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    NTREOS desafios permanentes encontra-se o da estratgia adequadade uso, aproveitamento econmico e preservao do potencial con-tido na incomum megadiversidade brasileira, da natureza e das con-

    figuraes socioculturais. A Mata Atlntica foi reduzida a cerca de 8%, o que

    torna as precaues quanto aos recursos da Amaznia inadiveis (Dean,1995:361). Com destaque para a diversidade de sua flora, com 15 a 20% donmero total de espcies do planeta, 10% dos mamferos e anfbios e 17%das aves. Nas ltimas dcadas, as formas inapropriadas de uso dos recursostrouxeram agenda a viso indgena e a de outras tradies locais, extra-tivistas, ribeirinhos, quilombolas e caiaras. Essas contribuies ressurgemcomo legado exemplar, valor cultural e potencial de mercado, inclusive por-que convidam a pensar e defender uma relao positiva entre natureza etecnologia, articulando a necessidade de salvar bio-sociodiversidade coma necessidade de salvar tambm, a tecnologia(Santos, 1999).

    Os lugares mais preservados, florestas e rios, ainda coincidem comespaos interiores ocupados por ndios e outras culturas tradicionais. O emer-gente biomercado e as ofertas do conhecimento cultural da biodiversidadesurgem como possibilidade para novos materiais, medicamentos, princpiosativos, alimentos, perfumes, conservantes, adoantes, sal vegetal, varieda-des de plantas, sementes, pesticidas orgnicos e frutas. Tal potencial remeteao tema dos direitos de propriedade intelectual de seus detentores, de seuacesso ao mercado e de sua proteo in situ, uma vez que os servios natu-rais prestados pelos ecossistemas valem mais que o PIB mundial, lembraNovaes (1999).

    Como conseguir que essas populaes, e o pas, possam sair ganhado-res, recompensados na preservao e no mercado? As primeiras levas deocupao do interior da Amaznia, que deram origem s comunidades bei-radeiras e extrativistas, conduzidas pela mo do ndio, anteriores s ltimasdcadas do final do sculo XIX, constituram agrupamentos comparativa-mente em maior harmonia com o meio, herdando e acrescentando conheci-mentos de manejo. Os ambientes e as sociedades interagem e modificam-se(Leonel 1998/99).

    Bio-sociodiversidade:

    preservao e mercadoMAUROLEONEL

    E

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    O valor do saber indgena e tradicional

    O uso indgena e tradicional dos recursos naturais contrasta com o

    uso destruidor dominante na recente expanso da frente econmica. Osconhecimentos da natureza demonstrados pelos ndios, medida que vosendo revelados, chamam a ateno contraditoriamente pelo seu valor ines-timvel e pelo seu subaproveitamento, sendo sua relevncia evidente na for-mao brasileira, embora inaproveitados nos projetos de colonizao e as-sentamentos na Amaznia. Estudos das ltimas dcadas procuraram reunirtais conhecimentos pelas fontes histricas e pelos sobreviventes, tribos eoutras culturas denominadas tradicionais, em contato maior ou menor como mercado, ou relativamente isoladas (Ribeiro, 1987). Vrios desses traba-lhos evidenciam que suas premissas culturais determinam suas atividades

    produtivas, e que no so, como se pretendeu, apenas o resultado de estra-tgias adaptativas (Posey, 1984; Ribeiro, 1987).

    ndios, outras populaes culturalmente diferenciadas, quando isola-dos da presso do mercado, que altera seu modo de vida, no so redutveisa componentes de ecossistemas, mas ecologistas e eclogos de pleno direito,uma vez que usaram e manejaram mais adequadamente o potencial da di-versidade da natureza, controlando pragas, promovendo a heterogeneidadedas espcies, vivendo sustentavelmente, sendo suas prticas flexveis e relati-vas sua viso cosmolgica. Terra e territrio integram um mesmo tipo deespao, onde o cultural e o econmico so inseparveis. Esses conhecimen-

    tos e tcnicas representam dimenses culturais coletivas, cumulativas e in-formais, no-redutveis propriedade intelectual privada, no sentido emque tal conceito tratado no comrcio e na jurisprudncia internacionaldominantes, em muitos casos, sequer se destinando troca. No centro dasociedade Ianomami, por exemplo, encontram-se os Xaboris(pajs), co-nhecedores de uma droga alucingena chamada vakoanaou ebene, retiradade uma rvore (Virola elongata) que, quando inalada, combate a doena eoutras foras negativas, que ameaam sua sobrevivncia (Gray, 1991; Davis,1993) (1).

    As mudanas introduzidas em escala, com o avano da fronteira eco-nmica, alteram substantivamente estas relaes internas s populaes, eaos seus ecossistemas, impedindo idealizaes. Apesar desse fato, por fazerparte do conjunto de um modo de ser e de uma viso do mundo, nocaberia valorizar o saber indgena numa tica restrita racionalidade instru-mental, reduzido a tcnicas: fazem parte integrante de sua cultura, organi-zao social, conceito de propriedade, xamanismo, lngua, usos e costumes.Nem sempre toda a comunidade detm esses conhecimentos, ou os conta-tos com o mundo espiritual invisvel, que tm papel relevante no uso dos

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    recursos. At o sucesso de uma caada pode vir orientado pelos espritos,em sonhos e rituais, assim como o uso das plantas e o poder de cura. O

    conhecimento biolgico relacionado a esse entendimento com o espiritual.Alguns pajsrecebem recompensas pelos seus servios espirituais, em siste-mas de reciprocidade e redistribuio. Um conhecimento, o uso de umaespcie, isolado, levado para fora desse sistema cultural ser submetido aoutras regras, ser transformado em mercadoria, da as dificuldades dos te-mas da propriedade intelectual, das patentes e do mercado que vm doexterior desse quadro de relaes culturais especficas e diferenciadas (Shiva,1999).

    Alguns trabalhos do conta de como os aborgenes domesticaram faunae flora, mediante pesquisas em etnobiologia, etnobotnica, etnozoologia,

    etnoagronomia, e, mais recentemente, etnoecologia. A generosa naturezabrasileira tem uma contribuio milenar da mo humana. Berta & DarcyRibeiro destacaram o manejo indgena, construindo o solo frtil pela adiode matria orgnica nas terras pretas, algumas imemoriais, reservas para oplantio das geraes futuras, sem perda de equilbrio e diversidade. Essesaber contrasta com as monoculturas dos civilizados, que removem a vege-tao a trator, ocasionando a eroso, a perda de nutrientes, implicando al-tos investimentos, energia e inseticidas, com danos ambientais e subutilizaodos recursos (Ribeiro, 1987:9).

    As tcnicas agrcolas dos indgenas, assimiladas pelas primeiras levas

    de ocupao, construram solues adequadas aos solos pobres e lixiviados,cobertos por exuberante vegetao, combinadas com a coleta do mel slarvas , a caa e a pesca. Sioli (1990), mostrou como as roas de coivara, ashifting cultivation, pequenas alfinetadas na floresta, depois rotativamenteabandonadas recuperao, que ocorria em 30 ou 40 anos, eram adaptadasa solos pobres em nutrientes. Outros estudos confirmam a grande diversi-dade das roas de manejo indgena, inclusive nas ilhas florestadas dos cerra-dos, como no caso dos Kayap que introduzem 58 espcies por roa, 17variedades de mandioca, 33 de batata doce, inhame e taioba. Os ndiosconheciam utilidades para 98% das espcies identificadas, plantavam mais

    de 75% delas, inclusive rvores de grande porte, como a castanha-do-par,legadas s novas geraes. Apenas 1% dessas plantas foram analisadas emsuas propriedades qumicas e farmacolgicas. Florestas tidas como naturaispodem ter sido moldadas por populaes indgenas, pelo adensamento epela diversificao (Posey, 1984; Anderson & Posey, 1985).

    Mesmo em regies consideradas pobres em solo, com guas cidas epoucos nutrientes, os ndios acabaram conseguindo um alto aproveitamen-to, como no caso do Rio Negro, onde foram descritas 1.300 plantas utiliza-

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    das, entre outros fins, como venenos e remdios, chegando os ndios a re-sistir em tais regies mais tempo e em maior nmero presso dos invaso-

    res do que em outras reas mais frteis, desenvolvendo 100 diferentes varie-dades de mandioca. Morn (1990) fez um balano das pesquisas etnoeco-lgicas, constatando o sucesso dos ndios no manejo de recursos de vriosdos ecossistemas da Amaznia, inclusive transferindo conhecimentos, porexemplo, da floresta para o cerrado e vice-versa.

    Nas florestas de terra firme, as mais ricas, pelo menos 11,8% seriamflorestas antropognicas, inclusive com ilhas de recursos, com adensamentode espcies, drenagem por canais, prticas de amontoamento do solo, tc-nicas superiores s introduzidas pelos colonos, exemplares para a superaodos limites naturais, sem promover novos danos diversidade. Entre as flo-

    restas manejadas cita as de palmeiras, bambu, castanhais, ilhas florestais docerrado, caatinga baixa, cip, vrzeas, igaps e aaiais. Vrias espcies plan-tadas destinam-se a atrair caa, fabricao de utenslios, alimento, lenha,colorantes e repelentes. Os colonos e tcnicos, escolhendo solos inapro-priados, contrastam tambm com o saber indgena e caboclo na escolha dosmelhores solos, cerca de 7% da Amaznia.

    O conhecimento tradicional o acumulado por uma cultura em gera-es, em estreita relao com a natureza, incluindo sistemas de classifica-o, de zoneamento e de manejo. Embora imemorial, no deve ser conside-rado apenas por sua antigidade, mas pela maneira como usado e foi ad-

    quirido. Dutfield (1999) lista as diferenas apontadas, por acadmicos eativistas, entre o conhecimento cientfico ocidental e o indgena: tradiooral; resultado da intuio, observao e prticas; intimidade com outrosseres, aos quais se consideram interdependentes e espiritualmente ligados;mais qualitativo, holstico, inclusivo e gerado por usurios; diacronicamentecumulativo e coletivo. A cincia ocidental analtica, quantitativa, seletiva,deliberativa, sincrnica, hierarquizada, verticalmente compartamentalizadae reducionista. O conhecimento tradicional promove a diversidade alimen-tar, estabiliza a produo, diminui riscos, reduz a incidncia de insetos edoenas, usa o trabalho com eficcia, exige menos insumos e recursos e

    maximiza o retorno em condies de tecnologias simples e adaptadas.

    O aproveitamento do conhecimentotradicional pelo mercado

    Alguns eclogos propem que, com a valorizao desses conhecimen-tos pela pesquisa, poder-se-ia desenvolver in situformas de aproveitamentoeconmico vantajosas, sem destruio ambiental, com potenciais avanos

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    na qumica e na farmacologia, por meio de substncias alcalides, fungicidase herbicidas; no aproveitamento de fibras e frutos de palmeiras, combinado

    com adensamento florestal. A extrao de produtos renovveis, como indi-cam as prticas indgenas, deveriam ser consideradas, apesar do declnio deseu uso, como a seringa, a castanha-do-par, os frutos de palmeiras e apesca tradicional. Ao contrrio, a agricultura intensiva, devido perda defertilizantes, no tem conseguido na Amaznia resultado econmico dura-douro (Morn, 1990).

    Experincias, como as asiticas em socialforestry, com culturas perenese anuais, consorciadas com espcies florestais, inspiradas na diversificaoda cultura tradicional, comeam a ser realizadas na Amaznia, como serin-ga com pastagem; pupunha com cacau; espcies para a produo de papel

    com milho e feijo. Os lucros do gado so baixos, os da madeira em torano so sustentveis, o que tornaria o extrativismo e o manejo diversificadodo modelo tradicional potencialmente competitivo, conservando a florestaem p. Em tal proposta aliar-se-ia preservao com objetivos sociais, permi-tindo o acesso ao mercado desejado por muitos desses agrupamentos e ori-entando os colonos. A populao permanente no interior da Amaznia menor hoje do que a das populaes indgenas anteriormente coloniza-o, salvo nos surtos localizados de acampamento, como o do garimpo. Ossobreviventes indgenas ainda so maioria da populao residente no interior

    em vrios municpios da regio Norte, sobretudo quando somados aos ri-

    beirinhos e extrativistas influenciados pelos primeiros habitantes (Oliveira,1988; Morn, 1990; AbSaber, 1996).

    A coincidncia da concentrao da biodiversidade em territrios ocu-pados pelas populaes indgenas, e outras culturas tradicionais de manejo,colocou o tema da preservao dos recursos da natureza como interligado defesa dos direitos da diferena, como terra e cultura. Consideradas emlongo prazo, essas culturas entenderam privilegiadamente que a biodiver-sidade, tomada como o conjunto dos recursos genticos, espcies e ecossis-temas, viabiliza a vida humana. Embora muitos ndios, e outras populaes,tenham se envolvido em negcios com madeireiras, garimpos, sobrepesca,

    entre outras atividades comprometedoras da renovabilidade e da preserva-o da biodiversidade, inegvel que, antes da colonizao, inclusive atrecentemente, pelo isolamento, antes da presso da fronteira econmicanos ltimos 30 anos, essas populaes mostraram-se incomuns protetoresde seus recursos, capazes de um uso adequado, orientado por seus padresculturais.

    O desmatamento, a poluio das guas, o aquecimento global, a amea-a real e imediata de comprometimento da biodiversidade articularam a sua

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    preservao com o modo de vida das populaes indgenas e tradicionais,colocando o tema na agenda pblica internacional, embora poucas solu-

    es abrangentes tenham dela resultado. Tal correlao tem vrios desdo-bramentos: as reas ocupadas por essas populaes, como reas de preserva-o permanente, com uso; o aproveitamento econmico dessas reas; osdireitos dessas populaes autodeterminao, tanto terra e aos recursosnaturais, quanto de acesso ao mercado, quando o desejarem; os direitos depropriedade intelectual sobre o uso no mercado de conhecimentos desen-volvidos por suas tradies; as incompatibilidades da viso indgena com asexigncias do mercado, como as tecnolgicas, de financiamento, de escala,

    de administrao, de ritmo de trabalho, de apresentao do produto, deespecializao e de monocultura, dentre outras diferenas culturais.

    Os ndios e extrativistas no aproveitaram historicamente vrios dosprodutos desenvolvidos por sua cultura, como no caso do ciclo da borra-cha: os ganhos foram para os donos dos seringais e exportadores. Com asplantaes da sia, a explorao local dos seringais nativos teve seus preosdegradados, no-competitivos sequer com as produes plantadas no Su-deste do pas. Os ingleses selecionaram seringueiras no Kew Gardens(Jar-dim Botnico de Londres) e promoveram produes monoculturais noSudeste da sia, tornando invivel a produo da borracha em escala naAmaznia, onde as estradas (trilhas tradicionais) tm mais distncia entreas rvores, sujeitas a pragas, tornando mais difcil a coleta (Neves, 1999).

    Ao contrrio, as atividades extrativistas levaram os ndios e seringueiros servido, como no caso do regime de barraco, cumulativamente endivida-dos, sem direitos terra, aos recursos e ao resultado de seu trabalho. Quan-do os produtos selecionados so reintroduzidos ex situ, ou at adensadossob o controle de outros interesses in situ, os detentores desses conheci-mentos no tm sua contribuio recompensada.

    Organizaes internacionais ambientalistas, multilaterais ou no-go-vernamentais, vm enfatizando como gerar lucros a partir do aproveita-mento econmico da biodiversidade. O argumento de que o realismoconvida a demonstrar aos interesses comerciais as vantagens do desenvolvi-

    mento sustentvel. A dificuldade como introduzirem-se indgenas e tradi-cionais no mercado, em termos vantajosos e num quadro de livre escolha.Na maioria dos casos, pretende-se promover produtos aceitveis para con-sumidores dos grandes centros. De sada, no fcil atribuir valor a essesprodutos, menos ainda esperar que o mercado lhes atribua qualquer com-pensao. Algumas projees, feitas por ambientalistas, estimam que as gran-des multinacionais estariam perdendo, com a destruio das florestas, lu-cros potenciais da ordem de US$ 77 bilhes (Gray, 1991).

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    Capitalismo verdee projetos de desenvolvimento sustentvel

    primeira vista, sedutora, obrigatria, ou nica sada, a hiptese dealiar preservao, diferena cultural, mercado e desenvolvimento para po-pulaes que reivindicam acesso a recursos financeiros. A proposta de al-guns ambientalistas combinar a vontade manifesta eventual de algumaspopulaes, sua contribuio preservao, e articul-las com o capital in-dustrial para que saiam ambos com lucro. No acreditam que razes apenasticas, de dvidas sociais, possam levar correo dos rumos de excluso.Mas como conseguir essa parceria de contrrios, evitando-se a dependn-cia, garantindo o territrio, a autodeterminao, a cultura e o controle des-ses negcios aos mais fracos, historicamente sempre perdedores? As dificul-dades so incontveis, uma vez que o desafio seria o de rentabilizar, semcomprometer a biodiversidade, nem a livre escolha dessas populaes, quesentariam mesa com foras melhor instrumentalizadas, em posio des-vantajosa, como parceiros desfavorecidos, ignorando prticas de mercadoque dominam ainda menos do que os demais cidados, menos inclusive queoutros segmentos da imensa maioria excluda, pela concentrao do capitale da tecnologia, em um cada vez menor nmero de mos.

    Outros, mais cpticos, condicionam uma melhor relao dessas popu-laes com o mercado a uma mudana profunda do status quodo sistema

    internacional, inclusive por intermdio de convenes internacionais. Al-guns dando-se como tarefa provar que de interesse pblico, procuramampliar a compreenso, caminho pelo qual pretendem obter fundos, apoiostcnicos no-interferentes, consumidores, parceiros e outros espaos paraessas populaes, contribuindo para suas necessidades e preservao dabiodiversidade em maior escala. Outros, ainda mais cpticos, consideramque o problema estrutural e tudo na concentrao em curso trabalha con-tra as necessidades da conservao e da autodeterminao. H dificuldadesexternas e internas s populaes para que tais experincias se tornem efica-zes, duradouras e compensatrias.

    Se a biodiversidade est ameaada, porque no proteg-la primeiro insitu? A conservao da biodiversidade, para dar-se nas dimenses amplasrecomendadas pelos especialistas, implica diversas modalidades de reas depreservao, entre elas a garantia das terras e direitos das populaes tradi-cionais. Os chamados civilizados seriam seres sem ligao local, os da biosfera,que terminam por necessitar criar parques nacionais para compensar as ati-vidades destrutivas de suas monoculturas. O velho estilo conservacionistaprocura remover as populaes, mesmo quando mantiveram as reas que

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    habitam preservadas. Aumentam em nmero os que admitem que umapopulao possa ser parceira de projetos de conservao e qualidade de

    vida, para presentes e futuras geraes, interligando preservao e direitosterritoriais. A proposta seria a de negociar uma poltica comum entre osambientalistas e a populao local, o que no se d sem conflitos contnuos.A crtica dos ambientalistas sociais aos conservacionistas clssicos centra-seem sua excessiva nfase nas reas de conservao exclusivas, permitindo nomximo que os tradicionais conservem faixas do entorno, chamadas bufferareas(Gray, 1991).

    Entre os prprios ambientalistas, indigenistas e representantes dessaspopulaes diferenciadas h competio e diferenas de estratgia. Por exem-plo, entre as pequenas e mdias iniciativas, de grupos menores ou de popu-

    laes que desenvolvem pequenos projetos, com grande carga administrati-va, levados por ombros generosos, diferenciando-se das grandes ONGSinter-nacionalizadas, que disputam projetos de maior porte, profissionalizadas,financiadas e socialmente prestigiadas. Alguns esto mais voltados a umaao prxima de interesses governamentais e privados, inclusive com finan-ciamento multilateral, com maior ou menor deciso, informao e partici-pao das populaes.

    Gray(1991) identificou tendncias entre os ambientalistas frente spopulaes: os capitalistas verdes, os conservacionistas clssicos e os ecolo-gistas sociais. Os capitalistas verdes defendem que, para salvar a floresta,

    preciso convencer governos, empresas e recm-chegados, criando merca-dos rentveis para os produtos da floresta. Os sociais trabalham com insti-tuies voltadas ao manejo sustentvel de recursos e do prioridade s po-pulaes. Os conservacionistas clssicos enfatizam a criao de parques ereservas mediante atividades como o turismo, ou por doaes dos pasesmais ricos, removendo as populaes. Nos ltimos anos tais diferenas di-minuram e surgiram outros alinhamentos. Lderes indgenas, indigenistas,tambm conseguiram melhores acordos entre os defensores da insero in-condicional das populaes no mercado, os que pregavam seu isolamento eos que enfatizavam a autodeterminao, tanto no controle das terras, quan-

    to no acesso ao mercado. Mas diferenas permanecem entre as vises so-ciais, culturais e ticas da conservao, nas quais populaes surgem comoparceiros, e os que insistem na preservao como um fim em si, em reaspara pesquisa e turismo, considerando irrealista trabalhar com populaeslocais.

    H cada vez maior unanimidade quanto a aproveitar oportunidadesde mercado, tanto via produtos quanto na conquista de compensaes pelacontribuio que estas populaes prestam conservao da biodiversidade

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    in situe na obteno de financiamento. As divergncias, muitas vezes spe-ras, do-se mais sobre o como fazer. Pode-se concluir que mdios e peque-

    nos projetos tm sido mais favorveis ao controle indgena. No entanto,fracassam quando no-articulados com mudanas jurdicas e scio-econ-micas mais amplas. As bases so a autodeterminao, o autodesenvolvimento,os direitos sobre o territrio, a liberdade de expresso cultural, o controledo manejo dos recursos, em todas as suas fases: produo, transformao,contatos, estratgias de mercado, tecnologia, administrao, distribuioda renda, escala, marketing. Tais aspectos sugerem que um aprendizadocompensatrio ser mais efetivo com apoio tcnico, desde que no interfe-rentes ou controladores. A mdio prazo, essa soluo inclui a capacitaode tcnicos das prprias populaes, professores bilnges, agentes de sa-de e administradores, escolhidos pelas comunidades. Uma das propostas que cada comunidade deveria contar com seu plano prprio de autodesen-volvimento, prevendo manejo diversificado de recursos, aliando auto-so-brevivncia com mercado de livre escolha, mas em dilogo com especialis-tas que possam sugerir e oferecer suporte tcnico e treinamentos. O acessoao mercado traz obrigatoriamente mudanas produtivas, de difcil previsopelo seu maior ou menor grau de incorporao, aceitao, dependncia einterferncia externa indesejada.

    Muitos desses projetos no consideram a diversidade cultural das po-pulaes, que, apesar de coincidirem como detentores de uma dvida social

    coletiva, apresentam-se com sua especificidade. Os grupos indgenas no Brasiltm mais de 500 reas, 180 idiomas e organizao social diferente das deribeirinhos, quilombolas ou extrativistas. Estudos demonstram que indge-nas sempre realizaram trocas, pela reciprocidade e em espcie, inclusive ri-tuais, entre vrios grupos. Aps a colonizao, atravs de intermedirios,regateiros e marreteiros que os exploravam, como no caso da borracha, en-tregavam o produto e seu trabalho a baixo custo, sempre devedores, con-traindo novas doenas, perdendo terras e recursos. Experincias mostramque o conhecimento no retorna vantajosamente aos tradicionais, quandoposto sob o poder concentracionrio de interesses financeiros externos, in-dustriais ou do agribusiness, a partir do maior controle do acesso informa-o, tecnologia, ao capital e escala de produo. Os produtos que real-mente poderiam ter bons resultados financeiramente, so os que menosessas populaes esto preparadas para administrar, os mais interferentes epredatrios, como os farmacuticos, sementes, material gentico, madeiranobre, minerao, ecoturismo, atividades ligadas a esferas e circuitos com-plexos do mercado, com maior risco de imposio de uma concepo exte-rior de desenvolvimento e de queda de qualidade de vida.

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    Nos projetos de registro de patentes e produo ex situda biodiver-sidade, os nativos servem como informantes, colaboradores na seleo de

    dados, mas raramente so os que compilam, sistematizam e controlam oaproveitamento desses dados (Dutfield, 1999; Shiva, 1999).

    Algumas experincias de sadas econmicas, apresentadas como com-pensatrias, so at mais modestas, como a venda de farinha para o merca-do mais prximo, a exemplo dos ndios do Mamor, fornecendo cidadede Guajar-Mirim. O mais freqente que consigam colocar ocasional-mente seus produtos em feiras locais. Dessas solues resulta a oferta deexcedentes de sua produo rotineira para a auto-sobrevivncia, como oartesanato, a pesca, a farinha, e no novidades escolhidas pelo seu valor demercado, mas produes variadas de pequena escala, levadas por famlias ou

    aldeias, ampliando o acesso de seus excedentes no mercado regional.Parte dos projetos voltados a essas populaes no se mostraram com-

    pensatrios, nem garantiram autonomia e livre escolha. A advertncia dealgumas vozes representativas dos ndios e indigenistas, como de outrosdesfavorecidos pela diferena cultural, de que, em geral, as populaes sotratadas como vtimas passivas ou simples receptculos de projetos impos-tos de cima. Muitas vezes os proponentes partem de uma viso bem-inten-cionada, mas paternalista e economicista, que no leva em conta a especifi-cidade cultural, os direitos autodeterminao, opes diversificadas, se-quer as produes costumeiras, voltadas auto-sobrevivncia e ao autoabaste-

    cimento. A tendncia de que a monocultura se imponha, privilegiandoprodutos no-sustentveis, diminuindo sua autonomia e assimilando valo-res exteriores s suas tradies. Outros chegam a controlar a produo,impondo concepes de desenvolvimento, sejam de interesses privados, tc-nicos do Estado, religiosos, conservacionistas e ONGSindigenistas. Tais ini-ciativas tendem a solues monolticas e monoculturais, precrias, sazonais,produes sujeitas a preos instveis, ameaadas por desmatamento e pra-gas, como nos casos da pesca, seringa e castanha. A dependncia vai aumen-tando por prazos, transporte, armazenamento, apresentao, marcas,tecnologias de transformao, escala e agregao de valor. Populaes com-

    prometeram assim o seu modo de vida, sem vantagens, ao aceitarem, pornecessidade, presses pelo consumo de seus produtos, incorporando novosmtodos, inclusive no trato de espcies que manejam tradicionalmente.

    A livre escolha das populaes tradicionais

    Uma das propostas refere-se a que essas populaes criem suas pr-prias instituies controlando seu conhecimento, com o apoio de pesquisa-

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    dores, acordos sobre royalties, negociando autorizaes e compensaes.Nem todos julgam obrigatrio o acesso s patentes; a informao poderia

    ser aberta, mas seu uso controlado e as compensaes acordadas, desde quecapazes de decidir, porque autnomos e informados. Recomenda-se quepartam do mercado local e regional, para as esferas mais amplas do merca-do, como o nacional e o internacional. Suas prprias instituies encontra-riam canais para acessar o mercado, com marcas prprias, selos verdes ecertificados de origem, com banco de dados registrando a informao e aproduo que possam oferecer. Os defensores do capitalismo verde procu-ram espcies para o mercado, pretendendo descobri-las, mas as minoriastm se sado melhor in situdo que ex situ. Esse reconhecimento, por meiodos produtos, contribuiria para o respeito e a tolerncia com as culturasdiferenciadas e com maior sabedoria e conhecimento sobre o manejo dasflorestas (Gray, 1991).

    O financiamento de projetos governamentais e privados pode resultarno fomento ao individualismo, aumento da desigualdade e de conflitos,com quebra no compensatria dos laos tradicionais de reciprocidade.Experincias revelaram dificuldades de representao dessas populaes, aser sempre conferida e legitimada. No caso dos ndios, dada sua diversida-de, importante garantir que a representao seja proporcional e pluritnica,quando se trata de organizaes regionais ou intergrupos. H conflitos en-tre as formas tradicionais de organizao social, nos quais os mais velhos

    desempenham papel fundamental, enquanto novas formas organizativas,de inspirao sindical ou partidria, lideradas por pioneiros mais jovens,desenvoltos na cultura majoritria, mas que nem sempre garantem formasde distribuio compensatrias aos mecanismos culturais de reciprocidade.A dificuldade advm do fato de se considerar a organizao de representa-o poltica dessas populaes como capaz de conduzir tambm projetoseconmicos, quando os produtores ativos esto ligados aos conselhos tradi-cionais de aldeias, s famlias ampliadas e aos laos de parentesco, e no aoslderes reconhecidos externamente, que muitas vezes residem na cidade,alguns prestando servios reais, outros em situao socialmente precria.

    Algumas iniciativas tm levado tambm criao de faces nas co-munidades, no considerando as divises internas j existentes, ou inter-grupos, e agravando-as. No caso de jovens lideranas indgenas que entra-ram ilegalmente em negociao com madeireiras e garimpos, freqentementeurbanizaram-se, comprometeram-se em casamentos mistos e em outras re-laes de dependncia, perderam muitos de seus laos, no souberam fazeruso dos recursos a longo prazo, nem os redistriburam adequadamente aosseus. As mulheres, as crianas e os idosos terminaram sem as garantias da

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    reciprocidade, no participaram dos ganhos dos negcios realizados peloshomens em suas novas alianas e suas aldeias foram faveladas, aumentando

    a desnutrio e as doenas.Muitos projetos inspiram-se em vises comunitaristas, como se os n-

    dios estivessem disponveis culturalmente para formar cooperativas igua-litaristas, o que no coincide com os fatos, nem com as tradies. A produ-o de grande nmero desses agrupamentos tem como base o parentesco ea cooperao no trabalho, o que no se confunde com coletivismo, pois alise sabe o que pertence a cada um, apesar de os recursos encontrarem-semais disponveis ao uso comum do que na cultura majoritria. Embora fun-dados na solidariedade e reciprocidade, no existe socializao da produ-o, nem a predisposio idealizada por bem-intencionados. Com a presso

    do exemplo dos colonos vizinhos, ao contrrio, sobretudo entre os maisjovens, muitos querem ver dinheiro vivo e imediato, cuja redistribuio no automtica, nem mantida nos padres de reciprocidade da tradio. Pro-dutos de fora chegam com regras de mercado introduzidas pelas prticasregionais, das mais precrias na fronteira. O que se assiste subalternizaopelos intermedirios, mais conhecedores da dinmica do mercado, capazesde manterem contato com os consumidores distantes. Essas populaesprecisariam controlar coleta, produo, extrao, transformao e comer-cializao, mesmo perdendo aparentes grandes negcios que no so os seus.

    Dutfield (1999) recapitula o debate entre os que defendem os tradicio-

    nais como preservacionistas ticos e os que consideram que esta tica nopode ser generalizada, pois prevaleceria apenas quando esto isolados emgrupos menores. Lembra os cpticos quanto aos selvagens ecologicamentenobres, e os que consideram perigoso e injusto impedir-lhes o acesso anovas tecnologias, condenando-os apenas s tradicionais, de menor impac-to, mas limitando suas estratgias de sobrevivncia.

    Etnomedicina e etnofarmacologia

    Trs quartos das drogas utilizadas pelo receiturio mdico derivam de

    plantas descobertas pelo conhecimento indgena. De 120 componentes ati-vos isolados de plantas, 75% tm origem em seu uso tradicional. Plantastradicionais foram utilizadas em sete mil componentes da farmacopia emuso. O aproveitamento da biodiversidade no mercado transformou-se emum negcio expressivo: a venda de medicamentos derivados de plantas nosEUA, em 1990, j alcanava US$ 15.5 bilhes. Em 1985, somando-se EUA,Europa, Canad, Austrlia e Japo, esse mercado movimentou US$ 43 bi-lhes. Especialistas destacam a relevncia do conhecimento indgena, comoquinino, para malria; curare, relaxante muscular; hormnio esteride

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    diosgenin, nas plulas anticoncepcionais; vincristine, usada na cura do malde Hodgkin e na leucemia. No incio da dcada, o Instituto Nacional do

    Cncer dos EUAdesencadeou uma pesquisa procurando plantas para quimio-terapia em todo o mundo (Gray, 1991; Davis, 1993; Nijar, 1999). O Insti-tuto Nacional de Sade dos EUAtem um estoque de germoplasmas, arma-zenados criogenicamente, que permanecero disponveis por 350 anos. Osresultados do conhecimento tradicional foram apropriados como tecnologiaspatenteadas, sem o consentimento ou a adequada compensao aos que odesenvolveram, como no caso da morfina ou do quinino.

    Algumas iniciativas pretendem compartir com os ndios os lucros desua medicina no mercado. Na Califrnia, a Shamam Pharmaceutical Inc. seprops a remuner-los pela coleta, cooperao na taxinomia das plantas e

    pela propriedade intelectual. A empresa encontrou, em 1999, dificuldadespara a aprovao de produtos pela FDA-EUA(SP-303-Provir), devido aoscustos dos estudos clnicos exigidos. Em 1998, foi criada tambm a ShamanBotanicals, voltada a produtos alimentcios, selecionados a partir de estu-dos etnobotnicos. Foram recebidos com ceticismo pelo mercado e comdesconfiana por alguns ambientalistas e pesquisadores. A Merck and Co.,Inc. fez um acordo semelhante com a organizao de pesquisas INBio ecomunidades da Costa Rica (Davis, 1993:19).

    Organizaes indgenas da Amaznia (30/3/99), com o apoio deentidades ambientalistas, ingressaram com um pedido pela anulao da pa-

    tente n. 5751, da planta ayahuasca ou yag(Banisteriopsis caapi), re-gistrada por Loren Miller, em 1986 (2). O argumento, apresentado ao Patentand Trademark OfficedosEUA, de que a planta usada pelos pajs daAmaznia em cerimnias religiosas de cura, para chamar os espritos e paraprever o futuro, devendo ser cuidada e usada com respeito e precauo. Napetio, solicita-se que o servio de patentes cuide de registrar apenas pro-dutos aos quais se acrescentou conhecimento, o que no vem ocorrendocom plantas de uso tradicional. O registro aceita como propriedade parti-cular de qualquer um, conhecimentos que pertencem h geraes a outrasculturas, quebrando a exigncia de que a patente caracterize inovao. A

    solicitao pretende que o servio de patentes garanta contribuies aospovos indgenas, incentivando a conservao dos sistemas tradicionais deconhecimento da biodiversidade, equilibrando os benefcios entre os ope-radores no mercado e os detentores do conhecimento por tradio de uso.Um exemplo o do anticoagulante retirado da planta tike uba (3), usadapelos Uruu-au-au (RO), contatados na dcada de 80, que foi entreguepara anlise a grandes empresas, sem retorno ou controle previsto popula-o que a desenvolveu (Gray, 1991:46; Leonel, 1995).

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    Um qumico francs coletou dos ndios Chimanes da Bolvia, o p dacasca da espcie da floresta tropical Phlebotomus, identificou a planta (Galipea

    longiflora), usada tradicionalmente no tratamento da Leishmaniose, paten-teou-a, isolou seu princpio ativo e pesquisou sua eficcia. O produto aindano foi fabricado por seu alto custo ao consumidor e exigncia de pesqui-sas clnicas. Os bolivianos protestam porque os ndios no foram associados patente. Como a pesquisa foi financiada pela cooperao tcnica francesa,busca-se parceiros privados e formas jurdicas para reconhecer os direitosdos ndios, caso se torne um produto rentvel no mercado (Tardieu, 1999).Os Wapixana (RR) denunciam um qumico alemo, Conrad Gorinski, filhode uma ndia, pelas patentes nos EUAe na Europa de duas plantas de usotradicional: uma para a pesca, o cunani, que poderia ser usado como anes-tsico; outra, tibiruou rupununi, um remdio tradicional, que poderia seraproveitado no tratamento de tumores, malria e como anticonceptivo.

    Biotecnologia, biopirataria,patentes e conhecimentos tradicionais

    A chamada revoluo verde citada como advertncia e preceden-te da excluso das populaes (Escuret, 1989; Gray, 1991; Nijar, 1999). Aprodutividade por hectare de gros selecionados foi dobrada nos anos 80, area cultivada aumentou em 24%, com alto custo em energia, insumos, m-quinas, combustveis, fertilizantes, pesticidas, herbicidas, irrigao, eletrici-dade, transporte e impactos sobre a disponibilidade de terra e gua.

    Espcies foram selecionadas para monoculturas em escala, como mi-lho, arroz e batata. Sete cereais passaram a totalizar metade das calorias dapopulao mundial. Ao invs de compensaes por sua oferta de biodiver-sidade, adquiriram novas espcies selecionadas, mais eficientes por hectare,porm mais expostas a pragas e parasitas, sem a garantia de substituiooferecida pela diversidade. Esses ganhos de curto prazo foram localizados,para grandes produtores, enquanto os pequenos endividaram-se e perde-ram terras.

    A revoluo verde foi patrocinada por uma rede, a InternationalAgricultural Research Centers, coordenada pelo Consultative Group onInternational Agricultural Research(CGIAR), criado em 1970, pelo BancoMundial. Promoveram-se colees e bancos de conservao de recursosgenticos, selecionando espcies, desestimulando a diversificao, criandomonoplios das sementes mais resistentes aos herbicidas. Muitas espciestm sido retiradas para conservao fora de seu local de origem, para pes-quisa, verificando-se as condies de aproveitamento em outros locais, ou

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    desenvolvendo-se novas variedades. O CGIARe a FAO criaram uma insti-tuio voltada para a conservao e pesquisa de recursos genticos, o Inter-

    national Bureau for Plant Genetic Resources(IBPGR), que centralizou, noincio da dcada, 127 colees de material gentico, com 81 delas em pasesdo hemisfrio norte e 29 controladas por multinacionais. Apenas 17 encon-travam-se em pases do Terceiro Mundo, apesar de a maioria das espciester sido neles coletada.

    Estoques, em baixas temperaturas secas, foram conservados em 227bancos de sementes, em 99 pases. Poucas espcies foram destinadas a se-rem preservadas in situ, como o amendoim, o leo de palmeira, a banana, aborracha, o caf, o cacau, a cebola e os ctricos.

    Alguns conservacionistas entendiam que essa era uma das formas demanter vivas as opes, argumentando que a proteo de espcies da natu-reza oferece tantas alternativas e tantos avanos quanto a biotecnologia. Ossociais defendiam a prioridade proteo in situ, com a participao daspopulaes detentoras do conhecimento, pois consideram que, de outraforma, os resultados sero semelhantes aos da seleo para monoculturas darevoluo verde, dominadas por um pequeno grupo de grandes empre-sas, controladoras de direitos e informaes (Gray,1991). Em 1996, o CGIARcontou com US$ 300 milhes para renovar seu programa, levando agoraem conta populaes e ecossistemas, e denunciando patentes vindas dosbancos de germoplasma de acesso pblico.

    Dutfield (1999) adverte que h dvidas de que estes arquivos pos-sam se manter atualizados, uma vez que o conhecimento tradicional evolui,e, fora de seu contexto, perde vitalidade. A pesquisa para patentes que noreconhecem os direitos das populaes vem sendo recebida com reservas deordem tica, ao valorizar e apropriar o conhecimento, excluindo dos bene-fcios as populaes detentoras. Vrios programas enviam pesquisadores paraselecionar amostras e descries de uso. Os recursos dos ecossistemas tropi-cais so considerados herana da humanidade, sem dono, livres para paten-te e comercializao. A partir do processamento de amostras, a descober-

    ta patenteada, os direitos passam para a empresa financiadora, protegidoscomo mercadorias.

    A revoluo verde consistiu na manipulao gentica pela seleode plantas. A biotecnologia atravessa a barreira das espcies, recria, modifi-cando a partir de organismos vivos, por tcnicas diversas, obtendo novasespcies de interesse comercial. A biotecnologia apresentou-se como pro-messa de soluo escassez de alimentos. Enquanto a revoluo verdedependeu de fundos pblicos, a biotecnologia dominada pelas grandes

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    corporaes multinacionais, que definem a agenda das pesquisas, financian-do universidades e centros de pesquisa (Gray, 1991).

    As patentes esto no centro do controle concentracionrio permitidopela biotecnologia, com a cobrana de direitos sobre formas de vida modi-ficadas. O dono da patente tende a liderar o mercado e as futuras inovaes,inclusive as dos detentores originais do conhecimento de seu uso. A concei-tuao desses produtos como novidades, pela criatividade e uso prtico,condio para ser registrada, vem sendo questionada quanto sua tica e sua lgica, uma vez que nada na natureza estritamente inventado, e o quese tem feito modificar. Para todos os agricultores um impasse, pois nopoderiam usar mais as espcies com elementos genticos patenteados. OsEUAe a Europa admitem legalmente tais patentes, e embora com discre-

    pncias, o sistema unificado. Os pases em desenvolvimento tentaram, porintermdio da FAO, impedir que o controle ficasse apenas com os que de-tm tecnologia, em prejuzo dos detentores originais. Procura-se garantiras operaes das multinacionais alm fronteiras, com desvantagem para ospases que no detm tecnologia, dificultando o acesso a produtos, bloque-ando sua capacidade de inovao e competitividade, inclusive quando osconhecimentos tm origem em suas prprias populaes.

    De incio, a propriedade intelectual foi discutida quanto aos direitosdos conhecimentos informais de agricultores como um todo. Com a entra-da no debate da oferta de plantas da biodiversidade tropical, o tema tocou

    mais de perto as populaes tradicionais. Pesquisas em curso voltam-se paraconservantes e inseticidas naturais. Chegou-se a reivindicar que direitos sobrevariedades de mandioca, batata, tabaco, quinino, curare e milho fossemento reconhecidas aos tradicionais. Os ambientalistas comerciais so criti-cados por encorajarem as empresas a desenvolverem superespcies, selecio-nando-as ex situ, promovendo monocultura, sem garantir os direitos daspopulaes. Os pases do Sul perderam com a revoluo verde, seus po-vos tradicionais e pequenos produtores, perdero ainda mais com a biotecno-logia.

    A tnica internacional a do descolamento e de contradies entre osacordos e fruns de negociaes, separando-se temas inter-relacionados,como a conservao da biodiversidade, os direitos e conhecimentos daspopulaes e os interesses das grandes corporaes em garantir lucros sobretecnologias. Nos ltimos anos, alguns discursos pareciam se aproximar, masno h medidas efetivas que possam ser comemoradas. O princpio de que apreservao da biodiversidade inseparvel da cultural tornou-se mais acei-to, mas so poucas as parcerias entre populaes, ambientalistas, governos esetor privado. Em geral, os direitos das populaes biodiversidade vm

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    sendo discutidos como temas ticos e sociais, em convenes da OIT, daFAO, na conveno da biodiversidade, em grupos de trabalho da ONU. Os

    interesses das grandes empresas, na forma de patentes e propriedade inte-lectual so tratados no GATT e na OMC como direitos comerciais. A tnica a de sempre: os pases tropicais oferecem livre acesso aos conhecimentosde uso da biodiversidade, os do Norte cobram tecnologia. Na lgica depropriedade e mercado que construram, concentracionria e hegemoni-camente, os conhecimentos da biodiversidade so patrimnio da humani-dade, de livre acesso, no contabilizveis, mesmo que regressem aos pasesde origem na forma de mercadorias.

    A Conveno Internacional da Biodiversidade reconheceu a sobera-nia dos pases sobre os benefcios e os recursos de sua biodiversidade; reco-

    mendou proteo aos direitos e conhecimentos das populaes tradicionaisquanto a seus recursos; previu legislaes nacionais sui generisgarantindoestes conhecimentos; incentivou a proteo de tecnologias informais e ouso sustentvel da biodiversidade. Os EUAisolaram-se frente aos 169 pasesque ratificaram a Conveno. Dutfield (1999) considera positivo que a con-veno tenha conceituado os conhecimentos informais como inovaes eprticas tradicionais, retirando-lhes a carga de saber datado, histrico, infle-xvel e esttico.

    A jurisprudncia internacional reconheceu a propriedade intelectualquanto a criatividade e inovaes das empresas, pelas patentes, mas no a

    informal, tradicional, coletiva ou intergeneracional. O resultado, argumen-ta Nijar (1999), que as empresas continuaro a visitar populaes tropi-cais, reclassificar, transformar e patentear materiais genticos do uso tradicio-nal da biodiversidade. AUnion for the Protectionof New Varieties of Plants(UPOV), em convenes (1961/1991), tratou das espcies consideradasidentificadas, homogneas e estveis, protegendo os selecionadores, emprejuzo dos conhecimentos informais. Com as patentes, os grandes podeminvestir em novas variedades, enquanto as populaes tradicionais, mesmoque cumulativamente tenham desenvolvido esses produtos, foram margi-nalizadas da competio. Apenas a ltima contribuio tecnolgica prote-

    gida, a de grandes empresas, que podem controlar as variedades subseqen-tes (Gray, 1991; Nijar, 1999).

    O acordo patrocinado pela OMC Organizao Mundial do Comr-cio, o TRIPS Trade Related Intellectual Property Rights, fortaleceu o sis-tema de patentes. Os EUAe a Europa consideram que os conhecimentostradicionais no cabem na lgica de propriedade e patente do TRIPS, masem sistemas como a UPOV, articulados com a conveno da biodiversidade,ou similares, a serem criados, mas menos efetivos (Nijar, 1999).

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    O Grupo de Trabalho da ONU sobre populaes indgenas, em 1990j reivindicava medidas de proteo da propriedade intelectual para manifes-taes culturais, entre elas literatura, desenho, artes visuais, performing arts,sementes, recursos genticos, medicina e conhecimentos de uso de proprie-dades da fauna e da flora. Davis (1993:20) manifestou-se cptico quanto possibilidade de que a revoluo biotecnolgica, mesmo com o reconheci-mento da propriedade intelectual, pudesse por si s garantir prosperidadeeconmica para populaes indgenas e comunidades rurais tradicionais.

    A viso dominante economicista, voltada s espcies rentveis e lgica do mercado, contraditria inclusive em documentos que afirmam serimpossvel salvar uma espcie, sem preservar grandes pores dos ecossis-temas, e nos que reconhecem as dificuldades de aproveit-las em todas assuas potencialidades ex-situ, por interromper o saber cumulativo de seu usocontnuo. A prioridade ao mercado redutora do ambiente a um conjuntoquantitativo de recursos, listas ou inventrios de espcies e usos, separadasdas inter-relaes culturais entre sociedades e naturezas, das exigncias da

    ndios Uruuauau passando nas flechas lquido anti-coagulante chamadoTike-Uba

    FotoJescovonPuttkamer-1985

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    prpria natureza, evitando articular as questes. As populaes chegam aser vistas como mais um grupo de interesses, o das minorias, que seriam

    potenciais predadores, semelhantes s agropecurias, mineradoras, madei-reiras e colonos, pois terminariam por aceitar a compensao do lucro peladegradao. Os ecologistas sociais respondem que preciso garantir-lhes ascondies de autoabastecimento e compensaes pela preservao.

    Uma das tentativas iniciais foi a da troca de ttulos da dvida externapor reas de preservao, com experincias na Costa Rica e na Bolvia. Estaalternativa serviu para algumas experincias de parques conservacionistas,mas no tanto para as populaes tradicionais. Na ltima dcada investiu-seem projetos florestais de captao de carbono, em sua maioria plantios deinteresse das indstrias de papel, sem a participao das comunidades, privi-

    legiando poucas espcies e carentes de uma viso de socialforestry. Gray(1991)estimou que sobrevivem cerca de cinco mil minorias culturais, 200 milhesde pessoas, 4% da populao mundial, localizando-se em sua maioria nasia, nas ilhas do Pacfico, entre os pastores e coletores da frica, nas Am-ricas, representando 90% da diversidade cultural do planeta.

    Propostas para superaros impasses das negociaes internacionais

    A proposta de especialistas, reunidos em 1997 pela conveno da

    biodiversidade, foi a de moratria da coleta de conhecimentos tradicionais,at sua proteo. Chegou-se a propor que o material biolgico em geraldeveria ser excludo dos direitos de propriedade intelectual, por razes ti-cas, pelas diferenas culturais e pela ameaa biodiversidade. A SociedadeInternacional de Etnobiologia condiciona as pesquisas ao consentimentoinformado das populaes. Os crticos do reconhecimento da propriedadeintelectual informal argumentam que constituiria uma limitao ao acessos heranas da humanidade, alm de forar comunidades a agirem na ticadas empresas privadas, porque o conhecimento tradicional consideradobem coletivo e a tecnologia privada.

    Outras solues tm sido consideradas, como a do registro de espcies,por sistemas prprios de cada pas, antes que elementos genticos da suacomposio venham a ser patenteados. As leis de copyright referem-se reproduo de obras de arte, de material escrito ou visual. Os mecanismosde licenciamento de tecnologia, como o de patentes, tratam de direitosindividuais e no coletivos. Especialistas recomendam tentar todas as op-es: cultivares, patente, copyrighte licena tecnolgica, embora tais instru-mentos no sejam adequados s necessidades e concepes das populaes

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    tradicionais. O Brasil nos ltimos anos promulgou a lei de proteo decultivares, atualizou a lei de direitos autorais, que no considera inveno

    os materiais biolgicos, mesmo isolados, embora permita a patente dostrangnicos. Os bens culturais tambm so difceis de proteger contra abu-sos e descaracterizaes, pois preciso, ao mesmo tempo, encorajar novascriaes, apoiar a disseminao, adaptaes em obras de autor, e condicion-las autorizao das autoridades nacionais e das comunidades. Esforostm sido feitos para aumentar garantias s minorias, por intermdio da WorldIntellectual Property Organisation, com sede em Genebra (Gray, 1991; Nijar,1999).

    Para garantir os direitos de tradies informais fora do TRIPS e daUPOV restam as leis nacionais, acordos de reciprocidade bilateral, novas

    convenes, ou recorrendo-se a razes ticas ou de interesse pblico paraanular patentes. O conceito de inovao, pouco claro, daria espao a quecada pas estabelea seus critrios. Nos EUA, uma forma isolada e processa-da, pode ser patenteada, mesmo quando encontrvel na natureza. Os euro-peus permitem patentes de estruturas e processos de obteno, desde queno sejam de domnio pblico. Outros pases, por leis prprias, poderiamreconhecer direitos de tradies, recusar o registro de patentes genticas,ou combinar patentes com outras modalidades de proteo, equilibrandodireitos das empresas com os dos tradicionais. No Brasil o Congresso discu-te a regulamentao do acesso ao patrimnio gentico, a partir da proposta

    da senadora Marina Silva (PT-AC).Outras experincias envolvem parcerias com pesquisadores locais e as

    comunidades, o que visto como uma iniciativa de instituies e de empre-sas farmacuticas dos EUAde aplicar princpios da conveno da biodiver-sidade, mesmo sem ratific-la, como a Bristol Myers Squibb, no Suriname.A dificuldade que sequer os pesquisadores brasileiros esto preparadospara estas negociaes, o que traz cepticismo quanto possibilidade de queos ndios e outros tradicionais possam faz-lo (Kauffmann-Zeh, 1999). AGlaxo Wellcome fez um acordo com a empresa brasileira Extracta, para aprospeco de 30 mil compostos, a um custo de US$ 3,2 milhes, 18% para

    subcontratos com cientistas brasileiros, mas a notcia no esclarece se osdireitos das populaes esto previstos (FSP, 20 jul. 1999:13-21). Cientistasestrangeiros acusam os brasileiros de bioparania, advertindo que pesquisaroem outros pases e que o Brasil sairia prejudicado, pois apenas 10% das esp-cies da Amaznia seriam conhecidas.

    Na proposta de Nijar (1999), leis nacionais poderiam condicionar aspatentes ao consentimento informado das populaes; proibir o registro dederivados do conhecimento tradicional; desobrigar as populaes de regis-

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    trar conhecimentos, sendo suficiente a prova de uso tradicional; aplicar comonico critrio de registro o da UPOV, em variedades identificadas, unifor-

    mes e estveis; desobrigar pequenos e minorias de respeitar patentes; res-tringir o conceito de variedade derivada; incentivar a conservao local desementes; por precauo, recusar registros que possam vir a afetar a biodiver-sidade, a sade, ou quando a variedade no tem capacidade regenerativanormal ou prejudica scio-economicamente o pas ou comunidades. Pro-pe ainda que os temas relativos biodiversidade e s populaes passem a ser

    tratados pela conveno da biodiversidade e no pelos acordos comerciais.

    Dutfield (1999) argumenta que h vrios domnios privados de co-nhecimentos, no previstos nas convenes, que consideram apenas um tipode propriedade intelectual, o empresarial-comercial dominante. Para os di-

    reitos de populaes tradicionais, seriam necessrios novos instrumentos ju-rdicos, fundados nos direitos de detentores de conhecimentos resultantesde prticas coletivas, consuetudinrias ou costumeiras, com prioridade paraconhecimentos ainda no de domnio pblico e futuras inovaes informais.Assim, quando um conhecimento fosse colocado no domnio pblico, semo consentimento de seus detentores, estes deveriam poder recuperar suatitularidade e direitos de indenizao, pelo mesmo princpio da patente, que o de estimular a criatividade. Tais direitos diferenciados deveriam ser reco-nhecidos no apenas pelo seu valor instrumental, mas tambm pela contri-buio das culturas minoritrias e por razes ticas. A troca de bioprospeco

    por tecnologia, associao nas patentes e combinao de royaltiescom paga-mentos antecipados na coleta so outras propostas formuladas. Fato que aslgicas da cincia e do mercado diferem dos sistemas tradicionais de conhe-cimento, na concepo de propriedade, e h forte ceticismo quanto ao reco-nhecimento de direitos de populaes, ou outros que se encontrem fora dosinteresses das grandes empresas que concentram capital e tecnologia.

    Algumas das alternativas implicam modificar as leis de patentes, ou-tras combinam solues, como certificados de origem dos produtos, mar-cas ou selos prprios de populaes, com indicaes geogrficas e culturaisde origem como sadas para que pases tropicais incentivem compensaes

    aos conhecimentos de suas populaes tradicionais. Poderiam ser exigidas,para o registro de patentes, declaraes de que produtos genticos no re-ceberam qualquer contribuio anterior de populaes tradicionais, ou evi-dncias de que houve o seu consentimento informado e de que participa-riam dos lucros. Sistemas especiais de certificao e padronizao podemgarantir s comunidades poder de veto ao acesso e uso de seus recursos.Mesmo que vrias dessas iniciativas fossem tomadas, como os tradicionaisvenceriam no mercado?

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    Outra linha de alternativas, no apenas jurdicas, mas de defesa dabiodiversidade e dos tradicionais in situ, pretende fortalecer as prprias co-

    munidades para que possam tratar seus conhecimentos como segredos co-merciais, capacitando-as para obter benefcios da bioprospeco, inclusivepara patente-las. As comunidades criariam seus prprios bancos de dados,com acesso reservado, identificando conhecimentos que j caram no do-mnio pblico e os partilhados por mais de uma comunidade. Para evitarconflito de interesses nos casos em que h vrias comunidades detentoras,seriam formados cartis e negociados acordos entre governos e comunida-des. Bancos de dados de conhecimentos informais foram iniciados no Equa-dor e na ndia. Outros propem que as autoridades tenham acesso aos da-dos, reconhecendo os conhecimentos tradicionais que possam ser confir-mados como novidade ou inveno. Dutfield (1999) considera que restri-es ao acesso informao, se por um lado podem impedir abusos, poroutro a transparncia dos bancos de dados contribuiria para coibir ou anu-lar patentes, por exemplo, de uma planta medicinal indgena, desde que ajustia considere as contribuies informais anteriores ao produto patentea-do e aprimore o conceito de domnio pblico. Em muitas das alternativas, oque se busca adequar o conhecimento tradicional lgica de propriedadeprivada do mercado.

    A prpria diversidade das populaes detentoras destes direitos usa-da como argumento para adiar o seu reconhecimento. Em algumas tradi-

    es, o prprio conceito de propriedade aliengena, pois sua tica compar-tilha conhecimentos; em outras, h sistemas especficos de propriedade, comjurisprudncia prpria. Segredos teriam existido desde tempos imemoriaisdos caadores e coletores, comparveis aos segredos comerciais contempo-rneos, porque podem ser trocados, vendidos, comprados, inclusive osmedicinais. Muitos pajs detm conhecimentos exclusivos de cultivares,coletas e usos para cura. Certos conhecimentos foram geogrfica e transcul-turalmente disseminados, no sendo fcil identificar o titular coletivo ouindividual desses direitos, mesmo quando tais conhecimentos podem seratribudos a uma comunidade ou a um grupo de parentesco, ainda assimsurgem dificuldades, como as do custo para registrar e garantir a patente dapirataria, alm do risco de o investimento ficar sem retorno.

    A vantagem das empresas a de que dispem de um s sistema depatentes, baseado na propriedade privada de tecnologia. Seu fundamento de que os direitos decorrem do aproveitamento comercial e tcnico, dife-rente do conhecimento tradicional, do qual dependeriam cada vez menospara agregar novas inovaes. O fato de haver comunidades que conside-ram seus conhecimentos como coletivos retomado como prova de os

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    mesmos serem de domnio pblico. Outro argumento o de existirem pa-tentes que, embora com usos idnticos aos tradicionais, tratam de produtos

    finais e mtodos de extrao diferentes, ou seja, seria necessrio reconhecera todos os que contriburam para o estado da arte final, at o uso industriale comercial atual (Dutfield, 1999). Fato que a maioria perde no quadroatual, em sua prpria mesa transgnica, no apenas as populaes tradicio-nais, e que no h solues convincentes em vista, sequer procurandoreequilibrar saber tradicional e tecnologia empresarial. Monocultura em escalasignifica hierarquizao da diviso do trabalho e da organizao da produ-o social: a diversificao ligada auto-sobrevivncia; a monocultura, exportao e dependncia. Quanto mais distante o mercado consumidor,maior a especializao. Estocagem e escala tm seu papel na desigualdade,na centralizao do poder poltico, financeiro e tecnolgico, na reduo daoferta de alimentos e na explorao irracional da natureza. Nada indica quese possa esperar por uma reverso da tendncia concentrao, ou que osgargalos do mercado possam abrir oportunidades iguais s populaes tra-dicionais e suas cooperativas, desqualificadas frente s transnacionais e aosacordos internacionais de comrcio.

    Notas

    1 Famlia Myristicaceae. Esta planta conhecida no Brasil por wana. Faz-se um

    tipo de rap com a casca. Usada entre os Yanomami. Elisabesky, Elaine.Etnofarmacologia de algumas tribos brasileiras. In: Suma Etnolgica Brasileira- 1 Etnobiologia. Petrpolis, Finep/Vozes, 1987, p. 137.

    2Banisteriopsis caapi(Spruce ex Griseb) Morton Famlia Malpighiaceae. Ori-gem: Amrica do Sul.

    3 Ainda pouco se sabe sobre esse veneno de flecha que poderia ser uma planta compropriedade curarizante, uma vez que aplicado na ponta da flecha, derrubandoo animal sem mat-lo. O animal cai devido a uma paralisia muscular. Agradeo aprofessora Maria Tereza de Arruda Camargo, ao professor Antonio Lamberti eLeopold Rdes por essas trs notas em favor da interdisciplinaridade.

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    RESUMO VRIOS estudos vm revelando possibilidades de aproveitamento de co-nhecimentos indgenas e de outras culturas tradicionais, entre eles, medicamentos,cosmticos, novos materiais, alimentos, sementes e conservantes como produtosde mercado. A prtica do mercado vem sendo a de apropriar-se desses bens cultu-rais, registr-los aps adaptaes e devolv-los como mercadorias protegidas porpatentes, inclusive aos pases onde tais conhecimentos foram desenvolvidos, geral-mente ao sul do Equador. Frente escala da degradao social e ambiental, comona Amaznia, surgiu um novo otimismo, o de que resultados financeiros de taisprodutos pudessem reverter s populaes, modificando-se a legislao internacio-nal e associando-se cooperativas de produtores com a biotecnologia e as trans-nacionais. O mercado, o principal adversrio da preservao da bio e da sociodiver-sidade, seria assim convidado empresas e consumidores a tornar-se aliado damanuteno da floresta em p e da diferena cultural, por exemplo, mediante cer-tificados de origem. No entanto, so numerosos os entraves para que essas popula-es possam abrir brechas no mercado, ou nos sistemas internacionais de registrode patentes, frente lgica da concentrao de capital e tecnologia.

    ABSTRACT SEVERALstudies have been revealing prospects of capitalizing on nativeknowledge and traditional cultures in order to launch new market products, suchas drugs, cosmetics, new materials, foods, seeds and preservers. The market hasadopted the practice of appropriating such cultural goods, which after slightadaptation are registered and turned out as patent-protected products and soldeven to the countries where that knowledge was first developed, south of the equatoras a rule. Vis--vis the social and evironmental degradation scale, as is the case ofthe Amazon area, a new optimism has risen: the hope that financial results from

    such products could benefit the native peoples, through the alteration ofinternational legislation and the association of producers cooperatives withtransnational companies. The market, the main opponent of bio- and sociodiversity,would thus be invited both producers and consumers to support the maintenanceof the standing forest and cultural difference, for example, by means of origincertificates. Nevertheless, many are the obstacles preventing the native peoplesfrom making a breakthrough either in the market or in the patent registrationinternational systems vis--vis the capital and technology concentration logic.

    Mauro Leonel professor-visitante do Instituto de Estudos Avanados da USP,professor do Procam (Programa de Ps-Graduao em Cincias Ambientiais daUSP) e professor do Departamento de Cincias Polticas da Faculdade de Filosofiae Cincias da Unesp-Marlia. autor, entre outros, de A morte social dos rios,Perspectiva, 1998; Etnodicia Uruuauau, Edusp, 1995 e Roads, Indians andthe Environment in the Amazon, from the Central Brazil to the Pacific. IWGIA,Copenhagen, 1992.