biblioteca de autores clássicos - Obras Completas de ... · 1.ª edição Abril de 2013 ......

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b i b l i o t e c a d e a u t o r e s c l s s i c o s

imprensa nacional-casa da moeda, s. a. Av. de Antnio Jos de Almeida1000-042 Lisboawww.incm.ptwww.facebook.com/[email protected]

Imprensa Nacional - Casa da Moedae Centro de Filosofia da Universidade de LisboattuloProblemas MecnicosautorAristteles

designwww.whitestudio.ptcomposioWhite Studioimpresso e acabamentoincm

tiragem800 exemplares1. edioAbril de 2013isbn 978-972-27-2150-9depsito legal n. 353 700/13edio n. 1019311

o b r a s c o m p l e t a s d e a r i s t t e l e s

c o o r d e n a o d e a n t n i o p e d r o m e s q u i t a

p r o b l e m a s m e c n i c o s

v o l u m e i xt o m o i i i

Projecto promovido e coordenado pelo Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa em colaborao com o Centro de Estudos Clssicos da Universidade de Lisboa, o Instituto David Lopes de Estudos rabes e Islmicos e os Centros de Linguagem, Interpretao e Filosofia e de Estudos Clssicos e Humansticos da Universidade de Coimbra.

Este projecto foi subsidiado pela Fundao para a Cincia e Tecnologia.

p r o b l e m a s m e c n i c o s

a r i s t t e l e s

b i b l i o t e c a d e a u t o r e s c l s s i c o s

t r a d u or o d o l f o l o p e s

( c e n t r o d e e s t u d o s c l s s i c o s e h u m a n s t i c o s d a u n i v e r s i d a d e d e c o i m b r a )

r e v i s o c i e n t f i c aa l b e r t o b e r n a b p a j a r e s

( u n i v e r s i d a d e c o m p l u t e n s e d e m a d r i d )

c e n t r o d e f i l o s o f i a d a u n i v e r s i d a d e d e l i s b o ai m p r e n s a n a c i o n a l - c a s a d a m o e d a

l i s b o a 2 0 1 3

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n o ta p r v i a

Para a traduo segui a edio M. E. Bottecchia (1982) pelo facto de constituir a primeira e nica proposta de estabelecimento do texto com base em toda a tradio manuscrita. Com a excepo de um nico caso em que optei por uma lio divergente (5851a22: em vez de ), aceitei todas as alteraes em relao s edies anteriores, graas s quais foi possvel esclarecer o sentido de algumas passagens quase indecifrveis. J quanto numerao dos problemas, preferi seguir a ordem tradicional, em detrimento da proposta por Bottecchia, por considerar que as suas razes no so suficientes para uma alterao to profunda da estrutura (j cannica) do texto (vide Introduo, pp. 29-31).

A acompanhar a traduo propriamente dita segue-se um conjunto de elementos acessrios destinados, por um lado, a contextualizar e aprofun-dar alguns aspectos fundamentais, e, por outro, a agilizar a consulta do vo-lume: uma introduo genrica sobre as condies em que o tratado foi produzido e que explicitasse os seus principais eixos tericos; um glossrio remissivo dos principais termos gregos e respectivas tradues; um ndice de autores antigos e outro de modernos; a bibliografia citada; e uma lista das abreviaturas utilizadas para as edies de fragmentos.

As figuras inseridas no corpo de texto da traduo tentam recuperar parte das ilustraes contidas em alguns manuscritos e nas edies re-nascentistas. A sua incluso torna bastante mais inteligveis as descries geomtricas com que Aristteles exemplifica vrios postulados. Visto que estas representaes denotam algumas divergncias na tradio, segui a reconstituio proposta por Bottecchia na sua traduo italiana (2000) pelo facto de ser integralmente compatvel com a edio estabelecida pela autora. Quanto s que constam na introduo, todas elas so originais (com a excepo da figura 1 que equivale figura 4 da traduo).

Finalmente, resta-me agradecer: ao Doutor Antnio Pedro Mesquita pelo modo diligente e rigoroso como coordenou o volume; ao Doutor Alberto Bernab Pajares pela frutfera reviso de todo o trabalho que em muito o enriqueceu; Leonor Ribeiro pela concepo das figuras que acompanham o texto e tambm pela leitura crtica das seces mais tcnicas da introduo.

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i n t r o d u o

At Galileu, a mecnica lidava exclusivamente com a utilizao e cons-truo de instrumentos destinados a superar constrangimentos naturais. Inclua tambm a reflexo terica sobre estes instrumentos e os efeitos que provocavam, mas o seu propsito era manifestamente tcnico e, como tal, diverso do das cincias da natureza. O seu objecto de estudo era, pois, o movimento artificial impassvel de ser produzido atravs das capacidades naturais do homem, j que dependia por inteiro de uma fora externa. Fo-ram estas as directrizes estabelecidas pelos [Problemas] Mecnicos, o pri-meiro tratado sobre mecnica e, por isso, ponto de partida para o desenvol-vimento desta disciplina enquanto tal.

Atravs de uma leitura do tratado luz de alguns axiomas centrais do sistema filosfico de Aristteles, torna-se possvel a reconstituio de uma doutrina da mecnica fragmentria, contudo pioneira. Consequentemen-te, este cruzamento permitir descortinar o quadro terico subjacente com que se procura explicar o funcionamento de alguns engenhos mecnicos at a construdos e utilizados numa base meramente emprica. Esta pri-meira tentativa trar, pois, duas vantagens acrescidas: por um lado, marcar um ponto de transio de um conhecimento implcito inerente prtica para um saber consciente e sustentado por uma teoria; por outro, aceder ao que seria a mecnica de Aristteles e esclarecer o seu enquadramento na sistematizao dos saberes empreendida por este autor.

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1 . a m e c n i c a a n t e s d o s [ p r o b l e m a s ] m e c n i c o s

1 . 1 b r e v e h i s t r i a d o c o n c e i t o

a ) h o m e r o e h e s o d o

Em termos genricos, o sentido dos compostos de - prende-se com a fabricao artificial ( 1) de engenhos () para resol-ver uma dificuldade especfica e garantir um desfecho favorvel ao agente.

Esta actividade produtiva requer uma capacidade intelectual distante do senso-comum e vocacionada para a resoluo de problemas concretos: a 2. O sujeito detentor deste misto de inteligncia prtica e capacidade criativa consegue, pelo recurso a um engenho, obter um desfecho benfico para si prprio perante uma situao desfavorvel. O exemplo mais famoso (e tambm o primeiro) deste tipo de agente Ulisses, que, na Odisseia, con-segue ultrapassar as dificuldades que vai encontrando a caminho de taca precisamente porque, detentor desta capacidade, resolve em seu benefcio cada um dos vrios problemas atravs do recurso a um determinado enge-nho; por isso, chamado, alternadamente, 3 (muito astucioso/habilidoso) e 4 (muito engenhoso)5.

Nos Poemas Homricos h vrias ocorrncias de compostos de -, mas no existe ainda um termo especfico para engenho, sendo, em vez disso, preferida uma conexo metafrica com instrumentos concretos 6; por exemplo, o tronco ardente com que Ulisses perfura o olho de Polifemo asse-melhado a um trado7 (Od. IX.385). J o verbo bastante frequen-te: a muralha que os Gregos tinham construdo junto das naus para suster o ataque troiano qualificada precisamente com esta forma verbal (Il. VIII.177).

Uma ocorrncia curiosa a do adjectivo com o sentido de irreparvel8. A ausncia de engenhos equiparada impossibilidade de

1. Embora esteja atestado tambm o verbo , a frequncia da forma da voz mdia () incomparavelmente superior.

2. A traduo mais adequada ser talvez astcia, embora o conceito implique tambm o sentido mais prtico de habilidade. Para um desenvolvimento mais alargado da , vide Detienne & Vernant 1974.

3. E.g. Il. I.311, X.382, XIV.82, XXIII.755; Od. II.173, IV.763, XIII.311, XXII.34.

4. E.g. Il. II.173, IV.358, X.144, XXIII.723; Od. I.205, X.401, XVI.167, XXIII.321.

5. A associao directa (isto , implicada sintacticamente) entre e consumada no Hino Homrico a Hermes (319). Neste mesmo texto, usado

6. Por vezes so utilizadas palavras de sentido anlogo, como (ferramenta) em relao aos utenslios de Hefesto (Il. XVIII.409), mas nenhuma delas deriva da raiz -.

7. Um trado uma ferramenta usada pelos carpinteiros para furar madeira.

o adjectivo (aplicado a Hermes) com o sentido de engenhoso (436).

8. tem este significado quando surge associado ao substantivo (obra/trabalho/feito), geralmente no plural, com o sentido de coisas irreparveis. E.g. Il. VIII.130, XI.310.

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soluo sugere que a interveno deste tipo de meios representa o limite mximo da aco, a soluo de ltimo recurso.

A capacidade de criar e utilizar engenhos (a ) podia implicar um des-fecho que, alm de favorvel ao agente, seria prejudicial a terceiros, por resul-tar num logro premeditado. Nestes casos, comum a articulao com outras palavras como (vil): na Odisseia dito que os pretendentes de Pen-lope maquinavam actos vis (Od. XX.394, XXII.432: )9.

Em Hesodo (Th. 146), surge a primeira ocorrncia da palavra , no com o sentido de engenho, antes sugerindo a capacidade para os criar10. O contexto o do trabalho artesanal, portanto absolutamente integrado no mbito da mecnica, mas descreve a aco de figuras divinas (no caso, os Ciclopes11), relegando este tipo de saber para uma dimenso sobre-humana.

b ) h i s t o r i o g r a f i a e d r a m at u r g i a

J na transio para a poca Clssica, comea a estabelecer-se o sen-tido tcnico do conceito, passando o termo a assumir a significa-o genrica de engenho enquanto objecto concreto e factual. O verbo fica cada vez mais restrito ao contexto de fabricao de ob-jectos materiais destinados a facilitar a vida do quotidiano ou a produzir efeitos que seriam inalcanveis sem o recurso a este tipo de meios12.

A maior parte destes casos encontra-se depositada na dramaturgia e tam-bm na historiografia, no implicando que todos eles correspondam a factos histricos; pelo contrrio. No caso do teatro, convm distinguir as referncias includas no enredo dramtico das que dizem respeito s condies de re-presentao, como o famoso expediente do deus ex machina13. Nos escritos histricos, as reservas so de ordem diversa, e mais difceis de esclarecer, em virtude do carcter lendrio que determinados episdios evidenciam. No que trata aos indcios que possamos tomar como factos, eles sero analisados posteriormente. Quanto s referncias entretecidas na fico, ainda que com fundamento histrico, deixarei apenas um exemplo paradigmtico14.

No contexto da descrio da famosa ponte que Xerxes ter construdo para que o seu exrcito transpusesse o Helesponto (episdio amplamente

14. Alm destes contextos mais tcnicos (ficcionais ou no), os derivados de - continuaram a ser usados no sentido metafrico. Por exemplo, a palavra , usada nos [Problemas] Mecnicos como termo tcnico para engenho (e.g. 848a36), muitssimo recorrente na tragdia com o sentido de ardil (A. Ag. 1126, Ch. 981, Pr. 469, 989; E. HF 855, Ion 809, 1116, TrGF V.2 F 288.1 = Stob. 8.1; S. OC 762).

9. Para um exame minucioso deste tipo de associao lexical, vide Micheli 1995: 10, n. 6 para os Poemas Homricos e Chantraine 1974: III 699 para os outros autores em geral.

10. Este sentido de tambm sugerido por West 1966: 209.

11. No se trata dos Ciclopes da Odisseia, conhecidos pelo desdm em relao a Zeus e aos homens. Em Hesodo, estas figuras no tm essa carga simblica, j que apenas so referidos como artfices dos deuses at ao nascimento de Hefesto; fabricaram, por exemplo, o raio de Zeus como prova de gratido pela sua libertao das profundezas da terra (Hes. Th. 501-506).

12. Cf. Krafft 1967: 15.

13. Vide infra p. 15.

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descrito por Herdoto 15), squilo concentrou apenas num verso (Pers. 722) as directrizes essenciais do esprito da mecnica:

, atravs de engenhos uniu o estreito de Hele para obter uma passagem

Perante uma dificuldade imposta pela natureza, uma aporia em senti-do literal16, graas qual a progresso se afigurava impossvel pelos meios convencionais, Xerxes idealiza um engenho () destinado a resolver aquele problema em particular (garantir uma passagem: ) e, por con-seguinte, garantir um desfecho favorvel no caso, invadir o continente.

c ) p l at o

Semelhante associao faz Plato no Crtilo (425d), quando diz que os tragedigrafos recorrem aos engenhos () sempre que se deparam com algum embarao ( ) e convocam os deuses a participar na aco. evidente que este passo no est isento de um trao irnico, bem como diz respeito a um engenho especfico (o do deus ex machina); mas su-gere uma concepo da mecnica similar que temos vindo a notar: um re-curso extrnseco destinado a resolver uma situao aparentemente irresol-vel o que vale tanto para o engenho do deus ex machina em si relativamente representao, quanto para a divindade convocada em relao ao enredo. tambm esta a ideia que transparece de uma outra passagem do Crtilo (415a) em que sugerida uma etimologia to criativa quanto paradigmti-ca: diz Scrates que a palavra composta por (grandeza) e (atingir um resultado). Aproximando o sentido de do de (muito), conclui que algo que permite atingir um resultado de grande envergadura17.

d ) a r i s t t e l e s

Termino esta breve incurso em Aristteles, o autor que estabelece de-finitivamente a terminologia da mecnica e a adequa aos contextos tcni-cos. No quer isto dizer que Aristteles se limita a este sentido do conceito;

15. Nas Histrias, Herdoto descreve pormenorizadamente todo o processo de construo da ponte (VII.33-37, IX.121) e consequente travessia (VII.55-57).

16. letra, significa que no pode ser transposto (isto , um beco-sem-sada) Herdoto, por exemplo, usa o termo abundantemente com este significado (e.g. I.79, II.141). O sentido figurado de dificuldade em contexto filosfico posteriormente cunhado por Plato (e.g. Prt. 321c, Tht. 151a).

17. Segundo Chantraine 1974: III 700, deriva de * (cujo genitivo seria *), timo que tambm deu origem ao termo ; foneticamente semelhante a , mas com um sentido ligeiramente diverso: recurso, expediente (Il. II.342; Od. XII.392; Hdt. II.181, IV.151; Theoc. II.95).

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antes pelo contrrio, recorre tambm s suas implicaes metafricas in-clusivamente em contexto filosfico. Por exemplo, quando, na Metafsica (I 4, 985a18), acusa Anaxgoras de recorrer ao (Intelecto) sempre que encontra uma dificuldade (o verbo usado ), o termo que utiliza para descrever este ardil exactamente .

Quando se refere mecnica enquanto cincia, Aristteles usa um de dois termos: e . O primeiro, precedido do artigo (), diz respeito aos problemas relacionados com a mecnica (Apo. I 13, 78b37), da que seja lcito subentender o termo (problemas). O se-gundo refere exclusivamente a disciplina em si, como, alis, era regra nas palavras formadas pelo sufixo - no contexto especfico dos saberes; surge, por isso, associada a (tcnica) (Metaph. XIII 3, 1078a16), mas tam-bm a (demonstrao) (Apo. I 9, 76a24).

A expresso , a mais frequente, foi transposta para o latim sob a forma mechanica [ars], da qual se originou a palavra portuguesa mecnica.

1 . 2 a m e c n i c a c o m o d i v i n a

Vimos que nas primeiras manifestaes literrias ainda no existe uma concepo da mecnica enquanto cujo resultado permite contrariar os constrangimentos impostos pela e por natureza; antes se verifica um uso mais lato dos compostos de -. Contudo, isso no implica uma total inexistncia de conhecimento sobre os mecanismos e respectivas potencia-lidades. Pelo contrrio; uma anlise superficial a algumas passagens sugere a ideia de que esse tipo de saber (e saber fazer) seria, segundo aqueles poe-tas, pertena exclusiva dos deuses.

Como j foi dito, a principal caracterstica da mecnica consiste em infundir movimento em corpos que, por natureza, no o possuem; isto , um engenho mecnico ter, por definio, um princpio de movimento artificial imposto pelo sujeito que o fabricou. Porm, a interveno do agente apenas necessria na altura da fabricao, estando prescrita uma certa autonomia para o engenho, que aparentemente funcionar por si prprio este motivo foi, alis, o eptome da mecnica aplicada de que so prova os vrios automatismos criados duran-te o Perodo Helenstico. como se o criador do engenho tivesse o poder de implantar um princpio de vida num ente forjado pela , assemelhando-se, assim, aos deuses. Era precisamente esta a noo de mecnica que vigorava im-plcita em Homero, Hesodo e na mitologia tradicional. Sabendo que a implan-tao de um princpio de vida (uma , no sentido mais original do termo) estava reservada aos deuses, a mecnica era, pois, uma divina.

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tambm esta a lgica que preside criao de Pandora por parte de Hefesto (a mando de Zeus): primeiro junta terra e gua18 e depois infunde na mistura fora () e voz () humanas (Op. 60-61).

Entre as vrias criaes mecnicas deste artfice dos deuses, destaca-se uma (ou um grupo delas) pela sua dupla valncia: so, por um lado, enge-nhos em si e, por outro, ferramentas para criar novos engenhos. Trata-se do conjunto de autmatos forjados por Hefesto para o assistirem: servas dou-radas, foles automticos e trpodes. As funes destas criaturas consistiam, fundamentalmente, no auxlio ao deus, no s nas tarefas de artfice, como tambm em actividades mais bsicas do quotidiano: para se deslocar, no caso das servas (Il. XVIII.421)19, e acompanh-lo (inclusivamente para a as-sembleia dos deuses), no caso das trpodes20 (Il. XVIII.378). Em boa verdade, a palavra (autmato) termo usado em Homero para qualifi-car estes engenhos (Il. XVIII.376) pode sugerir alguma autonomia ou livre-

-arbtrio, dada a sua significao mais literal de por livre vontade; mas no esse o caso, na medida em que os autmatos criados por Hefesto depen-dem exclusivamente das suas deliberaes e destinam-se apenas a servi-lo.

No h quaisquer referncias no texto que indiciem o funcionamento interno deste tipo de engenhos nem tampouco qualquer indicao da na-tureza do seu automatismo; ficando apenas a ideia de que foram animados por um sopro vital semelhante ao que fora infundido em Pandora21. Tal como esta, as servas de Hefesto so dotadas de fora () e voz (), alm de que possuem entendimento () no esprito (). Esta carac-terizao sugere, primeiro, que os autmatos so semelhantes aos huma-nos, dado que possuem uma capacidade intelectual () sedeada num princpio de vida ()22 que os anima (Il. XVIII.419-420); segundo, que, perante a ausncia de explicaes quanto ao seu funcionamento, estes casos no se baseiam na existncia efectiva deste tipo de tecnologia data de composio dos textos, como sugerem alguns autores23.

18. O do homem feito a partir do barro tambm recorrente noutros textos cosmognicos, como no Gnesis (2.7) hebraico, no Enki e Ninmah (30-44) sumrio e at na Ilada (VII.99). Alm de telrica, esta concepo antropognica assenta na combinao de determinados elementos em cuja mistura resultante ser implantado um princpio de vida que garante a autonomia. A metfora da dimenso mecnica da criao convidativa.

19. H autores que identificam estas servas com uma espcie de muletas (note-se que Hefesto era coxo); vide Berryman 2009: 25.

20. A razo desta curiosa companhia prender-se- com o facto de as trpodes serem um smbolo de poder (apud Berryman 2003: 351).

21. Sobre a interveno do poder divino na automao dos auxiliares de Hefesto, vide Burford 1972: 196-sqq; Edwards 1991: 195.

22. A palavra , em Homero, tem, por vezes, o significado de princpio de vida; por exemplo, quando Aquiles visitado em sonhos pelo fantasma de Ptroclo, dito que no Hades existem almas () que no tm (Il. XXIII.104). Para uma anlise destes e doutros termos anlogos na pica homrica, vide Pereira 2003: 122-133.

23. Vide Humphrey et alii 1998: 61-62. Por outro lado, h quem sugira que estas seces do texto homrico sofreram interpolaes tardias do tempo de Flon de Bizncio (Prager 1974: 3).

p r o b l e m a s m e c n i c o s

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1 . 3 c o n h e c i m e n t o i m p l c i t o

a ) e g i p t o

No plano material, as manifestaes de um conhecimento implcito da mecnica corporizado por uma prtica de matriz emprica comeam a sur-gir desde cedo; porm, como usual nestes contextos, os casos mais preco-ces trazem algumas dvidas quanto sua validade histrica.

Refere Herdoto (II.195) que, durante a construo de uma das pir-mides do Egipto, foram utilizados engenhos () destinados a erguer pedras de dimenses elevadas dispostos sequencialmente como elos numa cadeia; quanto sua constituio, apenas dito que so feitos de peas de madeira. O carcter duvidoso de tal inovao desde logo denunciado por Diodoro Sculo (I.63), segundo o qual os Egpcios no dispunham desse tipo de tecnologia24. Alm disso, fisicamente possvel que os construtores das pirmides tivessem erguido os blocos de pedra (mesmo os mais pesa-dos) fazendo uso apenas de uma corda produzida a partir de um tipo de palmeira existente naquele local. Atravs desse material, os operrios puxa-vam os blocos por rampas dispostas ao longo da construo que tornavam possvel o transporte exclusivamente manual25.

Contudo, h dados arqueolgicos que sugerem algum grau de validade, ou pelo menos de verosimilhana, ao testemunho de Herdoto. Foi descober-to no Egipto, durante uma escavao decorrida em 1896, uma miniatura de uma espcie de suporte em forma de bero para pedras de alvenaria (de mea-dos do sculo xv a. C.) que se encontrava no Templo de Hatshepsut (fara reinante na poca a que pertence o objecto). Ainda que de dimenses muito reduzidas (236 mm x 105 mm x 51 mm), este objecto singular aduz informa-es pertinentes discusso. que, segundo o costume egpcio daquela po-ca, a edificao de um templo dedicado a um fara era precedida por uma ce-rimnia de inaugurao, durante a qual se colocava objectos votivos no local de implantao, entre os quais poderiam constar miniaturas representativas das ferramentas a utilizar durante a construo26. Ora, apesar de este objecto em particular no validar o testemunho de Herdoto (dado o lapso temporal de dez sculos), ele permite pelo menos supor que o autor tenha visto algum outro similar. Em todo o caso, a descoberta prova que j no sculo xv a. C. se usava engenhos por mais rudimentares que fossem.

24. Tambm Micheli 1995: 12 duvida da descrio de Herdoto.

25. Apud Edwards 2003: 346-349.

26. As informaes sobre este objecto constam na ficha tcnica do Metropolitan Museum of Art de Nova Iorque, onde se encontra depositado (n. 96.4.9), a qual est disponvel na pgina web oficial da instituio.

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Ainda sobre o Egipto, o mesmo Herdoto (II.48) refere outro tipo de mecanismo destinado a contextos religiosos. Segundo o historiador, este povo prestava tambm culto a Dioniso27; e, entre o cortejo dedicado di-vindade, costumava seguir uma figura (com cerca de 45 cm de altura) cujo falo era manipulado atravs de cordas operadas por uma mulher seme-lhante s actuais marionetas28.

b ) r e p r e s e n ta e s d o u n i v e r s o

Em territrio grego, as primeiras referncias a engenhos dizem respeito aos filsofos chamados pr-socrticos. A Tales atribuda uma maqueta do universo, mas no certo que esta criao tivesse componentes mveis, isto , que fosse algo de minimamente mecnico. Segundo Ccero (Rep. I.22), este primeiro modelo teria uma estrutura bastante rudimentar, tendo mais tarde sido melhorado e acrescentado por Eudoxo e Arato, e servido de ponto de partida para o prprio Arquimedes. Anaximandro, a quem atribuda uma explicao de certo modo mecnica do universo, pelo menos metaforicamente29, ter, segundo crem alguns autores, reprodu-zido as suas concepes tericas num engenho concreto e material, cujo funcionamento no seria de todo rudimentar30. Tenham estes primeiros autores de facto construdo este tipo de mecanismos ou no, certo que, pelo menos, funcionaram como modelo a superar. A partir praticamente da poca Clssica, a construo destas representaes materiais do universo foi adquirindo cada vez mais importncia, sendo cultivada de um modo quase compulsivo no Perodo Helenstico31.

c ) n a a r q u i t e c t u r a

Num contexto mais prtico, os engenhos mecnicos comearam a ser utilizados com alguma frequncia na arquitectura, nomeadamente para o levantamento e transporte de grandes blocos de pedra. A fase prvia de construo dependia de duas tcnicas: uma consistia em esculpir salincias ou orifcios (geralmente em forma de U) nos blocos de alvenaria; e a outra,

27. Em boa verdade, Herdoto refere-se ao deus egpcio Osris que identifica com Dioniso.

28. Polbio (XII.13.9) d conta de um engenho equiparvel no mundo grego, mas bastante mais tardio (at posterior aos [Problemas] Mecnicos): um caracol que, nos cortejos da Atenas de Demtrio de Falron, circulava e expelia um muco aparentemente de forma automtica (talvez fosse pilotado por um homem no interior).

29. Por exemplo em DK A 11 (= Hippol. Haer. I.6.4-7), onde se diz que o universo um conjunto de anis concntricos (que representam os astros) a girar a diferentes velocidades.

30. Vide Couprie et alii 2003: 175-179; Hahn 2001: 177-218. Tradicionalmente tambm se atribui a Anaximandro (DK A 1 = D.L. II.1; A 2 = Suid. alpha 1987.1 ) a inveno do gnomon (uma espcie de relgio solar), mas sabido que este engenho foi criado pelos Babilnios (Hdt. II.109). , pois, provvel que Anaximandro o tenha introduzido na Grcia cf. Kirk et alii 1984: 103-104.

31. Para um desenvolvimento mais alargado desta questo, vide Berryman 2009: 81-87, 216-230.

p r o b l e m a s m e c n i c o s

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subsequente, em fixar nesses pontos grandes traves de madeira que serviam de alavancas. Este um caso clssico de conhecimento implcito, j que aquela tcnica punha em prtica o chamado princpio das alavancas cerca de dois sculos antes de vir a ser estabelecida nos [Problemas] Mecnicos32.

d ) a p l i c a o m i l i ta r

No discurso histrico, a palavra , quase exclusivamente, sin-nimo de arma, sendo a mecnica associada a uma cincia militar. Tanto em Herdoto como em Tucdides, os referentes variam desde acepes mais genricas como meios blicos at objectos mais especficos geralmente no contexto da artilharia33. Esta associao quase absoluta da mecnica ao uni-verso da guerra no se justifica por uma codificao prpria do discurso his-trico; antes tem a sua razo de ser numa tendncia de matriz econmico-

-militar que se imps por volta dos finais do sculo v a. C. Nesta altura, a fase mais dispendiosa de um confronto blico era o cerco a cidades fortificadas, visto que, perante a inexistncia de meios para penetrar as defesas deste tipo, os exrcitos mantinham indefinidamente as mesmas posies no terreno sem avanos significativos, consumindo recursos sem qualquer contraparti-da34. Quer isto dizer que os meios de artilharia eram diminutos ou ineficazes.

Era precisamente esta lacuna que a mecnica poderia preencher atravs da criao de novos engenhos que permitissem contornar ou minimizar o problema do cerco; e foi tambm esta a concluso a que alguns polticos da poca chegaram. Comearam, por isso, a contratar especialistas na constru-o de aparelhos blicos sofisticados (alguns provavelmente inauditos) que no pudessem ser neutralizados pelo inimigo, bem como causassem estra-gos considerveis naquele tipo de defesa. Inclusivamente o prprio Pri-cles, segundo refere Plutarco (Per. 27.3), chegou a contratar um especialista chamado rtemon como ltimo recurso; depois de o exrcito ateniense ter sofrido um duro golpe na ilha de Samos, o estadista recorreu aos conheci-mentos deste (assim lhe chama Plutarco) para optimizar o cerco quela cidade35.

A aplicao da mecnica cincia militar no s possibilitava avanos considerveis nas tcnicas de combate, como tambm chegou, num dado momento, a elevar o estatuto social dos mecnicos blicos a um ponto

32. Coulton 1974: 1-2 chega a sugerir que a tcnica de transporte e levantamento usada na arquitectura grega desde o sculo VI a. C. antecipa o contedo do Problema 29 (sobre o transporte de pesos numa trave de madeira). O mesmo autor (p. 16) sugere que esta prtica foi importada do Egipto.

33. Para um levantamento lexicolgico da palavra com sentido militar em Herdoto e Tucdides, vide Micheli 1995: 13.

34. Sobre este assunto, vide Garlan 1974: 122-sqq.

35. Plutarco aponta foro (FGrH 70 F 194) como fonte desta deciso de Pricles. Note-se que o nico testemunho para o fragmento referido justamente esta passagem da Vida de Pricles; cf. Plin. Nat. VII.202; D.S. XXVIII.3.

a r i s t t e l e s

2 1

considervel. O caso mais paradigmtico teve lugar na ilha de Siracusa nos incios do sculo iv a. C. Reinava o tirano Dionsio I, cuja agenda poltica dependia de um forte aparelho militar, pelo que promoveu um recrutamen-to massivo destes especialistas por todo o Mediterrneo. Vindos de Cartago, da Itlia ou da Grcia, estes primeiros engenheiros militares gozavam de inmeras regalias, avultados pagamentos e excelentes condies de traba-lho que Dionsio oferecia a quem apresentasse novas solues para o seu exrcito. Por conseguinte, desta inovao surgiu a primeira catapulta da histria militar do ocidente36.

e ) n o t e at r o ( o d e u s e x m a c h i n a )

Em meados do sculo v a. C., o termo passou a estar tambm associado ao mundo do teatro; mais propriamente, s condies de repre-sentao. Neste contexto muito especfico quase tcnico , a palavra de-signava o famoso expediente do deus ex machina37. Muito sucintamente, este engenho consistia numa espcie de grua colocada nos bastidores que, a dada altura, era erguida at entrar em cena, colocando a personagem den-tro dela numa posio superior aco; e o actor ocupante desempenhava o papel de um deus ou heri que resolvia um conflito gerado no enredo38.

Este efeito s no foi usado por Sfocles. Eurpides, por seu turno, recor-ria vrias vezes ao deus ex machina, o que levou Aristfanes a ridiculariz-

-lo por isso: na Paz, coloca em palco um escaravelho voador que pretende parodiar a personagem Belerofonte (de uma tragdia homnima entretanto perdida) de Eurpides que tenta tomar de assalto o Olimpo com Pgaso, um cavalo alado. Curiosamente, nesta passagem da Paz (Ar. Pax 154-179), referido o operador do engenho (), a quem a personagem pede acrescida cautela39.

f ) n a m e d i c i n a

J nos finais do sculo v a. C., a mecnica alastra-se ao mbito da medici-na, particularmente ao campo das tcnicas de interveno cirrgica e orto-pdica. Uma curiosidade desta aplicao o facto de produzir engenhos de dimenses admiravelmente reduzidas inditos at ento. Nos tratados hi-pocrticos comeam a surgir diversas referncias a instrumentos destinados,

36. Esta estratgia de Dionsio I de Siracusa reportada por Diodoro Sculo (XIV.42); sobre as implicaes histricas deste passo, vide Micheli 1995: 13-14; Marsden 1969: 48-64. Para uma listagem exaustiva das fontes textuais sobre a evoluo da artilharia, vide Campbell 2004: 179-211.

37. O engenho em si foi recebendo vrias designaes, a maior parte devidas a Aristfanes: (aparelho de suspenso) em Nu. 218; (objecto suspenso) em Pax 80; e (literalmente ramo de figueira; tem uma acepo cmica) em fr. 160 KA = POxy. 2742 1.8.

38. Sobre o funcionamento deste engenho, vide Fensterbuch 1934: 1400-1405; sobre as implicaes dramticas e alguns exemplos do seu uso, vide Taplin 2003: 11-16, 52-56.

39. Da tragdia Belerofonte restam apenas alguns fragmentos (TrGF V.2 FF 285-315). Semelhantes crticas tece Plato aos trgicos em geral que acusa de recorrerem a este expediente sempre que se encontram em apuros (Cra. 425d).

p r o b l e m a s m e c n i c o s

2 2

por exemplo, a tratar fracturas sseas e deslocamentos de articulaes, como cunhas e pequenas alavancas (Fract. 31). A extrema utilidade des-tas inovaes tcnicas reconhecida inclusivamente pelos prprios autores dos textos. Por exemplo, no tratado sobre articulaes (Art. 42), dito que os mdicos que criaram um certo instrumento () so dignos de admirao, j que com o auxlio da sua inveno torna-se possvel resolver problemas que as mos do cirurgio no conseguem40.

40. Sobre a tecnologia mecnica usada nos tratados hipocrticos, vide Knutzen 1963.

a r i s t t e l e s

2 3

2 . o s [ p r o b l e m a s ] m e c n i c o s

2 . 1 e s ta b e l e c i m e n t o d a m e c n i c a c o m o d i s c i p l i n a

unnime que, perante a inexistncia de testemunhos mais antigos, o texto dos [Problemas] Mecnicos inaugura a histria da mecnica, j que constitui a primeira reflexo consciente e terica sobre esta cincia enquan-to tal. Como afirmou o fsico e historiador francs Pierre Duhem, referin-do-se a este tratado em particular, Aristteles o pai da mecnica racional41. No que o tratado encerre todos os fundamentos tericos da mecnica aristotlica, j que, como veremos, necessrio recorrer a outras obras do corpus para os circunscrever. Alm disso, no texto comparece tambm uma vertente prtica, dado que um dos seus principais objectivos explicar o funcionamento de vrios mecanismos em concreto.

Constituem, pois, o seu assunto e objectivo principais o esclarecimento da prtica atravs da teoria e, principalmente, o estabelecimento dessa teo-ria enquanto conjunto de axiomas. Ora, foi muito graas a este registo que a mecnica viria a ser amplamente desenvolvida no Perodo Helenstico, quer no que trata prtica, atravs do avano tecnolgico que testemunham os inmeros mecanismos criados nesta poca, quer no que respeita teoria e metodologia, nomeadamente na sistematizao do conhecimento mecni-co por categorias temticas ou especialidades42.

Porm, dado que o tratado se inscreve numa tradio j secular, cumpre averiguar o porqu de s no sculo iv a. C. se teorizar sobre uma prtica to anterior. Esta demora ficou a dever-se a duas ordens de razes.

Em primeiro lugar, o factor psicossocial. Desde as fundaes da p-lis democrtica que as actividades produtivas e tcnicas eram encaradas com um certo desdm: o trabalho fsico estava reservado para os escravos (tambm para alguns cidados menos abastados), ao passo que a maioria dos habitantes com plenos direitos se dedicava vida poltica da cidade.

41. Duhem 1905: I 8. 42. Para um conspecto geral da mecnica aplicada tecnologia no Perodo Helenstico, vide Lloyd 1973: 91-112. A primeira sistematizao da disciplina em vrias especialidades surge em Papo de Alexandria (VIII.1024.11-sqq.), ainda que o prprio confesse estar a reproduzir um conhecimento j consolidado anteriormente; a este respeito, vide Berryman 2009: 50-54.

p r o b l e m a s m e c n i c o s

2 4

Sendo a mecnica uma cincia manifestamente prtica cujo sentido apenas se consubstancia na criao efectiva de objectos materiais, torna-se, pois, evidente que no se inclusse nas preocupaes dos cidados. Alm disso, acresce o facto de a abundncia de mo-de-obra escrava travar quaisquer avanos tecnolgicos que pudessem minimizar o esforo do trabalho fsico. No que respeita s aplicaes na arquitectura, guerra (esta bastante tardia) e teatro, estes so apenas casos excepcionais que no tm grande influncia na vida quotidiana da cidade.

Segundo, o factor scio-intelectual. At Aristteles, os ramos do saber li-gados tecnologia no eram considerados formas de cincia aplicada, antes cabiam sob a designao geral de ofcios (). Nas concepes filos-ficas mais fisicalistas como as de alguns pr-socrticos, teorticas como a de Plato, ou mais dirigidas capacidade discursiva como a dos Sofistas, no cabiam reas como a mecnica; no enquanto objecto de saber e muito menos enquanto disciplina43. Esta orientao demasiadamente terica da filosofia criou, por isso, enormes entraves conceptuais e metodolgicos que s viriam a ser superados pela nova diviso dos saberes sugerida por Arist-teles44. Portanto, ser somente nos seus textos que a mecnica ser definida e traado o seu mbito: no s na seco inicial dos [Problemas] Mecnicos, mas tambm noutras passagens do corpus, como veremos posteriormente. Acima de tudo, neste tratado em particular que a mecnica se fixa como disciplina, ao conglomerar um conjunto de reflexes tericas que, poste-riormente, aplica prtica.

2 . 2 m b i t o e e i x o s t e r i c o s d a m e c n i c a

a ) d e q u e t r ata a m e c n i c a

Como comum em Aristteles, os pargrafos iniciais de um tratado desti-nam-se a esclarecer o assunto a abordar. No caso dos [Problemas] Mecnicos, essas consideraes prvias focam os dois fundamentos essenciais que presi-dem explicao dos 35 problemas: primeiro, a circunscrio terica da me-cnica e o seu enquadramento no sistema das cincias; segundo, o estabeleci-mento do crculo como princpio basilar do funcionamento dos mecanismos.

Do geral para o particular, Aristteles comea por inscrever a mecnica na tcnica, isto , no mbito das actividades produtivas que pressupem um conhecimento universalizante dos princpios e causas dos fenmenos em-

43. Note-se que na listagem de disciplinas apresentada por Plato no Livro VI da Repblica a mecnica no mencionada.

44. Sobre o papel de Aristteles na refundao da cincia, vide Lloyd 1970: 99-124.

a r i s t t e l e s

2 5

pricos, razes pelas quais se demarcam da simples experincia ()45. , pois, atravs deste tipo de saber que o Homem pode superar os constran-gimentos da natureza:

Em muitos casos, de facto, a natureza produz efeitos opostos aos nos-sos interesses; que a natureza actua sempre da mesma maneira e de for-ma linear, enquanto que os nossos interesses variam muitas vezes. Assim, sempre que preciso fazer alguma coisa contra a natureza, um obstculo [] surge atravs da dificuldade e torna-se necessrio recorrer tc-nica []. Por isso, seco da tcnica que nos assiste perante esse tipo de obstculos chamamos mecnica. ([Problemas] Mecnicos 847a13-20.)

Mais especificamente, pertencem disciplina da mecnica os casos em que o mais pequeno domina o maior, e que os objectos com um impulso [] reduzido movimentam grandes pesos46 [] (847a22-23). , no fundo, em torno destes dois conceitos fundamentais que toda a cincia me-cnica orbita, pois que todo e qualquer mecanismo consiste genericamente na superao de uma fora natural (o peso) por meio de outra artificial e externa (o impulso) que comparece especificamente para esse efeito. Alm disso, essa fora criada pelo engenho (pela , diramos) permite que o mais fraco prevalea sobre o mais forte; em ltima instncia, potencia a aco humana a ponto de dominar a prpria natureza.

Quanto ao seu estatuto epistemolgico, os problemas mecnicos ocupam uma posio intermdia:

Comparados aos problemas fsicos, [os mecnicos] no so absoluta-mente idnticos nem completamente diversos, antes comuns s especula-es matemticas e fsicas: o como [ ] demonstrado pela matemtica e o acerca de [ ] pela fsica. ([Problemas] Mecnicos 847a25-28.)

O curioso jogo entre o como e o acerca de parece sugerir que as questes relacionadas com a mecnica devem a sua explicao s cincias matemticas, ainda que se situem no campo da fsica; isto , o funciona-mento de um determinado mecanismo desenrola-se numa dimenso fsica (o acerca de), mas a explicao desse funcionamento assenta em pressu-postos matemticos (o como). Em sentido anlogo, dito na Metafsica (XIII 3, 1078a14-18) que a ptica, cujo estatuto epistemolgico igual ao

45. A este respeito, vide Metaph. I 1, 981a5-8, 27-30 (cf. EN VI 4, 1140a1-23).

46. O conceito de peso bastante problemtico, dado que tambm pode referir-se ao que hoje se entende por massa; sobre esta questo vide n. 110. De modo a evitar anacronismos, uso indiscriminadamente o termo peso independentemente da noo fsica a que diga respeito.

p r o b l e m a s m e c n i c o s

2 6

da mecnica (e tambm ao da harmnica), no trata das representaes visuais enquanto tais, mas sim enquanto linhas e nmeros. Nos Segundos Analticos (I 9, 76a24; 13, 78b37), Aristteles ainda mais explcito, quando diz que as demonstraes geomtricas esto ligadas s mecnicas e pticas, ao passo que as harmnicas dizem respeito s aritmticas. A demarcao particular da geometria no quadro geral das matemticas como referente terico especfico das explicaes mecnicas acaba por ser consumada nes-te tratado de forma particularmente evidente.

b ) s u p r e m a c i a d o c r c u l o

Continuando o itinerrio explicativo do geral para o particular (tcnica, matemtica, geometria), Aristteles reduz a explicao de todas as questes desta ordem a um s princpio:

O princpio fundamental de todo este tipo de fenmenos o crculo. ([Problemas] Mecnicos 847b16-17.)

, de facto, evidente, ao longo do tratado, a preocupao em descrever o funcionamento e as potencialidades de todos os engenhos em funo do axio-ma segundo o qual tudo depende da forma circular, referida como a origem de todas as maravilhas (848a12). Por esse motivo, dedicada uma segunda parte introdutria descrio deste ente geomtrico (848a16-b1); segue-se uma apresentao esquemtica das suas propriedades e potencialidades47:

i) conjugao de opostos como cncavo/convexo, grande/pequeno e movimento/repouso;

ii) quando o raio se movimenta continuamente, o ponto de partida tor-na-se necessariamente ponto de chegada;

iii) quanto mais afastado um ponto do raio estiver do centro, mais rapi-damente/facilmente48 se desloca;

iv) os crculos podem ser combinados entre si e, por isso, produzir um efeito conjunto mais favorvel.

47. Note-se que a descrio do crculo se refere, por vezes, ao ente geomtrico em abstracto e, por outras, a um determinado objecto concreto com forma circular ou que assuma um movimento circular.

48. Sobre a equivalncia destes dois conceitos, vide infra p. 28.

a r i s t t e l e s

2 7

c ) o s m o v i m e n t o s d o c r c u l o

Segundo os [Problemas] Mecnicos, o crculo comporta em si dois movi-mentos (1, 848b10-12)49; ou melhor, a trajectria que um objecto descreve ao deslocar-se por uma circunferncia composta por dois movimentos. Um deles segue na direco da tangente e o outro na direco do centro do crculo; o primeiro de acordo com a natureza ( ) e o outro contra a natureza ( ):

Isto acontece com qualquer raio: desloca-se pelo arco de circunferncia, de acordo com a natureza na direco da tangente e contra a natureza na direco do centro. (1, 849a14-16.)

A descrio esclarecedora e at surpreendente: o movimento circular composto por dois movimentos rectilneos combinados. Aristteles explica o fenmeno (1, 848b35-849a22) recorrendo relao existente entre os dois lados perpendiculares de um paralelogramo e a sua diagonal 50:

49. De Gandt 1982: 128 observa que esta concepo incompatvel com a doutrina de Aristteles segundo a qual o movimento circular simples. Contudo, h que ter em conta que essa concepo s se aplica aos corpos celestes (cf. Bodnr & Pellegrin 2009: 281-283; Micheli 1995: 58-60).

50. Trata-se de uma intuio da chamada regra do paralelogramo usada ainda hoje para o clculo da adio de vectores (vide Fuller 1954: 167-168); este ser o primeiro testemunho deste tipo de explicao do movimento circular (apud De Gandt 1982: 120).

figura 1

A deslocao de B a produz-se atravs da combinao de dois mo-vimentos em simultneo: (tangencial) e (normal). Dado que essa proporo no se verifica, o movimento de a descrito pelo arco E.

p r o b l e m a s m e c n i c o s

2 8

O problema ser saber em que consistem exactamente os atributos de acordo com a natureza e contra a natureza questo discutida j desde os comentadores renascentistas51. O texto no esclarecedor: alm da equi-valncia de acordo com a natureza/tangente e contra a natureza/centro, apenas dito, em termos no muito claros, que o movimento contra a na-tureza consiste numa espcie de efeito de desvio () na direco do centro (1, 849a3-22).

Em primeiro lugar, convm manter algum distanciamento em relao explicao mais abrangente do sistema fsico aristotlico: o movimento (en-quanto mutao ou passagem de potncia a acto) de acordo com a nature-za deve-se a uma causa eficiente intrnseca ao prprio ente, ao passo que o contra a natureza exige uma causa externa. nesta diferena fundamental que assenta a classificao dos entes: naturais quando comportam em si mesmos o princpio de movimento e da tcnica se este lhes for exterior. Por exemplo, na Fsica (VIII 4, 255a20-23) dito que a alavanca por si s no consegue causar movimento (j que carece de uma causa eficiente externa), ao passo que algo que esteja quente em acto consegue, por si s, movimen-tar o que est quente em potncia. No caso da mecnica, por se enquadrar em absoluto na tcnica, a distino entre de acordo com a natureza e contra a natureza depender de outras condies.

Vrias propostas tm sido adiantadas, como o paralelo com as estrelas cadentes descritas nos Meteorolgicos (I 4, 342a16-27)52, ou a equivalncia ao movimento de uma esfera tratado na Fsica (VII 2, 244a2-4)53. So possi-bilidades vlidas, contudo um tanto distantes do contexto, dado que dizem respeito aos corpos celestes. A este propsito, vale a pena relembrar a con-cepo cosmolgica dos movimentos natural e antinatural que Aristteles sustinha a propsito dos elementos (terra, gua, ar e fogo): cada corpo diri-ge-se de acordo com a natureza para junto do lugar natural; por exemplo, uma pedra cai para o cho porque maioritariamente constituda por terra, e as chamas sobem porque o elemento fogo se situa acima da superfcie. Mas esta hierarquia s se aplica ao nvel sublunar, dado que no espao celes-te domina um elemento nico e perfeito (a quintessncia), pelo que os cor-pos desta dimenso descrevem movimentos circulares tambm perfeitos54.

Ainda que no se preste a um decalque perfeito para a explicao dos dois tipos de movimento, o modelo cosmolgico oferece uma base slida para repensar a questo. O pressuposto basilar que, no quadro geral do movimento, os corpos admitem uma de duas hipteses: seguem na direc-o do elemento de que so maioritariamente compostos, se assumirem o movimento de acordo com a natureza; seguem noutro sentido, se fo-rem movimentados contra aquela direco natural, isto , se forem levados

51. Sobre a discusso do problema nos autores do Renascimento, vide Bottecchia 2000: 151-153.

52. Vide Micheli 1995: 60-sqq.

53. Vide Krafft 1970: 64-sqq.

54. Esta distino abordada na Fsica, sobretudo no Livro VIII.

a r i s t t e l e s

2 9

contra a natureza. Transpondo esta ideia geral para o crculo, pode dizer--se que, enquanto se movimenta na trajectria circular, um corpo combina as duas direces (da que produza maravilhas): segue na direco da tangente (de acordo com a natureza) e, simultaneamente, na do centro (contra a natureza). Sero, pois, duas subdivises (concomitantes e indis-sociveis) detectveis no fenmeno global. Admitindo que, neste contexto, o quadro geral do movimento corresponde ao perodo durante o qual a fora aplicada permanece em actividade e garante a continuidade do movi-mento circular, uma hiptese ser classificar de contra natureza o movi-mento em direco ao centro, pelo facto de este se manter em repouso. Ora, algo que, em movimento, se desloca para algo em repouso estar de algum modo contra a natureza.

A outra hiptese radicar na observao directa dos fenmenos. Imagi-nemos uma chvena de caf. Quando impomos um movimento circular ao lquido pela aco de uma colher (a fora externa), notrio que, por um lado, o centro da chvena tende a congregar todo o caf em movimento; da que se forme um redemoinho. Por outro lado, tambm evidente que o lquido se dirige simultaneamente para fora do redemoinho, isto na direc-o da tangente (neste caso, os rebordos da chvena); de tal forma que, se girarmos a colher com muita intensidade, o caf ser expelido precisamente nessa direco. Deste modo, o movimento na direco da tangente ser de acordo com a natureza pelo facto de parecer levar o objecto na trajectria inicial da fora aplicada, antes de ser influenciado pelo centro imvel que parece atra-lo55 contra a natureza. No fundo, Aristteles parece intuir os conceitos de fora centrfuga (afastamento do centro) e fora centrpeta (atraco pelo centro). Embora no tenha ainda condies tericas para os formular, o seu modelo explicativo da mecnica tr-los implcitos enquanto noes indistintas.

d ) r e d u o d o s p r o b l e m a s b a l a n a

A reduo de todos os fenmenos a uma s causa , como foi dito, uma das principais linhas de fora do tratado56. J vimos que no plano terico ou geo-mtrico tudo se resume aco do crculo e veremos agora que, num mbito mais concreto, todos os mecanismos podem ser explicados luz de um s:

Por conseguinte, as questes relacionadas com a balana reportam-se ao crculo, com a alavanca balana, enquanto que todos os outros casos semelhantes relacionados com movimentos mecnicos se reportam ala-vanca. ([Problemas] Mecnicos 848a11-14.)

55. Aristteles fala em desvio. Cf. supra p. 22

56. Sobre a importncia desta atitude metodolgica, vide Krafft 1970: 150-sqq.

p r o b l e m a s m e c n i c o s

3 0

O correlato material do conceito geomtrico de crculo, ao qual se re-portam todas as explicaes, ser, pois, a balana. Ao longo do tratado, este pressuposto recorrente e diz respeito tanto s balanas vulgares57 como s de braos desiguais estas de funcionamento bem mais complexo. De acor-do com a descrio do Problema 20, este tipo de balana divergia do con-vencional pelo facto de a seco do brao que recebe o objecto ser inferior quela que indica a medida58. Alm disso, tambm o modo de determinar peso distinto: ao invs de ser necessrio equivaler ao peso do objecto o dos pesos-padro, o resultado era obtido por um contrapeso nico apos-to no brao em que estava gravada uma escala59. Esse contrapeso poderia ser varivel, indicando a medida na escala (a chamada balana romana), ou fixo, sendo o fulcro o elemento varivel (balana de Bismar). Dado que o contrapeso est fixo balana (20, 853b32) e esta tem vrios cabos (20, 854a6-7), parece mais provvel que a balana referida no Problema 20 seja deste segundo tipo60.

Em todo o caso, curioso que Aristteles reduza todos os problemas mecnicos balana, quando todas as balanas funcionam pelo chamado princpio das alavancas. Ser talvez sintoma de que a deduo deste prin-cpio tenha partido da observao de balanas e no de alavancas e, conse-quentemente, no se possa atribuir a autoria desta lei, pelo menos enquanto lei, a Aristteles; ainda que seja indiscutvel que a conhecia implicitamente.

d ) o p r i n c p i o d a s a l ava n c a s e o m o v i m e n t o l o c a l i z a d o

Convencionalmente, a primeira demonstrao do princpio das alavan-cas atribuda a Arquimedes. Eis a formulao:

[Duas] magnitudes comensurveis esto em equilbrio quando a dis-tncia [do ponto de apoio] reciprocamente proporcional ao peso (Sobre o Equilbrio dos Planos prop. 6).

Simplificando os resultados a que Arquimedes chega na deduo sub-sequente61, podemos dizer que dois corpos esto em equilbrio quando o resultado da multiplicao entre a distncia ao ponto de apoio e o peso o

57. Balanas com dois braos iguais; dos quais um recebe o objecto a ser pesado e o outro o equivalente em pesos-padro. Por exemplo, um objecto que pese 2kg exigir os mesmos 2kg em pesos-padro no brao oposto para que a balana fique perpendicular ao cabo, permitindo assim aferir a medida exacta.

58. Nos [Problemas] Mecnicos, esta seco chamada falange (: 20, 853b25).

59. Este tipo de balana seria comum no tempo de Aristteles, dado que j Aristfanes d testemunho dele na Paz (1240-1249), quando refere uma prtica ilcita dos vendedores que consistia em polvilhar chumbo sobre o contrapeso de modo a inflacionar o valor da pesagem.

60. Para uma discusso do problema, vide Bottecchia 2000: 189-194; Damerow et alii 2000: 6-sqq.

61. Vide Dijksterhuis 1987: 289-304.

a r i s t t e l e s

3 1

mesmo para ambos; isto , a distncia ao ponto de apoio e o peso so direc-tamente proporcionais:

62. atribuda uma formulao semelhante a Euclides, mas o nico testemunho existente uma traduo rabe cuja autenticidade bastante discutida; vide Renn et alii 2003: 52-53.

63. Sobre as equivalncias entre o modelo explicativo do movimento localizado e o do movimento em geral, vide De Gandt 1982: 100-103.

dApA=dBpB

dA: distncia de A ao ponto de apoiopA: peso de AdB: distncia de B ao ponto de apoiopB: peso de B

A e B estaro em equilbrio, se o produto entre dA e pA for igual ao pro-duto entre dB e pB. Exemplificando, consideremos que o corpo A tem 10 kg e o corpo B tem 5 kg. Se A distar 1m do ponto de apoio e B distar 2m do mesmo ponto de apoio, A e B estaro em equilbrio: 1x10=2x5.

Estas concluses, a que Euclides supostamente tambm ter chegado62, dependem fundamentalmente da relao entre a distncia ao ponto de apoio e o peso dos dois corpos. Alm disso, o propsito deste mtodo explicar o equilbrio de dois corpos nestas condies; isto , o modo como um e outro adquirem uma forma de repouso interdependente.

Nos [Problemas] Mecnicos, cujo contexto envolve objectos em movi-mento, Aristteles implica as mesmas concluses mas a partir de uma pers-pectiva diferente. Mas antes de entrar no texto, convm abordar, ainda que de modo sucinto, a concepo aristotlica de movimento, a fim de que as consideraes dedicadas mecnica em particular sejam devidamente in-seridas num quadro terico mais abrangente.

No contexto geral do movimento, Aristteles distingue um tipo espe- cfico que diz respeito mudana no espao: o movimento localizado. O modelo explicativo obedece ao do movimento como mudana em geral63, j que uma especificao deste (aplica-se s condies de alterao posi-cional). Este tipo particular de movimento abordado em diversas passa-gens do corpus, dentre as quais cito a seguinte:

figura 2

p r o b l e m a s m e c n i c o s

3 2

O movente [ ] movimenta sempre alguma coisa [ = ], em alguma coisa [ ] e at alguma coisa [ ] com em alguma coisa quero dizer num tempo [ ], e com at alguma coisa refiro-me a uma determinada extenso [ ] [...]. Se o movente for A, o movido [ ] B, a extenso do movimento , e o tempo em que [ocorre o movimento], uma fora igual em A movi-mentar, em igual tempo, metade de B no dobro da extenso ; em metade do tempo [essa mesma fora] movimentar metade de B na extenso . Deste modo a proporo verificar-se-. (Fsica VII 5, 249b27-250a4.)

Temos, pois, quatro elementos distintos: movente, movido, tempo e ex-tenso. Tendo em conta que esta citao surge inserida na demonstrao de que uma qualquer fora no pode movimentar um qualquer corpo64, o propsito de Aristteles estabelecer uma relao de proporo entre os quatro elementos do movimento, de modo a demonstrar em que condies uma determinada fora pode movimentar um determinado corpo. No tra-tado Sobre o Cu (I 7, 275a7-10; III 2, 301b4-13) fora j adiantado que existe uma relao entre a magnitude de um corpo e a magnitude do movimento que pode causar ou sofrer. Mas este excerto da Fsica acrescenta duas outras variveis equao: tempo decorrido e espao percorrido. A relao entre a magnitude do corpo movente e a do movido s faz sentido e s pode ser aferida pela comparao com o tempo durante o qual se processa o movi-mento e com a sua extenso. Como veremos, esta ser a chave do princpio que governa o funcionamento dos mecanismos.

Analisada sob outra perspectiva, esta passagem da Fsica denota uma certa complementaridade entre termos relacionados com o movimento propriamente dito e termos respeitantes aos objectos em si: A dito ser movente ( : VII 5, 249b31), primeiro, e depois associado ao conceito de fora (: VII 5, 250a2; : VII 5, 250a8); j B, num caso movido ( : VII 5, 249b31) e, algumas linhas mais abaixo, ser relacionado com a noo de peso (: VII 5, 250a9). Esta utilizao indistinta de termos pertencentes a mbitos diversos tem que ver com o facto de Aristteles conceber uma fora como geradora de movimento65; da que seja bastante recorrente a aplicao do mesmo ter-mo a conceitos que actualmente consideramos serem distintos. Mas o que importa realar neste contexto que uma fora pode representar uma ac-o externa sobre um objecto (por exemplo, um homem que empurre esse

64. Posio igualmente defendida noutras passagens da Fsica (VIII 3, 253b6-7; VIII 10, 266b17-18) e tambm na Gerao dos Animais VII 7, 787a15-22.

65. Por exemplo, numa passagem do tratado Sobre o cu em que se discute este assunto, Aristteles usa a expresso fora movente ( : III 2, 301b4). Para uma discusso do problema, vide Carteron 1975: 163.

a r i s t t e l e s

3 3

objecto) ou o peso do prprio objecto. certo que hoje sabemos que no o objecto em si o responsvel pelo seu peso (enquanto fora), antes a aco da gravidade sobre a sua massa e aquela -lhe to externa quanto um homem que o empurre; mas Aristteles no fazia esta distino.

Quanto terminologia, ainda que predominem os compostos de -, Aristteles introduz, numa outra passagem da Fsica, uma ligeira variao; ou melhor, uma especificao. Quando associa este tipo de movimento com a posio espacial ( 66), prefere o termo prova-velmente uma importao de Plato que o usava para referir as rbitas dos corpos celestes67, as quais, at Kepler, se julgavam ser circulares. provvel que esta analogia esteja tambm na base das inmeras ocorrncias da pa-lavra nos [Problemas] Mecnicos, onde o crculo se afigura como princpio explicativo de todos os fenmenos particulares. De facto, na maior parte dos casos, o substantivo (deslocao) ou o verbo cognato (des-locar) designam as diversas mudanas posicionais que os pontos sofrem durante o movimento circular. No entanto, no se limitam a estes contextos, j que muitas vezes so usadas em vez de (movimento) e (movimentar). Se, por um lado, as palavras / parecem manter-

-se prximas do sentido que lhes dava Plato (enquanto movimento circular), por outro, esto vinculadas concepo aristotlica mais lata de movimento localizado (circular ou no), bem como chegam a substituir os termos gen-ricos /. Deste modo, a traduo menos comprometedora ser deslocao para a forma substantival e deslocar-se para a verbal.

Nos [Problemas] Mecnicos, a abordagem ao princpio das alavancas di-fere da de Arquimedes em dois pontos fundamentais. Em primeiro lugar, procura explicar o funcionamento de uma alavanca e no o equilbrio entre dois corpos em relao a um ponto de apoio68; segundo, em vez de simples-mente equacionar a distncia ao ponto de apoio de ambos os corpos e o seu peso, tambm tem em conta o espao percorrido pelo objecto movimenta-do e o tempo durante o qual ocorreu esse movimento:

No entanto, no que respeita alavanca, so trs os elementos: o fulcro, que funciona como cabo [de uma balana] e centro [de um crculo], e dois pesos o movente e o movido. Ora, a proporo entre o peso movido e o movente inversa que existe entre as suas distncias do centro; mas, em todo o caso, quanto mais afastada alguma coisa estiver do fulcro, mais

66. Ph. VII 1, 243a8. Cf. Cael. IV 4, 311b33; EN X 3, 1174a30; GC I 3, 319b32.

67. E.g. Cra. 421b; Lg. X, 897c; Grg. 451c; Smp. 188b; Ti. 39b, 81a.

68. Como bem observa Duhem 1905: I 5, Aristteles no separa as leis do movimento das do equilbrio, isto , no distingue esttica de dinmica. Deste modo, um corpo estar em equilbrio quando no produz nem sofre qualquer tipo de movimento. Cf. Carteron 1975: 162.

p r o b l e m a s m e c n i c o s

3 4

facilmente se movimentar. A causa a que j referimos: o raio maior des-creve um crculo maior. Deste modo, pelo efeito da mesma fora, a deslo-cao ser to superior quanto mais afastado o movente estiver do fulcro. ([Problemas] Mecnicos 3, 850a37-b6.)

O contexto a descrio de uma alavanca, cujo funcionamento, como foi dito, se reporta ao da balana (e o desta ao do crculo): composta por um ponto de apoio (o fulcro), por um objecto movente (associado a uma fora) e por um movido (relacionado com o peso). A relao entre movido e movente ento pensada de acordo com o peso de cada um, a distncia ao ponto de apoio e com a extenso do movimento (deslocao) o tempo no entra neste caso particular (pois trata-se de uma explicao bsica da alavanca) mas ser recorrente nas anlises mais complexas e detalhadas69.

Por outro lado, tambm de notar a concepo de fora enquanto ge-radora de movimento reflectida pela utilizao indiscriminada das expres-ses mais facilmente () e mais rapidamente () como sinni-mos, quando se trata de caracterizar um movimento70. A energia necessria para colocar um objecto em movimento , pois, equiparada extenso por ele percorrida num determinado perodo de tempo, de tal forma que a in-tensidade da fora aplicada se manifesta na velocidade (1, 848b6-7)71.

Simplificando o raciocnio latente no texto, pode dizer-se que a distn-cia ao centro e o peso dos objectos so inversamente proporcionais, isto , quanto mais um aumenta, tanto mais o outro diminui. Em segundo lugar, so directamente proporcionais a distncia ao ponto de apoio e a exten-so do movimento: quanto maior for uma, maior ser a outra. Finalmente, cumpre dizer que todas estas relaes pressupem o mesmo tempo. Veja-mos o seguinte esquema:

69. Problemas 1, 15 e 24. A relao entre o tempo do movimento e a sua extenso abordada em 1, 848b6-7.

70. E.g. : 850a32, 850b3, 852a23, 852b11, 854a13, 854b8, 857b16, 858a3; : 847b15, 848a17, 848b5-6, 849b25, 850a36, 851a38; ambos em conjuno: 851b3, 852a15.

71. Ainda propsito da noo de fora, vide tambm 847a20-24 e a n. 109 a propsito do termo (impulso).

figura 3

a r i s t t e l e s

3 5

No mesmo tempo, a mesma fora aplicada em A (o movente) far um objecto (o movido) movimentar-se pela extenso C se estiver distncia 1 do ponto de apoio (em B), e pela extenso 2C se estiver distncia 2 do ponto de apoio. De acordo com o princpio, 2C o dobro de C, porque a distncia entre o objecto em 2 (movido ao longo de 2C) e o ponto de apoio o dobro da que existe entre o objecto em 1 (movido ao longo de C) e o ponto de apoio. Alm disso, deduz-se tambm o seguinte: se a fora aplica-da em A tiver a intensidade 1 e estiver distncia 1 do ponto de apoio, e o movido for um objecto tambm com intensidade 1 e distncia 1 do ponto de apoio, eles estaro em equilbrio.

Por estas razes, pelo facto de as demonstraes de Arquimedes e Eu-clides denotarem algumas imprecises72 e por estes se terem inspirado no texto aristotlico, alguns autores tendem a considerar esta passagem dos [Problemas] Mecnicos como a primeira tentativa de formulao e demons-trao do princpio das alavancas. O primeiro a dar conta dessa suspeita foi Simplcio, o qual diz no comentrio Fsica (In Ph. 1110.2-5 Diels) que foi graas proporcionalidade entre movente, movido e distncia percorrida (os elementos da demonstrao de Aristteles) que Arquimedes construra um determinado mecanismo. Mais tarde, nos incios do sculo xx, Pierre Duhem, ao tentar reconstruir o raciocnio delineado naquela seco dos [Problemas] Mecnicos, conclui que o texto evidencia uma clara conscincia dos princpios basilares desta lei73. Mais recentemente, um grupo de inves-tigadores do Instituto Max Planck declarou que a formulao aristotlica est demasiadamente prxima da correcta, razo pela qual dever dever-

-se a um acrescento de um comentador tardio (!)74.

2 . 3 g n e r o e e s t r u t u r a

De modo a completar o que foi dito acerca do mbito e pressupostos do tex-to, vejamos brevemente de que modo se articulam as matrias nele abordadas.

Ao contrrio do que acontece com os tratados mecnicos a partir de Arquimedes, que seguem o mtodo axiomtico euclideano (deduo de teoremas a partir de postulados e definies), o de Aristteles segue um

72. Vide Renn et alii 2003: 48-56.

73. Duhem 1905: I 292-293. 74. Renn et alii 2003: 47. Esta interpretao bastante discutvel, na medida em que os autores no apresentam quaisquer razes ou dados que a sustentem. Alm disso, no possvel fazer essa inferncia nem pelo cotejo dos vrios manuscritos, edies e comentrios nem atravs de nenhum outro tipo de informao.

p r o b l e m a s m e c n i c o s

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modelo diverso, o qual consiste em estruturar os assuntos em sries su-cessivas de perguntas e respectivas respostas (por vezes apenas propostas), cujo primeiro cultor ter supostamente sido Demcrito75. Note-se, porm, que o termo no consta no ttulo da obra nem tampouco no incio de cada uma das 35 sries de pergunta-resposta76. De facto, a palavra usada apenas trs vezes (847a23, 25, 848a19), o que no implica que este rtulo seja desadequado; pelo contrrio, dado que a expresso usada por Aristteles logo no pargrafo inicial precisamente para esclarecer o mbito da obra.

A introduzir os Problemas propriamente ditos, surgem dois conjuntos de consideraes prvias onde se estabelecem os pressupostos que orientaro a resoluo de cada um deles; ser aquilo a que poderemos chamar quadro torico. Posteriormente, segue-se um conjunto de 35 blocos relativamente independentes, cada um dos quais estruturado em dois momentos princi-pais. Primeiro, lanada uma ou mais perguntas, geralmente introduzida(s) pela locuo (por que motivo?). Segundo, so adiantadas algumas propostas de resoluo que, em grande parte dos casos, obedecem tambm a uma estrutura interrogativa comummente iniciada pelas locues / (ser porque?) que, por vezes, so seguidas de (ou ser que porque?). Em certas ocasies, este segundo momento acom-panhado de exemplos que sustentam as propostas.

Em suma, os raciocnios vo-se sucedendo num ritmo mais dialcti-co do que expositivo, sendo cada um dos casos analisado minuciosamente. Depois de um levantamento inicial de uma ou mais hipteses, escolhida aquela que estiver mais de acordo com os pressupostos estabelecidos pre-viamente nas duas seces iniciais. interessante notar que, no Problema 32 (sobre o movimento dos projcteis I), Aristteles confessa que seria des-cabido tentar responder pergunta inicial porque lhe faltavam os princ-pios tericos (32, 858a15-16).

Segue-se uma proposta de esquematizao do tratado e consequente or-denao dos Problemas. Os ttulos apresentados so deduzidos a partir do contedo de cada seco, j que no original, como se disse, no h qualquer demarcao nem classificao explcitas:

75. Tradicionalmente, diz-se que Demcrito ter redigido um tratado com o ttulo (DK A 33.49/B 299h = D.L. IX.49), mas a atribuio duvidosa. Alm do facto de no ter sobrado qualquer fragmento, mas apenas um ttulo, a palavra um (isto , s ocorre uma nica vez em todo o corpus literrio grego), razo pela qual se torna difcil de traduzir.

76. A ordenao dos Problemas discutvel, j que depende de considerar a seco 848b1-850a2 o Problema 1 (Forster 1991; Hett 1936) ou uma continuao das consideraes preliminares (Bottecchia 2000). Optei pela primeira hiptese, dado que a estrutura tipicamente a de um Problema, bem como usada a palavra (primeiro) que, a meu ver, pretende assinalar o incio da seco dos Problemas e demarc-la da preliminar.

a r i s t t e l e s

3 7

Introduo (847a11-b15)Propriedades do crculo (847b16-848a37)Problema 1: sobre as balanas I (848b1-850a2)Problema 2: sobre as balanas II (850a3-29)Problema 3: sobre as alavancas (850a30-b9)Problema 4: sobre os remadores do meio (850b10-27)Problema 5: sobre os lemes (850b28-851a37)Problema 6: sobre a altura das vergas nos barcos (851a38-b5)Problema 7: sobre a aco do vento na navegao (851b6-14)Problema 8: sobre o movimento dos corpos esfricos e circulares (851b15-852a13)Problema 9: sobre a relao entre o tamanho dos crculos e a velocidade (852a14-22)Problema 10: sobre a balana sem qualquer peso (852a23-28)Problema 11: sobre o transporte atravs de cilindros (852a29-37)Problema 12: sobre o lanamento de projcteis atravs de fundas (852a38-b10)Problema 13: sobre os cabrestantes (852b11-21)Problema 14: sobre o porqu de se partir um cabo de madeira com o joelho (852b22-28)Problema 15: sobre a esfericidade das pedras existentes junto costa (852b29-853a4)Problema 16: sobre a flexibilidade dos cabos de madeira (853a5-18)Problema 17: sobre as cunhas (853a19-31)Problema 18: sobre as roldanas (853a32-b13)Problema 19: sobre os machados (853b14-24)Problema 20: sobre as balanas de braos desiguais (853b25-854a15)Problema 21: sobre os frceps dos dentistas (854a16-31)Problema 22: sobre os quebra-nozes (854a32-b15)Problema 23: sobre o losango (854b16-855a27)Problema 24: sobre o movimento de crculos concntricos (855a28-856a38)Problema 25: sobre a estrutura dos leitos (856a39-857a4)Problema 26: sobre o transporte de traves de madeira com o ombro (857a5-21)Problema 27: sobre o transporte de pesos com o ombro (857a22-33)Problema 28: sobre as picotas (857a34-b8)Problema 29: sobre o transporte de pesos numa trave de madeira (857b9-20)Problema 30: sobre o movimento do corpo ao levantar (857b21-858a2)Problema 31: sobre a deslocao de objectos j em movimento (858a3-12)Problema 32: sobre o movimento dos projcteis I (858a13-16)Problema 33: sobre a fora propulsora (858a17-22)Problema 34: sobre o movimento dos projcteis II (858a23-b3)Problema 35: sobre o movimento de objectos em redemoinhos (858b4-31)

p r o b l e m a s m e c n i c o s

3 8

2 . 3 . 1 a r o d a d e a r i s t t e l e s ( p r o b l e m a 2 4 )

Como vimos, os assuntos abordados ao longo dos 35 Problemas so ex-tremamente diversificados. Dado que seria manifestamente inapropriado analis-los todos um por um, optei por escolher aquele que a tradio aca-bou por consagrar como uma espcie de protagonista deste texto. Trata-

-se do Problema 24, sobre o movimento de crculos concntricos, que ficou conhecido por A Roda de Aristteles77.

O argumento o seguinte: dois crculos concntricos de diferentes di-menses percorrem numa revoluo a mesma distncia. O enigma, que Aristteles diz ser intrigante (: 24, 855a28), reside no facto de esta proposio implicar que a distncia percorrida por um crculo no seja igual ao seu permetro. Vejamos o seguinte esquema:

Segundo os pressupostos mais bsicos da geometria, quando um crculo faz uma revoluo completa, o segmento de recta que descreve pela circun-ferncia igual ao seu permetro. Assim, o segmento BC ser igual ao per-metro do crculo A, e o segmento DE ser igual ao crculo A2. Sabendo que o dimetro do crculo A2 metade do dimetro do crculo A, o segmento DE ser tambm metade de BC. Porm, de acordo com o que dito no Problema 24, se estes crculos forem concntricos, os segmentos descritos numa revoluo completa sero iguais. Eis o paradoxo.

Antes de tudo, convm esclarecer dois pontos prvios: primeiro, o texto no deixa a questo em aberto, j que fornece uma explicao ainda que parcial; segundo, nesta seco no se discute geometria em abstracto, mas sim uma situao concreta e particular (note-se que a mecnica se situa entre a geometria e a fsica, e no na geometria) em relao a um modelo

77. Para uma anlise aprofundada deste Problema e do tratamento que recebeu na histria da matemtica, vide Drabkin 1950.

figura 4

a r i s t t e l e s

3 9

terico mais abrangente. Isto significa que o termo crculo dever ser to-mado por objecto circular por exemplo, uma moeda.

De acordo com a explicao de Aristteles, esse aparente paradoxo ex-plica-se pelo facto de a concentricidade dos dois crculos ser meramente acidental: s um deles na verdade o centro e a origem do movimento; um movente e o outro movido. Por isso, o movente ter que movimentar-se a si prprio e ao movido, o que faz com que a velocidade seja dividida por ambos. Logo, o movido acompanhar o movente e ambos percorrero a mesma distncia a velocidades diferentes.

Esta explicao um bom ponto de partida, dado que desfaz o paradoxo sob uma das possveis perspectivas.

Imaginemos que os crculos so duas moedas unidas pelo centro atravs de uma pea cilndrica que as atravessa. Essas moedas, cuja proporo de tamanhos a mesma que existe entre aqueles crculos (uma tem o dobro do dimetro da outra), sero ento dispostas em dois degraus que tenham a altura igual aos seus dimetros, respectivamente. Por ltimo, as moedas unidas pela pea cilndrica sero encaixadas nos dois degraus:

78. Sobre a inevitabilidade deste deslizamento, vide Drabkin 1950: 163-166; Bunch 1997: 4-9.

Segundo sugere o paradoxo, ambas as moedas completariam uma re-voluo sobre o degrau respectivo e percorreriam exactamente a mesma distncia com o rebordo: a moeda maior de A a B e a mais pequena de C a D. impossvel que isto acontea por causa de um dos trs tipos de desli-zamento que pode afectar uma das moedas (qualquer que seja): em relao pea metlica, em relao ao degrau ou mesmo a ambos78. Alm disso,

figura 5

p r o b l e m a s m e c n i c o s

4 0

pegando agora na explicao de Aristteles, se uma das moedas desliza, a outra ter um movimento diferente e, como tal, no pode dizer-se que, em rigor, sejam concntricas. Em suma, dado o deslizamento ser inevitvel, as duas moedas no descrevem o mesmo segmento, dado que uma delas (a que desliza) no se movimenta de modo contnuo e ininterrupto.

Contudo, o que ao longo dos sculos intrigou comentadores e pensado-res como Hron de Alexandria, Galileu, Descartes ou mesmo Fermat no foi a aplicao prtica do paradoxo da roda a que se cinge o texto de Arist-teles; antes as suas implicaes tericas. Isto , caso simulemos um contexto puramente especulativo e abstracto que exclua o efeito de deslizamento, as explicaes referidas no tm qualquer cabimento e torna-se muito com-plicado resolver o paradoxo apenas com recurso matemtica. Ser preciso esperar at aos incios do sculo xx para que isso acontea, mais propria-mente pelo conceito de nmero transfinito desenvolvido por Georg Cantor. Muito sucintamente, a teoria dos conjuntos deste matemtico diz que todos os pontos de um determinado segmento de recta tm um correspondente numa recta (de extenso infinita); ou seja, existe entre ambos uma bijeco. Exemplificando, todos os pontos de um segmento de recta com 1 cm de extenso podem ser colocados em correspondncia de 1 para 1 com todos os pontos de uma recta (por natureza infinita)79. Uma curiosidade acerca desta teoria o facto de tomar como axioma a chamada hiptese do conti-nuum, um conceito assaz aristotlico80.

2 . 4 t r a n s m i s s o e r e c e p o

a ) a n t i g u i d a d e

Na Antiguidade, o texto dos [Problemas] Mecnicos seria bastante divulga-do e lido pelos autores que se dedicavam mecnica, dado que a sua influn-cia no estabelecimento e consolidao desta rea do saber foi considervel.

O principal herdeiro e difusor do texto foi Hron de Alexandria, que, numa obra intitulada Mechanica, ter estruturado um conjunto de proble-mas cujo mtodo e contedo denunciam mais do que inspirao no texto aristotlico: por exemplo, o facto de reduzi-los todos balana e as explica-es ao crculo, ou a repetio quase ipsis uerbis de vrias passagens81.

79. Sobre a aplicao da teoria dos conjuntos de Cantor ao paradoxo do Problema 24, vide Gardner 1983: 2-3.

80. Para uma viso geral do conceito de continuum em Aristteles, vide Bodnr & Pellegrin 2009: 285-287.

81. Esta leitura bastante falvel, dado que do tratado de Hron resta apenas uma verso rabe, alm de um conjunto de fragmentos e citaes de outros autores. Deste modo, torna-se muito difcil distinguir o que pertence de facto a Hron do que possa ter sido

acrescentado posteriormente com base no texto de Aristteles. Sobre este problema, vide Drabkin 1950: 170 n. 14; Berryman 2009: 134-143.

a r i s t t e l e s

4 1

De um modo menos directo, Vitrvio evidencia tambm alguns traos do texto de Aristteles, principalmente no Livro X (sobretudo no captulo 3] do Sobre a Arquitectura, onde aborda algumas questes relacionadas com as artes nuticas, retomando, assim, o assunto dos Problemas 4-782.

b ) m u n d o r a b e

At h relativamente pouco tempo, era garantido que o texto dos [Pro-blemas] Mecnicos no tinha sido divulgado nem tratado no mundo rabe, embora fosse certo que os conhecimentos sobre mecnica antiga tinham chegado quela civilizao. Dessa transmisso d conta o tratado Kitab al-

-Qarastun (Livro da Balana), conhecido no ocidente latino por Liber Ka-rastonis, da autoria do astrnomo e matemtico Tabit ibn-Qurra (sculo ix). O texto recupera as noes antigas de fora, centro gravtico, equilbrio ou mesmo do princpio das alavancas e, tambm imagem dos antigos, aplica-

-as ao funcionamento da balana. Ainda que seja evidente a matriz grega do tratado, os estudiosos tendem a identificar nele influncias de autores posteriores (por exemplo, Arquimedes) e, salvo raras excepes, rejeitam qualquer relao com o texto de Aristteles83. Com base apenas neste tes-temunho, perfeitamente legtimo concluir que os [Problemas] Mecnicos no circularam no mundo rabe.

Porm, h outras fontes que permitem pensar o contrrio. Em primeiro lugar, esto registados diversos ttulos de parfrases ao tratado, alm de que existem citaes avulsas de assuntos nele contidos (com meno directa de Aristteles) desde o longnquo sculo viii (!) segundo se pensa, tambm o prprio Averris tentou resolver o famoso Problema 24 (a chamada Roda de Aristteles), ainda que sem sucesso84.

Alm destas referncias, existe uma outra fonte, fundamental, que at h bem pouco tempo permanecera no esquecimento. Trata-se do Livro V da obra Kitab mizan al-Hikma (Livro da Balana da Sabedoria), uma enciclopdia do sculo xii organizada por Al-Khazini que visava reunir todo o conheci-mento antigo sobre mecnica; semelhante a um compndio, como sugere o ttulo Nutaf min al-Hiyal (Elementos de Mecnica). A filiao nos [Proble-mas] Mecnicos por demais evidente, j que consiste numa smula dos pon-tos essenciais do tratado e alude explicitamente a Aristteles como seu autor85.

82. O eixo intertextual Aristteles- Hron -Vitrvio analisado com grande detalhe em Micheli 1995: 115-119; Bottecchia 2000: 7-11; Krafft 1970: 129-sqq.; Clagett 1959: 89-105.

83. Para um confronto das vrias opinies acerca deste problema, vide Abattouy 2001: 99 n. 5. Sobre o contedo e mtodo do Kitab al-Qarastun, vide Micheli 1995: 94-95; Knorr 1982: 75, 92-sqq.; principalmente a obra de Jaouiche 1976, inteiramente dedicada a este tratado, em que o autor admite que a formulao do princpio das alavancas possa ser aristotlica (60-61).

84. Para uma listagem e breve explicao das vrias referncias avulsas ao tratado no mundo rabe, vide Abattouy 2001: 101-103.

85. A primeira frase comea precisamente com a expresso Aristles disse.... A edio crtica e traduo anotada do texto encontram-se no referido artigo de Abattouy 2001: 108-sqq.

p r o b l e m a s m e c n i c o s

4 2

c ) i d a d e m d i a

Durante o chamado perodo medieval, os [Problemas] Mecnicos eram quase absolutamente desconhecidos; no absolutamente, como alguns auto-res sugerem86, dado que subsistiram algumas referncias isoladas. A mais an-tiga, j do sculo xiii, consta no tratado de falcoaria De artibus uenandi cum auibus da autoria de Frederico II da Siclia que se reporta a Aristteles para afirmar que os crculos maiores so mais eficazes para levantar grandes pe-sos (um dos postulados principais do texto aristotlico). Uma outra, de 1413, resume-se ao ttulo Repertorium super mechanica Aristotelis, o qual fazia par-te de uma lista de obras autorizadas para exportao da cidade de Bolonha87.

Este quase absoluto desaparecimento da obra dever-se-, seguramente, inexistncia de uma traduo latina (que, como veremos, s aparecer no s-culo xvi) e grande escassez de originais. De facto, dentre os 29 manuscri-tos que compem a tradio, apenas trs so anteriores ao sculo xiv; alis, segundo alguns crticos textuais, os trs mais antigos so j desse sculo 88.

d ) r e n a s c i m e n t o

Aps um perodo de quase total anonimato, o tratado assumiu um pa-pel preponderante no contexto renascentista. No s pelo facto de ser um texto de Aristteles (o que seria suficiente para ter aceitao quase unnime entre os intelectuais deste tempo), mas tambm e principalmente pelo facto de as concepes cientficas (matemticas e mecnicas) que propunha estarem em perfeita sintonia com o esprito da poca89. Note-se que nesta altura que as cincias fsicas e matemticas comeam a assumir o papel de protagonistas que, mais tarde, se viria a consumar na chamada revoluo cientfica do sculo xvii. Prova disso foi o facto de o prprio Galileu conhe-cer e seguir os ensinamentos do texto de Aristteles a ponto de nele se ter baseado para compor algumas das lies de matemtica que proferiu em Pdua entre 1597-159890. Curiosamente, haveria de ser o mesmo Galileu a relegar o tratado para a categoria de conhecimento ultrapassado.

A profuso deveu-se, em grande medida, a dois factores: em primeiro lugar, a incluso do tratado na primeira edio das obras de Aristteles em preparada por Aldo Mancio (Opera omnia, graece, cum Theophrasti ope-ribus nonnulis); segundo, no menos importante, a primeira traduo para Latim, publicada em Paris no ano de 1517, da autoria de Vittore Fausto (Aristotelis mechanica Victoris Fausti industria in pristinum habitum

86. E.g. Laird 1986: 45; Rose & Drake 1971: 67.

87. Sobre estas duas referncias, vide Bottecchia 2000: 11.

88. A relao dos manuscritos est pormenorizadamente analisada na edio crtica estabelecida por Bottecchia 1982: 17-33.

89. Para um estudo aprofundado do impacto provocado pelos [Problemas] Mecnicos no Renascimento, vide Rose & Drake 1971.

90. A forte influncia que o tratado exerceu sobre o pensamento de Galileu analisada em Bottecchia 2000: 17-25; Micheli 1995: 133-152; Rose & Drake 1971: 94-96.

a r i s t t e l e s

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restituta ac latinitate donata). A partir daqui, multiplicaram-se as reimpres-ses, novas tradues, parfrases e um nmero vastssimo de comentrios (alguns deles ilustrados).

A partir de meados do sculo xvii, o tratado deixou de ter interesse cientfico e passou a ser abordado quase exclusivamente pelo texto em si no tanto pelo contedo. Desse modo, as consideraes a apresentar sobre essa perspectiva mais filolgica ficaro para a seco seguinte sobre a autoria e autenticidade.

2 . 5 au t o r i a

A autenticidade dos [Problemas] Mecnicos manteve-se praticamente in-discutvel at ao sculo xix91. Dessa altura at data, a tendncia tem sido considerar que o texto no pertence a Aristteles, razo pela qual diversas autorias alternativas foram necessariamente surgindo. Todavia, houve e h opinies que sustentam a tese contrria posio tambm seguida ao longo destas pginas.

Alm do que j foi dito na seco sobre a transmisso e recepo do texto at aos tempos mais recentes, cumpre apenas acrescentar o testemu-nho dos catlogos antigos. Dos trs que restaram92, todos eles registam o ttulo do tratado: no de Digenes Larcio (V.22-27) aparece com o nmero 123 ( 93); no de Hesquio (tambm chamado Annimo pe-las suspeitas de autenticidade) tem o nmero 114 e o mesmo ttulo do de Digenes; finalmente, no de Ptolomeu surge com o nmero 20 ( ). As diferenas so ligeiras: apenas h a notar o facto de o Catlogo de Ptolomeu dividir o tratado em dois livros, bem como o facto de acrescentar a palavra .

Quanto s vrias teorias modernas que defendem a autenticidade do texto, sublinho a obra de Fritz Krafft pelo facto constituir o primeiro estudo

91. As nicas excepes sero, provavelmente, os renascentistas Girolamo Cardano e Francesco Patrizi, que, todavia, apenas suspeitavam que o tratado no fosse de Aristteles (vide Rose & Drake 1971: 72 n. 11).

92. Estes catlogos so listagens das obras de Aristteles constantes em quatro das 12 Vitae (obras de carcter biogrfico) dedicadas ao autor. Em rigor, existem quatro listas, mas, como duas delas so praticamente idnticas (as duas verses rabes do catlogo perdido de Ptolomeu), consideram-se apenas trs. Sobre a natureza e implicaes dos vrios catlogos antigos, vide Mesquita 2005: 227-243. Esta mesma obra apresenta uma listagem comparativa dos ttulos constantes nestes catlogos (537-560).

93. O numeral diz respeito quantidade de livros por que composto um tratado (: 1 livro; : 2 livros).

p r o b l e m a s m e c n i c o s

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que coloca em lugar de destaque o problema da autenticidade, bem como por combinar fundamentos cientficos, enquadramento no sistema aristo-tlico e tambm critrios filolgicos94. Tambm merece ser referida a de Eli-sabetta Bottecchia que, alm de estabelecer a primeira edio crtica do tex-to a partir de todas as fontes textuais que restaram (manuscritos e edies), delineou um completssimo conspecto do problema da autenticidade95.

2 . 5 . 1 a r g u m e n t o s c o n t r a a au t e n t i c i d a d e

Muito resumidamente, pode dizer-se que os dois sculos de exegese ao texto dos [Problemas] Mecnicos produziram quatro grupos de objeces sua autenticidade: a condenao do seu contedo (a), a terminologia nele utilizada (b), o enquadramento no corpus (c) e, finalmente, um outro tipo de derivaes assentes numa espcie de presuno de inautenticidade (d).

a ) c o n d e n a o d o c o n t e d o

Curiosamente, o parecer que alertou os autores para a natureza hipote-ticamente espria do texto adveio de um estudioso das cincias ditas exac-tas e no de um fillogo: foi Jean tienne Montucla que, na sua monumen-tal Histoire des Mathmatiques em quatro volumes, decretou que a mecnica de Aristteles consistia num conjunto de erros matemticos grosseiros e que o tratado estava povoado de falsidades96. Isto , a condenao dirigia-

-se ao contedo e validade cientfica do texto e no propriamente ques-to autoral, sendo os critrios matemticos e no filosficos nem filolgicos.

A natureza da anlise de Montucla no acessria, j que acabaria por fundamentar uma das mais influentes orientaes contra a autenticidade do tratado; por exemplo, a de Valentin Rose e Alfred Gercke. O primeiro, numa obra dedicada ordenao do corpus Aristotelicum e autenticidade dos tex-tos, declara que todos os que abordem questes matemticas so esprios97. O segundo, autor do verbete sobre Aristteles na Realencyclopdie der Classischen Altertumswissenschaft, determina, em sentido anlogo, que a aplicao prtica das questes abordadas nos [Problemas] Mecnicos nunca poderia interessar ao Es-tagirita, razo pela qual o tratado dever ser de um peripattico posterior98. Estas opinies parecem surgir mais como uma espcie de defesa perante as acusaes de Montucla do que como um juzo acerca do texto propriamente dito: visto que o contedo dos [Problemas] Mecnicos fora declarado errado e falso (bem como todos os textos sobre matemtica), no seria possvel que Aristteles os tivesse redigido. Alm disso, no se baseiam em fundamentos filosficos nem filolgicos, j que simplesmente decretam algo que parece necessrio e indiscutvel.

94. Krafft 1970: 19-48.

95. Bottecchia 2000: 27-51.

96. Montucla 1799: I 187-188.

97. Rose 1854: 192-193. 98. Gercke 1895: col. 1044.

a r i s t t e l e s

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b ) t e r m i n o l o g i a

A segunda grande orientao centra-se sobretudo na terminologia usada no texto. Por exemplo, Thomas Heath conclui que, pelas semelhanas voca-bulares, a obra ser seguramente de Euclides99. Esta opo, a meu ver, no parece sustentvel, j que o texto evidencia algumas caractersticas que no teriam cabimento em Euclides. O exemplo mais flagrante ser talvez a ine-xistncia de um termo para o conceito de raio, que, no texto de Aristteles, denominado por expresses perifrsticas como (a linha [traada] a partir do centro)100. Ora, em Euclides, o conceito de raio expresso pelo termo tcnico . Outro exemplo semelhante a referncia a pontos geomtricos por meio da construo prolixa com Dativo antes da letra que designa o ponto, enquanto que nos Elementos se usa apenas a prpria letra.

Nesta linha de pensamento, surgem algumas opinies que tentam sal-vaguardar estas inevitveis contradies, recorrendo ao artifcio de situar o tratado entre Aristteles e Euclides: o autor seria algum que tivesse assimi-lado parcialmente a terminologia euclideana e, ao mesmo tempo, estivesse ainda influenciado pela de Aristteles. Por exemplo, Heiberg sustenta esta hiptese com base no uso de para definir o rectngulo101. De facto, o termo consagrado em Euclides, mas h que ter em conta que s ocorre uma nica vez no texto de Aristteles (1, 848b20), j que a palavra mais recorrente (objecto oblongo) de origem pitagrica.

c ) e n q ua d r a m e n t o n o c o r p u s

O terceiro tipo de objeces autenticidade do texto assenta no seu su-posto desfasamento em relao ao resto do corpus. Por exemplo, Eduard Zeller segue esta via, argumentando que nos [Problemas] Mecnicos no existem suficientes concepes filosficas para que o texto possa ser de Aristteles102. Alm de tudo o que foi dito nas seces anteriores sobre a filiao do tratado no pensamento aristotlico, pode ainda acrescentar-se mais um pequeno detalhe: o uso da expresso (aciden-tal), cuja preponderncia no sistema aristotlico indiscutvel103.

d ) p r e s u n o d e i n au t e n t i c i d a d e

A quarta orientao, bem mais recente, chega a ser falaciosa, dado que