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Seu Único Amor Elinor Glyn 1956 Direitos para a língua portuguesa adquiridos pela COMPANHIA EDITORA NACIONAL — São Paulo — que se reserva a propriedade desta tradução. Impresso nos Estados Unidos do Brasil Printed in the United States of Brasil Queridas Leitoras Tamara apesar de viúva soube abrir o seu coração a um novo amor. Depois de muito ódio e rancores encontrou no príncipe o homem da sua vida. Para quê odiar se o coração ama… Disponibilização: Marisa Helena Digitalização: Marina Revisão: Laura

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Seu Único Amor Elinor Glyn

1956 Direitos para a língua portuguesa adquiridos pela COMPANHIA EDITORA NACIONAL —

São Paulo — que se reserva a propriedade desta tradução. Impresso nos Estados Unidos do Brasil Printed in the United States of Brasil

Queridas Leitoras Tamara apesar de viúva soube abrir o seu coração a um novo amor. Depois de muito ódio e rancores encontrou no príncipe o homem da sua vida. Para quê odiar se o coração ama…

Disponibilização: Marisa Helena Digitalização: Marina Revisão: Laura

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Biblioteca das Raparigas Vol.29 3

CAPITULO 1 A esfinge sorria o seu eterno sorriso. Eram duas horas da madrugada. Os turistas haviam regressado ao Cairo, e apenas

um ou dois árabes se encontravam ainda perto do rapaz que vigiava o camelo de Tamara. Pouco a pouco, porém, se foram distanciando. Assim, afora Hafis, ela ficou sozinha. . . sozinha com seus pensamentos e a Esfinge.

Esta fitava-a diretamente da eminência em que se encontrava. Sua calma irônica penetrava a alma da moça. Aquela criatura de pedra parecia estar rindo de toda a humanidade e parecia dizer:

— Não existe o além. Vive e desfruta as coisas do presente. Come, bebe e alegra-te, porque amanhã morrerás. Eu, que aqui estou sentada, asseguro-te que não existe o além. As coisas, que podes tocar e reter junto ao teu corpo, são as únicas que valem a pena ambicionar.

— Não. .. não... — gritou Tamara quase em voz alta. — Não quero... não posso acreditá-lo ...

— Tola! exclamou a Esfinge em sua linguagem muda. Que é a tua alma? E, se a tens, que fizeste com ela até agora? Acaso és alguma luz no mundo? Não, até agora só tens vivido para cumprir as ordens dos outros. Permitiste que tua personalidade fosse plasmada durante vinte e quatro anos, isto é, desde o dia em que aprendeste a falar.

Tua alma, essa coisa tão formosa que possuis, não passa de um simples eco. Deves mostrá-la, se é que, efetivamente, a tens. Tens uma opinião própria? Não. Só dizes trivialidades que, segundo te ensinaram, e que constituem as respostas adequadas a cada pergunta! Acredita-me, tu não tens alma! Toma então o que tens: o corpo! É indubitável que esse tu o possuis, porquanto está à vista. Pois bem, ambiciona o que esse corpo pode proporcionar-te, já que não tens a suficiente força de vontade para aspirar a coisas mais elevadas. Pobre criatura débil, trata de agarrar o que puderes, essa é a ciência que me têm ensinado os séculos em que tenho aqui permanecido sentada. Tamara levantou a mão em sinal de protesto mas, no fundo de sua alma, compreendeu que o conselho era certo. Sua vida fora, de fato, uma interminável cadeia de lugares comuns, como a de qualquer ovelha de um rebanho.

Mas, seria já demasiado tarde para mudar de vida? Teria ela a coragem de fazê-lo? Atrever-se-ia, acaso, a pensar por si mesma? Em caso negativo, o mais conveniente era seguir o conselho expresso pelo místico sorriso da Esfinge: “Come, bebe e alegra-te. Amanhã morrerás”.

A cor azul do céu pareceu consolá-la, falando-lhe de novas esperanças. Haveria, acaso, algum outro país no mundo, capaz de mostrar um céu daquela cor azul tão profunda como o céu noturno do Egito? Fazia um calor intenso, e a tranquilidade era completa.

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Quão acertada procedera ela ao romper com todas as convenções que a rodeavam e vir só, àquele lugar! Demais era uma de suas últimas noites no Egito.

Sorriu levemente ao lembrar-se do rosto de Millicent Hardcastle, quando ele lhe surgiu na mente.

— Querida Tamara, que coisa extraordinária para uma mulher! Ir sozinha em visita à Esfinge, às duas horas da madrugada. Não é para todo o mundo estranhar?

Por um momento, Tamara ficou indecisa, logo, porém, a sua rebeldia venceu. — É possível, respondera. Mas você bem sabe, Millicent, que isso não me importa

muito. Essa pedra esculpida produziu-me uma impressão estranha. Fez-me pensar como nunca pensei antes. Desejo conservar essa recordação da maneira mais nítida possível. Por isso, irei.

Nem sequer a suave insinuação da senhora Millicent, ao observar que, a seu ver, poderia visitá-la e estudá-la em hora mais adequada, conseguiu convencer Tamara e, enquanto a sua amiga repousava tranqüilamente no leito em Mena House saiu sentindo em seu íntimo a mesma impressão de uma criança que resolve ir brincar em vez de ir para a escola.

Essa espécie de fuga entusiasmava-a mais, nem por isso deixou de sentir alguma inquietação.

Tamara era viúva. James Loraine tivera todas as qualidades de um bom marido britânico. Havia-a tratado com ternura, oferecendo-lhe um lar aprazível somente pediu-lhe que passasse dez meses ao ano no campo. Jamais lhe deu razão para a mais pequenina cena de ciúmes.

Ela não se lembrava se o coração houvera pulsado alguma vez com maior ou menor intensidade, ao chegar ou sair do esposo. Havia-o amado da mesma forma que a uma de suas irmãs, a seu irmão e a seu pai, a saber, com a maior dedicação. E quando uma pneumonia o levou, quase dois anos antes, chorou-o como teria feito pela perda de qual-quer um deles, com sinceridade e ternura.

A família de Tamara era muito simpática. Por espaço de vários séculos, viveu na mesma região cumprindo sempre

escrupulosamente com os deveres em tudo que se relacionava com os seus vizinhos, contribuindo para formar essa coluna vertebral da Inglaterra, que hoje se menciona mais do que nunca, porque começa a desaparecer.

Tivera membros no Parlamento, a princípio liberais, e, mais tarde, de tendência Unionista. Tivera generais, presidentes de tribunais trimestrais de condado, concorrentes às partidas de caça (tão tradicionais no grande mundo britânico). Contribuíram os seus membros para todas as obras filantrópicas, foram fiéis observadores de seus deveres religiosos, disciplinados, ortodoxos e dignos membros da sociedade.

O nome da família era Underdown e o de sua casa Underwood. O fato de ter Tamara recebido este nome russo, em lugar de Gladys, Mabel ou

Dorothy, como era tradição na família, parecia indicar que o destino lhe reservava uma vida diversa da que levaram suas irmãs. Até mesmo a sua entrada no mundo foi diferente da dos outros membros da família Underdown.

A mãe, lady Gertrudes Underdown, havia entabulado uma estreita amizade com a esposa do Primeiro Secretário da Embaixada Russa.

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Os estrangeiros não eram vistos com bons olhos no círculo da família. Por isso lady Gertrudes, em lugar de permanecer somente os meses de maio e junho, como costumava fazer, em Londres, insistiu em ficar também, com a sua amiga Vera, e gozar os prazeres da boa sociedade.

O marido resmungou um pouco mas, afinal, acedeu. Todavia, quando nasceu a quarta filha e lhe foi feito o pedido para que a princesa Vera fosse a madrinha, dando-se à menina um nome russo, não pode deixar de manifestar claramente o seu descontentamento.

Qualificou essas idéias de “estrangeirices”, porém, como lady Gertrudes estava enferma, não se pôde opor com muita energia, resolvendo-se o caso de acordo com os desejos da mãe de Tamara, e a menina foi assim batizada.

Não houve entretanto, mais influências russas na família. O primeiro filho varão e herdeiro do nome, que nasceu um ano depois, foi batizado singelamente com o nome de Tom e depois, lady Gertrudes fez uma reverência ao mundo e retirou-se para a sepultura familiar na igreja de Underwood.

Os órfãos foram bem criados e educados por uma tia, deixando somente poucas vezes o campo, até que, sucessivamente, chegou a época de serem apresentados na Corte, devendo então passar uma temporada bastante aborrecida com os vizinhos da comarca e de sua posição social.

Duas das irmãs, incluindo Tamara, casaram-se bem. Esta última enviuvou aos 23 anos de idade, mas ficou com uma respeitável fortuna.

Vestira luto pelo tempo regulamentar, ocupando-se de seus interesses. Entregou os direitos de vínculo e título ao irmão de James, gesto raro da parte de uma cunhada, e finalmente, quando já vestia meio luto, quer dizer, uns dois anos depois do falecimento do marido, resolveu fazer uma viagem ao Egito com sua amiga Millicent Hardcastle, que se achava convalescendo de uma influenza.

A viagem ao estrangeiro causara, como é de supor, grande estranheza em Underwood. Nenhum dos seus se havia ausentado jamais da Inglaterra, exceção feita de uma viagem a Dresde, a qual realizaram um ano antes de serem apresentados à Corte, a fim de aprender alemão.

E que efeito produziria o Egito em Tamara? Despertou-lhe, talvez, no fundo da alma alguma coisa, da qual só tivera uma vaga consciência em uma ou duas oportunidades de sua vida. Tudo lhe parecera extraordinário, impressionando-a vivamente. Uma noite, ao regressar de uma festa ao ar livre, sob as laranjeiras de Ghezireh, o forte perfume e a atmosfera embriagadora apressaram a circulação do sangue em suas veias. Pareceu-lhe estranho que pudesse impressionar-se de tal forma. Tudo que pudesse excitar violenta-mente os sentidos era causa de severa censura em “Underwood Chase”.

Os sentidos eram coisa indecente. Tia Clara jamais pôde compreender, realmente, porque os seres humanos haviam sido dotados deles pelo Todo-Poderoso.

A esfinge prosseguiu falando com Tamara, ainda que, desta vez, com a voz de um rapaz que, sem o menor aviso, se levantou de um banco de areia próximo, onde estivera estendido imóvel e invisível.

— Uma bela Deusa, não é verdade? — disse. Para aumentar ainda mais a insolência de ser interpelada por um desconhecido,

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Tamara sentiu-se mais surpreendida ainda porque aquele desconhecido era um estrangeiro.

Mas ele tinha uma voz extremamente agradável, profunda e melodiosa. O “insolente” deteve-se diante dela e sua elevada silhueta, de mais de um metro e oitenta centímetros de altura, se destacou claramente sobre o fundo escuro da noite. Tratava-se de um moço tão esbelto como a própria Tamara, embora tivesse os ombros mais largos e toda a sua pessoa dava uma impressão de extraordinária virilidade.

Tamara não soube, no primeiro instante, o que devia responder. O desconhecido lhe havia dirigido a palavra com tanta naturalidade que conseguiu desarmá-la e o protesto que lhe havia assomado aos lábios não saiu da garganta. Aquelas palavras se pareciam às que um homem pudesse trocar com qualquer correligionário, a fim de comunicar suas íntimas impressões.

A mulher sentiu-se, assim mesmo, surpreendida pela repentina aparição do homem, num momento em que acreditava estar inteiramente só. Finalmente, depois de um momento de silêncio embaraçoso, respondeu:

— É. — Muitas vezes, prosseguiu o desconhecido, venho aqui durante a noite, quando

esses aborrecidos turistas já se retiraram em seus carros. É então que se pode estar a sós com a Esfinge, e ela parece dizer-nos alguma coisa... Não acha?

— De fato, replicou novamente Tamara, assombrada de si mesma, ao observar que se dignava responder às perguntas do desconhecido.

— Confesso-lhe que a princípio senti certo aborrecimento ao ver a senhora apear-se do seu camelo e sentar-se aqui, para admirar a deusa de pedra. Sempre desejei tê-la para mim só, mas logo compreendi que a senhora não era uma simples turista.

— Está bem, respondeu Tamara, conquanto as convenções sociais, inerentes à sua educação de descendente dos Underdown, pareciam levantar uma voz de protesto contra o rumo que tomava a conversação.

— Sim, prosseguiu o homem, sem dar importância à indecisão que se notava nas palavras de Tamara. Não é possível continuarmos pensando que valemos alguma coisa, depois de observarmos este rosto de pedra. Não pensa assim?

— Certamente. — Quantos mil anos tem estado esta deusa repetindo a mesma história às pessoas

que se dignaram observá-la com atenção e escutar-lhe os silenciosos conselhos! Mas quando vejo turistas, sinto dentro de mim tamanha ira que, para contê-la, me vejo obrigado a aplicar enormes esforços de vontade! Gostaria de os estrangular a todos! A presença deles afigura-se-me uma profanação para esta deusa!

Crispou os punhos e seus olhos despediram chamas de ódio. Tamara fitou-o. O rapaz não estava com os olhos fitos nela, mas na Esfinge.

Observou que se tratava de um homem sumamente insinuante embora não trajasse à inglesa. Seu traje era de cor parda, corte bastante despretensioso e calçava umas botas que teriam horrorizado o mano Tom.

Os preconceitos, que nela haviam deixado a sua educação e tradição, pareciam querer insinuar-lhe que aquele homem não era um gentleman, mas quando ele concentrou nela o seu olhar e quando as suas feições lhe apareceram iluminadas pela luz

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do luar, toda a dúvida se desvaneceu repentinamente. Teria então, jurado, que não somente era um cavalheiro, mas era um dos que melhor o fossem...

— Não lhe interessaria conhecer alguma coisa das Mil e Uma Noites? — perguntou. Tamara levantou-se. Compreendeu que aquela conversação não devia continuar,

contudo… Sim, teria interesse nisso, respondeu. — Bem, o encanto da Esfinge está quebrado. Ela não poderá continuar falando

enquanto a senhora estiver ao meu lado, nem poderá dar-lhe conselhos se eu permanecer em sua companhia. Por isso, creio que o mais conveniente será sairmos daqui, para vermos coisas interessantes...

— Quais? — Uma pequena aldeia que existe perto daqui, por exemplo. Metade das pessoas

ignora que ela existe e a outra metade teria medo de passar por lá de noite. Mas, a mim me conhecem e, portanto, posso assegurar-lhe que nada lhe acontecerá...

Sem mais hesitação, chamou Hafis, ordenando-lhe em árabe que trouxesse o camelo, dispondo-se em seguida a ajudar a moça a montar. Quando a moça se viu na sela, sentiu-se como que hipnotizada. Compreendeu que se dirigia para o desconhecido em companhia de um homem completamente estranho, mas nem um momento pensou em desistir.

— E o senhor como vai montado? — perguntou Tamara. Vai ver, respondeu o desconhecido. Imediatamente lançou um suave e estranho as-

sobio, que foi respondido por um relincho e, um segundo depois, apareceu um formoso cavalo árabe, puxado pela rédea por um rapazola trigueiro. — Quando eu partir do Egito, levá-lo-ei comigo — disse o homem. Faz somente, uma semana que o comprei e já me conhece. Não é um belo animal?

Num salto o homem montou o cavalo fazendo-o com uma facilidade tal, que Tamara, que sempre havia admirado as qualidades de cavaleiro de seu irmão Tom, compreendeu que nunca havia visto um homem tão ágil para a equitação como o era aquele.

— Parece ser austríaco — disse consigo mesma. E logo acrescentou com a arrogância característica dos britânicos. Só os austríacos se parecem conosco.

O rapaz não parecia interessar-se pelo que ela pensava. Tomou-lhe a dianteira, dirigindo-se por trás da Esfinge, em direção ao deserto.

A sua figura elegante não deixou de causar a Tamara a mais profunda admiração. Indubitavelmente era um belo rapaz, além de hábil cavaleiro.

Depois, Tamara compenetrou-se de que se tratava, na verdade, de uma estranha aventura e ligeiro rubor lhe coloriu as faces quando imaginou o que diriam a sua amiga Millicent e os demais membros de sua família, logo que o soubessem.

Mas aquela era a sua noite de rebeldia, de modo que as coisas tinham que seguir o seu caminho! O desconhecido manteve-se adiante dela, até que chegaram ao deserto e então deteve um momento o cavalo para esperá-la.

— Repare — disse. – Logo que dermos volta a estas rochas, chegaremos à povoação de que lhe falei. Custa crer que ela fosse sempre a mesma.

Penetraram na pequena aldeia. As ruas eram excessivamente rústicas e as casas escuras, davam uma impressão de mistério. Tamara pensou, por um momento, as cenas que se poderiam desenrolar por detrás daquelas paredes. De longe em longe, alguma

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figura isolada, vestida de azul, desaparecia em uma esquina. O silêncio era profundo e as sombras projetadas pela luz da lua eram finas como a lâmina de um punhal. Aqui e ali, uma janela aberta deixava ver um círculo de beduinos árabes, sentados ao redor de uma fogueira. Em nenhum deles se divisava o menor vestigio de hilaridade. Suas feições eram todas tão graves como um sepulcro.

De repente, na mais escura e estreita viela, escutaram um ruído de sinetas, acompanhado por estranha música e vozes e pelas frestas das persianas de uma casa, semicerradas, a luz chegava á rua, onde havia um grupo de árabes diante da porta, segurando vários burros e um camelo. . .

— É um casamento — disse o rapaz. Vieram escoltando a noiva. Que prazer extraordinário deve ser o levantar-se um, véu e.. . encontrar-se um rosto negro! Mas cada um com o seu gosto...

Tamara olhou pela janela, imaginando o que se passaria ali dentro. Gostaria de perguntar…

O rapaz observou-lhe a hesitação e interrogou laconicamente: — Então? — Parece que estão reunidos em uma festa, observou Tamara, para dizer alguma

coisa. — Naturalmente, afirmou o homem. Os casamentos e os enterros são ocasiões

apropriadas para reuniões. Os árabes são tão sábios que deixam tudo nas mãos do destino. Não choram desconsoladamente pelo que não podem remediar e cuidam, por todos os meios, de evitar os desenganos. São todos uns grandes filósofos, esses árabes.

Os curiosos impediam-lhes, naquele momento, o caminho e nos seus gestos havia ao mesmo tempo bom humor e ameaça. .

— Vamos, vamos! disse o rapaz, avançando para o pequeno grupo de curiosos, enquanto tirava do bolso um punhado de moedas de prata, lançando-as ao ar. Ao mesmo tempo, disse algumas palavras humorísticas em árabe, e indicou a janela.

Em seguida, tomou a rédea do camelo de Tamara e prosseguiu o seu caminho. Os curiosos separaram-se e puderam distanciar-se sem o menor embaraço.

Nenhum dos dois falou, até que se viram de novo em uma rua solitária. — As vezes essa gente se porta de modo bem desagradável — disse o rapaz, mas

enfim é interessante conhecer-se de tudo. O Xeque vive aqui e acredita que as pirâmides lhe pertencem, da mesma forma que o Quediva imagina que todo o Egito é sua propriedade. Mas, isso não é de admirar, porque, no fim de contas, na vida, tudo é imagi-nação ...

Naquele instante Tamara pôde observar melhor o rosto do companheiro pois, ocupando uma sela mais alta no camelo, o desconhecido teve de levantar os olhos, para vê-la, enquanto falava. Tinha um pequeno bigode e seus lábios eram de um desenho perfeito, talvez até perfeito demais para um homem. Esse juízo passou-lhe rapidamente pela imaginação, até que reparou melhor na forma firme do queixo. Os olhos possuíam certa expressão sonolenta e, na forma, se assemelhavam aos dos orientais. Naquele momento o seu olhar partia de uns olhos negros como azeviche, ainda que, no íntimo da moça, uma voz estranha parecia dizer que, à luz do dia, provavelmente seriam azuis ou pardos.

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Nenhum sorriso assomou aos lábios dele. Estava sério, enquanto falava. Contudo, quando dobraram pela esquina, mais próxima, não pôde deixar de rir ante o espetáculo deparado e, então, toda a sua personalidade pareceu transformar-se. Sua alegria era tão espontânea como teria sido a de uma criança.

Duas cabras haviam escapado de duas cabanas opostas e lutavam em meio do caminho.

O companheiro de Tamara deteve o cavalo e esperou. — Gosto de todas as lutas. Mas, as cabras se assustaram com a sua presença e seguiram o caminho

tranqüilamente. Tamara perguntava a si mesma qual seria a razão que a tornava tão enlevada.

Gostaria de fazer ao companheiro uma infinidade de perguntas. Queria saber quem era e o que estava fazendo diante da Esfinge, e, de um modo, em geral, o que estava fazendo no Egito. Por que lhe tinha dirigido a palavra?

Agora a indiferença parecia dominá-lo. De fato, aquele homem não lhe havia formulado uma só pergunta, nem manifestava a menor curiosidade.

Tamara sentiu um certo despeito. Finalmente, chegaram ao fim da aldeia, onde existia um pequeno lago, formado

pelas águas do Nilo, ao baixarem depois da enchente. A lua cheia se refletia nele. O espetáculo era de suprema beleza. As pirâmides apresentavam-se com uma cor rosada e todas as outras coisas tinham a cor da safira, bem diversa do tom azul-esverdeado que a luz da lua dá a todos os objetos nos demais países do mundo. Tudo estava em silêncio. Não havia ali senão eles e os rapazes que conduziam o camelo.

Diante deles perfilava-se a linha escura das árvores que marginavam o caminho. — Vai regressar ao hotel? — Perguntou o rapaz. Se assim é, permita-me conduzi-la

até lá. Em seguida, começaram a subir a encosta que dá para a avenida que parte do

Cairo. Tamara não pôde ocultar por mais tempo a sua curiosidade. — E o senhor? - perguntou. Para onde vai? — Muitas vezes para o inferno, respondeu o rapaz, com os olhos nublados. Mas

esta noite vou deitar-me para variar. Tamara ficou estupefata. Aquela situação não era, por certo, correta, intimamente,

fazia a si mesma algumas reprovações, por se haver atrevido a formular aquela pergunta. Naquele instante o cavalo árabe teve a lembrança de dar alguns saltos, sem

nenhuma razão que o justificasse, mas o cavaleiro, sem perder o equilíbrio, pôs-se a rir. — Adiante! - falou ao animal. Gosto de te ver assim, pois mostras, pelo menos, que

vives. Quando chegaram próximo ao hotel, Tamara acariciou a esperança de não ter sido

vista por ninguém, pelo menos por nenhuma pessoa que pudesse ir dizer a Millicent ter ela chegado em companhia de um homem. Apeou-se do camelo e, num segundo, o rapaz estava a seu lado.

— Já estou em lugar completamente seguro e agradeço-lhe muitíssimo a companhia. Não é necessário que se incomode em me acompanhar mais.Fico-lhe

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agradecida por me haver mostrado um novo caminho para vir ao hotel. Adeus... O rapaz olhou-a e em seus lábios se debuxou um sorriso irônico. — Não seja nervosa! Acompanhá-la-ei até à porta do hotel. Tamara não respondeu e, um minuto depois, chegaram à entrada do

estabelecimento. Ali se deteve o companheiro. — Espero ter a honra de vê-la novamente algum dia. Os árabes têm um provérbio

que diz: “Os que se encontram antes da aurora, não se separam até a aurora”… Sabe que os nativos conseguem adivinhar o futuro, só por algumas gotas de água contidas em uma pedra côncava? Mas, não quero retê-la mais tempo. Boa noite...

Antes que Tamara pudesse responder, o homem havia novamente cavalgado o seu fogoso animal, tomando o caminho do deserto.

Para onde iria? Possivelmente, até onde havia dito ir algumas vezes.

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CAPITULO 2 Quando Tamara despertou na manhã, seguinte, a recordação do passeio feito na

noite anterior assemelhava-se-lhe a um sonho. Durante longo tempo permaneceu sentada diante da janela, com o olhar fito no Cairo e na paisagem verde. Tratava de ordenar perfeitamente em sua imaginação todos os acontecimentos. Aquele desconhecido havia-lhe produzido, indubitavelmente, uma impressão considerável.

Perguntou a si mesma quem seria e que aspecto teria ele durante o dia, porém o que mais a intrigava era o fato de se ter ele dirigido para o deserto. Depois, ficou surpreendida consigo mesma. Tudo quanto acontecera era tão estranho, tão fora do comum, tão diverso de tudo quanto se passara em sua vida anterior, sempre regida pelos mais severos preceitos das convenções sociais. Seriam verdadeiros, por acaso, aqueles pensamentos que a Esfinge lhe tinha despertado na mente? De fato, parecia ser assim. Sempre se deixara governar pelos outros, sem desenvolver jamais a sua própria personalidade.

A moça era muito sensível, e aquele último sorriso do desconhecido a tinha humilhado. Pensou intimamente que, de certo, se ria do seu desejo de o deixar antes de chegarem à porta do hotel. Depois, lembrou-se de que tinha ele motivos de sobra para rir-se de muitos outros atos seus. E isso foi o bastante para lhe alterar a serenidade. Desviou com um movimento de impaciência os cabelos que lhe caíam sobre a fronte. Tudo quanto acontecera tornava-a descontente consigo mesma, enchendo-a de inquietação.

— Ainda não me contaste nada da excursão realizada até à Esfinge — disse Millicent Hardcastle, quando as duas se encontraram para tomar o café.

As duas mulheres estavam vestidas com penteadores amplos e sentadas a uma mesinha, nos aposentos de Millicent. Ao ver que Tamara não lhe respondia, sua amiga insistiu:

— Esteve agradável o passeio? Não havia outros turistas? — Foi maravilhoso, respondeu Tamara elevando o olhar para o infinito. Não havia

turistas, e posso asseverar-te que me inspirou os pensamentos mais extraordinários, Millicent. Queres saber de uma coisa? Afinal de contas, somos todos muito banais.

Mrs. Hardcastle levantou os olhos surpreendida, mantendo a xícara no ar, em vez de levá-la aos lábios.

— É possível que isto te surpreenda, Milly? Mas é a mais pura verdade. Fazemos todos os dias as mesmas coisas, pensamos sempre da mesma forma e levamos uma vida desprovida totalmente de interesses, e vulgaríssima.

— Chegaste a essa conclusão depois de ver a Esfinge? — interrogou Mrs. Hardcastle.

— Sim, respondeu Tamara tornando-se um pouco mais visível o rubor que lhe

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coloria as faces. Em toda a sua vida, não tivera segredos. — Achava-me sentada diante da Esfinge, Millicent, e a imperturbável deusa de pedra parecia rir-se das trivialidades da vida. Pareceu-me, depois que a fitei, que me falava, e que dizia quão ridícula é a nossa existência, inteiramente regida pelas convenções sociais e pelo temor do que dirão de nós. Não pude deixar de me lembrar daqueles dias que passamos em Dresde. Como tem sido aborrecida a nossa vida desde então! Talvez tenhas tido uma existência um pouco mais interessante que a minha, pelo fato de teres filhos, porém afinal de contas temos levado uma vida destituída de todo e qualquer interesse.

Estas palavras mereceram de Mrs. Hardcastle uma enérgica resposta: — Não estou absolutamente de acordo nesse ponto, Tamara. Nossa vida foi sempre

cheia de acontecimentos bons e momentos agradáveis. Por outra parte, sempre nos temos conduzido como nos obriga o nosso sexo, estado civil e posição social. Numa palavra, temos cumprido o nosso dever no mundo.

Esta resposta pôs fim ao tema, pois Tamara não estava disposta a discutir o fato de haverem cumprido com seu dever.

Depois do café, saíram para dar um passeio montadas em burros, devendo regressar a tempo ao hotel, para assistirem ao baile que naquela noite oferecia o Quediva, e para o qual estavam convidadas No dia seguinte, deveriam empreender a viagem de regresso à Europa. Mrs. Hardcastle não podia permanecer por mais tempo longe dos filhos. Sua viagem já tinha durado quatro semanas e agora o marido e o lar a reclamavam. Já estavam a 27 de dezembro.

Quanto a Tamara, poderia prolongar a sua estada no Egito e, por bem pouco, ficaria para sempre naquele país.

Não era essa, porém, a intenção do destino! — Subamos por este caminho de areia, Millicent — disse, ao achar-se a pequena

distancia da porta do hotel. Nunca o percorremos, e eu gostaria de ver para onde ele nos conduzira. Talvez, lá do alto, possamos gozar de um belo panorama. E tomaram o outro caminho.

Tamara não se atreveu a confessar a si mesma o que esperava encontrar ali. Finalmente, chegaram a uma casa construída em forma de bangalô. É possível que atualmente já tenha sido demolida mas, naquele tempo, porém desfrutava-se dali uma belíssima vista do deserto imenso e da parte habitada. Tamara havia observado a distância, em outra ocasião, aquela construção mas, pensou sempre que se tratasse de alguma caixa de água do hotel, tão isolada e nua se mostrava. Tinha sido construída por um italiano doido, que ali julgara encontrar repouso e tranqüilidade Era um edifício estranho, com janelas estreitas e muito altas, evidentemente para iluminar algum atelier, e possuía uma varanda da qual se podia ver o Nilo.

Ao chegarem bastante perto, observaram que na varanda se encontrava um rapaz estendido numa poltrona de vime, ocupado com a leitura de uma novela francesa. As duas mulheres puderam ou, pelo menos, Tamara pôde distinguir claramente que o rapaz vestia um pijama de seda branca com listas azuis, entreaberto de forma a deixar ver o peito. Uma das pernas, que estava estirada, descansava no espaldar de outra cadeira, e o pé estava inteiramente descalço.

Mrs. Hardcastle chicoteou o seu burro, tratando de se distanciar bem depressa, já

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que o caminho passava muito perto daquele espetáculo pouco edificante. Tamara seguiu-a, não porém sem dai tempo a que o rapaz levantasse a cabeça, franzindo as sobrancelhas. A moça imaginou ouvi-lo dizer: “malditos turistas”. Em seguida notou um árabe que se aproximava do. rapaz com uma xícara de café na mão.

Tamara sentiu-se quase envergonhada. Pensaria acaso aquele homem que ela havia passado ali para vê-lo? Afinal de contas, ele não lhe havia demonstrado o menor interesse, e Tamara perguntou a si mesma se ele a teria reconhecido naquele momento, não obstante a mudança que dava ao seu aspecto o fato de trazer um grande chapéu de palha, em lugar da echarpe de seda. Mas porque tinha ela, em verdade, seguido aquele caminho? Desejou, um instante, ter proposto, em lugar dele, que dessem uma volta por trás das pirâmides.

— Tamara — disse Mrs. Hardcastle mais adiante, reparaste que naquela poltrona estava um homem? Que pouca vergonha uma pessoa ficar naqueles trajes num terraço!

— Não reparei — disse Tamara, sem corar sequer. E estranho que houvesse prestado atenção Milly, quando este panorama é tão encantador.

— Mas, minha querida, não pude deixar de o ver. O que não compreendo é como não o notaste. Vestia somente um pijama e tinha os “pés descalços”.

Mrs. Hardcastle pronunciou em voz muito baixa estas últimas palavras, a seu ver verdadeiramente terríveis.

— De certo está com calor — declarou Tamara, com a maior naturalidade. A temperatura está hoje muito elevada.

— Tamara, penso que nenhuma pessoa distinta estaria assim, semi-nu às doze horas do dia, em lugar onde pudesse ser vista pelos transeuntes, qualquer que fosse a temperatura ambiente.

— Talvez não se trate de uma pessoa distinta, concedeu Tamara. Mas, desde que o viste tão bem, como era?

Mrs. Hardcastle fitou a amiga por cima do ombro, afetando um gesto de reprovação. —Tu falas-me como se eu tivesse olhado por querer — disse. Mas, já que tens

interesse em saber, digo-te que me pareceu ser muito alto e nada gordo. Creio que a cor do cabelo não era muito escura e que talvez se trata de um inglês.

— Oh, não! exclamou Tamara, não é inglês. A amiga fitou-a com espanto, e Tamara, ao notar que havia cometido uma tolice ao

deixar escapar aquela exclamação espontânea, tratou de melhorar a situação com estas palavras:

— Quero dizer que nenhum inglês ficaria recostado em terraço vestido somente com um pijama. Pelo menos, não o fariam os ingleses que conhecemos no Cairo. Eles andam muito ocupados, não andam?

Embora fraca, a explicação pareceu satisfazer a Millicent. Contribuía para isso a circunstância de que, para descer a encosta, e, ao mesmo tempo conversar com a amiga, deveria agarrar-se ao burro, coisa desagradável naquele momento em que o calor era sufocante.

Resolveu, pois, por um momento, deixar o assunto mas, quando chegaram à planície, começou dizendo:

— É possível que ele seja um louco, Tamara, e que o tenham mandado para aqui

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com um guarda. Foi uma sorte que nos fizéssemos acompanhar pelos rapazes dos burros.

Tamara pôs-se a rir. — Tola! disse ela. — Não creio que nos tivesse comido. Provavelmente não teve a

menor intenção de nos fazer mal. Devíamos ter ido pelo outro lado. Talvez aquele caminho seja sua propriedade particular.

— De toda a forma, não devia ficar ali despido, protestou Mrs. Hardcastle. Imagina se nos tivessem acompanhado moças solteiras... Nesse caso, o espetáculo teria sido duplamente desagradável.

— Não penses mais nisso, querida. Põe o burro a trote e façamos exercício. Prosseguiram o caminho. Naquela mesma tarde, no momento em que saiam do hotel, passou ao lado delas

um homem montado em um belo cavalo árabe. Vestia um elegante traje de montar. O cavaleiro não as olhou sequer mas, enquanto Tamara se sentia repentinamente

emocionada, Mrs. Hardcastle exclamou: — Olha... olha... é ele, o louco do pijama!

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CAPITULO 3 No pensar de Tamara, o baile do Quediva foi uma festa magnífica, mas dava um

trabalho imenso abrir caminho pelas ruas, por causa do grande número de pessoas que nelas se aglomeravam. O palácio estava, e provavelmente ainda está, decorado no estilo do Terceiro Império Francês, um gosto que não se recomenda precisamente pela beleza.

Os uniformes de gala dos oficiais davam ao conjunto, entretanto, um aspecto de brilho, devido ao contraste que suas vistosas cores faziam com os trajes civis, envergados pelos funcionários do governo do Egito. Tamara julgou esses trajes muito feios e estranhou os rostos dos funcionários britânicos, encimados pelo fez. Em companhia de Millicent Hardcastle, passava de um lado para outro do salão, conversando com os conhecidos. Entre os oficiais que naquele momento se achavam na guarnição do Cairo, encontrava-se mais de um rapaz elegante, com desejo de ter como par, para o baile, a distinta e formosa moça, ricamente trajada, brilhando no vestido de gala. E bem depressa Tamara viu-se dando voltas pelo salão, pelo braço de um alegre hussardo.

— Aproximemo-nos das pessoas da realeza — disse ele. Lancemos um olhar aos russos. Deve saber que chegou hoje um Grão-duque que, certamente, se encontrará agora na festa.

Poucos minutos depois estavam perto do pequeno grupo que rodeava o Quediva. Tamara ficou extasiada ante a beleza dos uniformes dos oficiais da guarda do Grão-duque, e, especialmente, atraiu-lhe a atenção um de cor vermelha, mais vistoso do que todos os que já tinha admirado.

Mais tarde, soube que se tratava de um cossaco da Guarda Imperial, mas, naquele momento, pareceu-lhe um belíssimo traje de fantasia. As botas altas e a larga e elegantíssima blusa do grande fardão em estilo oriental, as mangas escarlates, que caíam graciosas dos punhos, os bordados de prata e ouro das armas, presas ao rico cinturão, tudo agradou extraordinariamente aos seus olhos, e, depois, reconheceu na pessoa, assim vestida, o rapaz da esfinge.

— Como as roupas mudam uma pessoa! — pensou Tamara. De fato, vestido daquele modo, o rapaz se movia com elegância e desembaraço,

como um príncipe dos contos de fada. Isso explicava, por outro lado, que lhe assentasse tão mal a flanela cinzenta. O desconhecido era militar e não estava acostumado a vestir-se civilmente. Tamara tinha ouvido dizer que, em alguns países estrangeiros, os oficiais vestem o uniforme habitualmente, e não como os ingleses, que o fazem, somente por um dever fastidioso.

O rapaz pareceu não haver reparado nela, mas, quando Tamara começou a dançar e se deteve novamente, a casualidade quis que fosse muito perto do lugar em que estava o seu desconhecido companheiro da véspera, só, distanciado da multidão.

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Seus olhos se encontraram. Nos do rapaz exprimia-se o mesmo sorriso irônico que já antes a havia aborrecido, e, ao mesmo tempo, atraído. O militar não se inclinou diante dela, nem fez o menor gesto para lhe ser apresentado. Tamara sentiu-se despeitada.

— Poderia, pelo menos, fazer-se apresentar pensou, o contrário seria uma impertinência.

Tamara não ignorava que nesse momento estava bonita. Por outro lado, ainda que viúva, conservava a frescura de uma moça solteira. Muito poucos homens no salão haviam deixado de reparar na sua presença. A indignação aumentou o brilho de seus olhos e o rosado de suas faces. Continuou dançando com entusiasmo.

Passou-se perto de meia hora antes que tornasse a chegar ao lugar onde se encontrava o jovem oficial; mas, durante todo esse tempo, os seus olhos estiveram fitos no uniforme escarlate, reparando que aquele que o vestia não dançava com ninguém. De vez em quando falava com o príncipe e, depois, foi apresentado às senhoras do elemento oficial. Em nenhum instante, todavia, desapareceu de seu rosto aquela expressão de té-dio que ela lhe havia notado desde o princípio. Tamara não quis perguntar o nome dele, por mais fácil que lhe fosse isso, pois todos os presentes estavam interessados pelos russos e dispostos a falar com eles. Tamara evitou o grupo dos ingleses, onde se achavam aqueles e onde ela própria tinha de direito o seu lugar. E quando passou novamente junto ao cossaco de elevada estatura, dirigiu-lhe um olhar inconsciente e distraído. Mas festa situação não poderia durar toda a noite, porque logo Tamara foi chamada por dois adidos de embaixada e apresentada ao Grão-duque. A moça fez a sua reverência e depois seguiram-se as apresentações. Afinal, chegou a vez do jovem des-conhecido que na noite anterior, havia sido seu companheiro.

— O príncipe Milaslavski, declinou o personagem que efetuava as apresentações. A seguir ela ouviu um dos amigos do príncipe chamá-lo “Gritzko”, nome que soou

agradavelmente aos ouvidos de Tamara. Por que se comprazia aquele rapaz em humilhá-la? Tamara sentiu-se extraordinariamente insignificante. Pensou que não deveria ter-lhe permitido que lhe falasse na noite anterior, em frente à esfinge. Agora recebia o castigo de o haver tolerado. Disse algumas palavras em francês às demais pessoas do séquito e, imediatamente, enquanto ele continuava sorrindo daquela forma tão provocadora e a olhava de um modo muito desagradável com os seus olhos fascinadores, distanciou-se, quase mordendo os lábios de vergonha e indignação.

Antes que pudesse reparar sequer no que estava fazendo, encontrou-se novamente dançando com um conde russo, vestido de uniforme verde, adornado de galões prateados. Sua conversação era interessante.

— Há muito tempo que está aqui? — perguntou o nobre russo. — Não, senhor, há quatro semanas apenas e amanhã partirei... — Dança maravilhosamente... — Acha?Ainda bem! O conde conduziu-a fortemente apertada e detiveram-se, enfim, fatigados,

precisamente em frente às janelas, providas de cortinados, que ocultavam as pobres mulheres do harém, as quais apreciavam a festa escondidas das vistas dos convidados.

O nobre russo fez uma reverência, a que Tamara correspondeu. Evidentemente, era um costume russo não dançar sempre com o mesmo par.

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Naquele momento, uma voz sussurrou-lhe aos ouvidos. — Concede-me a honra de dançar um pouco comigo? Tamara voltou-se sobre os tacões e viu o príncipe face a face. Por espaço de um

segundo, hesitou, depois, o seu primeiro impulso foi responder negativamente ao pedido mas, imediatamente compreendeu que semelhante procedimento seria indelicado e absurdo.

Aparentou, consequentemente, a maior indiferença e permitiu que o rapaz lhe cingisse a cintura com o braço. A orquestra tocava naquele instante uma valsa muito sentimental, que ultimamente obtivera um êxito notável e, se o conde era um bom dançarino, o príncipe então era um ás. Tamara não pronunciou uma só palavra e esforçou-se para não fitar o seu par, inclinando a cabeça para o chão, de forma que só lhe permitia ver os brilhantes que lhe adornavam os cabelos.

O príncipe parecia não ligar a menor importância à maneira de a segurar. Limitou-se a dançar com ela de uma maneira admirável porém, a juízo de Tamara, sua personalidade tinha um quê de atraente, embora fosse um tanto brusca.

Por fim, detiveram-se um momento para descansar e, só então, o príncipe falou. Não fez a menor alusão ao incidente da esfinge. Pelo contrário, conversou com a maior serenidade sobre o Cairo, o pólo, as corridas e disse que o Grão-duque havia chegado naquele dia. Acrescentou que não pertencia ao séquito daquele personagem, mas que se encontrava, por acaso, no Egito, para onde fora por conta própria, em viagem de recreio. Finalmente, disse que havia chegado ao Cairo em novembro, realizando uma excursão pelo Nilo acima e que, por sorte, conseguira alugar um pequeno bangalô em Mena, onde podia descansar sem que ninguém o viesse aborrecer.

Tamara pôs-se a rir, lembrando-se da consternação de Millicent Hardcastle ao ver o príncipe em pijama. Imaginou, também, o que diria sua amiga, ao ver que ela estava dançando com o homem que tanto a escandalizara. Enquanto ela se ria, ele cingiu-lhe novamente a cintura e continuaram dançando. Desta vez, porém, apertou-a mais, e de repente, quando ela se riu de novo, o que aumentava ainda mais a sua beleza, o príncipe apertou-lhe suavemente o punho para chamar-lhe a atenção, e disse:

— Se continuar a rir desta forma, dou-lhe um beijo aqui mesmo. Tamara parou de repente, profundamente indignada. — O quê? exclamou. Estavam a um canto, e, felizmente, todos lhes voltavam as costas, porque num

relance o príncipe se inclinou sobre ela e beijou-a no pescoço. Fê-lo com tal rapidez e audácia que, mesmo que alguém o estivesse olhando, seguramente não teria compreendido perfeitamente o sucedido, acreditando que ele se havia inclinado para qualquer outro fim. Mas, para Tamara, aquele beijo foi uma queimadura ...

A moça mal podia reter as lágrimas. — Atrevido! A sua conduta faz com que me arrependa e me envergonhe de haver

permitido que me acompanhasse ontem. — Ontem? — perguntou o príncipe, enquanto à força a tomava pela mão, guiando-a

ao grupo de seus amigos, Ontem receava que alguém me visse diante de seu hotel, e hoje me desafia. Faça-o novamente, e juro-lhe que a beijarei na boca.

Tamara ficou muito pálida. Pareceu-lhe que o solo lhe fugia debaixo dos pés, os

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joelhos lhe tremeram violentamente. Em toda a sua vida sempre suave, convencional e correta, jamais havia experimentado tal emoção.

O príncipe olhou-a, e seus olhos perderam toda a dureza. Inclinou-se reverentemente e deixou-a ao lado de Millicent Hardcastle.

Por sua vez, Tamara lembrou-se de que era uma lady e de que deveria regular sua conduta por essa qualidade. Por isso, voltou-se para sua amiga alegremente e disse-lhe que se divertira muito no baile, mas durante o resto da festa, de vez em quando as suas narinas tremiam nervosamente.

Ao deitar-se, algumas horas depois, pensou: — Graças a Deus, que partimos amanhã. Nunca mais verei esse homem, e ninguém saberá o que se passou entre nós.

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CAPITULO 4

No dia seguinte empreenderam o regresso, sendo acompanhadas até à estação por um grupo de amáveis amigos. Seu compartimento no trem converteu-se em um verdadeiro jardim, tantas as flores enviadas. À medida que passava o tempo, Tamara recobrava a sua anterior naturalidade e tranqüilizava-se, pensando que bem depressa estaria longe daquela terra, onde lhe haviam acontecido coisas tão desagradáveis.

A viagem para Alexandria é sempre muito fatigante e monótona. Os viajantes vêem-se obrigados a tragar uma quantidade imensa de pó, o sol é abrasador e a paisagem nada tem de interessante. Quando chegaram, apressaram-se a se dirigir para bordo, sem prestar sequer a menor atenção aos passageiros que as haviam de acompanhar na viagem e que subiam a prancha. Habitualmente, as mulheres enjoam facilmente nas viagens por mar, e tanto Millicent como Tamara estavam já muito cansadas quando chegaram ao navio, particular esse que, reunido às perspectivas de uma noite desagradável, as decidiu a se retirarem para os camarotes, tratando bem depressa de adormecer.

No dia seguinte, um domingo, o vento foi intenso durante a manhã mas, o mau tempo cessou à tarde. Em vista disso, Tamara resolveu vestir-se e subir à coberta.

— Mrs. Hardcastle subiu há já algumas horas ela já estava pronta para o jantar e recomendou-me que dissesse à senhora para ir ter com ela logo que acordasse, informou a criada.

O navio era um dos que realizam habitualmente a travessia entre Alexandria e Trieste. Suas comodidades não eram de luxo mas as duas senhoras haviam reservado cadeiras na parte mais protegida da coberta, de forma que Tamara pensou que poderia deleitar o seu espírito contemplando a linda lua que se refletia nas águas do Mediterrâneo.

Sua criada levou-lhe um almofadão, a manta de viagem e um livro até onde estava a cadeira, e, quando Tamara já estava sentada, reparou que, ao seu lado, havia uma cadeira vazia.

— Preguiçosa! exclamou Millicent Hardcastle ao vê-la. Parece mentira que tenhas podido passar todo o dia dormindo. Pois perdeste uma linda tarde, por mim dignamente aproveitada. Sabes de uma coisa? Aquele amável príncipe russo, que encontramos no baile do Quedíva, está a bordo. Olha, essa cadeira aqui ao lado, foi reservada por ele. Agora está com o nosso amigo Stephen Strong. Estivemos conversando durante largo tempo.

Tamara sentiu um calafrio percorrer-lhe a medula, quando ouviu tal nova. — Não o vi no trem, nem quando embarcamos para bordo, murmurou confusa. — Nem eu tampouco mas, sem dúvida, veio logo depois de nós e as nossas

cadeiras no salão de jantar são junto da sua. Foi uma verdadeira sorte que ele nos fosse apresentado, porque de outra forma não poderíamos falar com ele nem mesmo aqui a bordo. Nunca compreendi essa gente que faz logo relações com a primeira pessoa que

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chega. Não és da minha opinião? — Tens razão, respondeu debilmente Tamara. Estava refletindo sobre o que deveria

fazer. Não podia negar-se a continuar as relações com o príncipe, sem dar uma explicação

a Millicent. De outro lado, parecia-lhe impossível mostrar boa cara àquele homem. Finalmente resolveu tratá-lo com uma frieza glacial, dizendo ainda que, no caso de ele continuar com as suas impertinências, ela resolveria ficar em seu camarote.

A presença do príncipe a bordo não deixava de ser um contratempo sério. Ela se afizera a esperança de nunca mais vê-lo. Sua presença ali obrigá-la-ia a recordar-se até a próxima terça-feira, do incidente mais desagradável de toda sua vida. Certamente a culpa tinha sido sua, por não ter observado as rígidas normas de conduta que lhe ensinara sua tia Clara.

Se não houvesse respondido às palavras que o rapaz lhe dirigira diante da esfinge, sem dúvida este não se atreveria a brincar com ela. Tamara negou-se energicamente a continuar recordando o incidente que tanto a havia humilhado.

Meia hora, ou seja, o tempo mais que suficiente para ela poder refazer-se de sua emoção, transcorreu, antes, que o causador de sua desventura aparecesse na coberta. Quando o príncipe chegou, vinha em companhia de Stephen Strong, velho amigo de Tamara e Millicent.

— Reparaste, Milly, que o príncipe é o mesmo homem que vimos em pijama no terraço de sua casa? — perguntou Tamara. Surpreende-me sinceramente que não visses inconveniente em tratar com semelhante pessoa, embora te tenha sido apresentado.

Mrs. Hardcastle levantou os olhos e neles se observada certa reprovação pelo que dissera a amiga.

— Realmente Tamara — disse. Tinha-me até esquecido desse incidente desagradável, e podes acreditar que eu te ficaria muito agradecida se não o recordasses. Para ser sincera, trata-se de um rapaz discreto e respeitoso, e estou certa de que se sentiria muito confuso se chegasse a saber que o vimos naquela situação.

— Pois a mim me parece que tinha então muito melhor aspecto do que agora, comentou rancorosamente Tamara. Reparaste no seu traje?

Mrs. Hardcastle deu meia volta em sua cadeira e contemplou a amiga. Estava admirada de que Tamara pudesse falar com tanta leviandade de uma quebra de decoro, e ademais admirou-se de outro aspecto do caso.

— Pensei que não o tinhas visto naquela manhã! exclamou. Tamara compreendeu que estava em um beco sem saída. — Tu o havias descrito tão minuciosamente… E depois eu me voltei para vê-lo... — Voltaste-te? Mas, Tamara, como foste fazer isso depois que te disse que ele

estava quase despido? — Assim foi, mas, psiu… Aí vem ele. Tamara abriu apressadamente o livro. — Afinal Mrs. Loraine chegou, ouviu Millicent dizer. Estas palavras a obrigaram a levantar ligeiramente a cabeça, para saudar, com um

gesto, os que chegavam. O príncipe não aparentava a menor emoção. Sentou-se cobrindo os joelhos com sua

manta e deixou vagar os olhos pelo mar. O sol já se havia recolhido e, dentro de poucos

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minutos, a lua se mostraria em todo o seu esplendor. A luz era pouca e acabavam de acender-se as lâmpadas elétricas que iluminavam a

coberta. O velho inglês, Mr. Stephen Strong, cumprimentou as duas senhoras e sentou-se ao lado de Mrs. Hardcastle. Esta se encontrava em um de seus momentos de melhor humor, e, quando isso acontecia, dava gosto ouvi-la falar, pelo interesse de sua conversa-ção e pela facilidade e elegância com que se exprimia. Com Millicent ninguém tinha necessidade de puxar pela inteligência. É das mulheres assim que os homens gostam.

Tamara fingia estar lendo seu livro; mas na realidade sentia perfeitamente a presença do príncipe. Até esse momento, jamais havia cruzado por seu caminho uma pessoa dotada de tal poder magnético.

O príncipe se achava sentado, imóvel, como uma estátua, com os olhos fixos no mar. Tamara sentiu um desejo irresistível de o olhar mas conseguiu dominar-se. Por último, todavia, sua inquietação foi tal, que quase começou a tremer.

Foi nesse momento que o príncipe lhe dirigiu a palavra: — A senhora tem olhos de lince? A ocasião era própria para fitá-lo, mas Tamara permaneceu com a vista fixa no livro. — Não, respondeu secamente. — Então por que finge que está lendo nesta escuridão? Esta lâmpadazinha quase

não dá luz. Tamara decidiu-se a irritá-lo, conservou-se em silêncio e até voltou uma página do

livro. — O baile do Quediva foi magnífico, prosseguiu o príncipe. Reparou nas mulheres

do harém enquanto elas olhavam do interior de sua jaula? Todas eram feias e gordas como que para justificar o encerramento em que vivem. Estou certo de que imaginaram que nós todos éramos uns tolos dançando tão somente com o fim de as divertir.

— Pobres mulheres! declarou Tamara. Sua voz denotava uma afetação tão grande, que ela mesma ficou surpreendida. — Por que se compadece delas? Essas mulheres têm todos os prazeres físicos e

não sentem nenhuma necessidade. Só sofrem as pequenas ex-citações que lhes proporciona, de vez em quando, o desejo de fazer mal a alguma rival. Quem é digno de compaixão é o pobre Quediva… Pense que o infeliz se vê sempre obrigado a abrir caminho entre aquele dilúvio de gente para encontrar uma mulher bonita...

O tom que empregava o príncipe em sua conversação desgostou Tamara. Por outro lado, ela não sentia vontade de falar das particularidades de um harém. Pelo contrário, preferia que o príncipe guardasse silêncio. Entretanto, a sua palestra era agradável e o inglês que falava era o mais correto possível, notando-se-lhe somente um leve sotaque estrangeiro. Finalmente, quando se decidiu a fita-lo não pôde deixar de reconhecer a expressão e beleza daquela cabeça, na qual o cabelo, penteado para trás, deixava descoberta uma fronte alta, de desenho puramente grego. O nariz era curto e um tanto quadrado, mas, os lábios, de linhas delicadas, davam às suas feições um encanto irresistível. Toda a sua personalidade parecia exalar uma influência atrativa que se exercia nas pessoas que se lhe aproximavam. Nos olhos, que eram muito grandes, com pálpebras delicadas, notava-se uma expressão mística, apaixonada e, entretanto, des-preocupada. Suas característicos fisionômicas denunciavam qualquer coisa de oriental

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mas, em conjunto, era um louro. O próprio cabelo castanho de Tamara era só um pouco mais claro que o dele.

Os olhos, não estava certa, mas tinha impressão que eram cinzentos. Tinha desejos de lhe dirigir uma série de perguntas, cujas respostas desejava

conhecer; contudo, conteve-se. Ele voltou-se repentinamente e olhou-a de frente, nos olhos. Até um segundo antes, tinha estado completamente distraído na contemplação do mar, e seus rápidos movimentos eram desconcertantes, especialmente para Tamara, que foi tomada de surpresa, na instante mesmo em que lhe estava estudando as feições.

Por que foi naquela noite visitar a Esfinge? — Tamara. sentiu que a indignação se ia apoderando dela novamente, pois a

natureza da pergunta e o tom em que foi formulada pareceram-lhe uma impertinência. — Fui, respondeu com tranqüilidade, para contar o número, de pedras que a

compõe. Deve saber que essas questões técnicas se resolvem sempre melhor àquelas horas.

O príncipe soltou uma gargalhada. — Ah! A senhora não é tão tola como eu julgava. Confesso que, naquela noite, lhe

achei um ar poético, quando a vi sentada ali com a cabeça envolta em uma écharpe... Mas depois!.. . A senhora me deu a impressão de uma linda boneca de cera e arrependi-me de a ter levado a conhecer aquela aldeia que para mim tem um enorme interesse.

Tamara sentiu-se interessada, não obstante o despeito de se ver comparada a uma boneca de cera.

— Realmente? balbuciou ela. — A esfinge pode ensinar-lhe todas as lições de, que necessita nesta vida,

continuou o príncipe. Afinal de contas somos somente uns átomos insignificantes, no mundo átomos que apenas têm importância para nós mesmos. A esfinge é também cruel e não vacilaria em reduzir qualquer um em pedaços, em fazer uma pessoa embriagar-se com sangue...Tamara abriu desmesuradamente os grandes e doces olhos.

— E depois, aquela aldeia cheia de homens que têm paixões de animais, homens que levam sempre a mesma vida, de pais a filhos, homens que não choram uma morte e sempre festejam um nascimento, homens brutais que batem em suas mulheres, quando se cansam delas... Mas, em seu país é-se civilizado demais para compreender estas coisas.

Tamara estava perturbada, sentia que deveria escandalizar-se. Contrariamente à sua determinação, formulou uma pergunta: — Então não se é civilizado em seu país? — Não tão mal civilizado. As forças primitivas da vida ainda nos produzem emoções

quando já não somos selvagens, e, se o somos, é mais divertido ainda. Tamara estava indignada. Como era possível ser-se tão extravagante? Tratava-se de um tipo esquisito, estaria louco, ou era simplesmente um homem

inteiramente diferente de todo o mundo e desagradavelmente atraente? Tamara estava desejosa de o saber. Em seguida, com um movimento brusco, o homem se voltou, e, tomando da monta, que descaira um pouco das pernas da moça, aconchegou-lha quase com ternura.

— A senhora tem um rosto tão branco — disse ele em tom carinhoso. É preciso que

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alguém cuide da senhora resguardando-a contra o frio, e evitando que os maus ventos a levem.

Tamara estremeceu toda; não sabia dizer por quê. Depois disto, a conversação generalizou-se. De vez em quando, Millicent dizia

qualquer coisa. O mar estava tranqüilo. Tomara ouvira dizer que na terceira classe viajavam alguns ciganos e lembrou que seria interessante escutar um pouco de música. Em seguida o príncipe começou a falar com Millicent de coisas banais, mostrando-se sempre tão polido e correto na conversação, que Tomara esteve quase se indignando, pois compreendeu que, na realidade, aquele homem estava zombando de sua amiga. Somente, fazia-o da maneira mais fina possível. Quando se voltou de novo para Tamara, foi para lhe dizer:

— Que mulher perfeita! Tudo nela está no seu lugar. Céus! Nos menores momentos há de fazer o seu crochê, e todos os anos dará um filho ao marido. Se eu encontrasse uma mulher assim me casava, Tamara ficou com raiva diante dessa nova brincadeira. O ridículo com que aquele homem cobria a sua amiga e a circunstância de ter de o suportar ainda por mais tempo, apesar de suas impertinências, horrorizavam-na. Por isso, dizendo que sentia frio, apanhou a sua manta e pediu a Mr. Srong que a acompanhasse a dar algumas voltas pela coberta.

Não prestou mais a menor atenção ao príncipe, até que chegou a hora do jantar e todos desceram ao salão.

Durante a refeição, o príncipe portou-se como um desconhecido. Estava sentado ao lado de Tamara, mas, apenas a cumprimentou, limitando-se a conversar sobre questões marítimas com o capitão do navio. De vez em quando, dizia também uma coisa ou outra a Mr. Strong que se encontrava ao lado de Mrs. Hardcastle, Tamara compreendeu logo que não poderia pôr em prática o seu plano de vingança, pois o príncipe não lhe deu a menor oportunidade para fazê-lo.

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CAPITULO 5

A segunda-feira tiveram conhecimento de que no dia seguinte chegariam a Bormdisi,

e Tamara convenceu a Mrs. Hardcastle de que deveriam desembarcar ali, em vez de seguir viagem até Trieste.

— Chegaremos mais cedo em casa, ponderou. A razão foi convincente e Millicent acedeu ao pedido entretanto, era preciso passar ainda aquele dia...

Era um dia lindo. O azul do Mediterrâneo não desmentia o seu nome. Tamara subiu à coberta muito disposta, ali pelas onze horas da manha, encontrando-se, porém, com o desagradável quadro de sua amiga a passear com o príncipe russo. Estavam conversando e rindo como velhos amigos, e isso ocasionou novo desgosto à viúva.

— Ele continua a zombar da pobre Milly! Pensou, e o pior é que ela de nada desconfia.

Com essa idéia, Tamara sentou-se em uma cadeira da coberta, deixando que os seus olhos vagueassem pelo horizonte.

Que seria de sua vida? Aquela viagem e a contemplação de céus estranhos haviam-na alterado profundamente. Como poderia voltar a Undewood, para continuar ali sua monótona existência? Pareceu-lhe que o futuro se lhe apresentava contemplando um vale, do alto de uma montanha. Percebeu que dentro de si sempre estivem adormecida uma certa coisa que a diferençava dos outros. Lembrou-se de que, muitas vezes, via coisas que os outros não viam, e sabia que por causa disso se habituara desde a infância a calar os seus pensamentos, guardando-os para si. Só assim havia conseguido que, exteriormente, se parecesse com todos, enquadrando-se nas características estabelecidas pelo sólido modelo de sua família...

Porém, em um sentido, estava inteiramente decidida É que, para o futuro, só se deixaria governar em suas idéias e ações, por sua própria vontade O rosto franzido de sua tia Clara não a proibiria no futuro, de dedicar-se à leitura de um determinado livro, ou de realizar este ou aquele ato… O mundo deveria ensinar-lhe tudo quando pudesse. Tamara recebera uma sólida instrução. Tinha o propósito, agora, de tirar dela tudo quanto pudesse aproveitar, utilizando-se como base para adquirir maiores conhecimentos na vida em lugar de a deixar esvanecer-se.

— No próximo verão completarei vinte e cinco anos de idade, murmurou consigo mesma. Vinte e cinco anos perdidos.

Cada vez que o príncipe e Millicent passavam em frente dela, escutava uma ou outra parte isolada da conversação. Algumas vezes falavam de caçadas, e, outras, de cães e de crianças. Mrs. Hardcastle contava ao seu companheiro as graças de seus filhos, e o príncipe sempre se mostrava interessado e cortês.

Depois chegou à coberta o velho Strong e ocupou a cadeira de Mrs. Hardcastle. — Posso interromper o fio de suas meditações? Reparo que está muito pensativa…

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— Não, respondeu ela. Sou uma tola, e já que conhece o mundo venha dar-me umas lições.

Strong era um velho admirável. Um verdadeiro inglês pelo seu aspecto mas, em sua vida e em seus costumes, seria difícil encontrar-se tipo mais cosmopolita. Durante muitos anos, pertencera ao corpo diplomático. Esteve no Egito nos bons tempos de Ismael, e, quando uma herança lhe trouxe a fortuna, decidiu-se a viajar por todo o mundo. Tinha vivido muitos anos em Viena, S. Petersburgo e Paris, mas, sempre que se sentiam os primeiros rigores do inverno, fazia uma visita à terra da esfinge.

— O mundo — disse acomodando-se na cadeira, é um lugar muito agradável para quem o sabe ver como ele é na realidade, porém, jamais pode agradar a quem pretender lutar com ele, não se deve ser intolerante, nem muito propenso à crítica. É preciso observá-lo a fundo, e ser condescendente com os que nele vivem.

— Sim, sei que o senhor tem razão, mas a maioria de nós pertence a uma classe convencida de que os seus próprios pontos de vista, é que são os verdadeiros. Eu, por exemplo, sou uma dessas pessoas, e é por isso que lhe disse há pouco que sou uma tola.

Nisso passavam diante deles o príncipe e Mrs. Hardcastle. Mr. Strong fixou os olhos no primeiro e exclamou:

— Aqui tem um tipo digno de ser estudado, Tamara: o príncipe milaslavski. Faz muitos anos que o conheço, lembro-me mesmo dele desde que ainda era menino. Atualmente tem 29 ou 30 anos e afirmo-lhe que se trata de uma das pessoas mais interessantes que tenho encontrado em toda a minha vida.

— Realmente é um tipo interessante. Conte-me alguma coisa dele. Stephen Strong acendeu um charuto e lançou algumas baforadas ao ar. Em

seguida, acomodou-se novamente na cadeira, tomando o ar de uma pessoa que vai contar uma longa história.

— O príncipe, começou, entrou na posse de uma enorme fortuna, talvez demasiadamente moço, e essa foi a razão de ter vivido um pouco tempestuosamente. Sua mãe pertencia à família dos Basmanoff, uma espécie de Cresos na Rússia. É um dos favoritos da Corte e pertence ao corpo de Cossacos da Guarda Imperial. Esse corpo o atraiu precisamente pela grande liberdade de que gozam os seus membros. Além disso, por sua mãe, é um perfeito cossaço, e o sangue o induz muitas vezes a tomar atitudes de alguém que não estivesse ainda perfeitamente civilizado. Certamente, já notou isso.

Tamara se interessava muito pelas palavras de Mr. Strong e não se preocupou em ocultar-lho.

— Contam-se as coisas mais extraordinárias a seu respeito, prosseguiu o narrador, e, mesmo que haja muito exagero no que contam, o certo é que se trata de um caráter fascinante, inquieto, indomável.

Que espécie de histórias são essas? — perguntou timidamente Tamara. — Nem todas são próprias para os seus ouvidos. A maioria delas demonstra que o

príncipe é um verdadeiro demônio, que, a princípio, parecia divertir-se fazendo as coisas mais loucas e temerárias. Diz-se que uma vez raptou uma freira com o fim único de ganhar uma aposta, levando-a à casa do homem que a amara antes de ela professar. Is-so aconteceu na Polônia. Celebrou, em sua casa de campo, verdadeiras orgias, nas quais todos os presentes perdiam o juízo, pelo menos durante três dias. Sua conduta produziu

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os maiores escândalos na sociedade. Depois dessas orgias, entretanto, regressava à cidade como um cordeiro e ficava ronronando a todas as velhas damas da sociedade. Diz-se que ele não obedece nem a Deus, nem ao demônio, e que, sobre a terra, só reconhece a autoridade de seu imperador.

— Que horror! Exclamou Tamara, impulsionada pela força do costume, mas, intimamente, estava fascinada por aquele estranho personagem.

— Não conhece o medo e é tão frio como um inglês, continuou Strong. — O que posso assegurar-lhe é que, apesar de tudo quanto dele se diz, jamais soube que tivesse praticado alguma: ação baixa. Ademais, passa temporadas inteiras levando uma vida simples, residindo no campo, onde só parecem interessá-lo cavalos e cães. Os seus criados o adoram. Mas, quando o sangue lhe ferve nas veias, não há loucura que não seja capaz de praticar...

— Imagino que seja realmente tal qual o senhor acaba de o descrever. Será porque está acostumado a vestir o uniforme, que lhe fica tão mal o traje civil? Muitas vezes, produz-me a impressão de um caixeiro-viajante.

— É isso mesmo. Até em Paris causaria, provavelmente, a mesma impressão, mas estou certo de que, se o visse em S. Petersburgo, pensaria como todas.

— Todas quem? — Mulheres, todas o adoram. Boêmias, grandes damas, atrizes, bailarinas e.. . Mr. Strong ia mencionar outras, mas, julgou que Tamara não o compreenderia e

resolveu calar-se. A moça sentia-se verdadeiramente fascinada. — Isso prova como elas são tolas! replicou. Mr. Strong olhou-a de soslaio e, se Tamara lhe pudesse ler o pensamento, teria visto

que ele dizia de si para consigo: — Esta inglesinha já está sob o encanto de Gritzko, e lutando com todas as forças

para se livrar dele. Não sabe que todos os seus esforços serão em vão, se o príncipe resolver conquistá-la.

Tamara, não obstante as suas delicadas feições, não era uma mulher fraca. Somente a sua vida tinha sido até então uma longa hibernação. Agora era a primavera que chegava, e bem depressa chegaria para ela a hora de ir em busca de uma nova vida.

— Que estará ele contando à minha amiga, Mr. Strong? — perguntou Tamara, ao ver passar novamente o par. A meu ver, Millicent é uma das últimas mulheres com quem ele possa ter alguma coisa em comum. Ficaria horrorizado se ouvisse uma dessas histórias, e ele não pode interessar-se por nenhuma palavra do que ela diz.

— Sempre faz o que menos dele se espera, Tamara, respondeu Strong, rindo. Pois ele também se divertia em observar aquele par formado por pessoas de temperamentos tão diversos. —- Mrs. Hardcastle é uma mulher bonita, acrescentou em seguida.

Tamara sorriu e respondeu em tom irônico: — Ora! A gente deve ficar superior a simples aparência material.

— A senhora é encantadora — disse Strong. Vejo que desconhece inteiramente o mundo.

A viúva não se melindrou, apenas olhou sorrindo para o seu interlocutor, deixando ver assim a dupla fila de seus lindos dentes.

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— Sem dúvida me tem por uma perfeita tola — disse, se bem que eu própria tivesse declarado que o era. É por isso, precisamente, que lhe pedi um conselho. Acha que poderei aprender alguma coisa?

— Sim, se o mestre for moço e bonito bastante para fazer-lhe o coração bater, respondeu o velho.

Naquele instante o príncipe e Millicent pararam diante deles. Os olhos redondos e azuis de Millicent brilhavam extraordinariamente e, em suas faces, viam-se duas rosas vermelhas, produzidas pelo exercício e pela alegria.

— Querida Tamara, és incorrigivelmente preguiçosa — disse ela. Por que estás aí sentada, em lugar de fazer exercícios? Não tens idéia das coisas interessantes de que me esteve dizendo o príncipe. Ele referiu-se a um poeta russo chamado...

Não sei pronunciar o nome; um que escreveu qualquer coisa sobre o diabo… Qualquer coisa como o Fausto.

Tamara reparou no olhar irônico do cossaco mas Millicent não percebeu nada e continuou alegremente:

— Refiro-me a essa espécie de demônios místicos e estranhos, que vêm algumas vezes à terra e se entretêm em amar as mulheres… uma espécie de Satã, como o descreve em seu lindo livro Maria Coreli. Lembras-te, Tamara, daquela obra que tanto nos fazia rir quando a líamos?

— Tu te referes ao “Demônio” de Lermontoff? indagou Tamara. Um amigo de minha mãe traduziu-o para o inglês, e, por isso, conheço a obra desde a minha infância. Deve ser muito bonito no original.

Ao dizer estas últimas palavras, fitou os olhos no príncipe, cujas feições se transformaram imediatamente, tornando-se simpático e sério:

— Quer dizer que conhece a obra do nosso grande poeta? — perguntou surpreendido. Quem haveria de dizer?

Tamara irritou-se porque nas observações do cossaco sempre notava insinuação de que ela não passava de uma tola.

— O nome da heroína é o mesmo que eu tenho — disse muito séria, mas havia um certo desafio na expressão do olhar.

— Tamara! disse Milaslavski. Pois imagino que, se lhe aparecesse um demônio, a senhora com certeza haveria de se ajoelhar, de rezar e comer bombons, mas nunca prestar ouvidos ao que ele dissesse.

— Tudo dependeria do demônio, atalhou ela. — O tempo o dirá, replicou o príncipe, lançando para trás a cabeça e soltando uma

gargalhada tão sincera, como quando na aldeia egípcia assistira à luta das cabras. As faces de Tamara ferveram de raiva, mas não quis prosseguir na luta, apesar do

olhar de desafio de há pouco. Enquanto isso, Mr. Strong havia deixado a cadeira de Millicent, sentando-se na sua.

Assim, pois, todos ocuparam os seus respectivos lugares e Tamara prosseguiu na leitura de seu livro.

— Não leia — disse-lhe o príncipe. A senhora quando conversa comigo zanga-se, e o sangue lhe sobe às faces, e eu gosto disso.

Tamara quase não podia dominar a raiva. Contudo, conservou-se calada, e a única

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coisa, que nela se observava, era que a orelha, que estava do lado do príncipe, se tornava cada vez mais vermelha.

— Algum dia a senhora há de ir à Rússia e, então, aprenderá muitas coisas, continuou o príncipe.

— Não tenho o menor interesse em conhecer a Rússia, retorquiu Tamara, mentindo francamente, pois sempre tivera vontade de conhecer aquela' terra; tanto mais que sua madrinha, de quem nunca se esquecia, lhe escrevia com freqüência convidando-a.

— Não sei como se daria no clima da minha terra. Talvez gelasse, talvez sufocasse de calor. Só mesmo experimentando. Tenho lá uma velha amiga, de cabelos brancos e um grande sinal na face, e que vê as coisas muito claramente. .. A ela deveria a senhora confiar a sua educação.. .

Tamara pensou que não convinha dar novos indícios de indignação e, por isso, respondeu ironicamente:

—É verdade. Tenho dezesseis anos e ainda não saí da escola. Seria delicioso aprender a viver.

O príncipe voltou-se sorrindo e retorquiu: — Não parece ter muito, mais de dezesseis anos, vinte talvez — e nunca foi beijada! Na imaginação de Tamara passou a lembrança do beijo que aquele homem lhe

havia dado no pescoço. Suas longas pestanas cerraram-se por um instante. Nesse momento apareceu nos olhos do príncipe um brilho selvagem, brilho que ela

não viu, mas sentiu vagamente. Ele continuou: — Pelo menos, beijada de verdade... — Milly, a que horas chegaremos amanha a Brindisi? — perguntou nesse momento

Tamara, com toda a tranqüilidade de que foi capaz. Penso que na quinta-feira à noite estaremos em casa.

Sua casa! Underwood! Como se sentiria ao abrigo ali! O príncipe não apareceu no salão à hora do almoço. Acontecera qualquer coisa ao

seu cavalo árabe e ele quis inteirar-se do fato. Em seu rosto se notava uma tal expressão como se ele tivesse recebido notícia de alguma grave doença em um seu parente muito próximo.

Tamara mostrou-se ao almoço alegre e animada riu com Mr. Stephen e com o capitão do navio, fazendo-o de uma maneira que diferia muito de seu modo habitual. Os dois homens pensaram com seus botões que ela era uma mulher adorável. Pobre Tamara! Era-o de fato.

À hora do chá, o príncipe Milaslavski apresentou-se de novo. — Tudo vai bem — disse, seguro de que as suas palavras interessavam a todos. A

culpa foi daquela gente lá em baixo. Já lhes dei, porém, o que mereciam. Entre os passageiros da terceira classe, há um grupo de ciganos de Alexandria. Ordenei-lhes que viessem aqui cantar esta noite, satisfazendo assim o seu desejo.

Ao pronunciar as últimas palavras, fez uma leve inclinação de cabeça diante de Millicent.

— As mulheres são, naturalmente, muito feias, e só encontrei uma delas com lindas pernas e outra com uma voz sofrível, mas, faremos o que esteja em nosso alcance para tornar divertida a última noite a bordo.

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Ninguém se teria mostrado mais amável que ele até a hora do jantar e, mesmo durante a refeição, a não ser quando trocou de lugar com Mr. Strong, para ficar ao lado de Mrs. Hardcastle, com grande satisfação para esta.

— É realmente fascinador! exclamou Millicent, ao entrar no camarote de Tamara, com o propósito de acompanhá-la até o refeitório, onde já estava servida a ceia. Suspeito que o meu marido não veria com bons olhos os galanteios que ele me dirige. Que te parece?

— Estou certa de que sentiria uns ciúmes terríveis, minha querida Milly, e acho que devias ser mais prudente...

Quando Mrs. Hardcastle se dirigiu ao refeitório, fê-lo com a grande satisfação de saber que a sua incorruptível virtude era tão agradavelmente assediada.

Nem por um momento, Tamara pensou que o fato de se exceder o príncipe no champanha, durante o jantar, pudesse influir em sua escandalosa conduta nos sucessos que se desenrolaram mais tarde, na forma que passamos a narrar rapidamente com a permissão do comandante, a troupe de ciganos subiu da terceira para a primeira classe. O espetáculo, que ofereceram a princípio, foi realmente agradável, mas o príncipe cometeu o erro de dar ordem para que lhes dessem quanto champanha eles desejassem. Logo que os ciganos começaram a beber, suas danças se tornaram verdadeiramente selvagens. Sua gesticulação e a maneira como as ciganas rebolavam os corpos escan-dalizaram as senhoras. Mrs. Hardcastle ficou escarlate, e acabou levantando-se.

Mas o pior aconteceu quando o príncipe se ergueu. Apoderou-se de um tambor e, depois de lançar um grito estridente, começou a bater-lhe, com os olhos em fogo e os lábios abertos.

A seguir deu com o tambor na cabeça da dançarina principal, e esta se lhe dirigiu em um movimento serpenteando de deliciosa volúpia. O príncipe rodeou-lhe a cintura com seu braço forte levantou-a do solo, sustendo-a por um momento acima da cabeça e depois a atirou, indo ela cair nos braços de um dos membros da troupe. Todos os ciganos romperam numa estrondosa ovação de entusiasmo. O príncipe afundou uma de suas mãos no bolso e tirou um punhado de moedas de ouro, atirando-as aos boêmios.

— Vão-se embora depressa! gritou. Não vêem que estão assustando as senhoras? Mereciam a morte por essa ousadia.. .

Tamara e Millicent se haviam afastado, com uma expressão de dignidade ofendida, do lugar em que acabava de se desenrolar aquela cena.

Para Tamara, aquilo era demasiado terrível e vulgarmente melodramático. Causou-lhe especialmente má impressão o modo do príncipe, ao levantar a mulher, e, depois, ao lançar as moedas aos ciganos. Este último gesto, provocado pelo mesmo instinto bárbaro que o fez atirar as moedas de prata naquela noite na aldeia egípcia, era ainda mil vezes pior do que fora então.

Na manhã seguinte, as duas senhoras desceram do navio em Brindisi, antes mesmo que o príncipe e Mr. Strong tivessem despertado.

A princípio, ambas se abstiveram de comentar os acontecimentos da véspera mas, quando se achavam no trem, Millicent referiu-se ao fato nos termos seguintes:

— Minha querida Tamara, não contes nada a Henrique nem à tua família, a respeito do espetáculo de ontem à noite. Realmente, esse príncipe é um homem fascinante. Mas

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aquela dança! Deves ter sentido a mesma coisa que eu: pensei morrer de vergonha!

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CAPITULO 6

Quando Tamara chegou a Underwood e encontrou, entre as cartas que a esperavam, uma de sua madrinha russa, sentiu imediatamente que a mão do Destino lha tinha enviado, e quando a leu e viu que ela continha, além das felicitações pelo Ano Novo, um convite, redigido nos termos mais afetuosos e persuasivos, para que lhe fosse fazer uma visita em S. Petersburgo, decidiu-se, num impulso repentino e sem consultar a sua família, a aceitar o convite.

—- Há uma força estranha que parece atrair-me para a Rússia — disse consigo mesma. É preciso deixar que os acontecimentos sigam o seu curso normal. Sempre senti desejos de conhecer aquele país. Por que não irei agora, que estou livre para o fazer? Posso, acaso, considerar motivo suficiente para recusar a oferta o fato de um russo me haver horrorizado? Por outro lado, é preciso ter em conta que S. Petersburgo é uma cida-de muito grande e, provavelmente, não o verei lá.

Tamara anunciou a sua resolução aos membros de sua família, os quais ficaram verdadeiramente mudos de assombro e, em menos de uma semana, tomou o expresso do Norte.

“Infelizmente a corte está de luto”, havia dito na carta a sua madrinha, “de modo que lamento não poder oferecer-lhe o espetáculo dos lindos bailes que se realizam no palácio mas, de qualquer modo, estou certa de que conseguirei diverti-la. Além disso, sinto enorme desejo de conhecer a minha afilhada”.

No dia seguinte ao de sua partida, tia Clara exprimiu-se nos termos seguintes, enquanto tomava café:

— Tenho observado uma grande e desagradável mudança em nossa querida Tamara, desde que voltou do Egito. Esperava que Mrs. Millicent Hardcastle tivesse uma boa influência sobre ela mas vejo que não. Tremo só ao pensar nas idéias que Tamara trará da Rússia. Imagina que os habitantes daquele país são quase uns selvagens! Talvez a despachem para a Sibéria, ou coisa parecida, e não a vejamos mais!

— Ora, tia Clara! protestou Tom Underdown, enquanto passava manteiga na torrada. Parece-me que a senhora está um tanto atrasada em suas informações sobre aquele país. Em Oxford estuda comigo um russo e afirmo-lhe que é o rapaz mais distinto que tenho conhecido até esta data. A senhora fala como se os russos se alimentassem ainda de peixes crus.

— Meu querido Tom, replicou severamente a senhorita Underdown, ontem, entretanto, li no “Clarim Cristão” que um dos imperadores desse país mandava cortar a cabeça a todas as pessoas, e que uma imperatriz, creio que se chamava Catarina, fazia coisas que é melhor nem se mencionarem. Um horror! E a gente que era mandada para as minas!

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— Tudo isso é verdade titia, mas repare nas datas. Histórias iguais a essas há também no reinado do nosso Henrique VIII, e pode crer que a nossa rainha Isabel não era de todo a santa que se diz. Quanto à Sibéria, eu mesmo tenho vontade de visitar esse país, realizando a viagem pela estrada de ferro transiberiana. Tamara não correrá perigo. O que lamento é que não me tenha levado. O caso é que nesta casa estamos todos nos fossilizando…

— Tom, que modos são estes! - protestou a tia. Enquanto isso, Tamara prosseguia a sua viagem para o Norte, e o seu interesse ia

aumentando a cada milha. Olhando pelas janelas do carro, a primeira impressão que teve foi dos imensos

bosques e da enorme quantidade de neve. Mínimas particularidades causavam-lhe profunda impressão. Tamara era muito sensível a todas as formas e cores. Era dessas pessoas que apreendem as coisas e, à força de guardar para si suas observações, aguçam talvez suas faculdades perceptivas.

O silêncio pareceu-lhe ser a primeira coisa que observou ao chegar à fronteira. Os auxiliares da estação eram graves e silenciosos. Suas fisionomias bondosas, cobertas por grandes barbas, davam-lhes uma aparência de santo como estes são apresentados nos livros religiosos onde se inculcam as primeiras lições da doutrina cristã aos meninos.

Finalmente chegou a S. Petersburgo. Sua madrinha esperava-a na estação Reconheceram-se imediatamente, pois Tamara possuía várias fotografias da princesa Ardacheff.

— Bem-vida sejas, minha querida afilhada! exclamou a princesa, enquanto a estreitava efusivamente nos braços. Afinal, depois de tantos anos, vou ter a tua companhia.

Enquanto se dirigiam à casa da princesa, as duas senhoras se cumulavam de amabilidades, porém de vez em quando se olhavam de soslaio, como para formar um conceito das respectivas personalidades.

— Não é bonita, pensou a princesa, mas tem um aspecto distinto, herança de sua mãe. Quanto aos olhos, são os do pai. Depois, possui boa pele, e provavelmente, um porte elegante, coisa que não sé pode ver neste instante, por causa dos agasalhos de pele. Estou longe de me sentir decepcionada com minha afilhada.

De outro lado, os pensamentos de Tamara eram estes: — Minha madrinha é realmente uma mulher de magnífico aspecto. Agradam-me os

seus olhos castanhos e o seu cabelo branco como a neve. Alem disso que estranho sinal tem na face esquerda! Qualquer pessoa pensaria que se tratasse de uma pinta feita como se usava no século XVIII.

— Felizmente podes observar a nossa capital com um novo manto de neve — declarou a princesa, olhando através dos vidros do automóvel em que viajavam. Naturalmente, nem todos os dias as ruas estão assim tão brancas. .

Tamara estava maravilhada. Em toda a sua vida não vira nada semelhante àquilo. Chamavam-lhe a atenção especialmente os trenós, que lhe pareceram muito pequenos em comparação com o carro em que viajava. Também impressionaram-na os grandes e belos cavalos de vistosa e magnífica cauda, ataviados com riquíssimos arreios, e sobretudo o silêncio que também reinava nessas ruas, motivado pela grossa camada de

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neve. Seu primeiro comentário a respeito da beleza daquele espetáculo foi quase infantil, e

por isso calou-se, para evitar que sua madrinha a julgasse uma criança. Compreendeu que tinha de voltar à reserva com que se conduzia antes daquele dia em que contemplara a esfinge, sobretudo naquele país estranho!

As feições francas da princesa Ardacheff pareciam infundir-lhe ânimo, especialmente naquele momento, em que estavam iluminadas por um sorriso encantador.

— É muito moça, pensava a russa, mas agrada-me e tenho certeza de que seremos muito boas amigas.

Naquele momento chegavam à rua denominada Serguiefskaia. Tamara não tinha notado que se aproximavam de algum bairro particularmente elegante. Naquela mesma rua as residências senhoriais ombreavam com as humildes casas operárias e até se viam alguns estabelecimentos comerciais.

No edifício onde estava instalada a residência da princesa, não se notava exteriormente nenhum luxo extraordinário, despertando a atenção, apenas, o tamanho das grandes janelas. Mas quando penetraram no hall, onde vários lacaios se apressaram em lhes retirar os abrigos e as botas de neve da princesa, Tamara compreendeu que estava realmente em uma mansão senhorial.

A residência da princesa Ardacheff era, de fato, uma das mais suntuosas da capital russa.

Quando subiram pela ampla escada que se dividia em dois ramos ao chegar ao primeiro andar, um mordomo de fisionomia grave e outros lacaios inclinaram-se reverentemente, abrindo, o primeiro, as portas de um magnífico aposento. Estava repleto de belíssimos quadros a óleo e esplêndidos objetos de arte, e, embora o mobiliário datasse da época de Alexandre II, quando uma onda de mau gosto invadiu toda a Europa, tanto os objetos como as cores eram de extraordinária beleza e a influência dos anos havia suavizado seus tons fortes, fazendo de tudo um harmonioso conjunto.

Mas, qualquer que seja a decoração de uma casa, o certo é que sua dona é quem lhe dá vida. Se a dona for de espírito vulgar, todo o conjunto produzirá uma impressão de vulgaridade, mesmo que tivesse sido especialmente criado por Monsieur Nelson, no mais puro estilo Luís XVI. Mas os piores interiores são aqueles que dão a impressão de que as donas andam correndo os bazares e trazendo de lá todos os horrores que encontram. As-sim se explica o haver residências despidas de toda a personalidade, não obstante serem verdadeiros monumentos de riqueza.

Tamara reparou, desde logo, que se achava no lar de uma mulher de apurado gosto e ampla visão.

Deixou-se cair em um antigo divã, estofado de veludo com um quarto de polegada de espessura e teve a sensação de que ali se respirava um ar sadio e agradável.

Esperavam as recém-chegadas o chá e uma infinidade de obras de arte de pastelaria. Até esse momento, Tamara não pôde distinguir, todavia, nada do que os escritores qualificam geralmente de “russo”.

A princesa falava com muita simplicidade e franqueza. Disse-lhe que todos os seus amigos viriam para lhe apresentar as boas-vindas e que se sentia verdadeiramente satisfeita ao ver que uma inglesa teria oportunidade de conhecer verdadeiramente o seu

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país, para poder ficar sabendo que, realmente, não era tão grotesco como o pintava a fan-tasia de outros povos.

— Da distância em que eles se encontram, é-lhes impossível imaginar a realidade de nossa pátria disse:

— Vocês ingleses leram que existiu um personagem chamado Ivã, o Terrível, e que reinou na Rússia em determinada época o imperador Pedro, o Grande, que era um gigante de dois metros de altura, ou mais. Muitos ingleses imaginam que pela noite os lobos correm livremente nas ruas de S.Petersburgo e que entre os membros da sociedade há uma porção de niilistas disfarçados da maneira mais estranha.. Também pensam que freqüentemente a polícia arranca dos lares, ricos ou pobres, alguma pessoa com o fim de a mandar para a Sibéria com cadeias nos pés. . . Não é verdade, Tamara?

A interpelada começou a rir. — Efetivamente, confessou. Estou certa de que é esse o conceito que a respeito da

Rússia tem, por exemplo, a minha tia Clara. Somos ridículos, não acha, madrinha? Pronunciou estas últimas palavras com certa timidez e estendeu a mão,

acrescentando: — Princesa, permite-me que lhe chame “madrinha”? Não conheci minha mãe e teria

uma grande satisfação se me deixasse chamá-la assim. — Com todo o gosto! respondeu a princesa, levantando-se para beijar Tamara. Eu

gostava muito de sua mãe. Juntas passamos um inverno de nossa mocidade, sentindo-nos muito felizes. Ocuparás o lugar de minha própria filha, Tamara, que morreu.

Antes de acabarem de tomar o chá, chegaram alguns amigos: um velho general de elevada estatura que vestia um magnífico uniforme e duas senhoras, uma moça e outra entrada em anos. Todos falavam perfeitamente o inglês, e seus modos eram tão simples que Tamara simpatizou com os três à primeira vista.

Ouviu logo que a senhora mais velha dizia a princesa — Já viste Gritzko depois que ele voltou? Diz-se que teve um dos seus acessos de

diabrura e que neste momento se encontra em Milaslaw com... O resto da frase foi pronunciado em voz muito baixa Tamara se envergonhou do que

havia escutado e julgou-se ridícula pelo sobressalto que lhe haviam causado aquelas palavras.

Sem dúvida nenhuma, haveria dúzias de Gritzkos em S. Petersburgo... — Ele chega hoje à noite, respondeu a princesa Ardacheff. Mas nunca acreditei nas

historias que dele contam. Por outra parte, qualquer que seja a sua conduta, o certo é que lhe perdoamos, desde que entreabra a sua bonita boca para nos sorrir...

A senhora pareceu satisfeita com esta explicação, pois soltou uma risada, falou-se de outras coisas e pouco depois saíram todos.

Logo que saíram, a princesa declarou: — Esta noite virão cear conosco um ou dois de meus melhores amigos. Desejo que

traves relações com eles. Por isso, julgo conveniente que vás descansar um pouco, para que não estejas, depois, muito fatigada.

Com essas palavras conduziu Tamara ao amplo e confortável dormitório. Era um aposento de grandes dimensões, mobiliado e decorado no estilo Imperial. No que Tamara reparou primeiro ao penetrar foi num enorme ramo de flores frescas, que lhe pareciam dar

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boas-vindas. Mais tarde, quando Tamara entrou em um dos salões, a reunião, composta por

umas dez ou doze pessoas, já estava animada. A moça apresentou-se com um sorriso nos lábios como se desejasse pedir desculpas por sua tardança. Imediatamente ini-ciaram-se as apresentações. O que mais chamou a atenção da viúva foi o fato de que todas as senhoras, fossem esbeltas ou gordas, tivessem a fronte alta ou baixa, cabelos claros ou escuros, penteavam-se da mesma maneira, isto é, com o cabelo puxado para trás e ligeiramente ondulado. Isso lhes dava um aspecto geral de distinção mesmo quando, em certos casos, não ficasse muito bem em relação com os traços fisionômicos. Todas estavam elegantemente vestidas, de preto, e embora, do ponto de vista inglês, não fossem bonitas, Tamara teve que reconhecer, ao terminar a reunião, que em toda a sua vida não tinha visto mulheres tão encantadoras. Evidentemente, nenhum outro país estava em condições de oferecer tipos daqueles. Eram todas muito bem educadas e possuíam vastos conhecimentos sobre os mais variados assuntos, inclusive a literatura européia. Mais tarde, quando chegou a conhecê-las melhor, admitiu que ainda restava um país na Europa onde não existiam parvenus e snobs, ou pelo menos, se existiam, estavam cuidadosamente ocultos. Uma simplicidade tão absoluta e um encanto igual só seriam possíveis em uma sociedade em que ninguém pudesse penetrar onde todos os seus membros lhe pertencessem por direito de nascimento. Ali não havia lugar para a “profissão” exercida por certas senhoras inglesas, de grandes títulos de nobreza, e sem nenhum dinheiro, de apresentar em sociedade e às suas amigas qualquer pessoa, embora inconveniente, a troco de uma dourada recompensa.

Na Rússia, só pertenciam à sociedade os que realmente formavam nas fileiras da aristocracia. Ninguém podia aspirar a tomar parte nela. Por isso, em todos, se observava a mesma naturalidade, como se tratasse de uma grande família.

Tamara pensou que cada uma daquelas pessoas havia sido dotada de um encanto particular. Ninguém perdeu tempo em lhe fazer cumprimentos e rapapés. Pelo contrário, mostravam-se agradáveis e naturais, produzindo-lhe a impressão de se achar ela em sua própria casa, rodeada pelas pessoas de sua própria família.

Serviram zsaoouska em uma ante-sala. O número de pratos era extraordinário. Parecia suficiente para um jantar completo, e Tamara pensou, por um momento, como seria possível ingerir ainda outros alimentos depois. Quando chegou a vez de sentar-se à mesa, a jovem inglesa viu-se colocada entre um velho príncipe de elevada estatura e um diplomata. Os vistosos uniformes dos homens e os ricos colares de pérolas das senhoras atraíram a sua atenção, oferecendo um agradável espetáculo para os seus olhos. Aquelas pérolas davam para o resgate de um rei.

Depois interessou-se na observação dos numerosos tipos de vinho e na riqueza extraordinária dos alimentos. Finalmente, achou também estranha a rapidez do jantar.

O costume de todos os cavalheiros convidados beijarem a mão da dona da casa, ao levantarem da mesa, pareceu alinhadíssimo a Tamara.

Estavam tomando café no salão azul. A maioria dos convidados havia-se sentado às mesas, e Tamara, que jogava muito mal, achava-se com sua madrinha ao pé do fogo, conversando amavelmente, quando a porta se abriu repentinamente, penetrando no salão o príncipe Milaslavski.

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— Desejava um pouco de café, Tantine — disse, beijando a mão da princesa, ao mesmo tempo que saudava com um movimento de cabeça a todos os presentes. Passava por aqui e resolvi subir, para isso.

— Gritzko está de volta! exclamaram todos, enquanto a princesa o fitava com um sorriso orgulhoso e lhe servia o café, dando-lhe as boas-vindas.

Todos os presentes começaram a fazer-lhe ironias pelas suas últimas aventuras, mas o príncipe escutou sorrindo, sem se alterar.

— Histórias da Mariana Mariuski — disse ele. Espalhou que estive numa orgia em Milaslaw, com um batalhão de huris egípcias, quando, em verdade o que fiz foi acompanhar, e isso por mera casualidade, uma pequena troupe de bailarinas egípcias e dois ursos amestrados. Conseguimos rir durante dois dias seguidos: Serge, Sacha e os outros...

— Mas, Gritzko, nunca aprenderás a ser ajuizado? — perguntou a velha princesa Shebanoff, com um tom de voz lastimoso, enquanto os outros convidados soltavam gargalhadas, fazendo perguntas acerca da beleza física das tais bailarinas egípcias.

— Como são? — perguntou um deles, muito interessado. — Os ursos? Lindíssimos, certamente. Especialmente Fátima, que tem umas

maneiras, de princesa. Com estas palavras o príncipe se inclinou levemente diante de uma princesa que o

estava olhando de modo agressivo, através de um lorgnon que lhe apertava o nariz. — Mas agora vejo que a senhora não cumpriu com os deveres de dona de casa,

titia, pois esqueceu de me apresentar a essa senhora inglesa, que não conheço. Durante o tempo gasto na conversação anterior, Tamara havia permanecido a

escutar em silêncio, sem dar a entender que conhecia o príncipe. Estava irritada consigo mesma, ao observar que a simples entrada daquele homem no salão lhe havia causado tamanha emoção. Por que devia aquele homem produzir-lhe uma impressão semelhante, fazendo-a sentir-se ridiculamente insignificante? Por que estava tão pouco segura de si mesma, não sabendo o que deveria fazer? E eis que o príncipe, invariavelmente, a colocava em uma posição desvantajosa, tomando em sua própria mão a solução de suas mútuas relações. Acaso não era ela quem deveria decidir essas coisas? Naquele momento estava novamente em uma situação em que não lhe era possível escolher a conduta a observar, pois só lhe restou o recurso de se inclinar diante do príncipe, quando sua madrinha pronunciou os nomes de ambos apresentando-os.

O príncipe Milaslavski tomou uma cadeira, sentando-se ao seu lado, como se fosse, de fato, um desconhecido.

Perguntou-lhe se havia chegado recentemente, se achava muito intenso o frio reinante na Rússia, se pensava permanecer muito tempo no país e mil outras coisas de somenos importância.

Tamara respondeu a todas aquelas interrogações com monossílabos, enquanto em seu rosto o sangue parecia estar fervendo.

O príncipe vestia o seu uniforme de cossaco, o qual lhe dava um aspecto muito elegante. Nos seus olhos se observava um leve assomo de sorriso mas, ao mesmo tempo, percebia-se ao redor deles uma sombra pronunciada, parecendo denunciar que não dormira várias noites seguidas.. .

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Suas maneiras com Tamara foram completamente diversas das observadas até então, nas ocasiões anteriores. Conduzia-se como um membro da corte que rendesse homenagem à convidada de sua tia.

Nem por acaso escaparam de seus lábios palavras irônicas ou provocadoras, como acontecera outras vezes. Pelo contrário, portou-se sempre de maneira agradável e delicada.

O príncipe Milaslavski e a madrinha de Tamara não eram parentes de sangue. A primeira esposa do falecido marido da princesa Ardacheff era irmã da mãe de Gritzko mas a tradição de “tia” tinha subsistido na família, e a princesa gostava de Gritzko como se ele fosse o seu próprio filho.

— Que opinião forma de Gritzko Milaslavski, Tamara? — perguntou a princesa à sua afilhada, depois que todos os convidados se retiraram e ambas se encontravam a sós nos aposentos da última. É um homem muito interessante, desde que se chegue a conhecê-lo bem mas sempre se mostra terrivelmente brincalhão.

— Parece muito interessante, respondeu Tamara, com ar de indiferença, enquanto apanhava um livro. Só o fato de falar daquele homem a incomodava.

— Não tem realmente o caráter de um verdadeiro russo, prosseguiu a princesa. Viajou tanto e é tão delicado que mais parece um. francês. Sinto, desde já, que te vais aborrecer na companhia de nossos rapazes. Estão sempre muito atarefados com os deveres militares e dispõem de muito pouco tempo para dedicar-se às senhoras da sociedade.

— Deveras? Nesse caso, as senhoras parecem destinadas a suprir essas falhas. Nunca encontrei pessoas tão interessantes.

— É a nossa educação — declarou a princesa. Deves saber que, desde a nossa mais tenra infância, nos ensinam várias línguas, e é esta a razão por que a literatura dos vários países nos é familiar, mesmo antes de aprendermos a compreender as coisas da vida. Especialmente a vida intelectual inglesa é motivo de estudo para nós, porque é nesse idioma que há maior número de livros para moças.

— Na Inglaterra todas as moças são educadas de acordo com um plano previamente traçado, do qual nenhuma se afasta. Não é permitido às meninas ter idéias próprias, e tudo se reduz a um nível comum, até que, por fim, se revoltam contra tudo aquilo. Mas desejaria fazer-lhe uma pergunta ainda, se me permite: — Por que são todos tão pálidos aqui? Pelo menos, observei isso em todas as pessoas que conheci esta noite. Será que se deitam muito tarde, ou haverá alguma outra razão?

— Naturalmente, quando estamos em plena temporada, deitamo-nos muito tarde mas, a palidez de nossos rostos não se deve a essa circunstância, e sim às mudanças de nosso clima, que nos obriga a permanecermos fechadas em aposentos de intenso calor, onde não podemos praticar os exercícios necessários. No verão, não reconhecerias pelo rosto nenhuma dessas pessoas.

Pouco depois, a princesa desejou boas noites à sua afilhada, mas, quando já se ia retirando, deteve-se novamente:

— Suponho que não ficaste escandalizada com o caso das bailarinas de Alexandria. Estou certa de que, se fôssemos investigar a verdade, chegaríamos à conclusão de que se trata de pessoas que vivem na maior miséria, às quais o príncipe auxiliou com dinheiro,

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por espírito de generosidade. São esses os resultados alcançados por todos quantos pretenderam investigar a verdade a respeito dos rumores que circulam acerca de sua pessoa.

Tamara, quando se viu só em seu quarto, fitou o fogo que crepitava no lar. Sentia um não sei quê, que a si própria não ousava confessar.

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CAPITULO 7

O dia seguinte era o último do Ano Velho russo, isto é, o dia 12 de janeiro, segundo

o calendário gregoriano. Quando Tamara apareceu às dez horas da manhã no salãozinho particular de sua madrinha (um lindo aposento, cheio de miniaturas e bibelôs colecionados pelo grande Ardacheff, amigo particular de Catarina II), encontrou a princesa ocupada em escrever.

— Bom dia, minha filha! exclamou ela. Tu me encontras levantada e escrevendo a uma hora em que muitos de meus compatriotas não tomaram ainda o seu banho. Aqui, no inverno, acordamos tarde. Hás de te acostumar a deitar-te às duas da madrugada e a levantar-te às dez da manhã mas, se aceitares o programa que hoje te preparei, creio que não te será possível deitar-te antes das quatro da madrugada. O príncipe Milaslavski me comunicou que dá uma festa em sua casa de Fontonka. Ele quer que jantemos com ele primeiro, e, depois, nos levará a um Café, onde assistiremos às danças de um bando de ciganos. Assim festejaremos a entrada do Ano Novo. Estou certa de que não te aborrecerás. Aceitas? Muito bem, então está combinado.

A princesa apertou um botão de campainha elétrica, e imediatamente apareceu um dos numerosos criados, que pareciam estar sempre na galeria, à espera do mais leve sinal. A madrinha de Tamara falou-lhe em russo. Um segundo depois, tomou o telefone que estava ao seu lado, e, feita a ligação, pôs-se a falar:

— És tu, Gritzko? Acordada? Claro que sim e está aqui ao meu lado. Sim, já está combinado. Iremos jantar em tua casa. Não antes das nove? Perfeitamente… Agora tens de me prometer que te comportarás bem… Naturalmente, qualquer mulher inglesa se horrorizaria com as tuas maneiras

já te disse que está aqui ao meu lado, de modo que te peço seres mais discreto... Não quero falar em russo, porque seria uma grave falta de educação. Repito que, se não te comportares direito durante a ceia, não te acompanharei para ver as dançarinas boêmias. Não estou brincando... Bem, até logo.

Com um sorriso nos lábios, a princesa tornou a colocar o receptor do aparelho no gancho.

— Disse-me que estava certo de que não te escandalizarias; mas, já sabes, minha querida, temos de nos divertir o mais que pudermos, e refreá-lo, se chegar a se exceder.

— Acontece isso com freqüência? — perguntou Tamara. A princesa, levantando-se, aproximou-se da janela, de onde lançou um olhar para a

rua. A neve, naquele instante, caía copiosamente. — Sim, com relativa freqüência mas Gritzko é acima de tudo um gentleman.

Todavia, às vezes eu gostaria de o ver levar a vida mais a sério. Ninguém sabe aonde o levarão as suas loucuras.

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— Não tem família? — perguntou Tamara. — Não, os pais morreram. A mãe adorava-o mas morreu quando ele contava

apenas dezoito anos de idade. O pai tinha morrido antes. Mas Gritzko conserva da mãe uma lembrança tão viva, que se poderia qualificar de adoração. Em todas as loucuras que ele e os amigos praticaram na casa de Fontonka, ninguém se atreveu a penetrar jamais nos aposentos que eram dela. Ali sempre há flores frescas e uma lâmpada sempre acesa. Há em Gritzko uma estranha ponta de sentimento, de melancolia, e de religião também. Às vezes parece infeliz e é quando desaparece por uma série de semanas, encerrando-se em sua casa de campo do Cáucaso ou em Milaskrw. No ano passado, pensamos que se casasse com uma moça polonesa muito bonita. De fato, dispensou à moça muitas atenções durante algumas noites. Mas um dia declarou que ela se rira uma ocasião em que ele estava triste, que lhe respondeu com seriedade quando ele estava com vontade de brincar, que fazia ruído com os dentes quando comia biscoitos! que a mãe era gorda, o que significava que a moça tinha, provavelmente, a mesma tendência. Afinal — declarou que, por tão sérias razões, não lhe era possível comprometer-se a comer com ela durante o resto da vida. Assim, acabou-se o namoro. Ninguém tem a menor influência sobre ele. Eu quis dominá-lo ao princípio, mas tive de me convencer da inutilidade de todos os meus esforços. É necessário aceitá-lo como ele é, ou, então, deixá-lo só. Não quer acatar os conselhos e as recomendações de ninguém, por melhores que sejam.

Tamara não pensava mais em dissimular o interesse que sentia por todas as conversações que se relacionassem com o príncipe. Não podia reprimir o desejo de obter pormenores de sua conduta. Na ocasião, justificava esse interesse, procurando convencer-se de que, realmente, o príncipe era uma personalidade de estranho temperamento que, por força, devia inspirar a uma estrangeira natural curiosidade.

— Talvez tenha sido melhor assim para a moça, atalhou Tamara, logo que a princesa se calou.

— Não creias nisso, minha filha. Gritzko é um homem em que sempre tenho notado a maior ternura, até mesmo para com as crianças e os animais. Além disso, parece possuir uma alma cheia de generosidade, poesia e sentimento de justiça. Pobre Gritzko...

A princesa suspirou profundamente. Tamara recordou-se, nesse momento, da conversa diante da Esfinge. Novamente teve a moça a certeza humilhante de que, naquela noite, o príncipe a achara uma criatura muito banal.

Em seguida, a princesa conduziu-a para conhecer a sua residência. Todos os aposentos estavam repletos de relíquias dos grandes antepassados que ali tinham residido. Em quase todas as dependências, havia retratos de Pedro, o Grande, e da impe-ratriz Catarina.

— Essa imperatriz é uma das personagens mais erroneamente julgadas em tua pátria, Tamara — declarou a princesa. Tinha, é certo, a alma e os sentimentos de um homem mas, fora disso, foi uma grande rainha.

Tamara observou atentamente as feições severas da extinta imperatriz, lembrando-se das coisas que em sua pátria lhe haviam dito a seu respeito; e achou ridiculamente pequeno o círculo de conhecimentos e limitado o conceito que, até então, tivera de diversas figuras da história.

Para o almoço chegaram várias pessoas, e Tomara soube mais tarde que a princesa

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nunca almoçava sozinha. — Não me agrada sair para almoçar fora de minha casa, explicou-lhe a madrinha.

Mas, em troca, sinto necessidade de ter o maior número de convidados, moças e rapazes, já que a sua alegria e otimismo são a minha melhor distração.

Tamara compreendeu que lhe seria muito difícil reter todos os nomes que lhe anunciavam, especialmente considerando que todos usavam apelidos familiares. Isso se explica facilmente, tendo-se em conta que todos se conheciam desde meninos, e muitos eram ligados por laços de sangue. Afinal, a convidada se lembrou de que Olga era a condessa Gleboff e Sônia a princesa Solentzeff-Zasiekin — ambas moças — contavam menos de trinta anos e ambas muito atraentes e naturais.

Olga era de pequena estatura, um tanto vagarosa de movimentos, com um rosto oval e olhos um tanto salientes, mas dizia tudo de uma maneira tão encantadora, que Tamara gostou logo dela. Outra particularidade que chamou a atenção da inglesa, foi que, não obstante já ser meio-dia, nenhuma das seis ou sete convidadas tinha pó de arroz no rosto. Estavam tal como a natureza as tinha feito, sem recorrer, em absoluto, a qualquer artifício.

— Com certeza não são coquettes como as francesas, ou como nós, inglesas, pensou consigo. Porque do contrário não se explica que usem todas o mesmo penteado, sem ter em conta, em absoluto, as características individuais da fisionomia de cada uma. Em troca, possuem um encanto muito superior ao nosso e ao das francesas.

Efetivamente, durante o almoço, todas elas se mostraram atraentes e conversaram de uma maneira sedutora, fazendo com que Tamara sentisse a sua simpatia por elas aumentar cada vez mais. Só conversavam sobre assuntos agradáveis, comentando espirituosamente e sem maldade os pequenos escândalos. Planejaram uma porção de divertimentos e Tamara ficou desde logo com um programa cheio para a primeira semana.

Naquela noite, quando se dirigiram à casa do príncipe Milaslavski, Tamara sentiu uma estranha emoção apoderar-se dela novamente. Não pensou em explicá-la. Curiosidade de ver a casa de um homem tão fora do comum, muito provavelmente como quer que fosse, os seus olhos brilhavam de excitação.

A residência do príncipe era uma das mais antigas de S. Petersburgo. Tinha sido construída em 1768, isto é, durante o reinado da imperatriz Catarina mas, não obstante o florido rococó das decorações, no qual qualquer coisa de pomposo e bárbaro parecia ter-se misturado ao Luís XV, havia escapado à onda vandálica de 1850, e com exceção de alguns aposentos do estilo Império, toda ela constituía um verdadeiro monumento do gosto artístico de sua época.

Tudo naquela casa interessou a Tamara, a começar pelos criados cossacos no hall a linda escadaria de mármore e pedra, e, finalmente, os salões do primeiro andar.

— Vê-se logo que aqui não vive nenhuma mulher, pensou Tamara embora o aposento em que acabavam de entrar fosse muito confortável.

Grandes poltronas de couro, à maneira inglesa encontravam-se ao lado de outras maciçamente douradas, do tempo de Nicolau I, havia um sofá perto da chaminé, na qual crepitava um alegre fogo.

Os convidados já estavam todos, reunidos, mas o dono da casa ainda não tinha

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chegado. — Que impertinência deixar-nos aqui à sua espera! pensou Tamara. Os demais convidados não pareciam estranhar a demora do príncipe, e riam

despreocupadamente, sentados perto do fogo. — Aposto — disse Olga Gleboff com sua voz atraente, que Gritzko entrará no salão

sem se preocupar em nos pedir desculpas, e que ninguém conseguirá saber onde ele esteve.

Enquanto ela falava, Milaslavski entrou no salão. — Vejo que todos chegaram muito cedo — disse apertando amavelmente a mão dos

presentes: — Quanta bondade. Se vim um pouco tarde peço-lhes que me desculpem. Confesso que estou unindo de fome. São nove horas passadas!

Imediatamente, abriram-se as portas da sala de jantar e todos para ali se dirigiram, tomando os lugares em torno à mesa, onde começaram a saciar o apetite, cada um escolhendo os pratos que mais lhe agradavam. Alguns dos homens serviram-se de enormes porções de caviar, estendendo-o sobre fatias de pão, como fazem as crianças com as geléias. Todos estavam alegres e não faziam cerimônias. Tamara pensou consigo que jamais tinha assistido a uma reunião tão agradável como aquela.

Encontravam-se entre os presentes diversos senhores de idade, maridos das senhoras que também tomavam parte no jantar, alguns jovens oficiais do exército e vários diplomatas, pertencentes às embaixadas estrangeiras.

Mas tanto os moços como os velhos estavam animados e dispostos a se divertirem. — A senhora precisa provar o vodca! exclamou o príncipe Milaslavski, servindo um

cálice da forte bebida a Tamara. Provavelmente não vai gostar; mas é a bebida mais tipicamente russa e a senhora tem que conhecê-la. Eu também vou tomar um cálice para brindar à sua saúde.

Tamara provou a bebida, achando-a horrível e com certo gosto de éter. Estava sentada à direita do dono da casa, enquanto que, à esquerda do mesmo, se achava a princesa Sônia. O príncipe vestia um uniforme marrom que, a juízo de Tamara, lhe assentava muito bem, como os de outras cores com que o tinha visto nas vezes ante-riores. Seus olhos despediam um brilho vivíssimo.

— Gritzko — disse a princesa Sônia, tens de nos contar o que viste este ano no Egito. É a primeira vez que não ouvimos uma descrição de tua viagem, e, por um momento, supusemos que tivesse morrido. Estiveste doente, eu aborrecido?

— Pelo contrário, estive bem vivo, respondeu o interpelado, com gravidade. Dediquei-me ao estudo das múmias e enamorei-me da Esfinge. Justamente quando ia terminar a minha viagem, ocorreu-me a mais estranha aventura de minha vida. Encontrei um ser que, à primeira vista, tomei por uma mulher, mas que logo depois se transformou numa múmia e mais tarde num verdadeiro bloco de gelo!

— Gritzko! gritaram todos em coro. É possível que alguém invente coisas tão absurdas como você?

— Asseguro-lhes que estou falando sério. Não é verdade, Madame? Com estas últimas palavras, dirigiu o olhar a Tamára, enquanto em seus lábios se

desenhava um sorriso de ironia. Em seguida, voltou-se de novo para os seus convidados. — Madame esteve no Egito, segundo me disse, e poderia confirmar a veracidade de

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minha afirmação. Tamára armou-se de todo o seu sangue frio. — Creio que a Esfinge deve ter exercido algum malefício sobre o senhor, príncipe —

disse ela, e de tal forma que nem podia distinguir o que era verdade do que era falso. Nunca vi nenhuma mulher que fosse múmia e virasse depois num pedaço de gelo.

Alguém distraiu por um momento a atenção da princesa Sônia, e Gritzko, aproveitando-se desse instante, murmurou ao ouvido de Tamára:

— O gelo pode derreter-se! — Para quê derreter o gelo? Para encontrar uma múmia? — perguntou Tamára com

grave inocência. Seria o mesmo movimento em sentido contrário. — Sim, para ter finalmente uma mulher nos braços... completou o príncipe. Tamara voltou-se para a pessoa que estava sentada do outro lado, e conversou com

ela durante todo o resto do jantar. Todos os convivas falavam corretamente o inglês. E eram tão amáveis e bem educados, que falaram todo o tempo na língua da convidada, mesmo nas palestras entre si.

— É necessário conversar agora o mais que puder — disse o vizinho de Tamara, porque, imediatamente depois do café, todos começarão a jogar o bridge, e, então, ninguém será capaz de lhes distrair a atenção. Aqui em S. Petersburgo, vivemos um pouco atrasados, em comparação com Londres e Paris, de forma que, enquanto naquelas cidades o referido jogo já passou quase para a história, aqui se encontra ainda em todo o seu apogeu. Poderá constatá-lo dentro de poucos minutos.

Assim foi, efetivamente. Logo depois de servido o café, todos os convidados se atiraram ao bridge. Só o

príncipe, Tamara e outra senhora não tomaram parte no jogo. Naturalmente os organizadores do jogo perguntaram à inglesa se ela não desejava jogar, ao que Tamara respondeu que não, por jogar muito mal. Por isso, preferia assistir ao jogo dos outros.

A outra senhora sentou-se a uma das mesas, disposta a prestar atenção às partidas e nelas tomar parte logo que o pudesse fazer. O príncipe e Tamara ficaram sós.

— Eu não queria que a senhora jogasse — disse Gritzko. Para dizer a verdade, sabia que não gostava do bridge e fiz com que se organizassem as partidas, para ter a honra de falar-lhe.

— Como sabia que eu não jogava? Acha-me boba demais para isso? — Acho. E linda demais também. Os olhos de Tamara despediram chamas de indignação. — Não sou nem boba nem linda. — Provavelmente, mas é essa a impressão que produz em mim. Não fique zangada:

é tão fatigante para as nossas relações! Todas as vezes tenho de lhe ser apresentado de novo.

Tamara se pôs a rir. — Na verdade, tudo isso é muito engraçado. — E como tem passado Mrs. Hardcastle? Falemos dela, pois suponho que este é

um assunto sobre o qual podemos conversar junto ao fogo sem lhe provocar a vontade de me atirar lá dentro.

— Não estou muito certa disso.

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Ela não tinha a força suficiente para resistir ao encanto do príncipe e parecia-lhe feio discutir com ele em sua própria casa. Por conseguinte, resolveu levar as coisas para a brincadeira.

— Se continuar a caçoar de minha amiga, ficarei zangada de verdade. — Caçoar de Mrs. Hardcastle? Nada está mais distante de minha idéia. Já não lhe

disse que, quando encontrar uma mulher como ela, me casarei imediatamente? O que mais quer?

Novamente o príncipe olhou-a com muita gravidade. — Ela contou a Henry que um demônio de urso russo se tinha embriagado e atirado

ao chão uma cigana? — É possível. Por que motivo o senhor se mostrou tão horrível naquela noite? — Fui horrível? — Talvez não; mas a impressão que causou em mim foi essa. — Eu dou a impressão de horrível e a senhora de linda. — E boba também. — Sim, mas esse defeito trataremos de tirá-lo aqui na Rússia, pois, não há de ir

embora tão cedo. — Dentro de quatro semanas no máximo. — É o que vamos ver. O príncipe acendeu um cigarro. — Não fuma? — Não, obrigada. — Não seja tão puritana. . . — Não sou puritana, o que acontece é que os cigarros me fazem um mal horrível, e,

como já tenho feito várias tentativas com igual resultado, penso que seria uma loucura querer insistir.

— Não a estou forçando a fumar. Ao contrário, prefiro que seus dentes continuem brancos como são agora.

Novamente Tamara se revoltou. Ele falava como se tivesse o direito de lhe dar ordens, de divertir-se com a sua conversação, de brincar com as suas emoções. Por um momento, sentiu desejo de esbofeteá-lo.

— Quanto tempo haverá que dançamos juntos no Egito? Quinze dias ou mais? A senhora ainda não sabe dançar; executa bem todos os movimentos, mas isto só não é o bastante. A dança ou é um pinotear ridículo de pessoas que não lhe penetram a significado, ou é a expressão de alguma espécie de emoção.

Os gregos entendiam que em suas danças cada movimento tinha o seu sentimento correspondente. Para mim a dança significa muita coisa. Quando uma mulher é esbelta, flexível, fácil de dirigir, e além disso me agrada por outras razões, acho que não perco o meu tempo. Esta noite, provavelmente, embriagar-me-ei de novo...

O príncipe derrubou a cinza de seu cigarro com o dedo mínimo, e Tamara, ainda que estivesse irritada pelas palavras anteriores, observou que as suas mãos eram finas e enérgicas.

— Mas a bordo, o senhor não estava embriagado ... Nem sequer tinha essa desculpa. . .

— Talvez não estivesse embriagado de champanhe mas me achava em um estado

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de alma semelhante, uma sobrecarga de vida, uma intoxicação dos sentidos. Há em tal estado, apenas, uma vantagem sobre a champanha: é que não se perde o equilíbrio, nem se altera a voz.

Tamara ficou calada. — Estou ansioso por ver que impressão lhe causará a música que vamos ouvir

daqui a pouco; e gostaria de saber se é capaz de fazer circular com mais força, em suas veias, essa mistura de leite e água, que parece o seu sangue.

— Príncipe, não fui feita para diverti-lo. Como se atreve a tratar-me desta maneira? Tamara levantou-se e formalizada acrescentou: — Se as minhas veias contêm leite e água, isso não é absolutamente de sua conta. — A senhora já me provocou uma vez, respondeu o príncipe com um sorriso. Julga

acertado experimentar novamente? — Não sei, nem me interessa saber. Odeio-o! Os olhos de Gritzko chisparam. Tomara nunca o tinha visto antes assim. Ele

aproximou-se mais ainda dela e disse em voz baixa e concentrada: — É um desafio. Quero dizer-lhe uma coisa. Dentro de pouco tempo, há de amar-me. Essa cabeça orgulhosa descansará sobre o

meu peito, sem oferecer a menor resistência, e, então, beijar-lhe-ei os lábios, até fazer-lhe perder a respiração.

Pela segunda vez na vida, Tamara ficou numa palidez de morte. Até os seus lábios perderam a cor. O príncipe observou o efeito que haviam produzido as suas palavras, e, como não julgava chegado o momento, e, também, não queria fazer sofrer mais a sua convidada, falou-lhe com extraordinária ternura.

— Eu estava apenas brincado. Reconheço que sou um bruto. Tamara levantou-se e aproximou-se de uma das mesas de bridge, furiosa consigo

mesma, ao ver que aquele homem pudera observar o domínio que sobre ela exercia. Gritzko acercou-se dela e começou a falar-lhe amavelmente sobre coisas dignas de

se ver na capital, e do interesse que, certamente, ela teria pelos museus e coleções de quadros e armas. A sua atitude não podia ser mais correta; os jogadores de bridge, que ouviam a conversação, sorriam, enquanto a condessa Olga pensava:

— O Gritzko acaba de fazer a corte à inglesa, ou do contrário, deve estar profundamente aborrecido.

A julgar pela fisionomia do príncipe, dir-se-ia que a última hipótese era a verdadeira.

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CAPITULO 8

Os convidados suspenderam o jogo à meia-noite menos um quarto. Imediatamente,

foram trazidas mesas, garrafas de champanhe e taças, para que todos festejassem a entrada do Ano Novo.

Tamara teve a precaução de se colocar ao lado da princesa Ardacheff mas o dono da casa fitou-a com insistência quando levantou a taça para o brinde. Depois, desceram ao hall, onde as senhoras vestiram os seus abrigos de peles, para se dirigirem ao Café, onde os boêmios deveriam cantar.

Tamara e a princesa já se encontravam no carro desta última, quando o príncipe Milaslavski gritou:

— Tamara, leve-me no seu carro. Sou magro e poderei viajar entre as duas. Quero chegar logo, e mandei o meu auto com Serge e Valonne.

Em seguida, sem esperar sequer a resposta da princesa, subiu ao veículo. As senhoras tiveram que viajar um pouco apertadas. Tamara não pôde deixar de se censurar a si mesma, pois, apesar de sua raiva pela conduta do príncipe, experimentava ao seu lado uma sensação perturbadora e desconhecida.

A magnética personalidade daquele homem era demasiado intensa para que a moça pudesse resistir-lhe. Ele inclinou-se e disse qualquer coisa ao ouvido da princesa. Depois, como se quisesse repartir o segredo, aproximou-se também do ouvido de Tamara e disse-lhe algumas palavras sem importância e às quais ela nem prestou atenção. Mas ao falar os seus lábios roçaram pela orelha da moça e causaram-lhe uma tão violenta impressão que estremeceu inteiramente. Ela não tivera ainda em toda a vida, sensação igual. Por que a fazia sofrer esse homem, desconsiderando-a tanto? Por que sempre se portava de maneira tão extravagante? Por que escolhia os momentos em que ela se achava indefesa e não podia mover-se? E resolveu que, caso permanecesse mais tempo na Rússia, chegaria a um acordo com ele, para evitar que se repetissem aquelas cenas, tão insultantes ao seu amor próprio.

Decidiu encolher-se muito entre os almofadões do carro e nada responder. — Está zangada comigo? — perguntou o príncipe. Acredite que foi unicamente o

solavanco do carro que me aproximou tanto da senhora. Perdoe-me, tratarei de não pecar novamente. ..

Mas, enquanto falava, repetiu a ofensa. Tamara juntou as mãos sobre o peito e res-pondeu com a maior frieza:

— Não notei coisa alguma, príncipe. De certo foi a sua consciência pesada, que lhe fez pedir desculpa.

— Então está certo! E Gritzko pôs-se a rir silenciosamente. Nesse momento a princesa interveio na con-

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versação: — Gritzko, é preciso dizer a Mrs. Loraine como são esses ciganos, e o que ela irá

ouvir do contrário, estranhará tudo. Imediatamente ele se voltou para Tamara: — É uma gente muito esquisita, que vive na maior promiscuidade. Cantam como os

demônios, e, goste-se ou não se goste do canto, o certo é que ele nos dá violentamente nos nervos. Se algum dos ouvintes simpatiza com uma cigana, em lugar de pagar a esta, deve fazê-lo ao chefe. De resto, são fiéis. O dinheiro não as tenta. Mas, se o homem lhe acorda os ciúmes, não hesitam em lhe cravar um punhal no peito.

— Em todo o caso parece muito interessante, respondeu Tamara friamente. — A arte dos ciganos é inteiramente pessoal. Todos os que têm ouvido educado,

sentem, ao escutá-los, vontade de gritar. A mim me põe doido. — Gritzko, murmurou em voz baixa a princesa, lembra-te que me prometeste portar-

te bem. Muitas vezes me assustas quando vais demasiado longe. O príncipe beijou a mão de sua tia e respondeu: — Suas palavras têm para mim força de lei. — Ah, se fosse verdade! suspirou a princesa. — Esta noite, toda a minha conduta estará apropriada à das onze mil virgens, ou, se

preferem, ao gosto de uma grande dama inglesa, o que é, mais ou menos, a mesma coisa.

Tinham já atravessado o Neva e chegavam a porta de um edifício de aparência sombria. Penetraram ali, onde vários garçons estavam ocupados em atender à freguesia. Atravessaram uma porção de estreitos corredores, semelhantes aos de um hospício de loucos; afinal, entraram em um aposento onde não havia ninguém e mobiliado com um sofá, uma mesa comprida e mais algumas pequenas.

Sobre as mesas, havia toalhas e pratos, além de várias travessas contendo presunto cru, amêndoas, saladas e outras variedades da cozinha russa. Entre os reluzentes candelabros de prata, numerosas garrafas de champanha.

Todos os convidados pareciam ter-se esquecido, como que por encanto, do mau humor que lhes havia produzido o bridge, e estavam de novo alegres como antes. Todos tiraram os agasalhos e as botas de neve.

Tamara tomou lugar na mesa grande. À sua direita, estava o conde Gleboff, e à esquerda, o conde Valonne, Secretário da Embaixada de França. Em frente, a princesa Sônia.

O príncipe ficou em pé, com um copo de champanha na mão. Em seguida, entraram no salão vinte e cinco mulheres repulsivas, semelhantes a

animais, vestidas todas com roupas de péssimo gosto, sentando-se em cadeiras colocadas na extremidade do aposento. Não vestiam os trajes nacionais, e nada tinham que pudesse atrair. Algumas delas tinham o cabelo grisalho, e uma, até, tinha o rosto inchado meio oculto por trás de um xale negro. Como seria possível a um homem simpatizar com qualquer delas?

Seguiram-nas uns dez homens de pele trigueira, cerradas sobrancelhas pretas, trazendo guitarras nas mãos.

Esses eram os famosos boêmios! Seu aspecto era em todos os sentidos

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decepcionante. O desapontamento de Tamara foi incalculável. Mas, quando começaram a cantar, ela compreendeu que havia alguma coisa

naquela música, embora intensamente inquietante. Em seguida, observou que o costume dos boêmios era dedicar uma canção a cada

um dos presentes, devendo todos, em seguida, beber à saúde do homenageado, que teria de esvaziar o seu copo de um só trago.

A circunstância de não ficar nenhum embriagado ao terminar a festa, depunha a favor da firmeza de suas cabeças, pois Tamara que não estava habituada inteiramente àquele ambiente superaquecido que reinava no salão, sentia até medo de tocar no seu copo.

Uma vez terminados os brindes todos se acomodaram. Apenas ficaram em pé, em frente da mesa, Gritzko e um polaco, que animavam a reunião, dirigindo o programa dos boêmios.

A música era do gosto mais selvagem, os sons, que escapavam das guitarras e das gargantas dos cantores, tinham alguma coisa de metálico, que quase doía nos ouvidos. Sem embargo, inflamava os sentidos.

Todos permaneceram sentados, com o rosto impassível e as mãos inteiramente quietas. Os boêmios cantavam sem fazer a menor gesticulação, mesmo quando entoavam apaixonados cantos de amor. Não se poderia imaginar espetáculo mais extravagante.

Todavia, a atração do espetáculo aumentava cada vez mais. Cada um daqueles horríveis rostos parecia gravar-se na mente de Tamara de uma maneira indelével. A moça estava certa de que continuaria a vê-los em sonho, por muito tempo ainda.

Como, na verdade, conhecemos pouco da força dos sons, e das grandes correntes que atuam sobre o mundo e a vida humana!

Não há dúvida que a música é a arte que, mais do que nenhuma outra, impressiona os sentidos.

Provavelmente o mito grego, de Orfeu com o seu maravilhoso alaúde, não foi tal um mito. Talvez aquele homem tivesse conhecido o grande poder da música. Seria certamente interessante que algum sábio realizasse investigações, com o fim de estabelecer por que razões psicológicas certos sons provocam determinadas emoções, e despertam nas almas humanas visões elevadas ou baixas.

Tamara achou a música daqueles ciganos uma música de demônios, e não se surpreendeu ao notar a expressão selvagem que brilhava nos olhos do príncipe Milaslavski, já. que ela mesma, educada nos mais rígidos preceitos da moral inglesa, sen-tia que o sangue lhe corria pelas veias com maior celeridade.

Depois de uma hora de música, duas mais moças entre as mulheres boêmias, começaram a dançar, mas sem os movimentos que haviam escandalizado Mrs.Hardcastle, a bordo do navio que as trouxera do Egito, dançavam uma valsa, fazen-do-o, entretanto, com uma tal vida que os seus ombros, ao se levantar e descer alternativamente ao ritmo da música, pareciam as asas de uma ave. Eram de fato os ombros que desempenhavam o papel principal naquela dança, em lugar do corpo e da cintura.

Finalmente, quando o relógio batia já as três horas da madrugada, toda a troupe saiu

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da sala para tomar um refresco e descansar um bocado. A sala estava cheia de fumaça de cigarros e o calor que nela reinava era sufocante. Alguém se pôs a tocar piano e todos começaram a dançar uma mazurca, fazendo-o com o entusiasmo que lhes havia deixado em seus corpos o espetáculo por um momento interrompido. Tamara achou-se, sem saber como, nos braços do príncipe Milaslavski.

Ela não conhecia os passos da mazurca; mas dançaram uma valsa ao ritmo da mazurca, e durante todo o tempo Gritzko esteve-lhe falando ao ouvido em russo. Palavras loucas, que ela não podia entender, e por isso não disse nada.

— Doushka! exclamou o príncipe, vejo que já despertou. Afinal nessas lindas veias azuis não há só leite com água como eu pensava ao princípio. Hei de ensinar-lhe a viver.

Tamara nada respondia a estas palavras. Não sentia outra coisa senão prazer e uma louca alegria.

O pianista amador deteve-se e outro ocupou o seu lugar, porém a mágica influência havia desaparecido, e Tamara pôde recobrar novamente a tranqüilidade, assumindo então a atitude anterior.

— Estou cansada — disse ela, no instante em que o príncipe se dispunha a prosseguir na dança. Sinto grande vontade de tomar ar.

Gritzko abriu uma janela e deixou a moça momentaneamente em paz. Tamara dançou novamente com o primeiro cavalheiro que a solicitou, passando

rapidamente de um a outro par, com o fim de evitar o ter que dançar longamente com o príncipe. Contudo, a todo o momento, parecia sentir os braços de Gritzko ao redor de seu corpo, e de novo a empolgava aquela mesma estranha emoção.

— Espero que estejas gostando — disse-lhe a sua madrinha, esta é uma das cenas russas que não poderás ver em nenhum país do mundo.

E, de fato, Tamara sentia-se feliz, não obstante sua agitação e intranqüilidade. Finalmente, sentou-se ao lado de Olga Gleboff, e as duas ficaram olhando os pares

que continuavam dançando. O príncipe dançava com a princesa Shebanoff, cujo rosto formoso estava voltado para ele com um sorriso encantador.

— Pobre Taciana! murmurou em voz baixa a condessa Olga. Quando os ciganos voltaram, sua música foi mais selvagem do que antes, e alguns

dos solos pareceram impressionar Tamara. O príncipe sentou-se a seu lado no sofá e, de vez em quando, inclinava-se para ela,

fosse para apanhar uma amêndoa, fosse para acender um cigarro. De cada vez, parecia tocá-la involuntariamente, mas, em realidade, fazia-o de propósito. E a mesma sensação nova e intoxicante invadia-a cada vez que isso se dava.Ela procurava então distanciar o corpo esbelto, procurando assumir uma atitude severa sem, entretanto, o conseguir.

Já havia passado de cinco horas da madrugada quando o espetáculo terminou e os convidados vestiram novamente os seus agasalhos de pele.

A troupe inclinou-se reverentemente e saiu para atender a outro compromisso. — Cantam toda a noite e dormem de dia — disse o conde Gleboff a Tamara,

enquanto desciam as escadas. Nesta quadra do ano, nunca conseguem ver a luz do dia, a não ser uma ou outra vez pela madrugada.

— Tantine — disse o príncipe, dê ordem ao seu chofer para que volte com o carro. Mandei buscar minha tróica, e ela já aqui está. Precisamos mostrar a Madame Loraine

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como se viaja em tróica. A princesa acedeu ao pedido. Oh! que prazer sentiu Tamara ao deslizar velozmente pela neve. Os cavalos

imprimiam à tróica uma velocidade extraordinária. Envolvidas em seus pesados agasalhos de pele, ela e a madrinha não sentiam o menor frio. Gritzko, esse príncipe sel-vagem, cujos olhos despediam centelhas, estava sentado em frente delas.

Ao cabo de algum tempo, pararam e os olhos de Tamara pousaram no magnífico espetáculo que, a essa hora da madrugada, oferecia o golfo da Finlândia. Por sobre suas cabeças cintilavam inúmeras estrelas, e a lua iluminava debilmente a grandiosa paisagem nórdica.

Eram sete horas da manhã quando entraram em seus aposentos. Esse foi o primeiro passeio de Tamara rio pitoresco país dos Tzares.

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CAPITULO 9

Seis dias decorreram antes que Tamara tornasse a ver o príncipe. Ignorava se ele

estava ocupado, ou se se mantinha longe de caso pensado. Não quis perguntar mas, intimamente, começou a sentir certo despeito ao pensar nele.

— Tamara, tenho que dispor as coisas para que vás a Tsarkoi para assistir à cerimônia da bênção das águas pelo Imperador no dia 6 de janeiro, do nosso calendário — disse-lhe a madrinha, um ou dois dias depois da festa dos ciganos. Eu já vi tantas vezes essa festa que não sinto mais desejo de me expor ao frio mas, o marido de Sônia é um dos ajudantes de campo, e, como sabes, reside em Tsarkoi. Olga tem vontade de partir para lá, e levar-te-á em sua companhia. Não tenho a menor dúvida de que essa cerimônia há de parecer-te interessante.

Tamara aceitou agradecida. Tsarkoi, onde chegaram depois de meia hora de viagem de trem, pareceu-lhe um

lugar extraordinário. Como em tantas outras estações de verão, todas as casas eram de madeira; mas, naquele momento, encontravam-se cobertas de neve. Ela e a condessa Olga dirigiram-se à casa da princesa Sônia, e, de lá, aos terrenos pertencentes ao palácio imperial, pelos quais, percorrendo pequenos caminhos cuidadosamente limpos de neve, chegaram a uma espécie de pequeno templo, situado nas proximidades do lago. Ali foi-lhes permitido colocarem-se bem atrás da linha dos cossacos, para assistir à cerimônia.

O céu estava encoberto e logo a neve começou a cair intermitentemente em grandes flocos. Sobre o imaculado fundo branco formado pela neve, destacavam-se vivamente os uniformes vermelhos dos cossacos da guarda imperial, que, formando longas filas, ofereciam um espetáculo magnífico e imponente. Tamara admirou-lhes as fisionomias atraentes, observando que alguns deles tinham feições de verdadeira beleza. Todos usavam barbas, eram extremamente altos e esbeltos, com cintura que faria inveja a uma moça. Na fila, estava o príncipe. Tamara sentiu-se irritada consigo mesma, ao notar a impressão que a presença dele lhe produzia. A procissão, que se aproximava naquele momento, parecia-lhe de menor interesse que a pessoa de Gritzko, de quem ela não tirava os olhos.

Desde o momento em que foi dado o sinal indicando que o Imperador havia deixado o palácio, todas as cabeças se descobriram. Tamara não pôde deixar de admirar aquela prova de respeito, considerando que a temperatura era de vários graus abaixo de zero. Foi o príncipe quem deu a voz de comando. Enquanto ele apresentava armas, Tamara observou-o com a máxima atenção. Suas feições eram severas e firmes como, as de uma estátua. No serviço, tratava-se realmente de um. homem muito diverso daquele que assistia aos bailes de ciganos. Mas não valia a pena estar argumentando consigo mesma sobre isso o fato é que, assim como assim, o príncipe a atraía.

Por fim apareceu a procissão, e Tamara fitou nela os seus olhos surpresos. Que

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país maravilhoso era a Rússia! Que mistura de superstição e bom-senso! Parecia surpreendente que pessoas adultas pudessem assistir a uma cerimônia sentimental como aquela.

Abriam a procissão os rapazes do coro, vestindo grossos agasalhos por cima de suas vestes vermelhas; depois, um grupo de homens que cantavam em seguida, os sacerdotes, em suas vestes adornadas de ouro e prata, por fim, o Imperador, só e com a cabeça descoberta. Seguiam a este, a distância respeitável, os Grão-duques e todos os ajudantes de campo, além dos comandantes de todos os regimentos do Império.

No instante preciso em que passava o Imperador, Tamara olhou de novo para o príncipe. A serenidade de seu rosto se tinha mudado em um olhar de devoção. Naquela alma estranha havia, realmente, grande amor pelo monarca. Quando a última personalidade desapareceu atrás do templo, a tensão do momento cessou como por arte mágica. Foi naquele instante que Gritzko pareceu notar a presença delas.

— Sônia — disse ele, virei tomar café depois do almoço, conforme prometi a Maria. — Não sentem frio? — perguntou Tamara, ao ver que os cossacos continuavam

descobertos e tinham a cabeça quase raspada. — Não, respondeu Olga. Estão habituados a isso. Depois, hoje felizmente não faz

tanto frio. Se a temperatura fosse mais baixa, eles vestiriam os seus capotes de pele. Não achas que são homens magníficos? Eu gosto muito de os ver com esse uniforme vermelho. Só o vestem em ocasiões solenes; quando estão com o Imperador, ou em bailes e outras festas da Corte. Gostaria que pudesses ver Gritzko nesse uniforme.

Tamara não disse que já o tinha visto assim vestido, nenhum dos seus novos amigos sabia que ela conhecera o príncipe no Egito.

Durante toda a cerimônia, os canhões davam salvas e mais salvas. Logo terminou a bênção, com o mergulho da cruz nas águas, e o cortejo se pôs de volta.

O aspecto da volta foi exatamente o mesmo que o da ida. Somente os sacerdotes enxugaram a cruz com uma toalha sagrada. Minutos depois, todos desapareceram, rumo ao palácio. As três senhoras regressaram rapidamente até o trenó que as esperava, meio geladas pelo frio.

Uns dez minutos depois de terminar o almoço, quando estavam sentadas no elegante salãozinho da princesa Sônia, escutaram uns ruídos fortes no corredor, e, logo depois, Gritzko entrou trazendo nos braços uma menininha, cujo pobre corpinho parecia murcho e que segurava nos bracinhos uma muleta. Seguia-o um menino de oito anos de idade.

— Encontramo-nos no hall, minha amiguinha Maria e eu — declarou ele enquanto se inclinava para beijar a mão de Sônia, fazendo, depois, o mesmo com as outras senhoras. Temos muito que nos dizer.

— Estes são meus filhos, Mrs. Domine — disse a princesa Sônia. Desceram para vê-la, mas agora que chegou Gritzko, tenho medo de que não nos prestem nenhuma atenção...

Enquanto ela falava, aproximou-se o menino, e, com bonitos modos, beijou a mão de Tamara.

— A senhora é inglesa? —Perguntou em inglês, sem o menor sotaque. A senhora também tem um filho?

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Tamara teve que dizer que não, circunstância que o menino pareceu lamentar profundamente.

— Maria é muito levada — disse em seguida. Mas, quando está com Gritzko, geralmente se porta direito.

— Como fala bem o inglês! E só tem oito anos de idade! Aposto que fala também o francês, não é?

— Falo sim, mas vou dizer-lhe uma coisa, o alemão eu falo muito mal. Temos uma governante alemã, e detesto-a! Ela tem a boca cheia de dentes!

— Isso é, de fato, uma coisa horrível! concordou Tamara, sorrindo. — Quando Gritzko brinca conosco, ela fica uma fúria. Na semana passada, ela falou

com ele com tanta raiva, que a dentadura de baixo caiu. Rimos muito! A princesa Sônia interrompeu-o: — O que está dizendo, Pedro? Pobre Fraulein! Terei de proibir a Gritzko de ir tomar

chá com vocês. Vocês ficam muito desobedientes quando estão com ele. Do outro lado da sala ouviu-se um grito queixoso: — Mamãe, queremos que Gritzko vá tomar chá conosco. Eu gosto dele... Je l’aime! E a pequena inválida abraçou com tanta força o príncipe, que quase o sufocou. — Já vê, mamãe, que a maioria está do nosso lado — disse Gritzko, logo que pôde

falar. O menino reuniu-se logo à irmãzinha, e, minutos depois, ambos soltavam uma

gargalhada motivada, sem dúvida, por alguma história, engraçada que o príncipe lhes tivesse contado, A princesa Sônia aproximou-se de Tamara e disse-lhe em voz baixa:

— Gritzko é admirável para as crianças, quando gosta delas. Todos nesta casa o adoramos e não temos expressões para dizer a gratidão pelo que fez o ano passado por Maria, quando esta sofreu aquele triste acidente. A pobre pequena há de melhorar, segundo afirmaram os médicos. É isso o meu consolo. Mas sofri profundamente.

Em poucas palavras Tamara exprimiu a sua simpatia pela princesa Sônia, cuja bondade e doçura a tornavam uma mulher encantadora.

Chegaram mais visitantes e todos tomaram o café. Mas o príncipe não lhes prestou a menor atenção trocando somente as saudações obrigatórias e continuando a sua conversa com os amiguinhos.

Tamara ficou surpreendida ao conhecer esse novo aspecto daquele homem: o amor que ele demonstrava pelas crianças impressionou-a vivamente. Demais, ali estava um lindo quadro: ele, com seu uniforme vermelho, sentado ao lado dos meninos. Maria brincava com os enfeites prateados do uniforme e Pedro se apoderava do sabre.

Quando a inglesa e a condessa Giga resolveram tomar o trem da tarde, Gritzko disse que as acompanharia, pois precisava regressar, quanto antes, a S.Petersburgo.

Não se poderia imaginar um espetáculo mais desolador do que o panorama que apresentava o campo através das janelinhas do trem. Estavam já a pouca distância da capital, e, todavia, tudo estava desprovido de vegetação, como se se tratasse de um deserto. Só alguns soldados, de longe em longe, permitiam compreender que a vida ali ainda não tinha cessado. Tamara sentiu-se profundamente deprimida ao observar aquela desolação. Enquanto um suspiro se lhe escapava dos lábios, desenhou-se-lhe nos olhos uma expressão de tristeza.

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O príncipe, a condessa Olga e outro oficial que estava com Tamara naquele compartimento do trem, falavam e fumavam alegremente. Gritzko, porém, parecia ver tudo que se passava ao redor de si, pois, de repente, se inclinou para Tamara e disse-lhe em voz baixa:

— Se a senhora se demorar aqui, aprenderá a não olhar nunca para o que não lhe agrada.

— Que queria dizer com aquilo? pensou Tamara. Ter-se-á aqui que fechar os olhos para tanta coisa?

Resolveu prestar atenção à conversa dos outros. — Por que não tomas parte, Gritzko? — perguntou a condessa Olga. Asseguro-te

que vai ser muito divertido e Taciana me disse que os prêmios são lindos. — Eu ficar grudado a uma mesa de bridge três noites seguidas? exclamou o

príncipe. Mon Dieu! Conformar-me com as companhias que a sorte me reservasse, sem poder escolhê-las? Olga, sinto muito... Mas em todos os jogos em que tomo parte na vida, pretendo ter o direito de escolher eu mesmo a companheira.

— Sempre o mesmo pretensioso! exclamou a condessa. Quando chegaram à estação, o carro da princesa Vera ali os estava esperando, e,

da mesma forma, o trenó dos Gleboff. — Adeus, e muito obrigada por consentir em ter-me levado — disse Tamara, quando

apertava a mão da condessa Olga. Em seguida, o príncipe levou-a até o carro, perguntando-lhe se teria algum

inconveniente em acompanhá-la até a casa. Quando estavam comodamente sentados no confortável automóvel, o príncipe

permaneceu durante algum tempo calado, e, a cada vez que Tamara se atrevia a formular alguns comentários, respondia maquinalmente. Afinal declarou:

— Suponho que irá a esse torneio de bridge em casa dos Varinshkine, não? Trata-se de um espetáculo que parece ter sido organizado especialmente para as pessoas como a senhora.

— Por que? replicou Tamara. Odeio o bridge. — É verdade, esquecia-me disso; mas Tantine a levará de qualquer forma. Se eu

não achar nada mais interessante, é possível que vá algumas noites assistir ao torneio, mas, pensando bem, tenho-me portado admiravelmente na última quinzena e será necessário que goze um momento de liberdade ...

— Que quer dizer com isso, príncipe? — Quero dizer que sinto necessidade de me libertar por algum tempo da vida

civilizada, para dar expansão aos meus instintos selvagens. Sempre procuro esses momentos de liberdade, quando alguma coisa me obriga a pensar e, ainda agora, no trem, quando a senhora olhava com expressão tão triste para os campos...

— Isso é que lhe fez pensar? — Sim mas não se preocupe com isso, meu anjo. Adeus! Haviam chegado à casa de Gritzko, que desceu do veículo, depois de beijar

novamente, de leve, a mão de Tamara. A inglesa prosseguiu a viagem até Serguiefskaia, levando no coração um grande

desejo de o ver novamente.

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E assim voaram as horas e passaram-se os dias. Fazia já quase três semanas que Tamara estava na Rússia e, desde o dia da

bênção das águas, havia assistido a um sem número de diversões. O luto da corte impedia a realização de grandes bailes, mas abundavam os jantares, as partidas de bridge e as recepções. Noites após noites, Tamara via as mesmas pessoas, e, bem depressa, já as conhecia todas. Mas depois da cerimônia de Tsarkoi, passaram-se vários dias sem que visse o príncipe. Sua madrinha explicou-lhe que os deveres militares o ocupavam muito e quando, finalmente, os dois se encontraram em uma festa, foi em presença de tantas pessoas que Tamara não teve a menor ocasião de falar-lhe.

— Isto é uma estopada! exclamou o príncipe, ao ver a sala cheia de gente. Dez minutos depois se despedia e não se tornaram a ver senão uma semana mais

tarde, em um jantar na Embaixada Britânica. Nessa ocasião Gritzko esteve frio, respeitoso e quase banal. Tamara percebeu que,

naquele papel, ele não tinha para ela o mesmo interesse que quando se apresentava em seu verdadeiro caráter de meio selvagem.

Durante todo o torneio de bridge, Gritzko não se mostrou uma só vez. — Por que nos encontramos tão raramente com o príncipe Milaslavski todas as

vezes que saímos, madrinha? — perguntou Tamara, um dia. Eu pensava que todas as pessoas de suas relações eram íntimas amigas dele.

— São de fato, Tamara, respondeu a princesa. Gritzko, porém, é um dos rapazes mais esquisitos que já encontrei em minha vida. Quando, um dia, o censurei porque não aparecia nos bailes, ele perguntou-me com a maior naturalidade se eu o tomava por um imbecil, ou por um macaco de circo. Cheguei à conclusão de que sai quando em verdadeiro desejo de o fazer ou de nos ver. Sua presença às reuniões sociais depende, portanto, apenas de sua própria vontade, não se deixando guiar por nenhum preceito social ou obrigação.

— E por que toleram isso dele? — Não sei. É certo que não aceitaríamos semelhante comportamento de ninguém

mais com Gritzko, porém, é diferente; ele é um privilegiado. Não sabes disso porque ainda não o conheces bem mas esse rapaz tem uma arte especial para conquistar corações. Muitas vezes é capaz de fazer as coisas mais disparatadas, causando-me terríveis desgostos; depois, vem aqui, encosta a cabeça em meu peito e chama-me “Tantine”. Como, afinal, não passo de uma pobre velha, não tenho a energia suficiente para repreendê-lo nem resistir-lhe.

De outro lado, quando alguém está doente, ou julga-se infeliz, ninguém seria capaz de a esse alguém demonstrar mais afeto, carinho e ternura do que ele. ..

A princesa deteve-se um momento e depois murmurou como em sonho: — No amor deve ser uma criatura divina! Tamara tomou outra xícara de chá e fitou os olhos nas chamas da chaminé. Estava

envergonhada ao perceber o interesse que lhe despertara aquela conversação. — Taciana Shebanotí está loucamente apaixonada por ele. Pobrezinha! Eu não

creio que, realmente, lhe tenha dado a menor esperança, prosseguiu a princesa. Vi-o chegar a um baile, e, quando todas as moças ansiavam que ele as tirasse para dançar,

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veio convidar-me a mim e à velha condessa Nivenska, passando a metade da noite em agradável conversação conosco, sem reparar, ao que parecia, na presença das outras pessoas.

— Pelas suas informações, parece-me que ele deve ser a pessoa mais enjoada que existe no mundo, madrinha! exclamou Tamara. Ele desgosta a todos e ninguém tem a necessária energia para fazer-lhe frente. No entanto perdoam-lhe sempre. ..

— Mas o certo é que tem também o seu lado agradável, prosseguiu ,a princesa com o fito de defender o prestígio de seu favorito. Provavelmente tem estado ocupado durante todo esse tempo no estudo de algum problema militar e a isso se deve o fato de não o termos visto em parte alguma.

E vendo no olhar de Tamara uma expressão de desdém: — Não faças um ar tão desdenhoso, minha filha, é possível que também o

compreendas algum dia. — Impossível! declarou Tamara. Em realidade, as suposições da velha princesa, acerca das ocupações de Gritzko,

eram muito otimistas. Até o fim da semana, correu a notícia de que, na casa de Fontonka, se havia realizado uma orgia tremenda, com bailarinas em pêlo, animais selvagens e outras coisas inauditas, A princesa suspirou tristemente ao ter conhecimento desses rumores, fazendo tudo quanto estava em seu alcance para diminuí-lo.

— Pobre Gritzko! suspirou. Quando criará juízo? Quanto ao interesse que Tamara sentia por ele, não diminuiu, apesar das notícias

que lhe foram comunicadas. Enquanto isso, os dias sucediam-se sem que o causador de tantos comentários

aparecesse em nenhuma recepção. Tamara já começava a conhecer melhor a sociedade de S. Petersburgo, podendo

fazer um conceito mais exato do ponto de vista nacional. Compreendeu que se tratava de um povo maravilhosamente primitivo, dotado da simplicidade que só se pode encontrar naqueles que ainda se acham no primeiro degrau da escada social. Soube que os russos se mostravam amáveis e bem dispostos para com os estrangeiros que conseguiam conquistar-lhes a simpatia, não se deixando, todavia, impressionar pelos que se lhes tornavam indiferentes.

Pareciam dotados de uma faculdade extraordinária, que lhes permitia selecionar, desde logo, as pessoas que lhes mereciam a confiança. Quando Tamara conversava seriamente, encontrava, mesmo da parte das pessoas em aparência mais frívolas, aquele mesmo quê de melancólico e misterioso, como se estivessem apalpando nas trevas, com o fim de alcançar qualquer coisa de espiritual que as atraísse. Seus pontos de vista em matéria de princípios pareciam não ter limites, tal qual o seu vastíssimo país, onde em milhas e mais. milhas de território não se via um marco de fronteira.

Todo o inesperado era possível em suas vidas. Tamara percebeu que o encanto e a fascinação, que sentia nos primeiros momentos, iam aumentando incessantemente.

Afinal um dia, às últimas horas da tarde, o príncipe Milaslavski apresentou-se novamente no horizonte de Tamara. Encontrava-se ela no salão de sua madrinha, quando Gritzko abriu a porta, sem hesitação e, depois de a cumprimentar, disse:

— Quer servir-me um pouco de chá? Encontrei com a princesa no hall e ela me

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disse que a senhora estava aqui. Comecemos, pois, pela xícara de. chá. Tamara serviu a bebida e recostou-se no espaldar do sofá que se encontrava sob o

formoso grupo de Falconet, glória do salão azul da casa Ardacheff. A moça sentia-se muito serena. As duas semanas sem emoções, durante as quais a sua vida se limitara a uma série de pequenas diversões, lhe proporcionaram uma nova tranqüilidade.

— Qual o conceito que a senhora forma atualmente de nós? — Acho-os bem estranhos — declarou Tamara. São muito inteligentes, e, não raro, brilhantes. Entretanto, toda essa inteligência

pode, em cinco minutos apenas, desaparecer de suas feições, da mesma forma que o interesse das conversações, para os senhores se dedicarem, exclusivamente, a jogar bridge.

— Isso acontece, porque somos ainda um povo primitivo, não estragado pela civilização. O bridge é para nós um brinquedo novo. Mais tarde esse entusiasmo passará e virá outro brinquedo.

O príncipe deteve-se um momento e prosseguiu em tom de voz muito diferente: — Creio que os ingleses têm muitas outras válvulas para dar saída ao excesso de

vitalidade. Por isso, não podem ser juízes das outras nacionalidades, que não se encontram na mesma situação. Tinham, por exemplo, um magnífico sistema de governo. Levaram quase oitocentos anos a aperfeiçoá-lo, tornando-o a admiração do mundo in-teiro, mas agora permitem que os socialistas e os ignorantes, caçadores de cargos públicos, o destruam e o arruínem de todo. Essa é, sem dúvida, uma loucura maior do que a de se entusiasmar com o bridge.

Tamara suspirou profundamente. — Já esteve alguma vez na Inglaterra, príncipe? Gritzko sentou-se no sofá ao seu lado. — Ainda não. Mas espero ir lá um dia. Do continente, só conheço até Paris. — Com certeza nos acharia todos muito aborrecidos, calculistas e retraídos — disse

Tamara. É possível que lhe agradem as caçadas mas, não sei por que, sinto que a Inglaterra não é um ambiente para o senhor.

Gritzko levantou-se vagarosamente, aproximou-se da chaminé e nela se apoiou, enquanto tomava o chá em atitude pensativa e havia um quase ar de bravata no tom despreocupado com que disse a seguir:

— Sabe que cometi um ato muito ridículo? Estou muito triste com isso e tenho necessidade de sua simpatia. Machuquei o meu cavalo árabe. Lembra-se daquele cavalo, Sulimã, que eu montava naquela noite da Esfinge?

— Lembro-me. — Organizei uma pequena festa com alguns amigos. Todos estávamos um tanto

alegres. Foi uma reunião que, certamente, não teria merecido a sua aprovação mas, a verdade é que nos divertimos muito. Alguém desafiou-me dizendo que eu não era capaz de montar a cavalo na cavalariça e chegar com o animal até o salão.

Gritzko reparou naquele tom e continuou cheio de orgulho: — Cumpri, e não foi nada difícil mas, ao pisar no tapete, o cavalo escorregou e

torceu duas patas. Queria que a senhora tivesse visto com a elegância de um perfeito cavalheiro, evitou cuidadosamente todas as cadeiras, até que, por fim, colocou as patas

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dianteiras sobre o sofá. — O senhor errou a sua profissão! exclamou Tamara, recostando-se no sofá e

pousando os olhos na figura do príncipe, vestido nesse momento com seu impecável traje de passeio, de cor azul. Que triunfos não obteria num hipódromo!

O príncipe levantou a cabeça em seus grandes olhos apareceu uma expressão de cólera, como Tamara não havia visto ainda em ninguém.

— Eu pensava que a senhora se tivesse derretido um pouco na nossa neve. Mas agora vejo que continua a ser sempre a mesma múmia.

Tamara pôs-se a rir. Pela primeira vez, era ela que levava vantagem. Gritzko avançou mais um passo para ela. A expressão de raiva persistia ainda em

seu semblante, mas os olhos traíam uma intensa mágoa. Ela fitou-o, e um sentimento de indignação encheu-lhe a alma, ao ver como aquele

homem desperdiçava a vida. — Como está desperdiçando a sua vida! disse ela. Ser um homem livre e

proprietário de grandes extensões de terra! Ter milhares de camponeses sob o seu mando, e com a oportunidade de os transformar em pessoas úteis e boas! E pensar que um homem, que possui tudo isso, passa os seus dias em diversões desta ordem, subindo até ao primeiro andar de sua casa, no seu cavalo favorito, com o perigo de quebrar o pescoço do animal e o seu próprio. Francamente, príncipe!

Novamente Gritzko se ergueu, como se ela lhe tivesse vibrado uma chicotada. Em seus olhos não diminuirá o estranho brilho.

— Não permito que ninguém censure a minha conduta! declarou ele. Se me desse na veneta de entrar nesta sala com um urso e deixar que ele a estraçalhasse, eu não hesitaria.

— Acredito, respondeu Tamara desdenhosamente. Estaria de acordo com o resto. O príncipe levantou a cabeça e ambos se fitaram pelo espaço de uns segundos,

como dois felinos em luta. Felizmente, nesse momento, a madrinha Vera entrou. Imediatamente apareceu o sorriso nos lábios de Gritzko. — Mrs. Loraine me esteve passando um sermão. Acha que estou perdendo tempo

na escolta imperial e que deveria entrar para um circo. Tamara permaneceu em silêncio. — Por que há de estar sempre discutindo, Gritzko? disse a princesa ressentida. O príncipe aproximou-se da princesa e beijou-lhe a mão. — Não fique aborrecida, Tantine. Não discutimos, ao contrário, somos os melhores

amigos. Apenas manifestamos mutuamente os nossos defeitos. Vim esta tarde para lhe perguntar se querem ir a Milaslaw na próxima semana. A senhora (e dirigiu-se a Tamara) precisa conhecer também a cidade de Moscou. Poderíamos ir até lá, nem que seja para demorar somente uma noite. Quero que veja como amanso os meus camponeses a knut e como os mato de inanição. É uma boa lembrança a levar para a Inglaterra.

— Naturalmente tudo isso me será muito agradável, respondeu Tamara. E, desde já, apresento-lhe meus agradecimentos pelo convite.

— Terei muita honra, respondeu o príncipe, inclinando-se. Tantine, deixo ao seu cuidado o arranjo de todos os preparativos.

— Vou verificar se não tenho algum compromisso mas, desde agora te digo que

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farei tudo que estiver em meu alcance para satisfazer o teu pedido. Posso responder-te esta noite. Minha afilhada ainda não conhece os bailados nacionais, e esta noite resolvemos assistir aos mesmos, em companhia do príncipe Miklefski e de Valonne.

— Então au revoir! Gritzko beijou a mão de ambas e retirou-se. Quando a porta se fechou nas suas costas e as duas mulheres se encontraram a

sós, a princesa perguntou: — Tamara, que foi que disseste a Gritzko para perturbá-lo tanto? Eu, que conheço

cada uma das rugas de seu rosto, posso assegurar-te que, desde o dia em que perdeu a mãe, nunca o vi tão emocionado como hoje.

Tamara descreveu com todos os pormenores a cena que se havia desenrolado entre eles. A princesa Vera escutou-a em silêncio, e, finalmente, respondeu:

— Querida, tocaste em uma das suas fibras mais íntimas. Sua mãe era uma santa mulher. Os vassalos de Milaslaw adoravam-na. Era muito bonita e carinhosa. Depois do falecimento do marido, passou quase toda a vida em Milaslaw. Criou escolas para ensinar os camponeses a ler e a escrever estimulou-os em todos os sentidos, e cuidou do bem-estar e da saúde deles. Seu maior desejo consistia em que Gritzko seguisse o seu exem-plo. A extinta princesa não era uma liberal avançada, como se poderia crer; mas possuía um coração tão bondoso que não hesitou em fazer tudo quanto estivesse ao seu alcance para aumentar e assegurar a felicidade das pessoas que dela dependiam.

— E ele não continuou a obra dela? — perguntou Tamara. — Não digo que fizesse isso, suspirou a princesa. Mas os companheiros tão alegres,

com os quais sempre está, não lhe deixam tempo suficiente para se preocupar com essas coisas. Oh, Tamara, se soubesses como estimo esse rapaz e como vou reparando que, pouco a pouco, ele vai perdendo todas as boas qualidades morais, compreenderias certa-mente o meu pesar.

— A senhora é muito boa, querida madrinha... Então ele deve ser muito fraco. — Não, não é fraco. Mas há nele um quê de diabólico. Tem uma vontade de ferro e

jamais falta à palavra. O difícil é fazer com que fale a sério e empenhe a palavra. Ninguém ainda conseguiu isso… Muitas vezes tenho pensado que talvez o pudesse salvar um amor muito grande, um amor extraordinário ...

Tamara baixou os olhos e torceu as mãos. — Há bem pouca probabilidade de acontecer isso, não é, madrinha? A princesa suspirou. — Eu gostaria que ele se apaixonasse por ti. Meu irmão Alexis tinha esse mesmo

temperamento, e, na temporada que estivemos em Londres, em que eu e sua mãe nos divertimos tanto, fez das suas... Os três estavam sempre juntos... Alexis encontrou a morte num duelo.. . Tudo isso é muito triste!

Tamara acariciou a mão da madrinha. — Minha boa e querida madrinha! exclamou ela. Depois ambas puseram as tristezas de lado, dirigindo-se aos respectivos quartos de

vestir. Nas três semanas que durava a estada de Tamara na Rússia, estabelecera-se entre

ela e a sua madrinha uma sólida amizade.

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CAPITULO 10 O espetáculo dos bailados foi brilhante, como costumava sê-lo todos os domingos à

noite. A vasta sala, com seus camarotes providos de cortinados de seda azul, os numerosos uniformes de cores vistosas e as damas com seus decotes, embora todas de negro, tudo dava ao conjunto um aspecto alegre, quase semelhante ao de uma noite de gala. Além disso, era muito agradável poder distrair a vista do espetáculo que se desenrolava no palco, e ao mesmo tempo conversar.

Tamara, no entanto, não sentia prazer. Uma vaga sensação de intranqüilidade dela se havia apoderado. Desgostava-a ter que admitir que o príncipe era causador disso. Não podia encarar o futuro, porque um vago temor a embargava. Sabia que, quando ele estava a seu lado, ela experimentava uma emoção vaga e que aquele homem absorvia inteiramente os seus pensamentos. Certo, ele não a amava realmente. Mesmo que a amasse, como poderia ela ter esperança de ser feliz perto de um homem de temperamento tão selvagem?

Não, era preciso que se dominasse, que neutralizasse a influência que aquele homem exercia sobre ela, e, caso não o conseguisse, sempre lhe restava o recurso de se ir embora. Sua pátria, ainda que falta de interesse, possuía, entretanto, a vantagem de ser um lugar tranqüilo e seguro. . .

Com essas sábias reflexões no espírito, tratou de fixar a atenção no palco mas, inconscientemente, a sua vista parecia atraída a cada instante por uma silhueta alta e esbelta, vestida de azul, que se achava em uma das primeiras filas, em companhia de al-guns oficiais da Guarda.

Quando caiu o pano e o príncipe, em vez de se reunir a elas no camarote, encostou-se tranqüilamente no tabique da orquestra, percorrendo com o binóculo a assistência, Tamara sentiu que o coração lhe saltava dentro do peito e tratou de se interessar pela conversação das demais pessoas que se achavam no camarote rendendo homenagem à princesa.

Gritzko nem sequer olhou para o lugar onde elas estavam. Estava rindo com os amigos, e seria impossível imaginar-se alguém mais despreocupado, mais atraente e mais provocante.

— Não me admira que Taciana Shebanoff, as atrizes e outras mulheres estejam apaixonadas por ele, pensou Tamara.

No mesmo instante, sentiu uma onda de indignação. Firmemente resolveu que não aumentaria o número das. admiradoras do príncipe. Não queria ser um brinquedo para esse homem; seria senhora de si mesma e de seus pensamentos!

Todos esses sentimentos, em que havia também uma grande dose de amor próprio ofendido, lhe estragaram a apreciação do segundo ato. Ao iniciar-se o intervalo que se

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seguia a esse ato, as duas senhoras se retiraram para o pequeno vestíbulo de seu camarote. Tamara deu graças a Deus porque dali não via o príncipe.

A alegria de Tomara, entretanto, foi de curta duração, pois, repentinamente, abriu-se a porta do seu camarote, e Gritzko entrou. Cumprimentou Tamara com tranqüilidade e indiferença, e depois de desalojar com a maior calma o conde Valonne, sentou-se ao lado da princesa.

Valonne era um homem muito simpático e Tamara sentia por ele uma amizade sincera. O conde começou a falar-lhe, e ela respondeu-lhe às perguntas com a maior afabilidade, enquanto aplicava os ouvidos para escutar a conversa do outro par. A conversa foi assim:

— Tantine, sinto-me completamente às avessas esta noite. Quer vir cear comigo, depois dos bailados?

— Que aconteceu, Gritzko? O príncipe inclinou-se para a frente, encostando o queixo na mão. — Sua convidada foi dura comigo — declarou ele. Mas devo admitir que tinha razão.

Estou malbaratando a minha vida. Tenho estado a pensar em minha mãe e parece-me que, em muitas coisas, ela desaprovaria o meu comportamento, se ainda vivesse. Essa idéia esteve a ponto de me transtornar e agora sinto a necessidade de fazer alguma coisa para esquecer. De modo que se a senhora não quiser vir cear comigo.. .

— Oh, Gritzko!... exclamou a princesa. — Já telefonei para casa, ordenando que preparassem tudo. Sei que não lhe

agradam os restaurantes, Tantine. Diga se aceita o meu convite. Os outros já estão convidados.

O príncipe inclinou-se para beijar-lhe a mão e a princesa não pôde deixar de atender ao pedido.

— Se queres que eu vá a tua casa, tens que me prometer que não brigarás mais com minha afilhada. Estou certa de que a amedrontas e a perturbas, Gritzko... Promete-mo!...

O interpelado começou a rir. — Eu perturbá-la? Não, ela é demasiado fria e boa para isso. Todos entraram naquele momento no camarote e Gritzko sentou-se ao lado de

Tamara. A moça sentiu aquele indefinível mal-estar físico apoderar-se novamente dela. Era então verdadeira a frieza que se lhe atribuía? Se assim fosse, como se explicaria o tremor que naquele momento lhe sacudia todo o corpo?

— Eu quisera saber, começou o príncipe, se a senhora tem realmente coração se, sob essa aparência velada, há realmente vida...

Tamara voltou-se para ele, com uma expressão apaixonada na voz, e respondeu: — Naturalmente que há... O príncipe se inclinou para ficar mais próximo dela. — Esta noite — disse ele, não devemos brigar. Desejo tratá-la como se fosse uma

irmã, uma amiga… Necessito de palavras de alento e carinho, porque estou muito triste... Como é natural, toda a capa de gelo, que parecia envolver a moça, desapareceu no

mesmo momento A voz daquele homem era tão agradável e havia nela uma sinceridade tal, que as suas palavras, pronunciadas pausadamente, lhe chegaram imediatamente ao

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coração. — Não fique triste, respondeu ela. Talvez lhe tenham parecido um tanto indelicadas

as minhas palavras de hoje afirmo-lhe, porém, que só as disse, porque... lastimo que o senhor proceda assim.

— Suas palavras feriram-me profundamente. Nós, os russos, somos muito sensíveis a essas coisas. Se fosse com um homem, eu o teria matado.

— Senti-me revoltada com o que o senhor me disse — declarou Tamara, olhando para o solo. Era tão horrível, tão bárbaro, tão infantil, para ser pronunciado por um homem que realmente possui um cérebro. Se fosse uma dessas pessoas puramente animais, como há tantas, o fato não teria importância mas o senhor… Não torne a cometer jamais essas loucuras...

Tamara deteve-se. Em seus lábios via-se um sorriso de ternura e em suas faces assomou um delicioso rubor. Compreendeu que ele não deixaria de penetrar o verdadeiro sentido de suas palavras.

O príncipe permaneceu calado durante alguns minutos, fitando-lhe os belos olhos azuis. Tamara não sabia em que ele estaria pensando naquele instante. Essa situação produziu-lhe um estranho mal-estar, e ela sentia-se ligeiramente envergonhada de si mesma. Por que havia consentido em falar-lhe de novo, uma vez que de antemão sabia que todo o conselho seria inútil? Ergueu-se na cadeira, apoiando-se no espaldar.

Então Gritzko tomou-lhe uma das mãos, e baixando a voz: — É sério o que me está dizendo? — É, respondeu Tamara, tentando retirar a mão. — Acho horrível vê-lo desperdiçar

a sua vida assim... um grande homem... Milaslavski não soltou a mão de Tamara. Em vez disso, apertou-a mais. — Afinal de contas, a senhora é um encanto! Tentarei seguir os seus conselhos, e,

se conseguir, que recompensa me dá? — Que recompensa lhe poderia eu dar, príncipe? — Dir-lhe-ei, quando chegar a ocasião. Assim a paz entre ambos pareceu haver-se restabelecido. Quando o pano caiu de

novo sobre a cena, iniciando o último intervalo, o príncipe saiu. Não voltou ao camarote, esperou as senhoras no vestíbulo para conduzi-las a casa. — Tantine — disse ele, estive hoje com Stephen Strong Sabe que nos separamos

em Trieste. Hoje ele chegou a S. Petersburgo. Veio em companhia de um primo que se diz lord, não sei do quê, e eu convidei-os a cear em nossa companhia. Aceitaram, prevenindo-me, porém, que chegarão um pouco tarde...

— Não é Mr. Jack Courtray, por acaso, o primo de Stephen Strong? — perguntou Tamara muito interessada. Pergunto-lhe porque Mr. Strong tem um primo com esse nome, que vive no campo, perto de minha casa, e está viajando sempre pelo mundo inteiro.

— Creio que é isso mesmo — Courtray. Conhece-o? Algum amigo de infância? — Sim. Brincamos muitas vezes juntos. Além disso, foi companheiro de estudos de

meu irmão Tom, no Colégio de Eton. Um dos meus mais velhos amigos... — Que surpresa agradável! — De fato!

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Naquele instante a sua atenção foi desviada, como era sempre que se via nas esquinas grandes fogueiras a arder.

— Alegro-me em ver que também os pobres têm alguma coisa para aquecer-se. — Quando a temperatura desce abaixo de doze graus, é difícil achar-se prazer na

vida — disse o príncipe, e muitas vezes o frio se torna tão intenso, que é de gelar. Quando chegaram à casa do príncipe, este anunciou que a ceia tardaria ainda meia

hora, e, como todos estavam já reunidos, decidiram formar os pares para o bridge. — Com permissão das demais senhoras — disse o príncipe, vou mostrar a Mrs.

Loraine os meus quadros, pois ela muito admira a nossa Catarina e Pedro, o Grande. O príncipe começou a percorrer, ao lado de Tamara, o salão onde todos se achavam

reunidos, fazendo comentários sobre vários quadros. Finalmente chegou a uma enorme porta dupla, que abriu convidando Tamara para entrar.

— Este é o salão de baile, explicou o príncipe, e, como tal, muito pouco tem de interessante mas nos aposentos situados atrás deste salão tenho dois interessantíssimos quadros de Rembrandt e alguns objetos de arte que hão de agradar-lhe, e outras relíquias do passado.

Falava com inteira naturalidade e em sua voz não havia nem sombra de galanteio. Tamara aceitou a nova situação e seguiu-o sem desconfiança.

Atravessaram vários salões, até que chegaram a um aposento confortavelmente mobiliado e que tinha, em conjunto, o cunho bizantino. Sobre o soalho, viam-se várias e magníficas peles de urso, e, contra as paredes, estantes baixas repletas de livros. Acima delas, uma porção de armas. No lugar da chaminé chamava a atenção a presença de um famoso quadro de Rembrandt, e, na parede oposta, outro do mesmo artista. Tamara reparou logo, não sem certa surpresa, que ali não se encontrava uma fotografia sequer de artistas ou dançarinas, como tinha suposto no primeiro instante.

O príncipe conversava com sinceridade. Referia-se aos quadros e demonstrou ter perfeito conhecimento acerca de sua técnica. Um crítico de arte, certamente, não se teria expressado a respeito com maior cultura.

De repente a vista de Tamara pousou em uma espada de estranha forma, a qual se encontrava abaixo do primeiro quadro. O formato e o acabamento atraíram-lhe a atenção e a moça perguntou a Gritzko a história daquela arma.

O príncipe tirou a espada da parede e colocou-a na mão da visitante. — Essa espada pertenceu a uma pessoa famosa. Foi de um cossaco que se

chamava Stenka Razin, um bandido, mas, também, um grande chefe. Amava uma princesa persa que havia raptado, e, um dia, encontrando-se a bordo de seu barco nas águas do Volga, um tanto embriagado, tomou-a nos braços. Era uma linda mulher, delicada e meiga. O bandido tinha mais apego a ela do que a toda a sua fortuna.

“De repente, uns pensamentos loucos passaram pela mente do homem, e depois de uma oração de agradecimento ao Volga, que tantas riquezas lhe havia proporcionado, lembrando-se de que ele, em troca, nada lhe dera até então, nada que tivesse valor, levantou nos braços a mulher e atirou-a na água”.

— Que monstro! exclamou Tamara, soltando a arma. O príncipe apanhou a arma e tirou-a da bainha. — Até aquele dia, os cossacos tinham ainda em seu íntimo uma fibra selvagem. Não

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seja portanto severa comigo só por causa do caso do cavalo. — E seria capaz de semelhante barbaridade, príncipe? — perguntou Tamara,

sentando-se em uma das poltronas. Ele tornou a colocar a espada, em seu lugar e respondeu com a maior calma: — Sim, creio que seria capaz de tal crueldade — declarou. Poderia até ser brutal, se

o ciúme me dominasse, ou se a mulher que eu amasse me fosse infiel mas, não seria cruel para com ela, se, conduzindo-me dessa forma, pudesse prejudicar-me a mim mesmo. No caso de Razin, por exemplo, este perdeu uma fonte de prazer, pelo fato de ter cedido, em dado momento, a um impulso. Eu teria conservado a mulher até me cansar dela, ou até notar-lhe alguma frieza. Não está de acordo comigo?

— Que história horrível! disse Tamara. Não compreendo amor assim. Para mim, o amor significa alguma coisa de terno e fiel, que não se permite jamais causar o menor dano à pessoa amada.

O príncipe olhou-a gravemente: — Ultimamente, tenho procurado estudar-me a esse respeito. Que idéia faz de mim

nesse ponto? Tamara decidiu não se deixar dominar pelas emoções, ainda que, naquele instante,

sentisse o coração bater violentamente. — Acho que seria capaz de torturar, e, depois acariciar. — Certamente acariciaria. Gritzko começou a passear pela sala, falando de uma forma tão veemente que as

palavras pareciam brotar-lhe do mais íntimo do coração: — Sim, exigiria uma rendição incondicional por parte da mulher, e no caso de ela

recusar, sinto que poderia tornar-me cruel. Se notasse que o seu amor era frio e caprichoso, abandoná-la-ia. Mas, se sentisse que ela me amava verdadeiramente, oh, meu Deus, como me sentiria feliz!...

— Pense então como ela havia de sofrer se o visse fazer loucuras — disse Tamara. O príncipe estacou imediatamente.

— Não, senhora ninguém faz loucuras quando se sente feliz. Esses rompantes não passam de explosões de uma alma angustiada. Mas, quando se está satisfeito... No deserto do Egito, pensei, por um momento, haver encontrado tranqüilidade e ventura. Estou cansado desta vida aqui. A quoi bon? dizia. Sempre a mesma monotonia… Mas, desde que a conheci, pensei que, talvez, a senhora pudesse ensinar-me a ser feliz em seu país...

— Entre os russos, há muitos que parecem desequilibrados, continuou Tamara. — À primeira vista, parecem educados, instruídos, e, até superiores mas, um instante depois, escapam pela tangente, demonstrando uma falta de disciplina que, em minha terra, não se toleraria em uma criança.

— É verdade. — Parece que, quando amam, querem forçosamente ser correspondidos, e, quando

odeiam, sentem necessidade de matar. Há tormentas e paixões em suas almas, combinadas com a alegria e a irresponsabilidade características das crianças e, por cima disso tudo, as boas maneiras e os sorrisos, formando uma coberta debaixo da qual parece sempre existir um vulcão pronto a explodir.

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— Esta noite sinto que um desses vulcões poderia irromper em meu íntimo. O príncipe aproximou-se ainda mais de Tamara e pareceu querer dizer-lhe qualquer

coisa mas, quando ia abrindo a boca, conteve-se. A moça não se moveu fitou-o gravemente. — Parecem todos não ter um objetivo na vida. Não se interessam pela política de

sua pátria. A única preocupação parece ser a de matar o tempo. Por que? — Nossa pátria! exclamou o príncipe, deixando-se cair na cadeira mais próxima.

Ser-me-ia muito difícil explicar-lhe isto. Nos antigos tempos da servidão, tudo corria muito bem. Podia-se, então, ser um bom senhor, pai de todos os seus servos mas, atualmente. . .

Levantou-se de novo e começou a passear nervosamente pela sala. — Agora, há tantas questões a resolver! Se eu fosse pensar em todas elas,

provavelmente ficaria doido. É preciso considerar que, antes de tudo, sou um soldado. De forma que não posso intervir em assuntos políticos.

— As coisas não são como deseja? — Não. Não são. Mas, como já lhe disse, não quero intervir nelas. Só obedeço ao

meu imperador, e juro fazê-lo até o dia da minha morte. Tamara compreendeu que tinha bulido em águas demasiadamente profundas. No

rosto do príncipe havia uma intensa melancolia. Nunca ela se sentira tão atraída por ele. Observou-o. Ele tinha um quê de extraordinariamente nobre na fronte e no porte da cabeça. Quem poderia adivinhar os pensamentos que agitavam aquela mente? Gritzko levantou-se de novo, e sentando-se ao lado de Tamara, com a agilidade e a graça de um felino, tomou a mão da moça e beijou-a.

— Não me faça pensar. O problema é grande demais para um só homem. Não vou com liberais, nem com qualquer outro partido revolucionário. Pelo contrário, pendo muito para o outro lado. Compreendo que os benefícios, para este país, deveriam ter vindo de outra maneira; mas que a nossa pátria saia como puder da situação atual. Para mim, o único dever é o de obedecer ao meu chefe. Do resto não cuido.

Seus olhos, que fitaram nos de Tamara, assemelhavam-se a grandes lagos obscuros de inquietação e sofrimento.

Ela não retirou a mão, e o príncipe tornou a beijar-lha. Nesse momento o relógio bateu uma hora e Tamara levantou-se. — Príncipe, e a nossa ceia? Vamos, esqueçamo-nos de que por um momento

falamos seriamente, e vamos comer. Gritzko levantou-se. — Provavelmente já começaram a cear sem nos esperar. Já me conhecem. Mas a

senhora tem razão. Basta de assunto sério. Agora vamos rir um pouco. Tomou-lhe a mão. Correndo atravessaram todos os salões, para chegar, finalmente,

àquele em que estavam os demais, ocupados, como havia dito o príncipe, em fazer honra à mesa servida.

A ceia estava muito alegre. A princesa Sônia e Serge Grekoff cortavam fatias de presunto cru, enquanto os outros tomavam chá, vodka, ou champanhe. Os criados iam de um a outro lado, com grandes bandejas cheias. Não reinava a menor cerimônia naquele ambiente cada um dos convidados se conduzia como se estivesse em sua própria casa.

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Ao lado de Olga Gleboff, inteiramente à vontade, estava lord Courtray. Um pouco mais distante, a princesa Ardacheff conversava com Stephen Strong.

— Gritzko, não pudemos esperar mais tempo — declarou a condessa Olga. — Nunca imaginei encontrá-la aqui, Tamara! Que boa surpresa! disse Jack Courtray.

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CAPITULO 11

Jack Coutray era um excelente esportista e, geralmente, tinha muita sorte com as mulheres. Seus métodos eram primitivos e diretos. Quando não estava caçando ou atirando ao alvo, dedicava-se a alguma conquista, indo diretamente aos fins com uma simplicidade admirável. Quando se cansava de uma mulher, procurava logo outra.

Os homens consideravam-no um ótimo companheiro. Em uma palavra, Jack Courtray era um belo animal, a que a educação e tradição de vários séculos haviam transformado num gentlemam.

Sua ignorância não poderia ser maior. Para ele a geografia universal não tinha sentido senão esportivo. A índia eram os seus tigres e elefantes; não tinha cidades nem tradições interessantes, tinha era a selva bruta para caçadas. A África eram os leões, a Áustria as camurças, a Rússia os ursos.

As mulheres, ou eram irmãs, ou velhas amigas e camaradas, como Tamara, ou figuravam na categoria de esporte. Esporte de menos importância, a que se entregava quando não tinha melhor caça ao alcance de suas espingardas.

O ambiente não podia ser, naquele momento, mais agradável para ele. Tinha diante de si a perspectiva de poder dedicar-se à caça do urso, dentro de poucos dias; e, ao mesmo tempo, às alegrias problemáticas de alguma aventura amorosa.

Quando Tamara, sem pensar absolutamente no sentido que pudessem dar ao seu gesto, ocupou a cadeira vaga ao lado dele, imediatamente Jack começou a servi-la com a aparente solicitude de um namorado, colocando-lhe no prato as fatias de presunto mais finas que pôde cortar. Se a moça tivesse levantado naquele momento os olhos, certa-mente teria notado um estranho brilho nos do príncipe, que a fitava atentamente.

— Reunião encantadora — disse lord Courtray. Sua voz era agradável. Depois das emoções dos últimos dias, Tamara sentiu

verdadeiro prazer em poder conversar com o amigo. Mas as atenções de Jack Courtray estavam destinadas a ter maior importância do

que Tamara imaginava, pois se ela tivesse olhado para Gritzko, teria notado que ele, repentinamente, concentrou a atenção em Taciana Shebanoff.

Taciana era, sem dúvida, a mulher mais bonita de toda a reunião. Pequena, loura e graciosa. Havia-se divorciado um ano antes de um marido brutal, achando-se atualmente casada com um velho príncipe. Mas, amava apaixonadamente a Gritzko, e, embora nunca deixasse transparecer esse sentimento ao príncipe, os numerosos amigos deste lho disseram várias vezes.

Quanto a Gritzko, os sentimentos de Taciana não lhe interessavam absolutamente às vezes fazia-lhe a corte, outras vezes não.

Assim prosseguia a reunião, sem que ninguém pudesse prever que estaria destinada a ficar gravada em caracteres indeléveis na memória dos presentes.

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Quando todos acabaram de cear, passaram para outro salão de grandes dimensões. — Repara nesta sala, Tamara, porque é tipicamente russa — disse a princesa Vera

à afilhada. Tamara teve a impressão de uma igreja ortodoxa. Havia, a um canto, um grande

fogão de porcelana guarnecido de madeira. Uma das extremidades da sala tinha o soalho a descoberto na outra havia grossos tapetes persas. Aqui e ali enormes divas, e o mobiliário era completado por um órgão e uma pianola. Nas paredes, viam-se floretes cruzados, máscaras e tudo que é necessário a um assalto de esgrima.

O príncipe foi para a pianola e pô-la a tocar uma valsa. Depois veio tirar Tamara para dançar.

Da respeitosa amizade que lhe mostrara, já nada mais restava. Nunca lhe vira Tamara nos olhos uma expressão mais cruel, oriental e intensamente apaixonada.

Foi com verdadeiro sentimento de temor que a moça acedeu ao seu convite. O príncipe apertava-a com tal violência, que ela sentia até dificuldade em respirar.Tinha a sensação de estar flutuando no ar esmagada contra o peito do rapaz.

— Príncipe, pôr favor, estou sem ar, gemeu ela afinal. Gritzko deteve-se junto a uma poltrona, sobre a qual deixou a moça cair. Tamara

ficou uns segundos sem saber o que deveria fazer, e sem respirar sequer. Seu colo branco como a neve mostrava duas fileiras de manchas vermelhas, causadas pela impressão dos adornos de prata do uniforme do príncipe Milaslavski.

— Gostaria que essas marcas ficassem para sempre — disse o príncipe. Tamara recostou-se na cadeira, presa de tumultuosas emoções. Julgou que deveria

zangar-se e, de fato, zangou-se. Que idéia selvagem! Mas, ao mesmo tempo, sentia em seu íntimo uma estranha sensação; tinha o pulso a bater com extraordinária violência, tal como só nesses últimos tempos lhe acontecia.

—Tamara, que tem você no colo? — perguntou Jack Courtray, levantando-se e aproximando-se da moça.

Ela sentiu um grande alívio ao ver que as marcas podiam ser cobertas facilmente com o véu de gaze que levava em um braço, e, enquanto o fazia, respondeu com aparente indiferença:

— Não é nada, Jack. Vamos dançar! — Que rapaz simpático o príncipe! exclamou Jack Courtray, logo que principiou a

dançar. E alinhadíssimo para um estrangeiro. Gosto destes russos. — Sim, o príncipe é de fato muito simpático, respondeu Tamara. Pena que tenha

uma expressão tão selvagem. Não acha, Jack? — Cuidado com ele! Ambos riram-se e pararam de dançar porque a música cessou. O príncipe tinha saído do salão. — Gritzko foi falar ao telefone — disse a princesa Sônia. Vai mandar vir uma

orquestra cigana, e convidar gente do Clube e da recepção de Madame Sueboffs. Agora é que isto vai ficar animado!

Nenhum dos presentes pareceu notar que já passava de três horas da madrugada. — Conte-me alguma coisa desta gente, pediu lord Courtray, enquanto ambos se

sentavam em cômodos sofás.

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— Pois sim. Começarei por lhe dizer, Jaak, que os russos são as pessoas mais agradáveis que se pode imaginar. Pelo menos, a princípio. E não pense que, por se divertirem tanto e passarem as noites em claro, não sejam inteiramente sérios e dignos, quando as circunstancias o requerem. Eles têm o senso das conveniências. O seu encanto reside principalmente nisso. Não possuem também as pretensões de alguns de nós. Não têm a menor “pose”. Quando as pessoas lhes são simpáticas, são extrema-mente amáveis; em caso contrário, afastam-se. São capazes de formar um grupo e falar, entra risos e cochichos, do estrangeiro que lhes não caiu em graça, deixando a este esquecido em qualquer canto. Entre nós, semelhante conduta seria imperdoável; mas. aqui é natural. Demais, tenho podido observar que o coração de cada russo é como um vulcão, recoberto somente por uma pequena camada de esmalte.

— E os homens, como são em matéria de amor? Tamara sentiu que o rubor lhe invadia as faces. — Portam -se como bons amigos os mais moços são um tanto tímidos. Não me

refiro, naturalmente, aos que são muito moços, aos que são quase umas crianças e nos bailes procuram companheiras da mesma idade. Minha madrinha me disse que os deveres militares exigem-lhes uma dedicação constante, e que eles só se divertem em jantares realizados em quartéis e restaurantes, com outra espécie de mulheres. É um pouco primitivo, não acha?

— Acho, naturalmente! — E quando se apaixonam, é fácil para a mulher conseguir um divórcio, sem

escândalos, sem barulho, e cada roda fica firme com o seu amigo, ainda quando ele não tenha razão. Assim, tudo se arranja, e a vida parece muito mais simples e aparentemente mais feliz do que entre nós. Não garanto que seja realmente assim, porque estou aqui há pouco tempo.

— Então, isto aqui é, um paraíso! exclamou lord Courtray, sorrindo. Nesse momento o príncipe entrou novamente no salão, aproximou-se do lugar onde

se achavam Tamara e lord Courtray, e depois os dois homens distanciaram-se para examinar os floretes.

Minutos após, chegaram a orquestra e os demais convidados. As danças começaram e Tamara achou delicioso ver pessoas adultas a se divertirem daquela maneira.

Era uma espécie de enorme quadrilha com numerosas figuras e tarândola, ficando uma pessoa sentada numa cadeira entre as figuras, como no cotillon. No fim todos gritavam e batiam com os pés, numa alegria louca.

Antes de começar a dança, o príncipe aproximou-se de Tamara, e disse-lhe: — Venha dançar comigo. Arranjei isto para lhe proporcionar um espetáculo bem

russo. Todos haviam passado ao salão de baile, de onde, como arte mágica, tinham sido

retirados todos os assentos e cadeiras. O príncipe fez quanto pôde para divertir o seu par e absteve-se de apertar a moça

com tanta violência nos braços. Mas, cada vez que Tamara dançava com o inglês, os olhos de Gritzko chispavam, e ele vinha logo interrompê-los com qualquer pretexto, a fim de levar a moça.

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Tamara sentia-se completamente feliz. Já não pensava em analisar os seus sentimentos, nem em fazer perguntas a si mesma, nem sequer lutava contra suas inclinações. Deixava-se levar na corrente da vida.

Eram aproximadamente cinco horas da manhã, quando alguém lembrou que o que se impunha, para continuar a festa, era cear nas Ilhas. Todos aceitaram a idéia com entusiasmo. Jamais essa gente se detinha em pensar se uma coisa era materialmente realizável, ou não. A conveniência, como podia ser entendido do ponto de vista britânico, era para eles coisa desconhecida. Se desejavam uma certa diversão —vamos a ela! diziam.

Os que estavam dispostos a continuar a festa, tomaram os seus carros. Quando o termômetro assinala 15 graus abaixo de zero, não há de ser muito

agradável a permanência em um carro na Rússia, mas, ao que parecia, o hábito tudo torna suportável.

— Sei que gostas de viajar em tróica, Tomara — disse a princesa Ardacheff. Vai então com Olga, Gritzko e teu amigo inglês tem, porém, o cuidado de proteger bem a cabeça.

Quando todos subiram à tróica, a condessa Gleboff disse: — Está tão fria a manhã que me colocarei de costas para os cavalos, para evitar que

o vento me dê no rosto. Lord Courtray pareceu gostar da idéia, pois imediatamente imitou a condessa. E

dizendo que estava gelado e ela não teria a desumanidade de deixar um estrangeiro morrer de frio, segurou-lhe uma das mãos,

Quando chegaram às Ilhas, dirigiram-se a um gabinete reservado de um dos restaurantes, divertindo-se em observar a concorrência da sala comum, e ouvir a orquestra de ciganos, enquanto se lhes preparava a ceia encomendada.

— Quem diria que são cinco horas da manhã! exclamou lord Courtray. Que magnífica lição para nossos conselheiros municipais de Londres!... Aqui é o lugar ideal para mim.

Imediatamente começou a fazer a corte à condessa Olga, a cujo lado parecia estar pregado.

Em seguida principiaram a comer. Tudo se desenrolava num ambiente de alegria e cordialidade, sem que ninguém cometesse, no entanto, a menor vulgaridade.

Quando todos retomaram o caminho, de regresso às respectivas casas, ali pelas sete horas da manhã, Olga disse que não poderia suportar o frio do trenó, e, como lord Courtray sempre compartilhava das suas opiniões, ambos subiram ao carro da condessa.

Tudo se fez com rapidez. Tamara já estava sentada na tróica, e os cavalos impacientes por correr.

O príncipe saltou para o trenó, e assim foi que Tamara se encontrou só com ele deslizando velozmente sobre a neve, debaixo de um céu recamado de estrelas.

Tamara sentia uma sensação deliciosa nas veias. Nenhum dos dois falou durante alguns minutos; mas, depois, o príncipe se foi aproximando cada vez mais da moça e rodeou-lhe a cintura com o braço.

— Doushka, murmurou ele. Odeio este inglês... e a vida é tão curta. Gozemo-la enquanto podemos fazê-lo...

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E, inclinando-se para Tamara, beijou-a nos lábios. A moça lutou contra a extraordinária emoção que a invadiu ao sentir aquele beijo,

quis resistir, mas Gritzko apertava-a nos braços, cada vez com mais força. — Querida! disse-lhe ao ouvido. Meu amor! Não lute, porque é inútil. Eu sempre faço

o que desejo. Se não me enlouquecer resistindo-me, prometo-lhe que me limitarei a fazer-lhe umas carícias.

Novamente a apertou nos braços e beijou-a com ternura. Todas as forças pareceram abandoná-la. Ela só sabia que, naquele instante, estava imensamente feliz, que aquilo era o paraíso, e desejou que não terminasse nunca.

Tamara cessou a resistência e cerrou os olhos, enquanto o príncipe lhe dizia ao ouvido uma porção de palavras de carinho em russo e em francês, esfregando sua face na face dela e beijando-lhe a boca de vez em quando.

Por fim, quando atravessaram a ponte de Trotzka, o príncipe deixou que Tamara saísse de seus braços.

Quando penetraram, na larga rua Serguiefskaia, que, àquela hora, parecia deserta, o príncipe inclinou-se outra vez para ela e beijou-a com tal paixão, que parecia querer sorver-lhe a alma pelos lábios.

Antes que Tamara pudesse falar, o trenó chegou à porta de casa e ela desceu, ajudada por ele, à vista do Suisse e dos lacaios, que estavam à espera.

— Boa noite, Madame. Durma bem — disse o príncipe com toda a naturalidade, ao despedir-se.

Tamara, presa de loucas emoções, subiu, correndo, a escada que conduzia ao seu quarto.

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CAPITULO 12

Há momentos na vida em que uma força irresistível, qual uma onda imensa, arrasta

consigo todos os sentimentos. Assim aconteceu a Tamara. Ela se tinha deitado meio morta de fadiga e pela emoção, mas quando acordou ao

meio-dia e viu no quarto a criada, os acontecimentos da madrugada voltaram-lhe de novo à mente, e ela aspirou o ar num quase estertor. Sim, nunca mais a vida seria a mesma para ela.

— Deixa-me, Johnson — disse para a rapariga. Estou muito cansada e não posso levantar-me ainda.

A criada saiu do quarto. Tamara ficou só com os seus pensamentos. Pela mente passou-lhe tudo que havia

acontecido, e, por um momento, a moça procurou encarar a sua situação e passar em revista o que havia feito e o que deveria fazer.

Antes de tudo, amava Gritzko. Era já impossível negá-lo. Depois, era uma lady e não podia permitir que um homem a beijasse, como fazia com outras mulheres que desfrutava e depois abandonava.

Tanto um como outro eram livres, de forma que aquelas carícias só poderiam ser interpretadas como um grave insulto. Se, realmente, ele a desejava tanto, por que não a pedira em casamento?

Como o príncipe. não havia adotado essa atitude, Tomara compreendeu que a única coisa que lhe restava era sair quanto antes do país.

Mas o passado todo lhe passou pela mente. Desde o instante em que o conhecera diante da Esfinge, aquele homem a humilhara

de todas as formas. Sempre havia sido o vencedor da situação. Fora ela, acaso, ridiculamente fraca? Que mau fado caíra sobre ela? Que fizera ela para provocar aquela situação?

Depois, ao recordar-se do último beijo, uma sensação estranha a envolveu novamente.

— Se ele gostasse de mim realmente, pensou, eu faria frente a uma incerta felicidade ao seu lado. Compreendo agora que esse homem está em condições de despertar, em minha alma, emoções que até agora me eram desconhecidas, e pelas quais estou disposta a pagar esse preço. Mas não tenho nenhuma prova do seu amor. É possível que esteja brincando comigo, como brincou com Taciana Shebanoff e tantas outras...

Quando este pensamento lhe passou pelo espírito, ela sentiu-se revoltada contra semelhante possibilidade.

Não, ele não havia de rir-se dela! O que primeiro devia fazer, era dominar por completo os seus sentimentos. Tratá-lo-

ia com indiferença e anunciaria a sua madrinha que pretendia regressar à Inglaterra, logo

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depois de visitar Moscou. Não queria ir-se embora imediatamente, para que o príncipe não julgasse que era

medo... Enquanto isso se passava, no salão azul a princesa Ardacheff conversava com o

seu velho amigo Stephen Strong. — Sim, mon ami, dizia ela. Você tem que vir conosco. Iremos a Moscovo, depois do

baile em que pretendo apresentar a minha afilhada e passaremos por Milaslaw. Olga, Sônia e o marido, o inglês, Serge Grekoff e Valonne prometeram-me comparecer, e posso assegurar-lhe que haveremos de nos divertir.

— Rogo-lhe, princesa, que tenha compaixão de meus velhos ossos mas, desde que o seu desejo é esse, acompanhá-la-ei com o maior prazer... Agora, falemos de outro assunto: como vão as coisas? Confesso-lhe que os acontecimentos de ontem à noite pro-duziram-me calafrios.

— Porquê? — Porque Gritzko é um homem fora do comum e possui uma personalidade

extraordinariamente magnética para com as mulheres. — E que tem isso? — Levando em conta o ambiente de simplicidade em que foi educada a sua afilhada,

creio que esta não tem a menor possibilidade de lhe resistir com sucesso. — Mas, resistir por quê? Por minha parte confesso-lhe que o que mais desejo é que

eles se apaixonem um pelo outro; e estou em condições de lhe afirmar que, se não fosse a resistência dela, a coisa já estaria feita.

— Não me pareceu que Tomara opusesse muita resistência ontem à noite. Se Gritzko só está brincando com ela, creio que deveríamos pôr fim à brincadeira.

— Quer, por ventura, que eu intervenha nos seus destinos? — Não, mas desejaria que, se as intenções de Gritzko não são boas, não se lhe dê

nenhuma oportunidade de levar mais longe suas relações. Lembre-se daquela temporada em Londres, quando se iniciaram as relações entre a mãe dela e seu irmão Alexis. Pense no resultado dessas relações...

A princesa cobriu os olhos com as mãos. — Oh, Stephen! exclamou. Como é cruel relembrar essas coisas! No caso atual, a

situação é diferente, porque ambos são livres, e o meu maior desejo é que se unam pelo casamento.

— Perfeitamente. Peço-lhe, porém, que impeça, se possível, que Gritzko despedace o coração de minha pobre patrícia...

— Stephen, estranho que me faça essa recomendação, sabendo quais são os laços que me prendem à minha afilhada.. .

— Desculpe-me, Vera. Mas você conhece as paixões humanas. E Gritzko não é de gelo!

Mr. Strong, beijando a mão da princesa, retirou-se. Quando Tamara se levantou, estava inteiramente decidida a abandonar o país, logo

que regressasse da visita a Moscou, e disse-o à sua madrinha. Mais tarde, quando o príncipe veio visitá-las, mostrou-se fria para com ele,

dispensando, em troca, maiores atenções a lord Courtray. . .

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Quando se viu novamente só, felicitou-se pelo bom êxito que augurava de seu plano. E compreendeu que a sua salvação estava em não dar a Gritzko nenhuma oportunidade de ficar a sós com ela.

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CAPITULO 13

Foi talvez uma sorte ter o príncipe, nos três dias seguintes, ficado retido por seus deveres militares em Tsarkoi-Selo e não poder vir a S. Petersburgo, pois estava num estado de espírito que facilmente o teria levado a cometer uma das suas loucuras.

Tamara, essa também estava muito mal humorada. Sentia-se muito infeliz, sob uma alegria exterior. Não era nada agradável ao seu

amor próprio ter de fugir de um lugar, porque amava um homem cujos atos demonstravam não ser ela correspondida. E, quaisquer que fossem as atenções que recebesse de outras pessoas, essas atenções não bastavam para compensar-lhe a dor íntima.

As recordações e as idéias tristes assaltavam-na a toda hora, inesperadamente. Em uma conversa qualquer, surgiam-lhe recordações daquela madrugada, na tróica, e a moça começava a estremecer, à lembrança da emoção deliciosa que experimentara então.

E, com toda força fechava as mãos e prometia esforçar-se mais do que nunca, para esquecer tudo aquilo. Mas, apesar de tudo, raras vezes decorriam dez minutos sem que se lembrasse de Gritzco. E a influência dele ia crescendo de forma tal, que parecia uma obsessão.

Tomara perguntava a si mesma o motivo por que ele não viria. Não queria, entretanto, perguntar à madrinha. Os três dias se passaram em uma intranquilidade terrível, e, na terceira noite, as duas foram outra vez aos bailados.

Em frente delas, em um camarote, estava sentada uma mulher morena, ainda moça. Tinha as feições duras, a expressão voluntariosa, estava muito bem vestida e não trazia nenhuma jóia.

— É uma mulher famosa — disse-lhe o conde Valonne. Era uma das melhores dançarinas deste teatro, e, no ano passado, tentou suicidar-se de um modo tão original quão dramático, em uma das festas de Gritzko. Talvez, naquele tempo, fosse a predileta do príncipe. Supõe-se estivesse muito apaixonada por ele, e, segundo dizem, ainda o está. No melhor da festa, dada em homenagem a ela, tomou com rapidez espantosa uma boa dose de veneno, depois de ter anunciado o seu intento. Todos ficaram transidos de horror. Gritzko, porém, permaneceu tranquilo. Agarrou-a e obrigou-a a beber toda uma garrafa de azeite, mandando logo chamar o médico. A pobre rapariga curou-se e o seu romântico objetivo fracassou por completo. Dizem que se enfureceu extraordinariamente.... e, uma semana depois, casou-se com um negociante rico. Que lhe parece? Gritzko disse que tudo aquilo lhe parecia muito vulgar; mandou-lhe um valioso bracelete de brilhantes e nunca mais quis saber dela.

Tamara percebeu que as faces lhe ardiam. Seu orgulho excitou-se mais do que nunca. Assim ela e a ex-dançarina achar-se-iam nas mesmas condições? Mas ela ao

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menos não tentaria suicidar-se, não seria salva com azeite! —Que coisa ridícula! exclamou Tamara. Que espetáculo! —Tem razão — disse o conde, olhando-a intencionalmente. O conde adivinhou que ela estava interessada pelo príncipe, e, como era um bom

coração, além de um perfeito diplomata, sabendo dizer aos outros somente o que convinha, resolveu não a desgostar mais com histórias semelhantes. Assim, aproveitou-se da primeira ocasião que se lhe ofereceu para lhe dizer que Gritzko estivera de serviço durante os três dias anteriores. Talvez ela não soubesse disso.

A Tamara sempre parecera muito simpático o conde Valonne. Nesse momento entrou no camarote o elegante conde Varishkine, com o qual a

moça conversara a última vez que vira o príncipe. O orgulho ferido de Tamara levou-a a mostrar-se muito amável com o rapaz.

A princesa Ardacheff, inquieta, murmurou ao ouvido de Stephen Strong: — Não lhe parece que minha afilhada está mudada, Stephen? Geralmente, é uma

moça sossegada e comedida, mas esta noite, parece que está flertando com Boris Varishkine. Espero que isso não nos traga nenhuma complicação. Que lhe parece?

Strong riu. — Depende. Se a coisa irritar a Gritzko, tudo pode acontecer: derramamento de

sangue, um escândalo, ou apenas uma cena entre os dois. Esperemos que se dê a última hipótese.

— Deus queira! — É preciso lembrar que uma inglesa não pode compreender inteiramente as

variações do caráter de Gritzko. Não estamos acostumados a essas naturezas impulsivas e tempestuosas.

— O que vale é que Boris e Gritzko são muito bons amigos! — Nunca ouvi dizer que uma amizade, por mais íntima que seja, possa impedir os

ciúmes entre os homens, observou Strong, que em sua mocidade muito sofrerá por causa disso.

— Estou muito contente de ir para Moscou. Lá não encontraremos Boris, e arranjarei as coisas de forma que Gritzko e Tamara possam estar juntos o mais tempo possível. Creio que é o melhor que tenho a fazer, respondeu a princesa.

Quando terminou o espetáculo, todos foram cear no restaurante Cobat, num salão reservado, contrariamente aos costumes da princesa. Mas o anfitrião era Stephen Strong, que não tinha casa própria para convidar os amigos.

Quando passavam pelo corredor, em direção ao salão que lhes haviam destinado, abriu-se a porta de um outro para dar passagem ao garçom, e, com ele, o barulho de risos e de copos, enquanto uma voz de mulher gritava:

— Gritzko! Oh, Gritzko! Tamara apenas pôde levar à boca um pouco de tudo quanto serviram à ceia. Não

era crime imperdoável Gritzko cear com aquelas mulheres. Mas, apesar de tudo, aquilo lhe causou uma grande revolta e ela decidiu não pensar mais nele.A vontade humana, porém, é muitas vezes impotente e, se se podem evitar de certo modo as demonstrações de amor, nunca se podem refrear as emoções do ciúme.

Tamara tinha tanto poder para se forçar a não amar Gritzko como para impedir que o

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sol não saísse na manhã seguinte. Ela sabia perfeitamente que os homens mais finos, como Jack e seu irmão Tom,

passavam algumas vezes o tempo com mulheres daquelas. Porém, o ser quase testemunha daquilo produziu-lhe intenso desgosto e repulsão. Pensar que o homem a quem amava estava, talvez, naquele momento beijando uma daquelas mulheres, causava-lhe verdadeiro asco. Mas, se pudesse ver o que realmente acontecia no cômodo contíguo, teria compreendido que, naquela noite, ao menos, o príncipe estava inocente. Havia entrado ali em companhia de alguns oficiais, seus amigos; e não era ele quem dava a festa. Poucos minutos depois que os amigos de Strong começaram a cear, abriu-se a porta do salão onde estavam.

— Posso entrar, Mr. Strong? — perguntou o príncipe, mostrando a cabeça. Soube que estavam aqui. Serge viu-os entrar. Acabo de chegar de Tsarkoi e tenho uma fome terrível.

Como era de esperar, acolheram-no carinhosamente e deram-lhe lugar, enquanto Valonne, em voz baixa, lhe falava da reunião tão precipitadamente abandonada por Gritzko.

A fisionomia de Tamara refletia um profundo desdém, mas o príncipe sentou-se ao lado da princesa Vera, sem dar pela coisa.

Não se dirigiu à moça em particular antes de acabar a ceia. Apesar de sua raiva, de seu desgosto, de sua cólera. .. e mesmo de sua vergonha, desejava ela intensamente que ele lhe falasse.

O único consolo que teve foi que, ao sair, enquanto ela olhava muito amavelmente o conde Varishkine, surpreendeu uma expressão de despeito no rosto de Gritzko.

Assim, pensou, embora ele não a amasse realmente, podia, entretanto, sentir ciúme, e isso era o mais importante.

Desta forma atormentadas pela cólera e pelo ciúme, aquelas duas criaturas atravessaram os três dias seguintes, quando suas almas eram capazes de sentimentos mais elevados e mais dignos.

O príncipe Milaslavski, com grande surpresa de todos os amigos, freqüentava aqueles dias assiduamente a sociedade. Tamara e sua madrinha o encontravam por toda a parte, e, enquanto a princesa se esforçava para que os dois tivessem ocasião de se falarem, Tamara manobrava para que ele não ficasse a sós com ela, e, por isso, sempre se rodeava de várias pessoas para não lhe dar nenhuma oportunidade.

E tanto conversava com o príncipe Miklefski como com Mr. Strong, com o marido de uma das amigas, ou com Jack e, a fim de enciumar o príncipe, aproveitava todas as ocasiões para se mostrar amável para com o elegante Varishkine.

E o estranho e sinistro brilho não deixava os olhos de Gritzko. Na noite anterior ao baile da princesa Ardacheff, ambos assistiram a uma recepção

em uma embaixada, em honra de um rei e uma rainha estrangeiros que estavam de visita à Corte. Tornara vestiu-se com mais cuidado do que nunca, prendendo uma alta e linda tiara em seus cabelos castanhos escuros.

Pensou que o príncipe havia de achá-la, talvez, mais bonita, mas quando chegaram ao faustoso edifício e atravessaram a brilhante multidão de convidados não viu Gritzko em parte alguma. Seria possível que ele tivesse resolvido não assistir à festa?

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Pouco depois, Tamara foi ao buffet, acompanhada por Valonne, e na palestra referiu-se com a maior naturalidade a Gritzko.

Este parecia achar-se na iminência de uma das suas piores loucuras. Valonne tinha-o visto no Clube, antes do jantar.

— Se a senhora partir de fato para a Inglaterra — disse Valonne a Tamara, não tenho a menor dúvida de que ele a seguirá.

— Seria ridículo! exclamou. Tamara, a rir. Que lhe pode importar a ele que eu me vá ou não? Felizmente, não vivemos um para o outro, acrescentou, abanando-se apressadamente, enquanto Valonne sorria.

— Não estou muito certo disso, contraveio o rapaz. Mas, se me atrevesse a profetizar, diria que deverá sentir-se muito feliz se conseguir partir da Rússia antes de provocar um duelo.

— Um duelo! exclamou Tamara. Que coisa horrível e tola ao mesmo tempo! Mas por que? Pensei que o duelo já tinha desaparecido de todas as nações civilizadas. Mas, seja como for, por que um duelo por minha causa? Um duelo entre quem? Certamente, está brincando!

— Os duelos aqui são verdadeiros. Gritzko. já se bateu duas vezes, ao que sei. Não é amigo de procurar disputas, mas, também, não permite que ninguém atravesse em seu caminho ou o estorve em seus projetos.

— Que projetos são esses? O senhor fala como se fosse alguma coisa de terrível e misterioso. O que há? — perguntou Tamara, levantando a cabeça e ruborizando-se toda.

— Os projetos de Gritzko, a falar com franqueza, resultam de ele estar loucamente apaixonado pela senhora, esclareceu Valonne, rindo.

— Isso é imaginação sua, replicou Tamara, rindo nervosamente. Não me deixarei impressionar por essas idéias.

Naquele momento chegou o conde Boris Varishkine. Tamara foi sentar-se ao seu lado, em um sofá próximo a uma janela, e, quando estavam entretidos em uma conversa interessante, chegou o príncipe.

Este olhou-os por um segundo e logo se encaminhou em linha reta para a princesa, que, naquele momento, estava organizando uma partida de bridge.

— Tantine, desejo falar com a senhora — disse Gritzko. A princesa deixou imediatamente a sala de jogos e saiu com ele. Acharam um canto tranqüilo, em frente a Tamara e seu companheiro, e ali se

sentaram. — Tantine, eu a trouxe aqui para que a senhora veja isto. O que significa? A princesa fêz-se de desentendida. — Nada, meu filho, o que há é que Tamara se distrai, como todos nós o fazemos.

Está com ciúmes, Gritzko? Ele olhou-a fixamente, e por um momento apalpou inconscientemente o punhal que

trazia na cinta. — Creio que estou. E desconfio muito que amo a sua encantadora amiga. — Pois, então, por que não te casas com ela? — Talvez venha a fazê-lo se, antes

disso, não ficar louco. Não sei o que desejo. Talvez vá para o Cáucaso, ou fique aqui, para obrigá-la a gostar de mim e me perdoar, quaisquer que sejam as coisas que eu faça.

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Fez uma pausa, seus grandes olhos se turvaram. Logo, porém, voltou a luzir nele o mesmo brilho selvagem.

— Se ela vier a ser minha princesa, terá que ser toda para mim. Não lhe permitirei que tenha um olhar ou um pensamento para outro homem. Tudo tem que ser meu — sem partilhas. Então se tornará minha rainha.

A princesa Ardacheff recostou-se na cadeira e fitou Gritzko. Este vestia o seu uniforme azul e escarlate. Mesmo ela, a mulher já idosa e amiga do príncipe, não pôde deixar de imaginar a ventura intensa que uma mulher sentiria em ser amada por aquele homem, em ver aquela bela e orgulhosa cabeça reclinar-se-lhe ao colo, em ouvir-lhe as palavras ternas e apaixonadas, em sentir-lhe as carícias.Tamara deveria estar completamente louca, se hesitasse um só momento em corresponder ao príncipe.

Mas, o que este acabara de dizer não era tranqüilizador, nem augurava nada de bom, e a princesa compreendeu que deveria fazer-lhe imediatamente uma admoestação que o acalmasse.

— Espero, querido Gritzko, que sejas prudente. Lembra-te de que Tamara é inglesa e não está acostumada conosco.

— Tudo dependerá dela mesma. Se continuar zombando de mim, não sei o que acontecerá. Se, ao contrário...

— Prometes agir com prudência? — É possível. Mas, não consentirei, Tantine, que a cada passo se interponha entre

mim e ela, nem esse inglês, nem Boris Varishkine. Naquele momento Tamara levantou a cabeça e viu dois pares de olhos fixos nela.

Recordou-se então das palavras de Vdlonne relativas ao duelo. Tolices! Decididamente, brincaria mais um pouco com o seu novo amigo. Antes de sua chegada à Rússia, nunca havia namorado, pois não era namoradeira:

era uma moça simples, que muito pouco se incomodava com os homens. Mas, na mulher mais simples, desenvolvem-se qualidades felinas sob o influxo de certas provocações. E o orgulho de Tamara estava profundamente ferido.

O conde Boris Varishkine era, como a maior parte de seus compatriotas, sincero e não desejava apenas namorá-la.

Naquele momento chegou Jack Courtray e reuniu-se aos dois, pois a condessa Olga o despedira temporariamente, Tamara começou a falar com tal vivacidade e agudeza, que se surpreendeu a si mesma.

A concorrência era muito diplomática e divertia-lhe imenso observar os representantes das diversas nações, pareceu-lhe que os ingleses e os russos eram ali os tipos mais alinhados.

Ao grupo reuniu-se Stephen Strong. — Está gostando da festa, Mrs. Loraine? — Muito. E devo dizer-lhe que, na minha opinião, de todos esses diplomatas, os

russos me parecem os mais semelhantes a nós. Não acha que tenho razão, Sr. Strong? — Os russos, minha senhora? Quando tiver viajado um pouco mais, verá que esse

nome se adapta a quase metade do gênero humano; mas estou de acordo. O que vemos aqui em Petersburgo se parece muito conosco. Há alguma diferença especialmente nos olhos e na maneira de se pentearem; mas, se se lhes dessem os mesmos uniformes, a

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maioria desses rapazes poderia confundir-se com os nossos guardas ingleses. —Todavia, não nos parecemos no caráter — disse o conde Varishkine. Os senhores

são mais frios e calmos, nós temos ainda fortes paixões e não aprendemos ainda a arte da dissimulação.

— A verdade é que pertencemos a uma raça de sangue muito frio, não é verdade, Tamara? — perguntou lord Courtray, rindo.

Todos pareciam tão entretidos na palestra, que a princesa Ardacheff, por seu gosto, não os interromperia. Mas viu-se obrigada a fazê-lo, devido a um olhar que percebeu em Gritzko.

— Querida Tamara — disse ela, aproximando-se. Estou tão cansada que venho pedir-te para irmos embora.

A moça pôs-se em pé, e respondeu: — Com o maior prazer, madrinha, eu também me sinto fatigada. O príncipe trocou algumas palavras com Stephen Strong e Jack, e reuniu-se ao

grupo. Os três estavam a um passo de distância das duas senhoras, no momento em que elas se despediram.

— Amanhã de manhã venha ver-me bem cedo, Jack — disse Tamara. Quero confiar-lhe uma carta para Tom.

E dirigiu-lhe um encantador sorriso, certa de que o príncipe a devorava com os olhos. Em seguida, voltando-se para o conde Boris, disse:

— Estou certa de que vai arrepender-se de me tirar para dançar amanhã a mazurca porque nada entendo dessa dança. Seja como for, espero que nos divertiremos.

— Assim o espero! exclamou o rapaz com entusiasmo, depois de lhe beijar respeitosamente a mão.

A seguir, as duas senhoras foram despedir-se da dona da casa, e Gritzko desapareceu mas, quando chegaram ao hall, viram-no já metido em suas peles e disposto a sair.

O lacaio da princesa ofereceu a Tamara o calçado de neve e a capa. Gritzko, porém, quase arrancou esses objetos da mão dela, que, em vez de protestar, lhe permitiu que a ajudasse a vestir-se e a calçar.

A princesa achou conveniente dirigir-se à porta. — Esta noite foi a sua vez — disse ele em voz baixa. Mas, às vezes, a sorte me é

favorável e a minha hora há de chegar. Tamara olhou-o provocadoramente e replicou: — “Tant pis et bon soir Monsieur, démom de Lermontoff!” Depois achou mais prudente correr atrás da princesa e meter-se no automóvel.

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CAPITULO 14

Vinte e quatro horas mais tarde tinha lugar o baile da princesa Ardacheff, cuja

esplêndida residência era teatro de uma cena festiva. Os convidados esperavam nas galerias a chegada dos grão-duques e dos monarcas estrangeiros.

Tamara estava ao lado de sua madrinha, no alto da escadaria, e sentia-se muito nervosa.

Desde a noite anterior, nada tinha sabido do príncipe. Sempre que entrava um novo convidado e passava por entre os criados perfilados como estátuas em cada seis degraus, ela esperava vê-lo.

Os soberanos chegaram com esplêndido séquito. Mas nem Gritzko nem o conde Varishkine apareciam.

Certamente, o fato não tinha nada de importante ou significativo: não deixava, porém, de ser curioso A primeira contradança foi executada e os dois não tinham ainda chegado. Quando a orquestra começou a tocar a segunda valsa, Tamara foi presa de um temor vago... Quanto à princesa, sua inquietação era muito mais do que vaga.

Tamara não se divertia. Falava febrilmente levando os pares de um lado para outro, sempre com os olhos fixos na porta.

O imenso salão de baile, de teto muito alto, apresentara aspecto deslumbrante com sua faustosa decoração do tempo de Alexandre I. As magníficas jóias das damas e os uniformes dos cavalheiros contribuíam, com as flores, para tornar mais brilhante a festa. Um ramo de rosas frescas adquire maior encanto quando, na rua, o termômetro está marcando graus abaixo de zero. E ninguém teria acreditado, ao ver aquela magnífica concorrência, que pudessem formá-la as mesmas pessoas que tanto se tinham divertido ao ver dançar e cantar um bando de ciganos.

A boa educação e o bom nascimento dão a cada um o senso da conduta necessária às circunstancias.

Tamara dançava uma valsa com Jack Courtray depois de umas voltas, detiveram-se para admirar a assistência.

— Ê uma gente maravilhosa, Jack. É possível encontrar pessoas mais distintas do que estas que se mostram hoje? No entanto, se as observarmos quando dançam com elegância e finura, ver-se-á em seus olhos o mesmo entusiasmo que quando bailavam loucamente, depois da ceia que o príncipe Miasiavsia nos ofereceu em sua residência.

— A propósito, Gritzko não veio ainda. Porque será? — Eu gostaria de o saber, respondeu Tamara. Jack, por favor, vá ver se encontra

Serge Grekoff, ou Mr. Strong, Sacha Basmanoff, ou qualquer um que tenha notícias dele. Acho que nenhum desces veio.

— Está tão interessada assim? — perguntou CourIray, rindo. Está bem, menina. Farei o que deseja.

E, ditas essas palavras, Jack deixou-a para outra dança, nos braços de Valonne,

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que acabava de chegar naquele momento. — Parece-me que vou ficar sem par para a mazurca, observou Tamara, fingindo

distração, enquanto observava o francês de soslaio. Eu estava comprometida com o conde Varishkine. Mas ele não. veio. Que teria acontecido? O senhor sabe?

— Já lhe disse que deveria dar-se por satisfeita se conseguisse sair da Rússia antes que ocorressem coisas desagradáveis, atalhou Valonne, sorrindo enigmàticamente.

— Que quer dizer com isso? exclamou Tamara, empalidecendo. — Nada, somente imagino que esta noite não verá senão um deles. Qual será, não

posso dizer, porque o ignoro. Tamara sentiu que lhe percorria o corpo um frio mortal. — Quer insinuar-me que se bateram? — perguntou com voz trêmula, apesar de

seus esforços para serená-la. — Não insinuei nada, replicou Valonne, tornando a sorrir tranqüilamente. Vamos dar

uma volta antes de terminar esta encantadora valsa? Tamara, apesar de sua angústia, aceitou e por mais que fizesse, não pôde arrancar

de Valonne nem mais uma só palavra acerca do que tanto a interessava. Quando terminou o baile, em vão procurou a madrinha, Jack ou Stephen Strong. A

princesa falava com os régios convidados e não era possível aproximar-se dela quanto aos homens nenhum dos que procurava lhe aparecia no momento.

A meia hora seguinte foi uma longa agonia para Tamara. Com o rosto lívido e um sorriso inexpressivo, representou o seu papel. Quando ia começar a mazurca, Gritzko entrou.

Pareceu a Tamara que as suas pernas não a queriam suster, e, temerosa de cair, sentou-se em uma cadeira. Sentiu-se aliviada de enorme peso. Pois, quaisquer que fossem os acontecimentos, ele, pelo menos, estava são e salvo.

Observou-o, enquanto ele escolhia duas cadeiras no melhor lugar, e atravessava depois o salão até onde ela estava, junto à porta do buffet.

— Boa noite — disse. Quer aceitar-me como substituto do seu par, o conde Varishkine? Ao mesmo tempo que dizia estas palavras, inclinava-se cortesmente, como exigiam o lugar e a ocasião. O pobre conde, sinto dizer-lhe, acha-se um pouco indisposto e pediu-me o desculpasse e ocupasse o seu lugar.

Por um momento Tamara se conservou indecisa; parecia que tinha perdido a faculdade de falar compreendeu que devia conter sua ansiedade e curiosidade e, por fim, respondeu:

— Sinto-o imensamente! Espero que não seja nada de importante. É tão agradável o conde Varishkine!

— Não lhe aconteceu nada de grave. Vamos dançar? Arranjei duas cadeiras perto de Olga e do seu amigo — disse o príncipe.

Tamara, uma vez acalmada a sua emoção, pensou que devia negar-se. Mas a grande alegria que sentia foi maior que o seu orgulho e, com atitude submissa, seguiu-o através do salão.

Passaram junto da princesa que, aproveitando um instante, quando ia dar uma resposta alegre ao embaixador com quem conversava, murmurou ao ouvido de Tamara:

— Pelo amor de Deus, Tamara, tem muito cuidado com Gritzko, esta noite!

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Quando estavam sentados à espera de que começasse a contradança, Tamara notou que o príncipe estava muito pálido e que os seus olhos, rodeados por uma orla azulada, pareciam mais brilhantes que de costume.

Teve a certeza de que havia acontecido alguma coisa misteriosa ou trágica. Mas, assustada com as palavras da princesa, não fez pergunta nenhuma sobre o assunto.

A moça quase que não dizia nada. O príncipe também guardava silêncio. Parecia que, depois de haver triunfado e conseguido que ela fosse seu par na contradança, já não havia nada mais a fazer.

De repente ele voltou-se para ela e perguntou-lhe com certa indiferença: — Tem-se divertido muito desde ontem á noite?Passou bem o tempo? Eu tenho

estado em Tsarkoi e me foi inteiramente impossível visitar Tantine. —Tudo bem, obrigada, príncipe, replicou Tamara. Jack Courtray e eu empregamos o

tempo em ver as lindas coisas que existem em Hermitagé, E, antes de voltarmos ao nosso pais, pretendemos fazer outra visita a esse museu.

Gritzko olhou-a e disse: — Gosto muito do seu amigo. É um bom rapaz. E acrescentou pensativo: Mas,

passa muito, tempo em sua companhia e receio que os ursos acabem por devorá-lo. Esse caritativo temor foi declarado tranqüilamente com uma voz tão suave como se

fosse uma bênção. — Que idéia! exclamou Tamara. Jack devorado pelos ursos! Pobre Jack! Que fez

ele? — Nada, suponho… contudo o tempo o dirá. Agora vamos dançar. E levantaram-se, chamados pelo mestre de cerimônias, para tomar parte em uma

contra dança. Enquanto o príncipe executava os movimentos necessários, ela notou que ele o

fazia vagarosamente, sem a habitual vivacidade e a sensação desagradável que a moça sentia, sensação cuja causa ignorava, aumentou mais.

Tamara era muito solicitada. Só não a tiraram por ocasião da figura das flores. Por isso a conversação, que sustentava com o príncipe, carecia de seqüência lógica. Repentinamente ambos emudeceram, devido à forte dor física que ele sentiu.

Tamara estranhou que o príncipe lhe entregasse todas as flores e não dançasse com ela, nem procurasse outra dama. Estava sentado, mas, ao observar que Serge Grekoff vinha com um magnífico ramalhete de rosas, evidentemente com a intenção de o oferecer a Tamara, Gritzko levantou-se e levou a moça para dançar.

Esta colocou a mão no braço dele e notou que o rapaz susteve rapidamente a respiração, estremecendo um pouco… Quando lhe perguntou se lhe doía alguma coisa, ele pôs-se a rir, dizendo que não tinha nada. E recomeçaram a dança.

Tamara estava muito aflita. Que teria acontecido? Quando terminaram e se sentaram novamente, ela apelou para todas as suas forças e perguntou-lhe:

— Príncipe, estou certa de que o conde Varishkine não está realmente enfermo. Aconteceu-lhe alguma coisa que eu ignoro. Diga!

— É muito simples: eu não quis que a senhora dançasse a mazurca com ele, respondeu Gritzko.

— E como pôde impedi-lo? — perguntou Tamara, empalidecendo.

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— Que lhe importa isso? Interessa-se tanto por Boris? E voltando o rosto olhou-a com tal intensidade e de tal maneira, que ela se sentiu

profundamente comovida, pois compreendeu que ele sofria muito. Além da dor, percebeu em seu rosto uma expressão de triunfo. Eram tão desencontrados os sentimentos que se aninhavam na alma da moça: amor, medo, compaixão e até revolta, que ela ficou imóvel um momento. Depois disse:

— Se demonstro ansiedade, não é pelo conde Varishkine, mas pelo que o senhor terá feito.

Ele recostou-se na cadeira e pôs-se a rir alegremente. — Posso assumir a responsabilidade de meus atos. De toda a maneira, agradeço-

lhe. Então a cólera apossou-se de Tamara com mais violência do que a compaixão pela

dor alheia, e ela ficou silenciosa em seguida falaram, sem que a moça guardasse lembrança do que disseram. E, quando os outros se propuseram a dançar uma polonaise, eles dirigiram-se ao bufíet.

Ali sentaram-se junto dos amigos, e Gritzko pareceu recobrar a alegria. Bebeu bastante, e logo, tomando um copo de brandy, misturou-o com champanhe.

Nunca o príncipe esteve tão brilhante como naquela noite, mantendo a mesa em contínua alegria, e dirigindo-se especialmente a Taciana Shebanoff, que sentava à sua esquerda.

Tamara, essa parecia ter-se convertido em uma estátua de pedra. Assim decorreu a maior parte da noite. Eram já quatro horas da madrugada e os

convidados dirigiram-se às galerias para presenciar a saída dos soberanos, quando Tamara, que estava inclinada na balaustrada de mármore, ao lado de Gritzko, observou, de repente, que da manga deste saía um fio de sangue que, caindo, ia manchar-lhe a luva.

Ele também o viu e, proferindo uma exclamação de impaciência, desapareceu por entre a multidão. O resto da festa foi para Tamara uma espécie de pesadelo, ainda que todos os convidados se conservassem muito alegres até. hora muito avançada.

Ela não pôde aproximar-se da princesa todas as vezes que desejou, visto como estava sempre rodeada de grande número de convidados; e quando afinal o conseguiu, a velha senhora ainda estava entretida em uma interessante conversa com o conde Valonne.

— Tamara querida — disse-lhe a madrinha. Seguramente estás morta de canseira. Vai dormir. Nossos convidados não se retirarão enquanto não amanhecer.

Havia alguma coisa no tom destas palavras que a impediam de fazer perguntas à princesa.

Assim, pois, com muito frio e sentindo-se algo indisposta, a pobre Tamara dirigiu-se aos seus aposentos, despediu a criada e sentou-se em uma poltrona em frente à lareira.

Que coisa horrível teria acontecido? Que significaria aquele fio de sangue?

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CAPITULO 15 Tamara e sua madrinha não se viram até quase à hora do almoço do dia seguinte.

Pouco antes de ir para o salão de jantar, a princesa dirigiu-se ao quarto de Tamara, que ainda estava deitada, vencida pelo esforço físico e moral da noite anterior. A fisionomia da princesa denotava a mais viva inquietação. A velha senhora pôs-se a andar de um lado para outro no quarto, e, por fim, sentando-se e tomando uma luva que estava sobre o toucador, disse:

— Ontem à noite, Tamara, falei com Valonne, e esta manhã, mandei procurar a Serge Grekofí. Como este não quis vir, mandei chamar Valonne.

Fez uma pausa, e acrescentou: — A noite passada fiquei muito inquieta pensando em Gritzko. É claro que não

tiveste culpa alguma, querida, mas... — Conte-me tudo, madrinha! exclamou Tamara, levantando-se e atirando para trás

os cabelos. — Pelo que pude averiguar, parece que todos cearam na casa de Fontonka. É

preciso notar que Boris Varishkine e Gritzko foram sempre bons amigos. Ao terminar a refeição, segundo imagina Valonne, porque ninguém está certo do que na realidade aconteceu, Gritzko disse a Boris, no tom mais cordial, que desejava que ele, Boris, não dançasse a mazurca contigo. Gritzko esperava que o outro lhe desse esse direito.

Fez uma nova pausa. Os olhos de Tamara fixaram-se, fascinados, no rosto da senhora, que, depois de acariciar a luva, prosseguiu:

— Tinham bebido muito champanha e, segundo parece, Boris se recusou de maneira terminante, sugerindo lançarem uma moeda ao ar, e quem ganhasse, seria o primeiro a disparar às escuras sobre o outro.

— Que horror! exclamou Tamara. — Nossos rapazes são às vezes um tanto selvagens, minha querida. Têm um

brinquedo especial para se divertir, quando nada têm em que se ocupar ou quando estão em algum lugar aborrecido. É uma coisa parecida com cabra-cega, e faz-se às escuras. Aquele que se faz de cabra-cega coloca-se no centro do cômodo, e um dos outros bate palmas. O do centro atira imediatamente na direção de onde partiu o barulho, os outros procuram evitar que o tiro os atinja. Talvez tenhas reparado que Sacha Basmanoff não tem o polegar esquerdo. Perdeu-o no ano passado, em um desses brinquedos.

— Que coisa horrível, madrinha! exclamou Tamara, assustada. — Reconheço, desde já, que não é um brinquedo de gente civilizada, continuou a

princesa. Mas não se trata de discutir isso agora. Apenas estou contando o que aconteceu. A partir daquele momento, Valonne e os outros assistiram a tudo. Gritzko e Boris, rindo-se de maneira esquisita, disseram ter tido uma divergência de opinião e que haviam decidido pôr-lhe termo na sala de baile e às escuras. Não entrarei em pormenores acerca de quantos passos para a direita ou para a esquerda poderia dar cada um nem

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tampouco, acerca do número de segundos que havia de transcorrer. Direi apenas que se combinou que, quando Sacha, em uma extremidade da sala e Serge em outra fechassem as portas, os contendores detonariam três tiros cada um. Se, depois dos três disparos, ninguém ficasse ferido, os adversários desistiriam do intento.

— É espantoso! exclamou Tamara. E por que uma loucura assim? — Valonne disse, continuou a princesa, que ambos ficaram feridos ao primeiro

disparo e Voltaram imediatamente à sala. Os ferimentos não pareciam graves. Gritzko e Boris, rindo, apertaram-se as mãos. Valonne partiu a tempo para chegar no começo do baile mas, esta manhã, acrescentou ele, encontrou Varishkine ferido no ombro, o que o impediu de assistir à festa. Quanto a Gritzko, tinha uma bala no braço direito, mas que não lhe atingiu nenhum osso e assim que fez o curativo conveniente, apressou-se a vir.

O rosto de Tamara estava branco como a fronha do seu travesseiro. Cheia de angústia, a moça cruzou as mãos.

— Estou desolada, madrinha! exclamou, quase chorando. Posso jurar que não fiz nada para que isso acontecesse! A senhora viu que eu não fiz outra coisa senão dizer ao conde que teria muito prazer em dançar com ele a mazurca. Gritzko é... um homem impossível! Oh, vou-me embora daqui!

— De que serviria isso, minha filha? Se partisses esta noite, antes de ir a Moscou, darias motivo a que se desatassem as más línguas é preciso evitar um escândalo, e esforçar-nos-emos para o conseguir. Podes estar certa de que nenhum dos que intervieram nesta questão dirá nada, e assim o teu nome não será envolvido na briga. Se empreendermos a viagem, como se nada houvesse acontecido, não haverá rumores de espécie alguma, nem sequer dos que pudessem suspeitar da verdade. Gritzko e Boris continuam amigos. Se aparecer qualquer notícia desse desafio, ninguém tem motivos para relacioná-lo contigo. Todos o atribuirão a uma loucura de Gritzko. Por Deus, minha filha, deixa que se passem alguns dias. Depois de nossa visita a Moscovo, quando for oportuno e não parecer que tens pressa, regressarás ao teu país.

— Mas, enquanto isso, há o perigo de que atire contra Jack, ou cometa outra loucura qualquer. Pode estar certa, madrinha, de que Gritzko não sente nada por mim. Está agindo tão somente impulsionado pelo orgulho. Se me procura, é apenas para acrescentar mais um nome à lista de suas conquistas. Não quero prestar-me a isso. Não, não quero! terminou a moça, juntando desesperadamente as mãos.

A princesa não sabia que dizer, pois não estava certa sobre os sentimentos de Gritzko. Por outro lado, conhecia de sobra os modos do rapaz, para dar uma opinião acerca do que, provavelmente, ele faria. Pensou, além disso, que não procederia com lealdade afirmando à sua afilhada que o príncipe a amava. O melhor seria dar tempo ao tempo.

— Querida Tamara, poderás pelo menos não te indispor com ele durante a nossa viagem. Mostra-te amável e procura não o excitar.

Tamara afundou o rosto nos travesseiros. Ela, como todas as suas compatriotas, não era talhada para dramas nem para suspiros. Mas quando falou, a sua voz suave tremia e em seus olhos brilhavam lágrimas.

— Ele é um homem muito cruel, madrinha! Não tem nenhuma razão para tratar-me como o faz, e eu, de minha parte, não estou disposta a suportá-lo.

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A princesa deu um suspiro. — Tamara, perdoa-me se te aborreço com uma pergunta. Mas julgo-a necessária.

Gostas ou não gostas de Gritzko? No rosto pálido de Tamara a cólera fuzilou. A moça queria ocultar o seu segredo à

sua melhor amiga e protetora. Por isso, exclamou: — Creio que o mais certo é que o odeio. Depois de alguns instantes, a princesa saiu,

não sem haver obtido de Tamara a promessa de que esta faria tudo quanto pudesse para não alterar a paz mas quando Tamara ficou só, propôs-se a falar com Gritzko o menos que pudesse, e, até esquecê-lo completamente. Assim, não haveria bons, nem outra qualquer pessoa para dar motivo a ciúmes. Procuraria conversar a maior parte das vezes com Stephen Strong; entreter-se-ia contemplando a paisagem e visitando os lugares in-teressantes e trataria de palestrar amiudadamente com o marido de Sônia, o qual era um desenxabido, e, sobretudo, entrado em anos. Sabia perfeitamente que amava Gritzko de toda a sua alma amava aquele homem, orgulhoso e meio selvagem. Por impossível que isso parecesse, cada dia que passava o seu amor aumentava. A pobre moça, mergulhada nestas reflexões, sentia que as lágrimas lhe rolavam pelas faces.

Se já não havia, para ela, a menor probabilidade de conseguir a felicidade, o menos que podia fazer era regressar, quanto antes, à terra natal, para conservar uma aparência de dignidade, e de respeito a si mesma. Firmemente decidiu-se a fazer com que Gritzko não pudesse observar nela o menor vislumbre de afeto.

O trem saía para Moscovo às nove horas da noite, motivo por que todos os membros da comitiva concordaram em jantar às sete horas em casa da princesa, de onde partiriam juntos para a estação.

Aparentemente nada, transparecera do escândalo da noite anterior, porque ninguém fez a mais leve alusão ao acontecimento.

Gritzko estava ainda muito pálido mas, nem por isso, tinha pior aspecto. Parecia inclinado a portar-se da maneira mais pacífica.

Os cinco dormitórios, reservados para os dez companheiros de viagem, estavam no mesmo carro. Tamara e a princesa, com a desculpa de se acharem cansadas, retiraram-se, sem perda de tempo, para a cabina. Naquela noite Tamara não havia dirigido uma só palavra a Gritzko, de modo que tudo caminhava de acordo com os seus desejos. Mas quando estava comodamente estendida no seu leito, o superior,e começava a adormecer, uma hora depois, mais ou menos; o príncipe bateu no compartimento. A princesa, pen-sando que fosse o fiscal de trem, entreabriu a porta.

A luz elétrica estava apagada e o pequeno compartimento se achava às escuras. Tamara sobressaltou-se ao ouvir o que a sua madrinha dizia:

— Tu, Gritzko? Que queres? Por que me procuras a estas horas? — Venho pedir-lhe que me amarre o braço, Tantine. Ontem eu estava examinando

uma pistola e disparei um tiro quando menos esperava. Feri-me no braço, e agora começou a sangrar de novo. Sei que é boa enfermeira, Tantine. Serge, que está em minha companhia, fez o possível pára colocar as ataduras. Não o conseguiu e por isso vi-me forçado a vir incomodá-la.

A princesa acendeu a luz. Tamara, com os olhos aparentemente fechados, observou que o príncipe vestia um pijama de seda azul, igual ao que vira em outra ocasião.

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Percebeu que o olhar do rapaz, em vez de trágico ou sério, estava risonho. Gritzko tratava de convencer a princesa que deveria tirá-lo do apuro em que estava.

— Está doendo muito, Gritzko? Deixa-me ver! Coitado! Espera um pouco no corredor, até que eu vista o quimono depois, voltarás.

Tamara achou que era prudente conservar-se quieta, como se estivesse dormindo. Depois que a princesa vestiu o quimono, o príncipe entrou novamente, tendo, antes, batido de leve na porta.

Tamara sentiu que a madrinha, em voz baixa, dizia palavras carinhosas enquanto colocava a atadura no ferimento. Notou ainda que Gritzko tinha as costas apoiadas no leito dela. Ele era tão alto que, se voltasse a cabeça, poderia ver Tamara dormindo. Esta se encolheu quanto pôde. Mesmo havendo dado as costas ao moço, sentia-lhe a atração dos olhos. Experimentou grande desejo de abrir os seus e fitá-lo também. Mas, estava tão perturbada que quase lhe escapou um risinho nervoso. Venceu, porém, a sua vontade de permanecer imóvel e conservar as pálpebras cerradas.

— Que jeito a senhora tem, Tantine! murmurou Gritzko. E, mais baixo, acrescentou: — Eu não tinha idéia da formosura de sua afilhada. Que sono profundo! Não lhe

parece que posso dar-lhe um beijo? Sempre o desejei, mas não tenho tido coragem. Posso beijá-la, Tantine?

Sua voz era doce e carinhosa. Tamara estava segura de que, naquele instante, ele afagava o cabelo da tia, com a mão livre, porque a dama exclamou:

— Cala-te! Não te movas! Como queres que te amarre o braço, sé não ficas quieto? Pareces um louco! Fica quieto!

Em seguida falou-lhe em russo, com mais severidade. Ele respondeu rindo. Finalmente, terminado o curativo, o príncipe pondo-se nas pontas dos pés, ficou olhando Tamara.

— Acha então que não devo beijá-la? A senhora é cruel, Tantine! Ela está dormindo tão profundamente que nada perceberia. E isso me acalmaria a febre e contribuiria para curar o meu braço.

A princesa, muito zangada, não lho permitiu. A vista disso, o príncipe viu-se obrigado a ir-se embora.

Mas não o fez antes de beijar a mão da tia dizendo-lhe uma porção de palavras carinhosas de agradecimento. Representou esse papel com a graça que sabia ter, quando queria, motivo por que a voz da princesa se foi abrandando cada vez mais. Por fim, a boa senhora exclamou:

— Tu és terrível! Agora vai dormir, querido Gritzko. Durante toda essa cena, Tamara, com os olhos fechados, fingia que dormia. Quando

a princesa fechou a porta e correu o ferrolho, dirigiu-se à moça dizendo-lhe: — Suponho, Tamara, que não estás dormindo Ouviste tudo? Que se pode fazer com

ele? Não é possível estar muito tempo zangada com Gritzko porque é tão engraçado, tão carinhoso! Meu Deus, só queria que vocês gostassem um do outro e se casassem e fossem morar em Milaslic assim, nós todos ficaríamos tranqüilos.

— Casar-me com ele?! exclamou Tamara, levantando-se em seu leito. Talvez fosse menos perigoso casar-me com um tigre!

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Mas a princesa abanou a cabeça e respondeu: — Estás completamente enganada. Desde que não se lhe oponham obstáculos à

vontade, é carinhoso e amoroso. Mostrar-se-á tão terno contigo como o faz comigo, quando estou doente.

Então, pela mente de Tamara, passaram as idéias do inefável prazer que essa ternura poderia proporcionar-lhe. E concluiu:

— Não falemos mais disso esta noite, madrinha, porque estou com muito sono. Na manhã seguinte, chegaram a Moscovo.

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CAPITULO 16 O dia inteiro foi dedicado às visitas à capital e passou-se em relativa paz. Tamara

estava quase sempre com o marido de Sônia ou com Stephen Strong, quando não tinha outro remédio senão ficar só com um homem.

Na aparência mostrava-se indiferente para com Gritzko. Embora estivesse atenta a cada um dos movimentos dele e, intimamente, sentisse o maior desejo de falar4he, mantinha-se fiel à conduta que se havia imposto, abstendo-se de qualquer comunicação com o príncipe. Isso, entretanto, não lhe era agradável, e, não fosse a excitação em que se achava, teria sofrido muito.

Quanto a Gritzko, parecia não se preocupar com o que Tamara fazia. Mas a princesa, que observava com a maior atenção e perspicácia a marcha dos acontecimentos, experimentou certa inquietação. Todavia, mesmo tendo os seus temores não teria podido aconselhar a Tamara outra conduta. Em resumo, o dia transcorreu sem anormalidades.

Os dois convidados ingleses estavam absorvidos pelo que viam. Stephen Strong, que conhecia perfeitamente a capital, servia de cicerone aos outros, que se mostravam encantados. Por sorte continuava nevando, e eles puderam percorrer a capital em velocíssimos trenós, visitando as formosas construções, as ruas pitorescas, as igrejas a ostentar brilhantes e douradas cúpulas. Moscovo era realmente, uma cidade russa, como lhes dissera o príncipe Solentzeff-Zasiekin, inteiramente diversa de S. Petersburgo que, à primeira vista, não se diferençava de Berlim, de Viena, ou de qualquer outra capital do Norte. Não se parecia com nenhuma outra cidade do mundo.

— Como devem ser bons os russos! exclamou Tamara Teto numerosas igrejas e tanta devoção no povo! Vejam como em plena rua,. eles dão demonstrações de sua fé.

— Nossa fé é a nossa salvação — disse o príncipe de Milaslavski. Quando o povo atinge a um nível mais alto de educação, começa a duvidar, e então, não tarda a chegar uma catástrofe.

— Não lhe parece que todos têm uma expressão grave e paciente? observou Stephen Strong. Não é precisamente uma expressão de desesperança, mas de resignação. Sempre que visito Moscou, compreendo a inutilidade da luta mas, depois de algum tempo de contemplação dessas fisionomias, sinto-me possuído de grande melan-colia.

Enquanto assim palestravam, esperavam, perto da entrada da casa dos Romanoff, que o guia lhes abrisse a porta. Naquele momento passou um bando de mendigos, cujos cabelos desgrenhados e roupas esfarrapadas, sob velhos agasalhos de pele de cabra, ofereciam um espetáculo estranho e desagradável. Pediam esmolas com o mesmo sorriso paciente com que agradeciam aos que lhes atendiam à súplica. Sua miséria parecia enorme.

— Como pode viver uma família grande nesta casa tão pequena? — perguntou

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Tamara. A gente dos tempos antigos parecia ter a propriedade de se dobrar para ocupar menos espaço. Repare neste dormitório e nesta cama tão ridiculamente pequenos.

— Isso lhe servirá de preparo para o que vai encontrar em Milaslcrw — disse Gritzko. Um grupo de leitos de campanha bem juntos e dispostos no hall.

Enquanto ele falava, Tamara procurou avançar, de forma que a sua resposta se dirigiu a todos, como já acontecera outras vezes, naquele dia.

Mas se ela tivesse olhado para trás ver-lhe-ia nos olhos um brilho que não augurava nada de bom. Entretanto, pensava que a sua conduta não poderia ser melhor. Cada desaforo que fazia ao príncipe apenas servia para chegar mais lenha à fogueira.

Ao terminar o dia, depois de terem visitado o tesouro, vários museus e outras coisas, sem que aparecesse uma oportunidade de falar com Tamara como desejava, o humor do príncipe era horrível. Mas ele se conteve e cobriu o rosto com a máscara da indiferença, o que fez desaparecer até os temores da princesa.

A ceia foi muito alegre e os russos perguntaram a lord Courtray o que o impressionara mais.

— Gosto muito da história de Ivã o Terrível, cravando o alpeinstoek no pé do mensageiro, na escada, quando chegava com a carta, respondeu Jack. Assim é que se deve fazer pregar o mensageiro no lugar.

Enquanto isso, Tamara conversava em voz baixa com Stephen Strong, que dizia: — Quanto mais tempo se fica neste país, mais fascinador ele nos parece. Imagina-

se que se está próximo de alguma das mais primitivas paixões humanas. Aqui em Moscovo, a terra parece inteiramente manchada de orgias e de sangue, não obstante a capital estar cheia de poesia de aparência romântica. O próprio Ivã o Terrível tinha o seu aspecto religioso, e todos os russos, sem exceção, crêem nos santos e nos sacerdotes. Diz-se que o impostor, que se quis fazer passar por filho de Ivã o Terrível, não o conseguiu por se ter mostrado demasiadamente bom. Foi clemente para com Shuisky ,e seus inimigos, em vez de os mandar destroçar. Com isso, o povo não acreditou que fosse filho do Terrível. Perseguiram-no até aquela janela do palácio do Kremlin, que visitamos e, por ela, teve de atirar-se.

— Que não poderá resultar de uma história cheia de crimes tão medonhos? observou Tamara.

— É preciso não esquecer que o país está, em realidade, uns trezentos anos atrasado em relação aos tempos atuais, acrescentou Stephen Strong. Não há dúvida que, em outros países, foram cometidos horrores semelhantes, desde que observemos na his-tória o tempo correspondente. Por não ter em conta esta circunstância, muitos estrangeiros, e não poucos historiadores, são injustos para com a Rússia e seus habitantes. As qualidades nacionais deste país são grandes, mas, como nação civilizada, é ainda muito jovem.

— Creio sinceramente que se pode chegar a amá-lo — disse Tamara. Desde que aqui estou, não tive ainda a sensação de estar entre estrangeiros.

A moça olhou admirada o seu interlocutor, sem compreender porque Strong sorria de uma maneira tão significativa, como vinha fazendo freqüentemente.

Ao fim da ceia, os olhos de Gritzko pareciam duas chamas. Este sugeriu diversas extravagantes maneiras de passar a noite. Mas, a princesa Ardacheff, como chefe de

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expedição, insistiu prudentemente em que se fossem deitar, pois, na manhã seguinte, teriam de continuar visitando outras coisas interessantes, e, em seguida, empreenderiam uma viagem de trinta verstas, em tróica, para chegarem a Mílaslaw.

Estofe palavras tiveram a virtude de convencer as senhoras, que se dirigiram logo aos respectivos leitos.

— Tamara, peço-te deixar aberta a porta que comunica o teu quarto com o meu, se nisso hão achas inconveniente — disse-lhe a madrinha. Não estou nunca sossegada quando durmo em hotéis. Julgo que nada há de acontecer, pensou. Mas nunca se pode estar segura. No dia seguinte o tempo estava encoberto e ameaçava grande nevada. Não se poderia imaginar aspecto mais triste, e mesmo bárbaro, como o de Moscovo, segundo pareceu a Tamara. As cúpulas douradas e as várias cores das coisas apresentavam um aspecto estranho.

A primeira visita foi à igreja da Assunção, na qual se coroavam os imperadores. A grande beleza e as riquíssimas cores de sua ornamentação eram inteiramente diversas do que soem ser nas igrejas do Ocidente: o aspecto, a ausência de cadeiras e bancos, o altar, os numerosos quadros e afrescos das paredes, tudo emprestava ao edifício um, misterioso e maravilhoso encanto. Os ingleses sentiram-se outra vez emocionados pela fé simples do povo.

-— Nós pegaríamos toda a sorte de enfermidades beijando estes ícones, beijados por mendigos imundos, cobertos de úlceras — disse Stephen Strong. Mas a crença de que dessas imagens só pode vir o bem, só lhes traz benefícios, faz crer que não haja contágio. O estudo desta gente nos torna menos materialistas, e aumenta a nossa fé nas coisas ocultas. Precisamente naquele instante, começava a cerimônia religiosa em honra ao santo do dia, e, dai a pouco, ouviram-se as vozes angelicais das crianças, acompanhadas pelas vozes graves dos sacerdotes e pela música do órgão. Tudo isso impressionou Tamara muito mais do que em qualquer dos templos de S. Petersburgo.

A paz encheu-lhe a alma. Assim como a música dos ciganos parecia vir do inferno, aquela parecia descer do céu. Quando ela saiu à rua, sentia-se mais tranqüila e feliz que antes.

Depois de almoçar cedo, todos partiram em três tróicas que estavam esperando à porta do hotel. Duas delas pertenciam a Gritzko, e a outra ao príncipe SolentzeffZasiekin, que também tinha propriedades na região.

As tróicas, que tinham vindo dois dias antes de Milaslaw, eram muito bonitas. O príncipe orgulhava-se de seus cavalos, que tinham fama na Europa inteira.

Os trenós de forma graciosa, dirigidos por cocheiros de bonitos uniformes, pareciam dar idéia de que tiveram origem nos carros romanos.

As cores de Gritzko eram de um azul esverdeado escuro as rédeas e os gorros de veludo e os cinturões dos cocheiros, cor de cereja; os gorros tinham galões de prata, e os casacos e as mantas eram forrados e guarnecidos de zibelina. Uma parelha de cavalos era preta, e a outra tordilha escura. Tudo aquilo se harmonizava perfeitamente com o estilo das construções; a cena, de caráter semi-bizantino, acrescentava sua nota oriental de graça pitoresca.

— Qual destas parelhas prefere? — perguntou Gritzko a Tomara. Decide-se pelos cavalos pretos ou pelos tordilhos?

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— Prefiro os pretos, replicou Tamara. Sempre gostei dos cavalos, pretos. E estes são tão belos!

O príncipe acrescentou: — Se quer vir com Stephen e comigo, Tantine, deixaremos mais leve o trenó e

iremos mais depressa. Mrs. Loraine e Olga irão com Serge e lord Courtray, na tróica dos cavalos pretos Valonne, Sônia e o marido irão na outra. Estão de acordo?

Todos concordaram e assim se repartiram pelos veículos. Foi; uma viagem muito agradável, pela neve. A todos parecia que iam voando, logo que deixaram a cidade. A erma campina gelada impressionou tanto a Tamara como a Jack. Enquanto a moça refletia acerca do aspecto da paisagem, lord Courtray examinava-lhe as possibilidades de um ponto de vista puramente esportivo.

Por fim, penetraram em um bosque escuro que parecia estender-se por várias milhas, e, em seguida, depois de umas três horas de viagem, chegaram à entrada de Milaslaw.

Atravessaram uma espécie de parque rústico e, então, apareceu a casa, um enorme edifício com grandes colunas jônicas, e alas dos dois lados. Na parte traseira, formando uma massa irregular, havia uma construção de madeira, de data muito mais recente.

Tudo aquilo pareceu a Tamara e a Jack deliciosamente estranho e com um vago ar de coisa provisória.

Penetraram em um hall desocupado, que apresentava manchas em um dos lados das paredes, decorado no estilo Império russo, bela concepção que conservava as linhas clássicas dos franceses, possuindo, todavia, maior riqueza de detalhes. Em seguida, subiram ao andar superior, por uma ampla escadaria.

As dependências da casa, correspondentes aos diversos aposentos, estavam desocupadas e não tinham móveis. As paredes eram de pedra e rebocadas e, de longe em longe, percebiam-se vestígios de uma antiga decoração. A casa inteira oferecia um aspecto estranho. Havia numerosos criados, todos vestindo, a mesma vistosa libré. Por fim, os visitantes chegaram a um grande salão, iluminado e aquecido, ainda que não houvesse fogão aceso, mas, apenas, uma enorme estufa de porcelana.

O estilo Alexandre I, realmente belo apesar de um tanto sobrecarregado, brigava das paredes com um horrendo mobiliário do tempo de Alexandre II. Mas o conjunto dava uma estranha impressão de inacabado, e numa parede havia um belo retrato do avô do príncipe, todo crivado de balas!

Cobriam o soalho esplêndidas peles de urso e de lobos. O ambiente geral dava a perceber que aquele aposento costumava estar habitado, mau grado a mistura de luxo e ruína que ali reinava. O formoso brocado, que revestia um dos sofás, apresentava sinais de grandes arranhões. Em uma mesa, viam-se caixas de charutos e cigarros, de um fino esmalte adornado de pedrarias; em outra, objetos de madeira tosca. De um lado, havia um armário que continha ricas coleções de tabaqueiras bonbonnières do reinado de Catarina, mas o cristal do móvel estava de tal modo rachado, que parecia uma teia de aranha.

Tamara experimentava a sensação de se achar milhões de quilômetros da Inglaterra e de sua família. Tudo aquilo lhe parecia pertencer a uma outra vida. Sentia-se estranhamente nervosa, sem compreender por que. Havia em tudo uma aparência

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esquisita, inquietante. — Se tudo isto estivesse em ordem, seria magnífico, pensou. Mas, tal como se acha,

retrata perfeitamente Gritzko e dá a perceber a natureza impulsiva e desordenada do dono.

Os convidados esperavam o chá, o habitual vodca e um cálice de ponche quente. Os três ingleses, Strong, Tamara e Jack, , admiraram o amável acolhimento do

príncipe não havia vestígio do Gritzko que tão bem conheciam. — Como serão os dormitórios reservados aos convidados? pensava Tamara

consigo. — Tantine, peço-lhe que faça as vezes de dona de casa. Quer dar-se ao incômodo

de mostrar a estas senhoras os aposentos que lhes foram reservados? — perguntou o príncipe. A ceia será às oito horas da noite. Há tempo para jogarem algumas partidas de bridge, se o desejarem.

E percorreu com elas os salões de recepção, uma sala de bilhar, uma biblioteca e um pequeno boudoir. Em seguida, chegaram a uma escada que conduzia ao andar superior. Ali deixou-as e voltou para a companhia dos homens.

— Isto foi construído pela última princesa, Tamara — disse-lhe a madrinha. Há vinte anos o gosto dominante era ainda perfeitamente horrível, como estás vendo. A casa inteira poderia ser bela, se houvesse alguém que por ela se interessasse. De qualquer maneira, espero que ficaremos comodamente instalados.

O corredor, por onde passavam então, era muito largo. Suas paredes tinham somente duas cores, como a sala de espera de uma estação ferroviária. Não se percebia ali o mais pequeno esforço para embelezar o lugar, mobiliando-o com cadeiras esculpidas, armários com porcelanas, retratos, cortinados ou tapetes, como se teria feito em uma casa inglesa. Aquele corredor parecia-se quase com o de um quartel.

O quarto de Tamara e o da princesa se comunicavam. Os dois aposentos tinham enormes tapetes e cortinados de brocado azul. Quanto aos móveis, eram dourados as camas, modernas, de metal.

Em suma, dois aposentos enormes, arejados e claros, monumentos característicos do gosto de 1878.

— É incrível, madrinha, que tendo diante dos olhos os lindos modelos do século XVIII, tenham podido perpetrar isto! Só parece que veio uma onda de mau gosto, e os artistas, perdendo o senso da beleza, começaram a produzir coisas grotescas.

— Pois isto é um paraíso comparado com outras casas. Precisas ver a .de minha cunhada.

Ao voltar ao salão, ali encontraram uma mesa de bridge já preparada. Sônia, Serge Grekoff e Valonne esperavam a princesa, para começar o jogo. Parecia que todos estavam de acordo em deixar inteiramente livres Tamara e o

príncipe. — Sinto que é meu dever aprender a jogar melhor — disse a moça. Por isso, vou

prestar atenção. Ele tomou-lhe a mão e disse: — Não vá. Seja mais amável para com o dono da casa. Quero que venha sentar-se

aqui e conversar comigo.

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Os olhos dele pareciam chamejar. Tamara revoltou-se. — Não parece um homem civilizado, príncipe! Quer que se faça sempre a sua

vontade! Pouco lhe importa o meu desejo de assistir ao jogo. — De todo! — Já que me vejo obrigada a ficar aqui, serei o mais desagradável possível e não

direi uma só palavra. Tamara sentou-se resignada, juntando as mãos. Gritzko acendeu um cigarro,

tremendo ligeiramente, segundo a moça pôde observar. Com voz muito firme disse: — Com franqueza, previno-a de que, se continuar tratando-me como tem feito até

hoje, a culpa do que possa acontecer será unicamente sua. — Pretende acaso estrangular-me? Ou fazer os cães me estraçalharem? disse

Tamara sorrindo provocantemente. Sentia-se em perfeita segurança com a presença dos outros na mesma sala.

Tinha sofrido tanto, que lhe pareceu agradável contrariá-lo um pouco, numa ocasião em que ele não podia puxar duelo com um inocente.

— Esta noite nada poderá fazer, pensava Tamara, e amanhã mesmo voltaremos a Moscovo, de onde seguirei para a Inglaterra.

A moça estava animada pelo desejo de se divertir à custa do príncipe. Até então, este pôde quase sempre fazer respeitar o seu capricho mas isso constituía para a jovem um grande desgosto e, naquela noite, apresentava-se-lhe ocasião de se vingar. Assim, recostou-se na cadeira fazendo uma deliciosa careta, e sorrindo, disse:

— Como o senhor é bárbaro, príncipe! Mas graças a Deus, já se passaram os tempos de Ivã o Terrível.

— Não brinque com o desconhecido. Ela olhou-o com as pálpebras semicerradas e notou que ele estava muito pálido. Na vida tranqüila e bem ordenada de Tamara, jamais se lhe apresentara

oportunidade de se ver frente a frente com uma grande paixão, motivo por que, naquele momento, não reparava o que fazia, só sabia que o amava muito e era isso, precisa-mente, o que a feria em seu orgulho.

Parecia uma compensação à vaidade ferida fazê-lo sentir a dor e castigá-lo um pouco, por tudo quanto ela passara.

— Dentro de uma semana, estarei bem tranqüila na Inglaterra, onde não há necessidade de temer o desconhecido.

— Deveras? — Deveras. Minha madrinha e eu já combinamos tudo. Tomarei o expresso do

Norte, terça-feira, logo que chegar a S. Petersburgo. — E como amanhã é quarta-feira, restam ainda cinco dias. Pois trataremos de

mostrar-lhe mais algumas cenas de meu incivilizado país e talvez depois disso não queira partir.

Tamara sorria zombeteiramente. Pôs os pezinhos para a frente e bateu com eles de leve na extremidade da enorme estufa.

— Por uma vez farei o que desejo, príncipe, e não lhe pedirei permissão. Os olhos dele pareciam faiscar. Estava imóvel na cadeira, como a pantera fitando a

presa. Tamara estava excitada. Não seria dominada daquela vez. E continuou brincando

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com o príncipe, certa de que estava a salvo de seus ataques, graças à companhia dos amigos.

Estes, um a um, deixavam o jogo e ficavam alguns minutos onde os dois estavam, mas logo tornavam ao seu lugar. E assim passou-se a última parte da tarde, até que todos foram vestir-se.

Ninguém tinha ainda chegado ao salão, quando Tamara e sua madrinha desceram para cear, mas, quando elas entraram, Strong e Valonne fizeram o mesmo por outra porta, e reuniram-se-lhes perto da estufa. Tamara e Valonne puseram-se a conversar, enquanto o outro par se sentava em um sofá distante.

— Conde Valonne, perguntou Tamara, tem tomado parte em alguma das festas que se têm realizado aqui?

— Sim, respondeu o moço, com enigmático sorriso. Uma ou duas vezes. Imagina talvez que estas salas conservam vestígios dos divertimentos um tanto violentos, aqui realizados e, realmente, olhando em torno de mim, vejo que assim é.

Tamara sentiu-se invadida por um leve tremor. — Parece que aqui se reuniam animais selvagens e não seres humanos. Repare

naquele armário, no sofá e neste quadro. Por mais que a gente se esforce, não pode adivinhar a causa desses buracos e rasgões. Nossa imaginação há de supor que aqui se passaram cenas extraordinárias.

— E ficará sempre aquém da realidade! exclamou Valonne rindo, como se tivesse tido uma lembrança engraçada. Não viu ainda os aposentos do príncipe?

— Quer dizer-me que estão em pior estado do que estes? — Não, absolutamente! Foram mobiliados e decorados por uma excelente casa

inglesa. São cômodos, bonitos, corretos. Seu salãozinho está cheio de livros, tem alguns quadros bons, e comunica-se com o quarto de vestir e com o dormitório. O quarto de banho é um primor nenhum encanador americano poderia fazer coisa melhor.

Valonne tinha passado alguns anos em Washington e na Inglaterra, de maneira que falava o inglês como se este fosse o seu idioma.

— Gritzko é o contraste mais notável que já vi entre a civilização e a barbárie, acrescentou.

— Sempre me produz o efeito de que se esforça em esmagar qualquer coisa dentro de si — disse Tamara. Como se praticasse essas selvagerias para esquecer.

— É a sua natureza ilimitada que luta com um obstáculo impossível. Se fosse inglês, sem dúvida chegaria a ser um dos maiores homens da nação, talvez a senhora não tenha conversado com ele sobre assuntos, sérios. Tem lido muito. Mas ao tratar de algum assunto que nós, os ocidentais, conhecemos desde a nossa infância, vê-se com surpresa que ele o ignora em absoluto. Mas nunca se torna cacete.

Como Tamara parecia muito interessada, Valonne prosseguiu: — Os criados o adoram. Pertencem à casa desde que ele nasceu e entendem que o

patrão não pode fazer nada que seja ruim. É um desportista. Dois ou três dos criados servem-lhe de treinadores, com os quais luta ou joga box. No ano passado, Basílio, sem o querer, deslocou-lhe o ombro e logo, cheio de remorsos quis suicidar-se. Mesmo que a senhora aqui ficasse mais tempo não poderia compreender essa gente. Zangam-se com a maior facilidade, mostram-se ferozes, bárbaros e, todavia, dão constantes provas de bons

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sentimentos. Posso afirmar que, se o patrão lhes ordenasse esta noite que deitassem fogo aos nossos aposentos, fá-lo-iam sem articular uma só palavra ou fazer a menor.ob-servação. Gritzko é o “paizinho” deles. Para eles há uma trindade digna de respeito: o Imperador, Deus e o Patrão.

Tamara estava impressionada. Pensava com mágoa que, se. o Destino quisesse que ele a amasse, ambos seriam muitos felizes naquele ambiente. Gomo ela seria terna, carinhosa e obediente, para o fazer feliz!

Mas naquele mesmo instante e com uns modos que lhe pareceram insolentes, o príncipe entrou na saía e começou a conversar com Valonne. Em seguida, voltou-se para ela e disse-lhe qualquer coisa que a encolerizou. Mas, vendo-se impotente para se vingar, aceitou o braço dele, para irem ao salão de jantar.

Em primeiro lugar, serviram zacouska; em seguida, começou a verdadeira refeição. Todos estavam muitos alegres. A condessa Olga e Courtray pareciam satisfeitos com o seu flerte. Jack principiara a falar em voz baixa, e Tamara sabia que isso era sinal de que as coisas tomavam já um caráter sério. Sentada entre o marido de Sônia e o príncipe Solentzeff-Zasiekin e Gritzko, ela ouvia este discorrer brilhantemente, divertindo os seus convidados.

Havia um quê de tão atrativo no príncipe, que Tamara não se atrevia a fitá-lo, pois tinha a certeza de que, se o fizesse, não poderia manter-se na reserva que se impusera.

Por isso, voltou-se para o vizinho da direita, falou com ele, escutou-lhe, aparentemente, as intermináveis dissertações sobre Moscou e, embora parecesse interessada na palestra, seus pensamentos eram cada vez mais inquietos.

Era como uma agulha que, apesar de provida de vontade independente, fosse a contra gosto atraída por um ímã. Tamara tinha que envidar os maiores esforços para olhar para o marido de Sônia, e, quando Gritzko a abordava, ela lhe respondia com monossílabos, seca e polida, como teria sido com um desconhecido.

Ao terminar a refeição, ele estava de novo cheio de raiva e desespero. Quando os convidados voltaram ao salão, viram que uma das extremidades deste

fora desocupada. Estavam dispostas algumas poltronas em semi-circuIo, como se se preparasse algum espetáculo. Apresentou-se então uma companhia de dançarinos russos e alguns cossacos que fizeram interessantes malabarismos com espadas, enquanto alguns músicos, em trajes regionais, acompanhavam a representação.

Tamara e lord Courtray tinham visto o mesmo gênero de danças em Londres, em uma tournée de uma companhia russa, mas estava longe da extraordinária paixão com que estes dançavam. A representação era uma maravilha uma ou duas das mulheres formosíssimas.

Gritzko portou-se, com referência a elas, como um dono bom para com os seus cães de alto preço. Mas, este sentimento era mútuo, porque os cães também pareciam estimar ao dono com cega devoção.

Durante quase todo o espetáculo, Gritzko esteve sentado atrás da princesa, e, de vez em quando, murmurava-lhe ao ouvido algumas palavras voltava-se também para a princesa Sônia, ou para a condessa Olga, mas, por fim, colocou-se junto a Tamara e, inclinando-se, apoiou-se ao espaldar de sua poltrona.

Nada falou, mas a sua proximidade causou à moça a mesma deliciosa sensação de

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outras vezes, sensação que ela tanto desejava e tanto temia ao mesmo tempo. Quando o coração de Tamara lhe batia com força, o corpo inteiro lhe vibrava de emoção, lhe era imenso sacrifício não se voltar para ele.

A atitude de Gritzko, aparentemente feroz, assustava-a, logo, porém, que ele se mostrava carinhoso, ela sentia-se amolecer, e seu desejo era achar-se em seus braços Por isso, inclinou-se para. a frente e começou uma animada conversa com Stephen Strona.

Gritzko levantou-se bruscamente para se dirigir para onde estava a princesa. Logo foram trazidas as mesas e servida a ceia.

Tamara conseguiu fugir-lhe ainda uma vez, quando ele lhe dirigiu a palavra. Parecia-lhe que isso era a única coisa que deveria fazer, pois com ele não se podiam empregar meias medidas. Amava-o muito para se entregar, por pouco que fosse, aos próprios sentimentos, o que a teria colocado em situação de inferioridade.

Ficaram sós um momento e ele, fitando-a atrevida e apaixonadamente nos olhos, disse-lhe:

— Tamara, sabe que me está enlouquecendo? Acha que isso é direito? — Pouco me importa que seja direito ou torto, príncipe. Já lhe disse que de ora em

diante farei o que me convier. E reuniu todas as suas forças, para que o seu olhar fosse indiferente. — Está bem, retorquiu ele, saindo, e não lhe falou mais. A longa viagem nas tróicas tinha fatigado a todos e, contra o costume, todos

estavam dispostos a deitar-se logo depois de uma hora da madrugada foi surpresa geral, Gritzko não protestou: antes, pelo contrário, concordou em que as senhoras se dirigissem aos respectivos aposentos.

Os últimos pensamentos de Tamara, antes de fechar os olhos, foram que tudo fracassara. Ela não havia conseguido nada. Amava-o loucamente, e ia regressar à Inglaterra. Se pôde fazê-lo sofrer, isso não lhe dava, nenhum consolo. Mais feliz se jul-garia se estivesse nos braços dele.

Enquanto isso, Gritzko chamou Ivã, o seu mordomo, e foi este o resumo das ordens dadas ao humilde servidor, que na manhã seguinte, bem cedo, se acendesse a estufa que havia na cabana próximo do lago, onde, na temporada de caça aos frangos-d'água, ele costumava passar a noite esperando a aurora.

— Trata de arranjar comida para os cavalos, acrescentou. Stepan deve guiar a minha tróica de cavalos pretos. Preparem também a outra, com a parelha baia mas que não apareça nenhuma até que tenha partido a de cavalos tordilhos. Além disso deixa na cabana alguma comida e, também, um pouco de brandy e champanha.

O servidor inclinou-se, em sinal de obediência, e já se dispunha a sair. — Lubrifica a fechadura e põe a chave no bolso do meu casaco, acrescentou o amo,

chamando-o novamente. Em seguida, acendeu um cigarro e, puxando as pesadas cortinas, observou a noite.

Esta estava escura, e a neve não havia começado a cair ainda. Tudo ia bem.

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CAPITULO 17

A manhã seguinte, quando Tamara começava a se vestir, sua madrinha entrou-lhe no quarto.

— Vai cair uma terrível tempestade de neve, querida! Parece-me que o melhor será sugerir a Gritzko regressarmos a Moscovo antes do almoço. Não é brincadeira ser-se surpreendido por uma nevada neste país. Vou mandar-te Katia.

A criada de Tamara tinha ficado em S. Petersburgo. Só as tinha acompanhado a criada da princesa, mulher de idade, russa, acostumada a essas excursões.

— Não levarei mais de meia hora para me vestir. Não desça sem mim, madrinha. A princesa assim lho prometeu e saiu. — Nossa excursão tem sido muito agradável, não? dizia, quando, pouco depois,

desciam a escada. Gritzko portou-se muito bem. Estou contente, minha querida, que possas partir daqui sem aquele sentimento desagradável de briga. Houve um instante, ontem à noite, quando ele se separou de ti, em que temi que estivesse zangado. Mostrou-se, porém, tão carinhoso ao falar comigo, que me tranqüilizei.

— Sim, é verdade, respondeu Tamara, sem convicção, ele tem sido muito gentil. Quando chegaram embaixo, souberam que o príncipe se dirigira com Jack e os

demais homens as cavalariças, a fim de ver os famosos cavalos. A princesa Sônia e a condessa Olga já ali estavam fumando com indolência e fingindo terminar uma dupla partida de seu jogo favorito.

Cumprimentaram encantadas as duas senhoras, em breve, as quatro se puseram a jogar. Tamara, que não gostava do jogo, teve de se esforçar para não cometer algum engano.

Assim se passou uma hora, até que, por fim, chegou Stephen Strong, e, em seguida, os demais cavalheiros.

Jack Courtray estava entusiasmado com os cavalos, e com tudo quanto vira. Ele e Gritzko haviam projetado, para a semana seguinte, uma caçada aos ursos. Tudo lhes parecia cor-de-rosa, à exceção do céu, que continuava coberto de nuvens negras.

A princesa chamou Gritzko e conduziu-o à extremidade da sala, a fim de falar-lhe. Expôs-lhe os seus temores a respeito da tempestade que se anunciava e mostrou-lhe a necessidade de partirem imediatamente. O rapaz se mostrou conformado.

— Peço-te que nos deixes levar Katia, acrescentou a princesa, pois ao chegarmos a Moscou, estaremos sem criada.

Assim ficou combinado. A princesa, Stephen Strong e Katia partiriam primeiro; Sônia e o marido levariam Serge e Valonne; deixando a Gritzko o cuidado de levar Tamara, Olga e lord Courtray.

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Durante o pequeno almoço, que foi servido mais cedo, o dono da casa estava manso como um cordeiro.

Procurou tornar-se agradável a todos; a princesa, geralmente tão receosa, estava tranqüila e contente a própria Tamara quase sentiu remorsos.

Só o conde Valonne se fosse interrogado teria, talvez, dito alguma coisa. Mas, era discreto e guardaria as suas idéias para si mesmo.

Começou a nevar caíram a princípio alguns flocos, mas isso não foi bastante para que apressassem a partida

Na conversa geral ninguém reparou que Gritzko não havia dirigido uma só palavra a Tamara esta porém, o notou e isso, em ,vez de acalmá-la, causou-lhe certa depressão de ânimo.

— Irás muito à vontade com Olga e teu amigo querida Tamara — disse-lhe em voz baixa a princesa, quando se dispunha a tomar a tróica em que partiria em primeiro lugar. — Por outro lado, caminharemos todos a curta distancia uns dos outros.

Logo se despediram e, em seguida, partiu o grupo que acompanhava a princesa Sônia. O frio era intenso, e, como ainda não tinha aparecido a troica dos cavalos negros, Gritzko propôs que as senhoras entrassem novamente e esperassem no salão.

— Não te parece muito ridículo viajarmos a pequena distância uns dos outros, como se fôssemos um rebanho? observou a Jack, quando Olga e Tamara estavam mais distantes. Assim que as duas tróicas, que acabam de sair, tenham tomado alguma vantagem, mandarei atrelar também os cavalos baios, pois que se prepara uma grande tempestade. Correremos muito mais se cada tróica for apenas com duas pessoas.

Jack declarou que estava de acordo com ele, tinha ótimas razões para. ir só com a condessa.

Naquele mesmo instante, enquanto os dois jovens fumavam na escadinha, apareceu a tróica, puxada pela parelha de cavalos baios.

— Vou buscar Olga — disse Gritzko. A sorte o favoreceu, pois a encontrou na porta do salão. — Tinha esquecido meu agasalho e ia ver se encontrava — disse ela. Ele explicou-lhe que ameaçava uma grande tempestade de neve, dando-lhe a

entender a conveniência de irem dois em cada trenó, porque, assim, fatigariam menos os pobres cavalos. A condessa Olga recebeu muito satisfeita a proposta e consentiu em sentar-se numa delas, sob as peles e em companhia de Jack, sem se despedir de Tamara. E partiram.

— Alcançá-lo-emos em dez minutos! Os cavalos pretos são muito velozes! gritou Gritzko.

Os excursionistas seguiram alegremente e logo desapareceram atrás de um grupo de árvores. Gritzko voltou-se para falar ao seu fiel Ivã e ordenou-lhe:

— Dentro de um quarto de hora, manda trazer-me a parelha de cavalos pretos. Ao dizer estas palavras, seus olhos brilharam, fitos na neve, que começava a cair

com mais força. Sentada no salão, junto à estufa, Tamara começava a sentir-se inquieta, pela solidão

em que a deixaram. Que estaria fazendo Olga, tanto tempo ausente. Abriu-se a porta e apareceu o príncipe.

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— Temos que partir agora — disse ele, em tom frio, mas polido. Vem uma grande tempestade e, como quatro pessoas são carga muito pesada para uma só tróica, lord Courtray e a condessa já partiram.

A moça sentiu o coração saltar-lhe. O rosto, porem, não exprimiu nenhuma emoção. Fazendo um grande esforço, ela tranqüilizou-se.

Ele mostrou-se muito cerimonioso e delicado ao ajudá-la a subir à carruagem. Não se sentou muito junto a ela, nem alterou em nada o comportamento, quando o veículo se pôs em movimento. Apenas pronunciava uma ou outra palavra, tratando, ambos, de abrigar-se e proteger-se bem contra a grossa nevada. Se Tamara não estivesse tão ocupada em envolver a cabeça com o gorro de peles, teria observado que, ao atravessarem o portão do parque, deram uma volta para a direita, ao encontro da tormenta, e não para esquerda, que era o caminho que deveriam tomar.

Por fim, o príncipe disse qualquer coisa em russo ao cocheiro, este sacudiu a cabeça, dando a entender que compreendera. O tempo estava simplesmente horrível, e o veículo parecia abrir caminho por onde, antes, nada passara.

— Stepan disse que não podemos seguir para diante e que será preciso abrigar-nos em uma cabana, anunciou Gritzko, com a maior gravidade.

Tamara sentiu-se novamente tomada de medo. — Mas que terá acontecido com os outros? — indagou. — Por que não vemos sinais de suas troicas? — Ficam apagadas em menos de cinco minutos. Vê-se que não conhece as nossas

tempestades. Tamara ficou seriamente alarmada, mas logo reagiu, não era covarde e, na verdade,

não tinha motivos para assustar-se. Seu companheiro parecia estar com o pensamento longe. Por outro lado, ela sentia tanto, frio que compreendeu quão razoável era abrigar-se em alguma parte.

Entretanto já se haviam internado no bosque, e o caminho, se assim se podia chamar, era já mais perceptível, apesar da neve.

A paisagem era estranha, enormes abetos meio ocultos pela cortina de tenuíssimos flocos de neve. A luz do dia desaparecia cora rapidez e Tamara podia ver as nuvens de vapor que os cavalos expeliam, ao respirar. Stepan, o cocheiro, olhava reto em seu assento, parecendo um pirata do Norte na proa de seu navio.

Por último, divisaram o lago gelado e, junto deste, uma cabana de troncos de árvore. Chegaram ali abruptamente, de modo que Tamara só teve tempo de ver, ao penetrar no alpendre, que a construção não era grande e tinha teto baixo.

Naquele momento a moça estava tão enregelada que não notou que o príncipe abria a porta, mas, depois, refletiu que deveria ter estranhado que ele tivesse a chave da cabana.

Gritzko ajudou-a a descer da tróica. Ela quase caiu, tão gelados os membros lhe estavam. Em seguida, depois de atravessar um curto corredor, achou-se em uma sala grande e agradavelmente aquecida. Em uma extremidade havia uma estufa; as paredes, pintadas de verde, estavam adornadas com vários chifres de veado. No centro, viam-se uma mesa de carvalho, um banco, um par de poltronas de madeira, uma espécie de armário, uma cama muito grande com almofadas de couro e no soalho, várias peles de

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lobo. O príncipe não deu explicação nenhuma acerca do lugar em que se achavam, nem

porque o fogo estava aceso apenas se limitou a ajudar a companheira a tirar as peles, sem pronunciar uma palavra. Colocou tudo em um cabide que havia na parede e, em seguida, tirou o seu agasalho.

Estava elegantíssimo no seu paletó castanho. Depois de examinar a estufa e olhar através das janelas saiu da sala, silencioso.

O contraste do calor que ali reinava com o frio lá de fora causou a Tamara um zunzum nos ouvidos e um ligeiro enjôo. Não estava bem certa mas lhe pareceu que a chave estava com volta na fechadura. Levantou-se rapidamente da poltrona em que se havia sentado, e aproximou-se da porta para verificar se estava fechada a chave. O co-ração bateu-lhe intensamente e a coitada quase ficou sem respiração ao notar que estava fechada por fora.

Durante alguns minutos, que, lhe pareceram séculos, só pôde sentir o terror que a dominava. Era-lhe impossível atinar com o que deveria fazer. Logo, porém, recobrou a sua coragem habitual e tranqüilizou-se um pouco.

Voltou-se para a janela, que era de vidraça dupla e estava sòlidamente fechada. A cabana não tinha outra,saída senão aquela porta. Ao notar isso, sentou-se à espera dos acontecimentos. Talvez o príncipe quisesse assustá-la somente e, quem sabe alguma razão havia que justificasse estar a porta fechada. Era possível que, naquele lugar tão terrivelmente solitário, houvesse ursos.

Tamara ficou ali sentada, pensando consigo mesma e tratando de acalmar os seus nervos. Os minutos pareciam-lhe horas. Logo ouviu um ruído de passos no corredor, interrompendo o terrível silêncio reinante a porta abriu-se e Gritzko entrou.

Entrou, fechou a porta atrás de si e pôs a chave no bolso, olhou a moça, e o que ela pôde ver-Ihe nos olhos apaixonados fê-la empalidecer. Seus lábios tornaram-se brancos.

Repentinamente, essa coisa sutil que na mulher resiste à violência despertou em Tamara. Era certo que o amava, mas assim não se deixaria vencer.

Estava de pé, apoiada à mesa de carvalho, como a corça encurralada tinha o rosto mortalmente pálido e os olhos muito abertos e animados pela firme resolução de reagir contra qualquer insolência.

O príncipe aproximou-se-lhe pouco a pouco e, dando um salto, tomou-a entre os braços.

— Agora, agora será minha! exclamou. É minha, afinal! Agora há de me pagar o que me fez sofrer!

E começou a dar-lhe uma porção de beijos nos lábios trêmulos. O temor apoderou-se da moça. Aquele homem a quem amava e cujas carícias, em

circunstâncias mais felizes, teria aceito e correspondido, não lhe inspirava naquele momento senão um pavor terrível. Estava disposta a morrer, mas reagiria contra tão revoltante procedimento.

— Gritzko! Oh, Gritzko! não faça isso! exclamou, quase sufocada. Mas, ao fitá-lo, compreendeu que a paixão o desvairava. Os belos olhos do príncipe ardiam de paixão, mas era uma paixão de fera. A moça

compreendeu que, se resistisse, ele a mataria. Mas era preferível morrer.

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Ele afastou-a de si por espaço de um segundo, e, em seguida, levantou-a nos braços.

Impulsionada pela loucura do medo, ela agarrou com força o braço ferido de Gritzko e, aproveitando o momento em que este dava um gemido, desprendeu-se-lhe dos braços e, apoderando-se, ao mesmo tempo, da pistola que o príncipe levava na cinta, imediatamente virou o cano da arma contra a própria fronte.

— Se me tocar de novo, eu disparo! exclamou, deixando-se cair exausta no banco de madeira que estava atrás da mesa.

Ele deu um passo para a frente e Tamara encostou de novo o cano da arma à cabeça.

— Foi muito esperta. Mas acredita que lhe servirá de alguma coisa? Se quiser, pode ficar a noite toda nessa posição. Será embalde...

Tamara não respondeu. Ele estendeu-se na cama e acendeu um cigarro nos seus olhos havia a mesma expressão de cólera e crueldade.

— Meu Deus! exclamou. Julgou que sempre havia de ser a mesma coisa? Brincando comigo e zombando de mim? Contudo, eu a amava, amava-a com loucura. A partir da noite em que a beijei, muito e muito tenho sofrido, principalmente por vê-la fria, desdenhosa, provocadora. Quando, na última noite, se atreveu a desafiar-me, decidi vencê-la à força. Não há poder na terra capaz de salvá-la! Ah! se tivesse agido de outra maneira, como podíamos ser felizes! Mas agora é tarde!

Tamara continuava com a arma voltada contra si. O esforço de mantê-la na mesma posição fez com que o punho começasse a doer-lhe.

Decorreu um longo tempo sem que se alterasse o silêncio na cabana: o intenso calor, que ali reinava, produziu uma neblina que lhe dançava ante os olhos. Ela começou a sentir uma sonolência invencível. Deus do céu! Que seria dela, se perdesse a noção das coisas?

A luz do dia desapareceu por completo e o príncipe, levantando-se, acendeu uma lâmpada de azeite e colocou-a sobre a estante. Em seguida, abriu a estufa para que o fogo clareasse a sala.

Feito isso, sentou-se. Um torpor esquisito começava a apoderar-se de Tamara, que via as coisas cada vez

mais confusas, naquele aposento aquecido em excesso e privado de ar puro. Parecia-lhe que tudo girava em torno dela a única coisa que via nitidamente eram os olhos de Gritzko.

O silêncio não se alterava na cabana. Só chegava de fora um silvo agudo, produzido pelo vento entre os abetos. A camada de neve ia aumentando em espessura, ao ponto de tapar a janela.

Estariam enterrados na neve? Ah, era preciso lutar, com todas as forças, contra o torpor que a invadia!

A cena era estranha. Uma sala rústica, feita de troncos de árvores; as paredes adornadas com chifres de veado e o solo com peles uma mulher fina, bonita e delicada, na sua blusa de seda, sentada à mesa e apontando contra si a pistola do cossaco, em frente a ela, imóvel como uma estatua, o homem conquistador e selvagem, elegante e esplêndido em seu belo uniforme como iluminação, apenas o clarão da estufa e uma miserável lâmpada de azeite. Fora o gemido do vento e a nevada…

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Naquele momento resvalaram os braços de Tamara e a pistola caiu para a frente. Imediatamente o príncipe se pôs alerta ela, porém, endireitou-se e voltou à mesma posição, ele relaxou a tensão de seu corpo e reclinou-se no leito.

Passou pelo cérebro de Tamara a idéia de que melhor seria detonar a arma e, assim, acabar tudo de uma vez. Mas o suicídio era um pecado ainda que, na realidade, não tivesse pensado nisso, o hábito de sua crença conteve-a.

Decorreu uma hora de silêncio, finda a qual a moça se convenceu de que chegava ao fim inevitável. Sua mão estava tão cansada que perdia a sensibilidade. Luzes estranhas pareciam passar-lhe diante dos olhos. Sim,certamente era Gritzko que se aproximava dela.

Soltando um grito, quis apertar o gatilho, mas os seus dedos anquilosados não lhe obedeceram. A pistola caiu-lhe da mão.

Havia chegado o fim. A vitória era de Gritzko. A moça deu um gemido e caiu desmaiada sobre a mesa.

Gritzko deu um salto e tomou-a nos braços, foi até o centro a sala, onde se deteve um instante, para exultar com o triunfo.

Aquela cabecinha, com os seus cabelos castanhos de onde caíra o gorro de peles, repousava indefesa sobre o peito dele. O dolorido e claro rosto, de feições infantis, e aquelas longas pestanas estavam inteiramente imóveis. Ao seu olfato chegou o doce aroma de um ramo de violetas que Tamara trazia no peito e que se desmanchava e caía.

Quando ele se abaixava para apaixonadamente beijar-lhe os lábios, parou de repente e, desaparecida a sua exaltação, foi, delicadamente, depor a moça na cama.

Ela não se movia sequer. Estaria morta? Oh, Deus! Cheio de angústia, auscultou a moça e pareceu-lhe que o coração não batia.

Assustado já, desabotoou-lhe a blusa, rasgando-a para ouvir melhor. Então, pôde distinguir umas pancadas leves. Ah, santos do céu! Não estava morta!

Tirou-lhe os sapatos e friccionou-lhe carinhosamente os pés calçados com meias de seda e, em seguida, as mãos muito frias. Pareceu-lhe que a moça começava a recobrar o calor habitual. Escutou e conseguiu ouvir um leve suspiro, Tamara mexeu a cabeça, sem abrir os olhos. Por fim, Gritzko observou que ela já não estava desmaiada mas, apenas, adormecida.

Naquele momento estalou de novo a sua louca paixão e, curvando-se à beira da cama, lágrimas ardentes brotaram-lhe dos olhos e rolaram-lhe pelas faces.

— Minha Doushka! Meu amor! exclamava, com voz entrecortada. Oh, quanto a fiz sofrer!

Levantou-se, dirigiu-se à janela e abriu um pouco a parte superior, para que entrasse na sala um pouco de ar puro, apanhou a pistola e colocou-a na cintura. Depois de se ajoelhar outra vez diante de Tamara e beijar-lhe os pés com a maior reverência, disse suavemente.

— Dorme, dorme, minha doce princesa. E saiu da sala, sem fazer ruído.

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CAPITULO 18 Pela manhã, quando Tamara despertou, a lâmpada ardia ainda e mais de três

quartas partes da janela estavam cobertas pela neve: mas, pela parte superior da mesma, distinguia-se a luz do dia.

Onde estaria ela? Que teria acontecido? Certamente alguma coisa horrível! Mas, que seria?

Reparou que a sua blusa estava desabotoada e rasgada, e imediatamente se recordou de tudo. Pôs-se em pé e, ao fazê-lo, viu que estava descalça cambaleou uns instantes e caiu novamente na cama.

Tinha a certeza horrível do que havia acontecido; Gritzko vencera. Recordou, com rapidez do raio, a sua mocidade inteira. Evocou todas as suas faltas.

Nada, porém, a horrorizou tanto como aquilo. Abateu-a a possibilidade de ter havido alguma coisa mais revoltante ainda.

Ela, uma lady... uma orgulhosa lady inglesa! Cobriu o rosto com as mãos. Que eram os outros sofrimentos passados comparados a este? Sentira-se ofendida desde o dia em que ele a beijara. A ofensa atual, porém, suplantara a outra, incomparavelmente. Chorou, chorou, chorou. Afinal, as suas idéias tomaram outro rumo; teve pensamentos selvagens, que a induziram a procurar a pistola. Sim, era o melhor, poria termo à vida!

Mas não obstante procurá-la por toda a parte, não encontrou a arma. Por fim encolheu-se num canto, como um cão acovardado, cheia de vergonha e

desespero, incapaz sequer, de se mover. Estava assim, quando Gritzko entrou na sala. Olhou-o tristemente e, num gesto instintivo, tratou de cobrir o colo com a blusa

rasgada. À primeira vista, ele compreendeu o que a pobre imaginava e, por um capricho de

caráter, resolveu que, até o momento em que se lhe lançasse satisfeita nos braços, não lhe diria que era falso o que ela pensava.

O príncipe avançou pela sala com o rosto grave e tranqüilo. Sua expressão era inescrutável a moça nada pôde ler-lhe nos olhos. A imaginação alterada de Tomara fê-la supor que, se ele estava tão sereno assim, era porque tinha alcançado a vitória. Humilhada, cobriu o rosto com as mãos, enquanto as faces se lhe queimavam. E pôs-se a chorar.

Seu pranto impressionou a Gritzko, que quase se arrependeu de enganá-la; porém, quando ele se lhe aproximava, ela ergueu a cabeça.

Não! Não! Não lhe diria nada, enquanto ela se mostrasse assim. Tamara não censurou. Continuou encolhida com uma fisionomia que inspirava

compaixão.

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— Já passou a tempestade de neve — disse ele, contendo-se, para que a voz não o traísse. Podemos partir. Alguns dos meus mujiques vieram esta manhã, e, por eles, pude avisar a princesa para que não ficasse alarmada.

Em seguida, como Tamara não se movesse, ele estendeu-lhe a mão e ajudou-a a levantar-se. A moça estremeceu ao sentir-lhe o contato, e duas lágrimas brotaram-lhe novamente dos lindos olhos. Onde estaria o seu orgulho? Espezinhado e destroçado !

—Está fatigada e com fome. Aqui há um espelho, um pente e uma escova, e indicou-lhe os objetos mencionados, que estavam em uma das prateleiras do armário. Talvez deseje arranjar-se enquanto vou buscar alguma coisa para comer.

— Como poderei apresentar-me diante de alguém com esta blusa? exclamou ela indignada e novamente ruborizada.

Ele não lhe deu explicação alguma sobre o rasgão na blusa. Tamara sentiu-se invadida por estranha emoção. Gritzko dirigiu-se apressadamente

à porta, para evitar a tentação de tomá-la nos braços e dissipar-lhe o temor com beijos. Quando se viu só, Tamara valeu-se daquela astúcia de todas as filhas de Eva. Antes

de tudo, tinha de encontrar o meio de apagar aquelas provas demasiado eloqüentes. Procurou no armário e teve a sorte de encontrar uma agulha e linha grosseira. Era melhor do que nada. Apressadamente coseu a blusa e a roupa interior, que também estava ras-gada, outro estremeção convulsivo. Pensou que, por mais que fizesse, e, mesmo supondo que sua madrinha não conseguisse ver a blusa rasgada, não poderia enganar a criada. Mas lembrou-se logo que, felizmente, esta estava em S. Petersburgo. Poderia mudar toda aquela roupa em Moscovo. Assim, ninguém viria a saber.

Com pressa febril, coseu os rasgões o melhor que pôde, olhando nervosa para a porta, a ver se Gritzko aparecia. Em seguida vestiu outra vez a blusa, tornou a pôr o broche e penteou o cabelo. Ao olhar-se no espelho, tranqüilizou-se bastante, porque, à exceção dos olhos, que estavam avermelhados, e o rosto muito pálido, achava-se decentemente vestida.

Sentou-se à mesa e pôs-se a pensar. Seu aspecto externo não se alterara. Nada, porém, poderia restaurar o seu orgulho ultrajado. Como poderia ocupar de novo, no mundo, a sua condição impecável?

Gritzko, ao vê-la novamente, sentiu-se impressionado com o ar de desespero e de dor que lhe percebeu no rosto. Trouxe-lhe alimento e ela o deixou sobre a mesa. Serviu-a e rogou-lhe que comesse apenas maquinalmente ela lhe obedeceu. Em seguida ele encheu-lhe a taça de champanha e obrigou-a a beber. Já reanimada, ela disse-lhe que estava disposta a partir. Mas, quando Tamara se pôs em pé, ele observou que já não erguia a cabeça com o orgulho e graças habituais. De si para consigo disse:

— Que sentiria eu agora, se o que ela pensa fosse verdade? Abrigou-a com as peles, com fria polidez e, em geral, esforçou-se para que as suas

maneiras fossem iguais às que adotara no dia anterior ao em que saíram de casa. Imediatamente compreendeu ela a impossibilidade de que houvesse entre os dois

aquele espantoso segredo. Tal coisa não podia ser mais que um atroz pesadelo. Começou a falar e ele escutou-a com gravidade. As palavras da moça, porém,

pareceram gelar-se nos seus lábios ao ver a pistola no cinto de Gritzko. Aquela arma fazia-a lembrar-se de tudo. Tremeu convulsivamente e, com força, cerrou as mãos. Ele,

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vestindo o agasalho, abriu a porta. Ajudou-a a subir à tróica que os esperava fora. O rosto de Stepan, o cocheiro, era

tão inexpressivo como sempre, como se nada houvesse ocorrido. Partiram. — Encarreguei o mensageiro de dizer a Tantine que fomos surpreendidos pela neve,

explicou ele, e que fomos forçados a procurar abrigo em uma granja. Há, de fato, uma fazenda à direita, depois de atravessar o bosque. Vivem ali um lavrador, sua mulher e muitos filhos. Direi que, embora o ar da cozinha fosse muito quente, a senhora não passou mal a noite.

— Está bem, concordou Tamara, com tranquilidade afetada. Em seguida, ficaram silenciosos. As idéias dela, não somente por causa do frio,

como também por causa do champanha, tornaram-se um tanto confusas, fazendo-a adormecer uma ou duas vezes. Ao observar isso, ele aproximou-a de si, deixou-a dormir com a cabeça apoiada em seu braço e cobriu-a melhor com as peles, para ela não sentir frio. Depois, ficou olhando-a com ternura, os olhos cheios de amor. De vez em quando, ela despertava sobressaltada e afastava-se dele. Logo, porém, tornava a adormecer. Desse modo passaram-se as horas e, pouco depois, chegaram perto de Moscou.

Então ela despertou por completo, estremeceu dos pés à cabeça e sentou-se firme. Logo chegaram ao hotel, onde encontraram a princesa e os outros, que os

esperavam com não pequena ansiedade. — Que contratempo desagradável, Tamara! exclamou a madrinha. Maldita

tempestade! Nós pudemos chegar a tempo! Olga e lord Courtray também não foram felizes. Imagina que tiveram de refugiar-se na segunda aldeia, em uma horrível cabana, que compartilharam com as vacas. A verdade é que vocês quatro passaram bem mal.

Gritzko viu-se obrigado a voltar a cabeça, para ocultar o sorriso que não pôde conter. Realmente, às vezes, a fortuna parece muito bondosa.

Desta maneira, evitou-se o escândalo e, assim, tanto a condessa Olga como Tamara foram objeto dos agrados e das atenções de todos. Se nas manifestações de Valonne houve um tom de ironia, ninguém pareceu perceber.

Mas nenhuma dessas atenções conseguiu fazer com que Tamara recobrasse o seu bom humor habitual.

— Tenho medo de que tenhas apanhado um resfriado, minha filha — disse a princesa.

Como perderam os leitos que encomendaram para o noturno da noite anterior e não pudessem reservar outros para o daquele dia, os excursionistas viram-se obrigados a ficar em Moscou até o dia seguinte. A princesa insistiu em que Tamara se deitasse sem demora, enquanto os demais se dispunham a jogar uma partida de bridge.

— Estas nevadas são uma verdadeira maravilha, um encanto — disse lord Courtray a Gritzko. Não acha? Palavra que em minha vida nunca achei tão agradável o cheiro dos estábulos e do feno, como esta noite.

Enquanto isso, no acanhado quarto do hotel, Tamara chorava convulsivamente, até que afinal adormeceu.

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CAPITULO 19

Tamara, fez toda a viagem de regresso a S.Petersburgo embebida nos mais tristes

pensamentos. Esforçou-se por se mostrar alegre e natural, mas o seu semblante pálido, desfigurado, despertou certa inquietação na madrinha.

Gritzko despediu-se de todos no trem, pois deveria regressar a Milaskrw, segundo disse, a fim de preparar a caçada de ursos, para a qual convidara a Jack. Antes de dois dias, não poderia voltar a S. Petersburgo. Isto tinha lugar na terça-feira e na quarta, no dia seguinte, Tamara deveria tomar o expresso do Norte para regressar à Inglaterra.

O príncipe beijou-lhe a mão com respeitosa reverência e despediu-se. A última vez que viu Tamara foi quando estava na gare, em pé, envolto em Um casaco pardo e gola de peles, olhando o trem que partia.

Chegaram aquela noite a casa. Na manhã seguinte, a princesa Ardacheff mandou chamar o médica.

— Esta senhora resfriou-se e deve ter sofrido uma emoção muito forte — declarou ele quando saiu do quarto de Tamara. Faça com que ela descanse o dia todo na cama e, amanhã procure distraí-la, dando-lhe por companhia pessoas alegres.

A princesa ficou intrigada e refletindo, mais tarde, no salão azul, perguntava a si mesma que, emoção poderia ter sido aquela. Não era provável, que fosse o medo da tempestade. Por muito que se esforçasse, não podia encontrar, explicação para as palavras do medico. .*

A pobre Tamara jazia no leito de vez em quando, sentia-se presa da desesperação, ao pensar novamente em sua desgraça.

Nisso, sua madrinha entrou no quarto e ouviu-a dizer coisas que esclareciam a situação.

A partir daquele momento o horror lançou raízes em seu cérebro : e a moça não pôde ter mais tranqüilidade. Mas a sua vontade, e a sua raça vieram em seu auxílio. Ela não ficaria na cama, como uma enferma era preciso levantar-se, vestir-se e descer para o chá. Falaria com todos e corresponderia às atenções que, sem duvido teriam para com ela. Não era preciso que ninguém se compadecesse dela. Deu ordem à criada para que lhe trouxesse o melhor vestido de recepção, e, assim vestida, desceu ao salão.

Entre as gargalhadas e brincadeiras com que todos, falaram de suas, respectivas aventuras, só Stephen Strong notou a inquietação que havia nos olhos da moça. ,

Quando chegou a noite e Tamara se viu novamente só, a cabeça pesava-lhe, doía-lhe. Não podia dormir. Levantou-se, para passear pelo quarto. E se Gritzko não voltasse mais, e se nunca mais o visse em sua vida? Que aconteceria, sé ela também estivesse... como uma certa desgraçada que conhecia?

No dia seguinte, quinta-feira, mais ou menos às onze horas da manhã, chegou um

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criado de libre trazendo uma carta, em envelope lacrado. Ela nunca tinha visto o talhe da letra de Gritzko, e olhou curiosa, enquanto, a tremer, rasgava o envelope.

A carta fora escrita em Milaslcrw, no mesmo dia em que tinham saído de Moscovo. Era curta os olhos de Tomara dilataram-se de surpresa ao ler:

“Mrs. Loraine… Escrevo-lhe para pedir-lhe com todo o respeito que me conceda a honra de sua mão. Se se dignar atender-me, pode ficar segura de que me esforçarei por torná-la feliz.

Tenho a honra de continuar seu humilde criado. Gregor Milaslavski”. Os joelhos de Tamara negaram-se a continuar sustentando-a ela teve que se sentar

apressadamente na cama estava, ao mesmo tempo, incapaz de coordenar as idéias. — O mensageiro espera a resposta, senhora — disse-lhe a criada com a maior

indiferença, assomando à porta, Tamara tratou de serenar-se e sentou-se à sua mesinha. A mão tremia-lhe fazendo

esforço para acalmar-se, escreveu: “Príncipe, não tenho outra alternativa senão aceitar. Sua, afetuosamente, Tamara Loraine”. Dobrou a carta, pô-la no envelope, selou este com o seu monograma em lacre azul e

entregou a resposta à criada. Em seguida, ficou sentada, olhando para o ar, os braços cruzados sobre a mesa

seria incapaz de analisar as emoções que lhe enchiam o ser. Naquela atitude encontrou-a a madrinha, quando esta entrou para se informar de seu estado.

— Tamara, minha filha, estás-me inquietando. Confia em mim e dize o que te aconteceu.

Ao mesmo tempo abraçava a afilhada, tranqüilizando-a. Tamara teve um ligeiro estremecimento e disse: — Vou casar-me com Gritzko, madrinha acabo de lhe enviar a minha resposta. A princesa tinha muito tacto e limitou-se a expressar a sua alegria e dar a bênção à

moça. Tudo como se a notícia fosse inteiramente natural e lhe houvesse chegado do modo mais agradável.

Em seguida, deixou Tamara sozinha no quarto. — Sim, é a melhor coisa que se pode fazer. Quanto mais depressa tiver lugar a

cerimônia, tanto melhor. Dentro de algumas semanas, chegará a quaresma e isso podia ser uma escusa para se apressar o casamento.

Essa idéia foi, das que lhe passavam pela mente, enquanto se vestia, a que mais lhe agradou.

Ao meio-dia, o príncipe Milaslavski mandou perguntar à princesa Ardacheff, cerímoniosamente, se poderia recebê-lo. Um instante depois, foi conduzido ao primeiro salão, onde o esperava a velha senhora.

Ele vestia um uniforme azul-escarlate e a princesa reparou que vinha mais bem trajado que de costume. Ao ver a; princesa, Gritzko avançou e beijou-lhe a mão.

— Venho, princesa, pedir-lhe o seu consentimento para o meu casamento com a sua, afilhada — disse-lhe. Tenho já a resposta favorável de Mrs. Loraine, de forma que só falta obter o seu consentimento para alcançar a minha felicidade.

— Gritzko, querido filho! Sim! estás certo de que isso há de ser para a felicidade de

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ambos? Nada pode alegrar-me mais... — Não duvide que será para a nossa felicidade, respondeu muito sério. Em seguida, deixando um pouco a sua conduta cerimoniosa e beijando a mão da

princesa, acrescentou: — Não tenha medo, querida Tantine. Prometo-lhe que será para a felicidade de nós

ambos. A princesa estava muito comovida. Logo compreendeu que havia em tudo aquilo

alguma coisa que ela ignorava mas estava acostumada já a crer cegamente em Gritzko e sabia que, se ele dava a palavra, nada havia que temer.

Não sentiu, portanto, necessidade de fazer-lhe nenhuma pergunta. — Quer ter a bondade de ir buscar minha noiva? Desejo recebê-la de suas mãos. E a princesa, inteiramente dominada pela emoção, saiu do salão. Tamara não seguiu a madrinha com o orgulho de uma futura princesa. Apenas

levantava os olhos do chão. Tinha a mão trêmula e fria, quando a princesa lha tomou para pô-la na de Gritzko, depois que lhes deu a bênção, beijou os dois e saiu do aposento.

Quando ficaram sós, Tamara quedou-se imóvel, com os olhos baixos. Ele foi o primeiro a romper o silêncio, tomando-lhe a mão esquerda e roçando-a com os lábios.

Tirou-lhe o anel de casamento, que ela trazia no dedo, e, deixando-o descuidadamente sobre a mesa, colocou-lhe o de noivado no mesmo dedo. Esse anel era muito grande e nele se viam um diamante e um rubi enormes.

Tamara estremeceu. Olhou a mão e pareceu-lhe que a tranqüilidade de sua vida havia desaparecido, juntamente com o anel de ouro que até então tinha usado. Não fez nenhuma observação acerca da beleza do presente que acabava de receber como símbolo de seu compromisso, nem mostrou agradecimento algum. Ao contrário, conservou-se inerte e insensível, aparentemente.

— Agradeço-lhe o seu consentimento — disse ele, muito respeitoso. E farei tudo que de mim depender, para que não se arrependa nunca de o ter dado.

Não pronunciou nenhuma palavra amorosa, nem lhe fez nenhuma carícia, mas, se ela tivesse levantado os olhos, teria visto que os dele estavam cheios de apaixonada ternura, pois Gritzko não o podia dissimular. Como Tamara não levantou a cabeça pareceu-lhe que tudo quanto estava acontecendo era conseqüência lógica do fato anterior Ele desrespeitara-a, oferecia-lhe a única reparação própria de um gentleman.

O saber que ia casar-se com Gritzko não lhe dava o menor prazer, mas, apenas, profunda humilhação.

Por isso, permanecia silenciosa. Gritzko usou de toda a força de vontade para não lhe estreitar a triste e melancólica figura nos fortes braços e cobrindo-a de beijos, murmurar-lhe ao ouvido palavras de amor. Mas o seu caráter especial ajudou-o a refrear esse desejo. Não, esse glorioso momento viria como um raio de sol, quando a tivesse conquistado, quando a obrigasse a amá-lo apesar de tudo.

Enquanto isso, nada mais deveria fazer senão ter uma atitude reservada, cortês e fria.

— Quer que nos casemos antes da quaresma? — perguntou-lhe, deixando-lhe cair a mão.

Tomara respondeu com um acento de tristeza:

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— Casar-me-ei quando lhe parecer melhor. E, voltando-se, foi sentar-se. Ele apoiou-se na chaminé e fitou-a. Compreendia perfeitamente a razão porque ela

consentia em se casar em qualquer data, e sorriu comovido embora em seus olhos brilhasse um pensamento sarcástico.

— Teme que alguma coisa aconteça, não é? Por mim, estou doido que chegue o dia.

Mas, a pobre Tamara não pôde suportar aquilo... a cristalização de seus temores, e, dando um grito, afundou o rosto nas almofadas. Gritzko não fez a menor tentativa para consolá-la, embora mal pudesse dominar o desejo de o fazer. E em vez disso — declarou com a maior gravidade:

— Suponho que comunicará o noivado à sua família. Acredita que seus parentes virão assistir ao nosso casamento? Não tem de pedir licença a ninguém, de acordo com as leis de seu país, dada a sua condição de viúva?

Tamara ergueu o rosto, muito vermelha. — Sou livre para fazer o que quiser, creio que virão ao meu casamento. — A quaresma será uma excelente desculpa, continuou ele. Além disso, todos os

nossos amigos estão já acostumados a que eu faça sempre o que quero, de maneira que a pressa não lhes despertará estranheza. Só sinto que tenha de fazer os seus preparativos com tanto atropelo.

— Quanto falta para a quaresma? — perguntou Tamara, com acento de profunda indiferença.

— Precisamente quatro semanas. Acha que nos será possível casar dentro de quinze dias? Nesse caso, poderíamos logo ir para o Sul e passar lá a nossa lua de mel.

— Como quiser, respondeu resignadamente Tamara. Confundo sempre as datas, por causa da diversidade entre o calendário russo e o de meu país. Quer anotar as datas russas e as inglesas, para que eu as envie a meu pai?

Ele tomou um calendário que estava sobre a mesa, fez o cálculo, e, anotando o resultado em um cartão, entregou-o à moça.

Ela tomou-lho sem olhar o futuro marido. Em seguida, levantou-se, deu uns passos para a porta, e, quando passou junto à mesa em que ficou o seu anel de casamento, apanhou-o dissimuladamente.

— Fica para almoçar? — perguntou-lhe ela, com a mesma voz monótona. Posso retirar-me agora? Quer dizer-me mais alguma coisa?

— Tamara! exclamou ele, com acento suplicante; mas, recobrando-se logo de sua emoção, inclinou-se cerimoniosamente, roçou a mão da moça com os lábios e abriu a porta, a fim de lhe dar passagem.

—Estarei aqui, quando voltar. Ela, em silêncio, saiu do salão. Quando ficou só, ele começou a passear nervoso

pela sala. Em seguida, inclinou-se e depositou um beijo na almofada em que ela ocultara o rosto.

Tamara saberia quanto ele a amava... quando chegasse o dia.

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CAPITULO 20

O almoço realizou-se num ambiente de tranqüila reserva. O único convidado era

Stephen Strong. Tomara se houve com a maior naturalidade, respondendo a todas as perguntas que Gritzko lhe dirigia. O príncipe também desempenhou perfeitamente o seu papel, mas as suas maneiras não conseguiram convencer a Strong.

Depois do almoço, o príncipe retirou-se e Tamara recolheu-se aos seus aposentos. Por um momento ficaram no salão, sós, a princesa Ardacheff e Mr. Strong. — Acredita que Gritzko está realmente apaixonado por ela? — perguntou o inglês. — Sim, Stephen, tenho absoluta certeza disso. — Deus queira que assim seja. A notícia do casamento produziu toda a sorte de comentários no círculo das relações

do príncipe. — Felizmente gostamos dela — disse a condessa Olga. É boa moça, e talvez

consiga prender Gritzko e acalmá-lo. Valonne então interveio na conversa: — Aposto que dentro de cinco anos ainda estão apaixonados. E que de vocês todas

que aqui estão, ela será a única que não se terá divorciado para casar com outro homem. Todos soltaram uma gargalhada. Jack Courtray entrara para felicitar Tamara. — Lamento sinceramente — disse-lhe ele, que se tivesse decidido por um

estrangeiro, mas acho que acertou com o rapaz mais excelente que já encontrei em toda a minha vida, e eu faço os melhores votos pela sua felicidade.

Tamara inclinou a cabeça para esconder as lágrimas que se lhe escapavam dos olhos.

— Jack! Fico-lhe muito agradecida, por seus votos, mas, infelizmente, ninguém está certo de encontrar a ventura no casamento.. .

— Tamara, se não está certa disso, aconselho que não se case. — Se eu o amo, Jack? Você não conhece o amor só tive idéia exata desse

sentimento, depois que conheci Gritzko. Jack Courtray retirou-se alguns momentos após, e o príncipe entrou na sala. Estava

completamente sereno e aproximou-se de Tamara. — Tamara, que é que houve entre você e seu amigo? Quero que me diga. toda a

verdade. Não posso permitir que um homem a faça chorar; conte-me tudo, ou eu o mato! Os olhos de Gritzko chamejaram de ódio. Tamara ergueu-se e, num tom de dignidade ofendida, respondeu com a maior frieza: — Quero que compreenda uma coisa, príncipe. Não tolerarei que me insulte com

suspeitas e com ameaças aos meus amigos. Lord Courtray e eu fomos educados juntos, como irmãos.

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Gritzko ficou surpreendido ante aquela atitude de sua noiva e retirou-se sem se referir mais ao assunto.

Os dias seguintes trouxeram a Tamara uma infinidade de preocupações relativas ao seu casamento.

A moça não tinha nem um momento de tranqüilidade, pensando sempre que o príncipe se casava com ela forçado pelas circunstâncias. Por outro lado, ele lhe enviava flores todas as manhãs, enchendo-a de presentes, sem conseguir, contudo, encantar o espírito dela. Com aquela idéia fixa na mente, ela não podia achar prazer em nenhum dos presentes, que ele lhe mandava.

Gritzko só pôde desempenhar o seu papel à custa de enormes esforços para dominar os seus sentimentos próprios. A perspectiva da iminência de sua felicidade era o que lhe emprestava energias para não desfalecer no último instante. Tornara, à medida que o tempo se passava, foi perdendo todas as esperanças de haver conquistado o amor do homem que ia ser seu marido, e uma intensa palidez cobria-lhe permanentemente o rosto.

Seu pai tinha tido um forte ataque de reumatismo e não estava em condições de poder vir assistir ao casamento; mas Tom e lady Newbridge, irmãos de Tamara, e Millicent Hardcastle deveriam chegar três dias antes da cerimônia.

Não é necessário falar dos dias que se seguiram, dias incolores, em que ambos se mostraram reservados; nem da chegada de Tom Underdown, lady Newbridge e Millicent Hardcastle. Tampouco há necessidade de descrever circunstanciadamente as cerimônias religiosas da igreja russa, e as que tiveram lugar na Embaixada.

O que nos importa é saber que Gritzko e Tamara ficaram afinal sós, na primeira noite de seu casamento.

Estiveram graves e solenes durante as Cerimônias, logo depois, porém, ele exprimiu a alegria do triunfo.

Quando se dirigiram à sua casa em Fontonka, ele teve entre as suas as mãos de Tamara, mas esta não lhe disse nem uma palavra.

Foi um momento sensacional aquele em que o príncipe conduziu a esposa pela majestosa escada, entre duas filas de criados, reverentemente inclinados, aos salões do andar superior, salões esses completamente adornados de flores.

Sem falar ainda, Gritzko abriu as portas da sala de baile e, enquanto a atravessavam e chegavam aos aposentos que havia mais além, ele disse, com simplicidade:

— Estes aposentos poderão ser decorados per um artista de Paris, ou de onde preferires.

Em vez de se dirigir ao salãozinho, contíguo aos seus aposentos particulares, ele abriu a porta daquele que fora o quarto de dormir de sua mãe.

O aposento estava iluminado e aquecido; mas percebia-se o aspecto melancólico que caracteriza os lugares desabitados, consagrados à memória, dos mortos.

— Tamara — disse ele, tomando-lhe a mão, estes foram os aposentos de minha mãe. Eu a amava muito e sempre pensei que não permitiria jamais a nenhuma mulher, nem sequer a minha, entrar aqui. Deixei-os como costumavam estar durante a vida dela, mas agora sei que não era isso que ela teria desejado.

Sua voz tremia ligeiramente, e percebía-se-Ihe uma inflexão que Tamara não

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conhecia e que a comoveu até o mais profundo do ser. — Desejo agora que venhas visitar comigo estes aposentos. Depois, enquanto

estivermos no Sul, tirar-se-lhe-ão os móveis, para que, ao regressarmos os arrume a teu gosto. Quero que sobre nós desça a bênção de minha mãe.

Fez uma pausa e o silêncio reinou. Em seguida, continuou, e em suas palavras havia uma grande ternura:

— Minha querida, nestes aposentos farei a tua felicidade. Tamara tremia tanto que mal se sustinha em pé. Vacilou um pouco, mas agarrou-se

a uma cadeira. Ele, ao vê-la tão pálida, pensou que ela fosse cair, rodeando-lhe a cintura com o braço, levou-a à sala e, desta, à capelinha imediata. Ali ardia uma lâmpada ante um ícone; as cores eram tênues, ainda que muito ricas de tons, a Virgem lhes dirigia o olhar, havia lírios frescos, que perfumavam o ambiente. Gritzko ajoelhou-se um momento, murmurou uma oração e, ao levantar-se, os dois olharam um para o outro. Suas almas se beijaram, e todas as sombras se desvaneceram.

— Tamara! exclamou ele, abrindo-lhe os braços. Soltando um grito, a moça deixou-se cair neles. Ele estreitou-a ao coração e, inclinando-se, beijou-a nos cabelos.

Apartando-a de si, perguntou-lhe: — Tu me perdoas? — Perdôo, respondeu ela, quando pôde falar. — Amas-me, Tamara? — perguntou ainda. Não teve necessidade de ouvir a resposta, porque a viu nos olhos da mulher, cuja

boca inundou de beijos. Em seguida, levantou-a nos braços e levou-a ao quarto de dormir, através das salas

desabitadas. Estendendo-a suavemente no leito, ajoelhou-se-Ihe ao lado. — Meu bem! exclamou. Quanto tenho sofrido desde que prometeste ser minha

mulher, mas não arrependo de haver sofrido, pois queria conseguir que me amasses, mais que a ninguém no mundo, apesar de todo o teu rancor, medo e orgulho, agora, diz-me que é verdade que me amas, minha mulherzinha. Quero sabê-lo: disso depende minha vida.Fala!

A paixão apoderou-se de Tamara e, com veemência, disse: — Que me importa, Gritzko, o que tenhas feito, ou que pretendas fazer? Sabes que

sempre te amei. E ofereceu-lhe a boca. Num transporte de paixão, ele acariciou-a como ela nunca sonhara. Depois,

contendo-se um pouco, disse: — É preciso que vivamos um para o outro, querida! Naturalmente, cumpriremos com

os nossos deveres sociais; más a nossa verdadeira vida terá lugar em Milaskrw, só para nós dois. Tu me ensinar-me-ás a ser mais pacífico. Serás unicamente minha e esquecer-te-ás do que se passou, por desagradável que fosse. Minha pátria deve ser a tua pátria. Meu corpo o teu e minha alma a tua. Amo-te mais do que tudo na terra... E serás minha, até que nos separe a morte!

A doçura do paraíso pareceu descer sobre Tamara. Que lhe importava já qualquer coisa deste mundo, uma vez que ele a amava?

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O pensamento de Tamara estava cheio de visões encantadoras. Ela sentia-se como que desvairada pela alegria de místicas profundidades.

— Lembras-te, meu amor, de quanto me resististe? Minha querida, conquistei-te apesar de tudo! Já não podes lutar contra mim, pois me pertences. Dize-me se és minha de todo o teu coração. Tua alma será minha? Lembras-te de que me falaste que eu nunca poderia conquistar-te? Conquistei-te, por ventura? A ela já não lhe importava o orgulho, não desejava a luta, a sua felicidade consistia em ter sido conquistada. Todo o seu ser estava unido ao do marido.

Por fim, este, abraçando-a de novo com ternura, disse, malicioso: — Sabes o que aconteceu naquela noite, na cabana, quando deixaste a arma cair?

Aconteceu... aconteceu, minha princesa, meu amor, minha vida, aconteceu, apenas, que eu beijei os teus pezinhos…

Fim