proposies determinadas. Mas essaprvia e preliminar interpretao do mundo, que aflora no intercurso dafala (die Rede), e que no escapa ao risco de estabilizar-se num estadoexterior e pblico, , como melhor compreenderemos depois, anterior predicao.

    Traduzimos die Rede por fala, com a inteno de ressaltar ocarter limtrofe dessa noo, entre linguagem e no linguagem, entre as

    significaes que o interpretar mobiliza e os atos, to variados, de enun-ciar, rezar, prometer, louvar, invectivar, admoestar, etc., com os quais seabastece e se refora a incessante conversao diria. Est claro que signi-ficaes pedem palavras e que a conversao, em suas mltiplas espcies,compe-se de distintos modos de discurso. Discurso tambm uma dastradues correntes de die Rede, que no rejeitamos. Mas preferimos tra-duzir die Rede por fala, para insistir no ncleo comunicacional dessa no-

    o, que Heidegger ter visado para introduzir, como que pondo umacunha existencial nas concepes de linguagem, o fundamento desse fe-nmeno nas estruturas mais primitivas j nossas conhecidas, a disposio eo projeto, assim colocando-o no mbito das possibilidades do Dasein, ouseja, de sua abertura enquanto ser-no-mundo e ser-com-os-outros. A fala o intercurso dos homens entre si e, como intercurso, um verbo: o falarinformando uns aos outros algo a respeito das coisas.

    No sou eu que o digo, e sim Plato, no Crtilo; quando o disse,afianou o carter de organum, de instrumento do falar, como ato de um

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    sujeito na utilizao dos nomes (onoma), de que dispe a sua lngua. Masenquanto sistema de signos ou enquanto cdigo social, de que o indiv-

    duo se utiliza para escolher dele combinaes apropriadas expresso deseu pensamento pessoal, a lngua, conforme concluiria, com Saussure, alingstica moderna, o verdadeiro organum. A fala seria somente o flatusvocis, a manifesta escolha individual e acidental de uma parcela do reper-trio da lngua pelo sujeito falante, graas capacidade psicofsica dearticulao fonadora de que dotado.

    Qual o real objeto dessa escolha? As palavras? Mas as palavras

    significam, e assim ter de ser escolhida a significao, que no entantono est a elas colada como etiqueta de sua identidade, pois que as pala-vras se desdobram num significante e num significado. Significaes jacorrem na interpretao de ns mesmos e do mundo. E se o Dasein ser-no-mundo e ser-com-os-outros, o simples manuseio dos teis j mobilizasignificaes, como as mobiliza o circuito da convivncia. No fosse as-sim, no seria o homem, segundo Aristteles disse, um zoon logon ehon,

    um animal que tem logos, este vetusto termo filosfico traduzido porHeidegger como o que deixa e faz ver aquilo sobre o que se discorre e o fazpara quem discorre e para todos aqueles que discursam uns com os outros(Heidegger 1927, p. 32). A fala informa algo aos falantes; deixa-os ver efaz com que vejam algo quando falam entre si. Se deixa-os e faz ver, estoeles uns com os outros. O que vem e so instados a ver algo que lhes comum se falam conversando ou discorrendo. Tendo logos, o homem fala,

    e falando tem linguagem, afirmao bvia para ns, mas no para osgregos, a quem faltava, como falta aos japoneses, em seus lxicos, a pala-vra linguagem. A linguagem a mesma fala quando pronunciada,exteriorizada, que j cai dentro de um sistema ou de um cdigo semitico,o da linguagem como lngua (die Sprache). A fala a linguagem existencial-mente considerada, em que se prolonga a interpretao, na medida emque atravs dela se articulam a disposio e o projeto que a condicionam.

    Agora podemos compreender, conforme j antecipamos, que ainterpretao seja anterior predicao. Essa anterioridade sustentada

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    pela fala, no registro de logos, o que deixa e faz ver, e no da comunicao, odomnio do que se expressa ou pronuncia. Predicar, atribuindo um

    predicado a um sujeito e formulando uma proposio, exige primei-ramente que se veja o ente determinado, descoberto de um certo mo-do e visto sob certo aspecto na fala. Assim poderia concluir Heideggerque a proposio, longe ser um elemento primitivo do pensamen-to, uma sntese derivada do discurso, o qual lhe serve de pressuposto.E em seguida ousaria Heidegger transferir a verdade de que oneopositivismo fez a nativa habitante da proposio do mbito

    desta para o reticulado mbito da abertura, onde, delimitada pelas pos-sibilidades extremas do discurso, como estrutura constitutiva do Dasein, eque so o escutar e o silenciar, no mais concordncia da intelignciacom a coisa, adaequatio rei et intellectus, mas velamento e desvelamento,no sentido da palavra grega aletheia. Pela fala, o Dasein j aletheuein,aquele que no esquece (alethes) o ser de que a eminente abertura e doqual estaria escuta mesmo quando a respeito dele silencia. Nesse senti-

    do, diria Heidegger que a verdade do Dasein ou que o Dasein est naverdade.1

    Escuta-se antes de ouvir, silencia-se indo contra a corrente dafala. Escutar uma forma de perceber compreendendo. Quem surdo,pode escutar sem ouvir. E quem ouve verdadeiramente, no escuta sonsesparsos, sem conexo; percebe o rudo pesado da chuva, o prolongadocicio do vento, etc. Perceber dessa maneira compreender, como se com-

    preende o outro escutando-o e como escuta ou ausculta com as mos,apalpando, aquele que nada v. Mais do que a minha fala, a escuta dequem me ouve assinala a ocorrncia da compreenso. Pode tambmassinal-lo o meu silncio, quando interrompo ou deixo em suspenso omeu discurso para aquele que me ouve.

    1 S se d verdade na medida em que o Dasein . [...] Ns pressupomos verdade,porque ns, sendo no modo de ser do Dasein, somos e estamos na verdade(Heidegger 1927, 44, p. 227)

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    Pelo que acabamos de expor, v-se que tanto quanto a dis-posio e o projeto, a fala2, que os interliga numa interpretao do Dasein

    por si mesmo e do mundo pelo Dasein, a qual precede e condiciona apredicao, sintetiza, como uma modulao preliminar da experincia edo pensamento, o lastro pr-terico e pr-reflexivo que abastece, per-manentemente, a filosofia heideggeriana. Interferindo contra o predo-mnio de qualquer forma de teorizao, seja cientfica, seja axiolgicaou valorativa, esse lastro, que a imuniza contra o esprito de sistema, pre-dispe-na a aproximar-se da experincia e do pensamento na arte e

    na poesia.Mas devido ao seu vnculo existencial, a estrutura constitutiva

    da fala segue o mesmo movimento oscilatrio daquele a quem constitui,ora mantendo-se na claridade da abertura, ora decaindo para a objetivaoalienadora. Seja ou no inspirada numa categoria religiosa hebraico-cris-t, a to famosa decada do Dasein, como envolvncia na lida cotidiana, ,antes de tudo, quando o circuito da fala, engrenado ao da comunicao,

    transmite a interpretao comum, pblica, annima, repetitiva e reflexa,a decada na e pela linguagem, j convertida em instrumento manipulvel.Ento a linguagem a linguagem de todos e de ningum; gastas peloconsumo, manejveis pelo seu valor de troca no mercado das significaesestabilizadas que a gente negocia, convertidas na gestualstica verbal dofalatrio, da parolagem, as palavras fecham-nos ao mundo. E s podernovamente reabri-lo o discurso, se reavivado pelo seu tom, pela disposi-

    o que o abre ao mundo e o qualifica de potico: A comunicao daspossibilidades existenciais da disposio, ou seja, da abertura da existn-cia, pode tornar-se a meta explcita do discurso potico (Heidegger 1927,p. 162).3

    2 O discurso a articulao significativa da compreensibilidade do ser-no-mundo, aque pertence o ser-com, e que j sempre se mantm num determinado modo deconvivncia ocupacional (Heidegger 1927, 34, p. 16)

    3 Die Mitteilung der existenzialen Mglichkeiten der Befindlichkeit, das heisst das Erschliessen

    von Existenz, kann eigenes Ziel der dichtenden Rede werden.

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    Eis, portanto, segundo a ontologia fundamental firmada em Sere tempo, onde e como a fala se abre ao discurso potico, poesia. Abre-se,

    num tom fundamental, modelado por uma disposio de nimo (Stimmung) altura da existncia mesma, da verdade do Dasein, da aletheia quer im-plcita quer explicitamente. Quando explicitamente, tem por meta a co-municao das possibilidades existenciais da disposio. Potencialmen-te, a fala, sempre que numa tonalidade, j potica; e a poesia se concre-tiza atualizando, num Stimmung, as possibilidades da abertura.

    Seria errneo localizar o Stimmung, de que Ser e tempo j se ocupa

    (Heidegger 1927, 29, pp. 136-7), no sujeito, como simples fenmenosubjetivo ou querer explic-lo a partir da ao das coisas sobre os nervos.Ao contrrio, o Dasein do homem est lanado nos tons do mesmo lanoriginal que o ente enquanto tal (Heidegger 1980, p. 91).

    Portanto, a predisposio poesia j marca, desde Ser e tempo, opensamento heideggeriano. Mas a passagem poesia, de modo a que seefetivasse uma dialogao com ela, s se deu, como um salto, na segunda

    fase, quando, abandonada a ontologia fundamental, auscultando a mes-ma questo do ser nos textos dos pr-socrticos e dos poetas Hlderlin,Rilke, Trakl e Stefan George, Heidegger indagar sobre a essncia daobra de arte em A origem da obra de arte (Der Ursprung des Kunstwerks,1935) e sobre a essncia da poesia no curso sobre Os Hinos de HlderlinGermnia e O Reno, de 1934-35 (Hlderlins Hymnen Germanien undDer Rhein). Nessa indagao, delegou papel proeminente s noes de

    verdade e linguagem.A essncia da obra de arte no reside nem na sua criao pelo

    artista nem no ato de contempl-la, e sim na sua origem no ser mesmoque se desvela na obra, que assoma em sua organizao sensvel, ntica,tal como, no exemplo focalizado em A origem da obra de arte, a labutadiria, a sucesso dos dias e das noites, o cansao e o repouso na imagemempastada de cores da bota de Van Gogh talvez do artista e no de uma

    camponesa ou como o deus votivo, evolado do espao sacral do templogrego em runas, de que nos fala aquele ensaio heideggeriano. Do ntico

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    ao ontolgico, tal o caminho na criao, repetido contemplativamentepelo fruidor ou espectador, e que constituiria a verdade da arte posta em

    obra. Na arte, a verdade opera e se transluz; seu ser iguala seu aparecer.E se a o ser como aparece e se aparece como , isso ocorre devido aocarter linguareiro (sprachlich) dessa operao, ao fato de que a verdade sefaz palavra para transluzir ou aparecer. Sem linguagem, no haveria omanifesto, e, por conseguinte, no haveria, tambm, trnsito do nticopara o ontolgico.

    A linguagem no s nem primeiramente uma expresso oral

    ou escrita do que deve ser comunicado, diz Heidegger em Os hinos deHlderlin. A linguagem o que conduz o ente como ente ao estado demanifesto (Heidegger 1980, p. 62). E no pode conduzi-lo a esse estadosem projetar-se numa forma de dizer (sagen), que j potica. A essnciada arte , portanto, a poesia (die Dichtung). E a poesia consiste essencial-mente na instaurao da verdade (Stiftung der Wahrheit) em trs diferen-tes sentidos correlatos: como dom (Schenkung), que na obra o inaugural,

    como fundao (Grndung), posto que o que se inaugura, latente no desti-no histrico de um povo, tambm lhe d fundamento, e como comeo(Anfang), porque o que se inaugura e funda d origem ao indito, aonovo, ao que principia. Sempre que a arte acontece, quer dizer, quandoh um comeo, produz-se na histria um abalo e esta comea ou recome-a (Heidegger, A origem da obra de arte, p. 88).

    O acontecimento da arte enquanto poesia, e a poesia enquanto

    instaurao da verdade, fornecem-nos o quadro compreensivo dos estu-dos sobre Hlderlin, o primeiro resultante do curso de 34/35 Os hinos deHlderlin Germnia e O Reno de que um resumo o mais conhecidotexto Hlderlin e a essncia da poesia (Hlderlin und das Wesen derDichtung), publicado em 1937.

    Por que Hlderlin ser, para Heidegger, o Virglio disponvel, agui-lo, tal como guiou Dante, na Divina Comdia, numa espcie de ritu-

    al de passagem, regio onde colher o ramo de ouro da palavra poti-ca? Jamais se explicar a predileo do filsofo por Hlderlin; pode-se,

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    sim, elucidar porque o escolheu num determinado momento, logo aps asua renncia reitoria da Universidade de Freiburg in Brisgau, quando

    comeara o seu dissdio com a ideologia poltica do NSDAP.Escolheu-o mediante trs razes que ele prprio enumera na

    seguinte ordem:

    1) Hlderlin o poeta do poeta e da poesia. 2) Simultaneamente,Hlderlin o poeta dos alemes. 3) Como Hlderlin tudo isso,poeta do poeta enquanto poeta dos alemes, de maneira latente e

    difcil, ele ainda no se tornou potncia na histria de nosso povo. Ecomo ainda no , preciso que assim se torne. Contribuir para isso fazer poltica, no sentido mais alto e prprio do termo, a talponto que quem conseguir obter alguma coisa nesse terreno, noter necessidade de discorrer sobre o poltico. (Heidegger 1980,p. 214)

    Vontade poltica e vontade potica unem-se na deciso de

    Heidegger de oferecer ao povo alemo, em Hlderlin, um outro funda-dor, com quem podemos aprender quem somos, preparando-o, com aterra natal, para esses deuses e semideuses que viro, e a que se referem,consagrando a linguagem como matria da poesia e assim tambm comoa procura de uma nova linguagem, os versos de Germnia e O Reno.

    O bouches lhomme est la recherche dun nouveau langage

    Auquel le grammairien daucune langue na rien dire.

    Nessa nova linguagem, invocada por Apollinaire em La Victoire,o dizer e o ver, a dico e a viso se tornariam complementares umaespcie de sagrao da linguagem, cujos variados temas, tons e formas seconstelam sempre em torno do preferencial e reverenciado objeto: a pr-pria poesia, cantada, louvada, interpelada, mesmo quando se louva e canta

    outra coisa. essa poesia da poesia que Heidegger tematiza em Hlderlin.Tematizar bem o termo, uma vez que Heidegger relaciona na obra des-

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    se poeta as incidncias do dizer projetivo, potico. No podemos fazeraqui, como seria preciso, a volta completa nas poesias de Hlderlin, ex-

    plicando cada uma delas em particular. Em lugar disso, consideraremoscinco palavras do poeta, cinco Leitmotive sobre a poesia:

    1. Poetizar: a mais inocente de todas as ocupaes.[Dichten: Die unschuldigste aller Geschfte.]2. Eis porque o mais perigoso dos bens, a linguagem, foi doadoao homem [...]: para que testemunhe sobre aquilo que ele [...].

    [Darum ist der Gter Gefhrlischstes, die Sprache den Menschengegeben [...] damit er zeuge, was, er sei [...].]3. [...................................................................................................]Do momento em que somos um dilogoe que podemos ouvir-nos uns aos outros.[Seit ein Gesprach wir sindUnd hren knnen voneinander.]4. Mas o que permanece, fundam-no os poetas.(Was bleibt aber, stiften die Dichter.)5. Rico em mritos, , no entanto, poeticamente que o homemhabita esta terra.(Voll Verdienst, doch dichterisch wohnetDer Mensch auf dieser Erde.)4

    O tpico 3, por onde comearemos, liga-se ainda, como um pro-longamento do ser-com-os-outros, fala dentro da lngua ou lingua-

    gem na fala. Se no texto o poema toma a palavra porque vai bem longena linguagem, implantando-se ali onde ouvimo-nos uns aos outros: nodilogo que somos. Ouvimo-nos uns aos outros ouvindo a poesia ou vice-versa, porque a linguagem, como imensa rede dialgica em que somoscolhidos, a caixa de ressonncia de uma disposio de nimo. No so-mos ns que possumos a linguagem, a linguagem que nos possui parao melhor e para o pior (Heidegger 1980, p. 24). Essa posse independe

    4 Hlderlin, apudHeidegger 1951 [1937], p. 31.

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    de ns, como sujeito da vontade e da ao. J estamos sob o seu domnioquando o poema, que no uma simples construo da linguagem ofe-

    recida como objeto nem um processo psquico de produo de vivncias,toma a palavra. Poetizar dichten, um dizer (sagen) sob o modo do signoque torna manifesto (Heidegger 1980, p. 30), ajustado a um tom: otom como tom faz ocorrer a manifestao do ente em sua abertura(Heidegger 1980, p. 86), e funda, por isso, na palavra, na sua essnciadizente, o desvelamento do ser. Quando segura o que fica, quando retmo que permanece, a palavra potica. Was bleibt aber, stiften die Dichter

    (O que porm permanece, fundam-no os poetas).Mas a palavra potica no delega a verdade ao Dasein. ao

    prprio ser, oculto ou revelado atravs dela, que a verdade pertence. Se oDasein est na verdade, ele o est como aquele que ocupa a abertura nadireo da qual se move. O que, finalmente, Heidegger aprende deHlderlin a finitude do homem como Dasein, sujeito aos poderes con-traditrios da linguagem: jogo inocente com as palavras, o exerccio da poesia

    a mais perigosa das ocupaes, porque, mexendo com a linguagem, mexecom a abertura e seu velamento, com a verdade e a no verdade.

    Em Germnia, Hlderlin move-se na direo das divindadespags:

    Os antigos deuses visitam de novo a terraPois aqueles que vo chegar nos apressam,

    E a tropa sagrada dos deusesno se demorar no cu azul.5

    Graas fundao pela poesia do ser na linguagem que o ho-mem pode, como Hlderlin, escutar os deuses, interpretando-lhes os sig-nos, que integram a vida do povo. Por via de conseqncia, a poesia fora histrica formadora.

    5 Hlderlin, apudHeidegger 1980, p. 10.

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    Do fato que o signo como gesto dos deuses por assim dizer arga-massado pelos poetas nas fundaes da lngua de um povo, sem que

    talvez o povo o suspeite, o ser instaurado na existncia histrica dopovo e, neste ser uma indicao e uma dependncia so depositadas.(Heidegger 1980, p. 43)

    Dessa forma, tanto vale dizer, como em Hlderlin e a essncia da poesia,que a poesia a lngua primitiva de um povo histrico (Heidegger 1951[1937], p. 43), ambas, poesia e lngua, abrangidas pela categoria da

    historicidade, quanto afirmar, nas prelees de Introduo metafsica, que

    a lngua a poesia originria em que um povo poetiza [dichtet] o ser.Inversamente, vale dizer: a grande poesia pela qual um povo entrana histria inicia a configurao de sua lngua. Os gregos, comHomero, criaram e conheceram essa poesia. A lngua estava presen-te ao seu Dasein como irrupo no ser, como uma formao[Gestaltung] da abertura do ente. (Heidegger 1958, p. 131)

    Poesia e lngua formam a histria por onde transitam os signosdos deuses mediados pelos poetas desse ponto de vista nncios sempretardios, como teria sido Hlderlin para as divindades gregas j perecidase para o Deus cristo, morto, assassinado pelos homens, no mundo secu-larizado sob a ao do prprio cristianismo, como anunciaria o Zaratustrade Nietzsche. Os poetas nomeariam o sagrado. Mas o que podem nomear

    esses retardatrios, entre a defunta religio dos deuses antigos e a aparen-temente viva religio crist, seno um sagrado erradio, promessa incum-prida de ambas?

    Mas, amigo, chegamos muito tarde! Os deusesvivem de verdade,Mas acima de nossas cabeas, num outro mundo.6

    6 Aber Freud, wir kommen zu spt/ Zwar leben di Gtter,/ Aber ber dem Haupt droben inanderer Welt (Heidegger 1951 [1937], p. 48).

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    Fundando o ser, a poesia tambm nomearia o sagrado, dandoacesso ao lugar onde os filhos da terra devem habitar, se eles residem

    poeticamente nesta terra (Heidegger 1951, p. 149).Residir poeticamente nesta terra? O que significa isso?Talvez signifique, numa converso potica do pensamento

    paradoxal converso por certo, em contraste com a diretriz calcula-dora, utilitarista da civilizao tcnica dominante da poca usufruirda terra como terra . E que usufruir da terra como terra seno habi-tar a linguagem como linguagem, que o que permite ligar a ter-

    ra ao cu pela palavra fundadora? Habitar poeticamente quer dizer:estar diante da presena dos deuses e ser atingido pela presena essen-cial das coisas (Heidegger 1951, p. 42). Habitar poeticamente aterra no se extrapolaria nem para cima nem para baixo: um ficartico ou ontolgico, no entre-dois, que so quatro (die Vier, a Quadrin-dade), entre o cu e a terra, entre os deuses e os homens, ou en-tre os mortais e os imortais, mas como uma fora de cultivo, mais pri-

    mitiva do que a cultura, misto do colere (amanho da terra, trato do solo)e do aedificare latinos, pelo qual o potico antecederia e ultrapassaria aliteratura.

    A poesia poderia ento aparecer dentro e fora da literatura, comoa mobilidade da palavra fundadora, fronteiria entre logos e mythos. Comologos, a poesia mostra, faz ver; e o que faz ver o longnquo que o mitoassinala. A dialtica do prximo e do longnquo rege a palavra projetiva.

    No algo de determinado o que a poesia mostra; e o longnquo que elafaz ver nada . Ela mostra alguma coisa que h e que no (Heidegger1959, p. 193). Anula-se a palavra potica como doao de si mesmapara fazer aparecer o que h. Quando faz aparecer o que h, a linguagemfala, a lngua (die Sprache) ento retomada pelo discurso (die Rede). Inves-tigar a poesia seria, ainda, postulando-se, como Heidegger, um conceitoextralingstico de linguagem, isto , um conceito margem da lings-

    tica que tem por fundamento uma teoria do signo, investigar a lingua-gem como fala.

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    Diz Heidegger que a teoria do signo, atravs do qual se perdeutodo o lastro da verdade no sentido de aletheia, ainda conservado por Aristteles,

    estabeleceu um ajuste entre palavra e objeto representado:

    As letras mostram o som da voz. Os sons da voz mostram o que experimentado na alma, que, por seu lado, mostra as coisas que atin-gem a alma [...]. Mostrar, sob mltiplas formas, velando ou desve-lando, fazer com que a coisa aparea, deixar apreender [vernehmenlassen] o que assim aparece, e deixar que seja retomado o que foiapreendido. O trao que liga o mostrar ao que ele mostra, trao quejamais foi desenvolvido puramente a partir de si mesmo e de suaprovenincia, se transforma, com o passar do tempo, numa relao,estabelecida por conveno entre um signo e seu significado.(Heidegger 1959, p. 193)

    Antes porm o signo (das Zeichen) estaria correlacionado a umaexperincia de mostrar (das Zeigen). S se poderia designar ou representar

    depois que a palavra mostrasse o que objeto de representao ou desig-nao. De que maneira a linguagem mostra, seno dizendo-o em pala-vras? E quando se estabelece equivalncia entre dizer (sagen) e mostrar (zeigen),em torno do que se desvela como aletheia, como verdade originria do serdesencoberta na linguagem, as palavras se tornam poticas. J Heideggeremprega a palavra palavra (das Wort) numa chave potica, que a convertede signo representacional em sinal vocativo: aceno e apelo (Winken, Ruf).

    As palavras nos acenam para o ser que desvelam, e que, tantonos textos dos primeiros filsofos quanto nos poemas, apelam para ns,chamando-nos o pensamento. O pensamento segue este nico apelo: dasRuf des Seins, o apelo do ser que no apenas repercute na linguagem, masque somente nela aparece, quando nomeado, no sentido fenomenolgico dovir a furo, sair luz e mostrar-se.7 Da a estranha e metafrica afirmativaconstante da Carta sobre o humanismo: A linguagem a casa do ser. Em

    7 Das Nennen verteilt nicht Titel, verwendet nicht Wrter, sondern ruft ins Wort. (Heidegger1959, p. 21)

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    seu abrigo habita o homem. Os pensadores e poetas so os guardiesdesse abrigo [...] (Heidegger 1957a, p. 25). Mas quem constri a casa?

    O pensamento, que se autntico, sempre pensamento do ser ou o pr-prio ser que se desvela construindo a casa da linguagem? Num caso enoutro ocorreria uma sobreposio entre poetar (dichten) e pensar (denken).Pensar o ser e diz-lo se distanciariam entre si por um mnimo afastamen-to: a forma potica.

    A primeira nota da forma potica a configurao rtmica:exprime o sentido, presidindo a colocao, a escolha, a distribuio das

    palavras. Poetizar, dizer poeticamente , antes de tudo, dichten: mostrar,tornar a coisa visvel, manifest-la de forma particular numa configura-o rtmica, que, por sua vez, atende a uma disposio anmica. Hlderlinteria nomeado os deuses, expressando os sinais que os tornassem visveis.Mas a nomeao nunca a direta imposio de um nome; se o fosse, ela sedeteria num ente estabilizado. A nomeao, que no se esgota em darnomes, chama, diz, invoca e evoca, trazendo presena as coisas nomea-

    das reunidas num s stio (Ort). Esse apresentar que mostra reunindo o canto, melos.

    O canto corresponde, ento, confeco de uma forma, que forma da linguagem ou da lngua (die Sprache). Esta conserva a viso,(Heidegger 1951, p. 13) para a qual convergem o dito e o no-dito, en-tremeados de silncio (Gelute der Stille). Assim a poesia s pode nascer dofervor pensante da recordao (Heidegger 1954, parte 2, p. 11) re-

    cordao retrocessiva at aos mananciais de que surge: o cu e a terra, osmortais e os imortais, os homens e os deuses, nela trazidos colao. Dequalquer maneira, atingiramos, nesse ponto, aquele limite literrio outextual da poesia a que j nos referimos, e que o pensamento do ser.Mas o poeta, como Hlderlin no hino Como em dia de festa, nomeia osagrado e o pensador diz o ser.8

    8 Der Denker sagt das Sein. Der Dichter nennt das Heilige. (Heidegger 1943, GA 9,p. 312).

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    Mas eis o dia! Eu o esperava e vi-o chegarE do que vi, que o Sagrado seja a minha palavra!

    Nomear, diz Heidegger, dar nome ao que pede nova designa-o: o longnquo dos deuses, e portanto do mito, chamados para que setornem visveis. Dizer o ser apenas o pronunciar-se do pensador sobre asua constante evidncia? Aparentemente divergem o poeta e o pensador,aquele nomeando para fazer existir, o ltimo declarando o que j existe.Nomearia o poeta sem dizer, diria o pensador sem nomear. Se aceitamos

    essa separao, aceitaramos que o poeta estivesse margem do ser e queo pensador estivesse margem do sagrado. Mas o sagrado ainda ser e oser tambm nomevel se tanto como o anterior ingressa no mostrarreunindo do canto. Tanto quanto nomear o sagrado, dizer o ser recai namodalidade da palavra projetiva, potica. Sagrado e ser se aproximamtanto quanto o pensador se aproxima do poeta. Mas o ser apropriado pelopensamento , para Heidegger, congenitamente potico.

    O pensamento do ser o modo original do dizer potico. Nelea linguagem acontece como linguagem, em sua prpria essncia [...]. Opensamento a poesia original (Heidegger 1957b, p. 303). Inversa-mente, poder-se- afirmar que o dizer potico, contm, como pensamen-to do ser, a essncia da linguagem. No fundo, poetas e pensadores diriamsempre o mesmo, e porque isso acontece, eles no so apenas, segundoaprender Heidegger com Hlderlin, os guardies da casa do ser, mas

    seus co-fundadores, uns e outros concordantes na vocao da poesia en-quanto dom da palavra no dizer mostrando e no mostrar dizendo. A poe-sia se faz com a linguagem e como linguagem (die Sprache), sempre querepassada numa Stimmung, numa tonalidade fundamental correlata.Embora descartado, depois de Ser e tempo, o termo anterior, die Rede, na fala, contra a usura da parolagem a moeda corrente da fala,contra a qual Mallarm se insurgiu que a poesia doa-se aos outros; mas

    doa-se no dizer de cada texto, em sua fala, pela qual a linguagem, conver-tida em dilogo, transmite sempre para todos um renovado bem sem

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    desgaste. A converso em dilogo possvel porque remissiva ao Dasein esua abertura. Respondida fica assim a primeira pergunta que fizemos no

    incio.Mas quem dialoga com quem? O dilogo se estabelece entre o

    pensador que l e interpreta e a poesia que a ele se doa na leitura. Oslocutores, nesse dilogo, no so o pensador e o poeta; a poesia deixa emsuspenso a existncia biogrfica deste ltimo, produzindo o desapa-recimento elocutrio do poeta, que cede a iniciativa s palavras mo-bilizadas pelo choque de suas desigualdades (Mallarm [1895-6] 1945,

    p. 366).Das Wort: das Gebende (A palavra: o que doa) (Heideg-

    ger 1959, p. 193). Porque doao, a palavra no , no tem ser. Heideggertoma essa ddiva para gui-lo em sua investigao filosfica, querpara traduzir, no estudo dos pr-socrticos, as palavras essenciais deParmnides e Herclito, colhidas em seus fragmentos, quer, desdeas pginas de Ser e tempo, para criar substantivos e verbos ou renovar-lhes

    o significado.Traduttore, traditore; como tradutor, Heidegger aceita o papel

    de traidor das significaes, tradicionalmente estabilizadas, em benefciode uma arqueologia que arranque dos estratos mais profundos da ln-gua grega, de seus mananciais, o sentido prstino. Assim se d com logos,traduzido por colher e recolher, de acordo com sua recuada etimologia delegein, e com physis, derivado de fo e fa, que designam phyein e phainestai,

    aquilo que se pe a luzir, aparece e se mostra. Physis significa presenasurgente; e esta ter sido a original manifestao do ser para os gregos,antes da traduo de physis por natura (natureza), que lhes trouxe a fasehelenstica. Do mesmo modo, aletheia, enquanto velamento e desvelamentodo ser, que em sua prpria economia de presena ora se oculta ora serevela, teria precedido a noo de verdade no sentido estrito. Em todafilosofia, dos primeiros pensadores gregos a Plato e Aristteles, entre os

    esticos e depois entre os escolsticos e os modernos, de Descartes a Kante de Kant a Hegel, um grau maior ou menor de criao verbal investe-se

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    na formao de uma terminologia, de um vocabulrio especfico, de que rica a fenomenologia de Husserl e, mais rica ainda, a fenomenologia

    hermenutica de Heidegger.Ser e tempo nos oferece um repositrio de palavras comuns da

    lngua alem, renovadas, a comear por Dasein, e prosseguindo em ver-dadeiras sries semnticas, como os vocbulos da mesma famlia Sorge,Besorgen (preocupao, ocupao), Welt, weltlich (mundo, mundanamente) e tantos outros na leitura de um texto, em que substantivos de umamesma classe proliferam Zeit, Zeitigung, Zeitlichkeit, Raum, Raumlichkeit

    (tempo, temporao, temporalidade, espao, espacialidade) , gerandoverbos zeitigen (temporar), rumen (espaciar), dingen (coisar) que po-dem ser indicativos de ao prpria do espao, do tempo e da coisa (dieZeit zeitigt, das Raum rumt, das Dingdingt). A essa primeira gerao depalavras acrescenta-se uma segunda, a de termos como Ereignis (a junturado ser e do homem), Gestell(o desvelamento da tcnica, de que se diralgo mais adiante) e Geviert (a relao dos quatro, cu e terra, mortais e

    imortais na Quadrindade), criados, para citarmos apenas trs dos maisimportantes, a fim de assinalar a emergncia de novos conceitos.

    Se o tradutor-traidor se comporta como intrprete, o escritor secomporta como poeta, tratando as palavras, desde Ser e tempo, no comosimples vocbulos, mas como, segundo dir em O que significa pensar?(Was heisst denken?), mananciais, que o dizer (sagen) perfura, mananciaisque tm que ser encontrados e perfurados de novo, fceis de obturar, mas

    que, de repente, brotam de onde menos se espera (Heidegger 1961, p. 89).Assim Heidegger procede perfurao de palavras-fonte em

    no poucos textos, alguns restabelecendo a j rarssima forma dialogalem filosofia, como em Comentriosobre a Gelassenheit, empenhado emreformular, com novas palavras, os conceitos de abertura e horizonte, ecomo De um dilogo sobre a linguagem entre um japons eum questionador (Aus einem Gesprche von der Sprache Zwischen einem

    Japaner und einem Fragenden), no qual discute a possibilidade de vertersignificaes especficas da cultura ocidental, como esttica e lingua-

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    gem, para o mbito conotativo das palavras iki e koto ba do japons areferidas. possvel que, nesse ltimo caso, conforme observou Haroldo

    de Campos, no seu poema Aisthesis, Kharis: Iki de A educao dos cincosentidos, Heidegger no tenha visto e nem os teria decifrado se os visse os ideogramas respectivos quando tratou dessas palavras:

    Se Heidegger tivesse olhado

    para o ideograma

    enquanto escutava o discpulo

    japons(como Pound olhou para ming sollua

    com o olho cubista de Gaudier-brzeska

    depois de dar ouvido a Fenollosa)

    teria visto que a cerejeira cereja koto ba

    das ding dingt

    florchameja

    no espao indecidvelda palavra

    iki.9

    Para Heidegger, o espao indecidvel das palavras , tam-bm, o do pensamento, que ele interligou, escrevendo poeticamentea composio mista em verso e prosa, Aus der Erfahrung des Denkens

    (Da experincia do pensamento), imagem do caminho do campo(Feldwege, Holzwege). Entre versos iniciais e finais, exibe, nessa com-posio, a conflitante experincia do pensamento consigo mesmo, ex-presso em aforismos de um lado da pgina e em frases interruptas deoutro lado, que o escandem no quadro das rpidas mudanas da naturezaexterior o cu, as montanhas, a tempestade, o sol como no exemplo aseguir:

    9 Campos 1985, p. 50.

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    como fundo de reserva calculvel e manipulvel (Gestell), de que o ho-mem se torna elemento integrante. Seria esse desencadeamento de meios

    e fins a essncia da tcnica essncia no tcnica ou fora da tcnica, queconstitui a verdade que lhe prpria. Embora seja outra a verdade operanteda arte, tcnica e arte, que se opem entre si pelo que em cada uma descoberto, aparentam-se porque ambas resultam de um produzir, deum producere, que inerente poiesis. Antigamente, observa Heidegger(1954b, p. 27), dava-se arte o simples nome de tcnica. A poesia dasbelas-artes tambm se chamava tcnica. Da a situao paradoxal adian-

    te delineada.A dominncia da tcnica nos fecha para o ser pelo esquecimen-

    to, mas graas a tal dominncia que temos, por contraste, a experinciada arte como o pr-se em obra da verdade, e da poesia como uma tcnicada vida que nos habilitasse a habitar poeticamente a terra. Nesse senti-do, arte e poesia se igualariam tcnica, enquanto meios de salvar, deplenificar o homem em seu redimensionamento ao ser.

    Mas, desse ponto vista, a verdade no pertence ao Dasein; per-tence ao ser, que une o seu destino ao da Metafsica. Seja qual for a moda-lidade entitativa predominante, idea, physis ou vontade de potncia, nenhu-ma esgota o ser; e cada qual deixa atrs de si um rastro de impensado eum esboo do que ainda se pode pensar. Contaminado pela Metafsica, opensamento racional, de ordem representativa, incapaz de seguir orastro do no pensado e de desenvolver o que ainda resta a pensar. So-

    mente o pensamento afim poesia estaria apto a faz-lo, descobrindo oser nos filsofos que desdenham o sistema e no dizer-mostrar da pala-vra dos poetas. Nessas condies, o pensador, que quem est traba-lhando com os textos de uns e de outros, passaria funo de assis-tente dos filsofos e dos poetas, ao mesmo tempo que intrprete da tc-nica, do ambguo perigo de sua abertura, tendente a destruir-nos ou asalvar-nos.

    Tal , resumidamente, a virada do pensamento de Heidegger,que o levou da ontologia fundamental Histria do ser na segunda fase

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    de sua filosofia. Essa virada , segundo nosso ponto de vista, inseparveldaquela ocorrida nas relaes entre poesia e linguagem. Por tudo quanto

    expressamos anteriormente a respeito, pode-se concluir que, paraHeidegger, no a poesia uma possvel forma de linguagem; a lingua-gem mesma j potica em sua forma original. A poesia mesma possibi-lita por primeiro a linguagem (Heidegger 1937, p. 43). No haverialinguagem sem poesia. Poesia e linguagem so conascentes.

    Outra concluso se impe: a impropriedade de admitir-se umapotica heideggeriana, a no ser que potica signifique, ao mesmo tem-

    po, o princpio da poesia na linguagem ou da linguagem na poesia. Nessecaso, ento, nenhum lugar parte, reservado, na filosofia heideggeriana,pode haver para a potica, que a ocupa inteiramente, formando-lhe oncleo mais denso e problemtico. Da que poesia e pensamento nela seavizinhem sem se confundirem. Cantar e pensar [singen und denken] soos dois troncos vizinhos do ato potico [sind die nachbarlichen Stmme desDichtens], l-se em Da experincia do pensamento (Heidegger 1954b, p. 25).

    Como se d essa vizinhana, que repassa um no outro cantar epensar, e ambos no ser, tambm algumas vezes denominado sagrado, se-no pelo ato potico que a dominncia da tcnica ao mesmo tempo aclarae obscurece? E quem, seno um filsofo-poeta, poderia reconhecer a poe-sia em ato?

    O pensamento de hoje, mais calculista e previsor, prepara-separa deixar a habitao terrestre em demanda de uma habitao csmica

    o espao esvaziado do mundo, que, no entanto, continuaria sendobelo para aqueles eventuais astronautas ainda suscetveis de experimentar oancestral sentimento de admirao e de estranheza, repetindo, talvez, diantedo aparente vazio, os versos de lvaro de Campos/Fernando Pessoa:

    Porque h qualquer coisa, porque h qualquer coisa, porqueh qualquer coisa.

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