Breve Historico Perido Helenistico Capitulo III

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CAPÍTULO III UMA BREVE HISTÓRIA DO PERÍODO HELENÍSTICO Ele disse [que] incendiaria os meus territórios E os meus jovens aniquilar com espada E as minhas crianças de peito derrubaria por terra, E as minhas crianças entregaria para pilhagem E a minhas jovens raptar. (Jt 16,4) No cântico de Judite, ouvimos o eco de guerras. A prática de incendiar territórios conquistados é uma das estratégias mais comuns, e as vítimas, como sempre, são as pessoas mais fracas e indefesas, especialmente mulheres e crianças. A derrota do inimigo é marcada com gestos de humilhação e violência brutal, freqüentemente atingindo o corpo das mulheres. A história minimiza ou esconde a voz, os gemidos e os gritos das pessoas oprimidas. É necessário ler além do que os textos apresentam, sentar-se com as pessoas e sentir, ainda que de maneira parcial e condicionada, os efeitos provocados pela guerra. Neste capítulo, queremos nos situar na história da conquista da Judéia pelo Império Grego. Pontuaremos alguns acontecimentos que deixaram suas marcas na vida cotidiana do povo judeu. Nosso ponto de partida são as conquistas de Alexandre Magno e sua chegada ao Oriente

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CAPÍTULO III

UMA BREVE HISTÓRIA DO PERÍODO HELENÍSTICO

Ele disse [que] incendiaria os meus territórios

E os meus jovens aniquilar com espada

E as minhas crianças de peito derrubaria por terra,

E as minhas crianças entregaria para pilhagem

E a minhas jovens raptar. (Jt 16,4)

No cântico de Judite, ouvimos o eco de guerras. A prática de

incendiar territórios conquistados é uma das estratégias mais comuns, e as

vítimas, como sempre, são as pessoas mais fracas e indefesas,

especialmente mulheres e crianças. A derrota do inimigo é marcada com

gestos de humilhação e violência brutal, freqüentemente atingindo o corpo

das mulheres. A história minimiza ou esconde a voz, os gemidos e os gritos

das pessoas oprimidas. É necessário ler além do que os textos apresentam,

sentar-se com as pessoas e sentir, ainda que de maneira parcial e

condicionada, os efeitos provocados pela guerra.

Neste capítulo, queremos nos situar na história da conquista da

Judéia pelo Império Grego. Pontuaremos alguns acontecimentos que

deixaram suas marcas na vida cotidiana do povo judeu. Nosso ponto de

partida são as conquistas de Alexandre Magno e sua chegada ao Oriente

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(333-323 a.C.). Após a sua morte inesperada, há um longo período de

guerras entre os seus generais – diádocos – pela sucessão (323-301 a.C.).

Em seguida, apresentaremos, em linhas gerais, a formação e o

estabelecimento de duas monarquias – Ptolomeus e Selêucidas –, e a

alternância de poderes entre elas. Finalmente analisaremos a chegada dos

gregos na Judéia, a resistência de alguns grupos de judeus e a literatura de

resistência que surge nesse período.

Durante o processo de helenização implementado pelos gregos,

surgem alguns escritos que alimentam a resistência do povo judeu, por

exemplo, a tradição apocalíptica de Daniel e de 1Enoque. Embora tenham

perspectivas diferentes, ambos lutam pelo mesmo ideal: preservar a

identidade judaica. Em meio à complexidade dos grupos do período

helenístico, podemos situar o autor ou os autores que estão por trás do livro

de Judite. A narrativa em prosa e a poética reavivam a certeza de que Deus

age por meio dos pequenos. É um livro de resistência contra o governo dos

Asmoneus, mas construído a partir de uma mentalidade negativa acerca da

beleza e da sedução da mulher. Nesse período, a literatura ressalta o

protagonismo da mulher somente na ficção. Os livros considerados

históricos acentuam o heroísmo dos homens. É o que veremos ao retomar a

história desse período.

3.1. Domínio grego: de Alexandre Magno até os Ptolomeus

Escravidão, dominação, guerras, imperialismo, destruição,

sofrimentos... "Todas as opressões praticadas sob o sol".1 Essa é a

realidade que está presente na história do povo de Israel desde as suas

origens. Mas, quanto maior a opressão, maior a resistência, mesmo que

subsista nas brechas. Ao longo de sua caminhada, surgem vários grupos de

resistência. O Primeiro Testamento registra apenas a memória de alguns;

provavelmente muitas mulheres e homens anônimos ajudaram a manter viva

a esperança e a fé do povo judeu.

1 Expressão de Coélet (4,1a), texto escrito por volta do ano 250 a.C., mas que pode ser aplicado a vários períodos da história de Israel.

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Por ser um corredor comercial, ligando o Egito com a Fenícia, o Norte

da Síria, a Mesopotâmia e a Arábia, a terra de Israel sempre despertou o

interesse dos grandes impérios: egípcios, assírios, babilônios, persas,

gregos, romanos – e até os dias de hoje as disputas continuam. Muito

sangue foi e continua sendo derramado nessa região. É próprio da política

imperialista acabar com a independência das pequenas nações, impondo-

lhes pesados tributos, que geram empobrecimento, desigualdades sociais,

divisões, disputas internas pelo poder, corrupção e escravidão.

Um império sucede ao outro. Aos povos dominados, resta a

esperança de que o próximo soberano seja melhor. Em 333 a.C., Alexandre

Magno derrota o império persa, na batalha de Ipsos. A Síria, a Fenícia e

Jerusalém são tomadas sem oferecer resistência; Samaria não se submete

ao domínio grego, por isso, ao ser conquistada, é destruída e ocupada. A

conquista de cidades fortificadas, como Tiro e Gaza, envolve um cerco

prolongado. Em seguida, o Egito se submete pacificamente: Alexandre é

saudado no templo de Amon como filho de Zeus-Amon. Em 331 a.C.,

Alexandre Magno atravessa a Palestina-Síria e invade a Mesopotâmia,

tornando-se senhor de todo o Oriente (1Mc 1,1-9).2

De maneira inesperada, Alexandre Magno morre em 323 a.C., sem

deixar sucessor. Após um período conturbado de guerras entre os diádocos

– os generais de Alexandre (321-301 a.C.) –, a Judéia se torna parte do

império de Ptolomeu I Soter, soberano do Egito e fundador da dinastia dos

Lágidas, mais conhecida como dos Ptolomeus, que governam como

proprietários de todo o reino – dos habitantes, de suas terras e das riquezas

naturais –, colocando seus agentes fiscais por toda parte. Em pouco tempo,

o reino do Egito consegue estabilidade e grande desenvolvimento. Mas o

período de relativa paz não dura muito. As guerras recomeçam em seguida,

pois os Selêucidas, dinastia fundada em 312 a.C. por um dos generais de

2 Martin METZGER, História de Israel, São Leopoldo, Sinodal, 1978, p.147. Helmut KOESTER, Introdução ao Novo Testamento, v.1. história, cultura e religião do período helenístico, São Paulo, Paulus, 2005, p.9-11.

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Alexandre, Seleuco I, querem, a todo o custo, obter o controle da Judéia,

especialmente por causa do corredor comercial siro-palestinense.3

Entre 301 e 198 a.C. acontecem, pelo menos, cinco guerras sírias

registradas na história oficial4, com sérias conseqüências para o país:

aumento de impostos, devastação de campos e plantações e recrutamento

de homens para o exército. A partir da dominação dos Ptolomeus, a maioria

da população judaica, constituída por pequenos agricultores livres, sofre um

processo de empobrecimento, chegando a perder a posse da terra e,

conseqüentemente, sua autonomia, passando para a condição de servidão e

miséria.5

O governo dos Ptolomeus na Judéia segue a mesma política

implantada no período persa.6 A forma de organização social do povo judeu

continua a mesma, sem mudanças significativas, até a chegada de Antíoco

IV Epífanes (175 a.C.), da dinastia dos Selêucidas. Da mesma forma que

seus antecessores, os Ptolomeus renovam os privilégios dos judeus,

garantindo-lhes o direito de viver conforme a lei de seus ancestrais. O

representante máximo da sociedade judaica é o sumo sacerdote; no papel

intermediário, há duas instituições de lideranças: o conselho dos anciãos –

gerousia7 – e os sacerdotes; e nos estratos mais baixos está a assembléia

popular8, que com o tempo perde sua influência.

O sumo sacerdote e os anciãos são membros do conselho dos

anciãos por causa de sua origem; somente os escribas têm direito por sua

capacidade, porém assumindo as atividades financeiras e administrativas do

3 J. Alberto SOGGIN, Storia d'Israele: Dalle Origini a Bar Kochbà, Brescia, Paideia Editrice, 1984, p.423. 4 Robert MICHAUD, Qohelet y el Helenismo, Estella, Verbo Divino, 1988, p.129-137. 5 Ekkehard W. STEGEMANN, Wolfgang STEGEMANN, História social do protocristianismo: os primórdios do judaísmo e as comunidades de Cristo no mundo mediterrâneo, São Paulo, Paulus, 2004, p.153. 6 M. STERN, The Priesthood and other Classes, in: S. SAFRAI, M. STERN (eds.), in: The Jewish People in the First Century, v.2: Historical, Geography, Political History, Social, Cultural and Religious Life and Institutions, p.561. 7 O Conselho de Anciãos é mencionado pela primeira vez a partir do período dos Ptolomeus. No Primeiro Testamento, aparece na historiografia dos Macabeus (1Mc 11,23; 12,6; 14,28; 2Mc 1,10; 4,4; 11,27). 8 Rainer ALBERTZ, A History of Israelite Religion in the Old Testament Period: From Exile to the Maccabees, v.2, Kentucky, Westminster John Knox Press, 1994, p. 535.

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templo.9 Não há dúvidas de que se trata de uma estrutura de governo

aristocrática.10 Em cada província judaica existe um conselho de anciãos,

que está subordinado ao grande Conselho de Jerusalém, porém sempre

constituído por membros ricos e importantes de uma vila ou de um distrito.

No período dos Ptolomeus e dos Selêucidas, os administradores reais na

Judéia são indicados pelo governo central, diminuindo assim o poder e a

influência do Conselho de Jerusalém.

Na diáspora também existe a gerousia. Esta instituição é vista como a

precursora do grande sinédrio, conhecido no período de Herodes.11 O edito

de Antíoco III, após a conquista de Jerusalém, por volta de 198 a.C., declara

isenção permanente de impostos ao sumo sacerdote e aos membros da

gerousia, juntamente com os oficiais do templo.12 Os privilégios concedidos

às lideranças judaicas aumentam sua riqueza e poder, distanciando-as dos

estratos mais baixos da sociedade.

O sumo sacerdote é aceito como representante do rei. A aliança com

o governo ptolomaico lhe possibilita o direito de cobrança de impostos. Além

disso, o sumo sacerdote controla o tesouro do templo e tem autonomia

sobre o sistema tributário, porém sob o controle de um funcionário dos

Ptolomeus.13 O templo funciona como uma espécie de estabelecimento

bancário da época, tanto para os judeus da Judéia como para os da

diáspora. As famílias influentes depositam aí tesouros e grandes somas em

ouro e prata, prática comum entre os vários povos antigos, como babilônios,

egípcios, gregos e romanos.14

9 Anthony SALDARINI, Fariseus, escribas e saduceus na sociedade palestinense, São Paulo, Paulinas, 2005, p.260. 10 Benedikt OTZEN, O Judaísmo na Antigüidade: A história política e as correntes religiosas de Alexandre Magno até o imperador Adriano, São Paulo, Paulinas, 2003, p.22. Ekkehard W. STEGEMANN, Wolfgang STEGEMANN, História social do protocristianismo: os primórdios do judaísmo e as comunidades de Cristo no mundo mediterrâneo, p.154. 11 Lawrence H. SCHIFFMAN, From Text to Tradition: A History of Second Temple and Rabbinic Judaism, New Jersey, Ktav Publishing House, 1991, p.70. 12 Benedikt OTZEN, O Judaísmo na Antigüidade: a história política e as correntes religiosas de Alexandre Magno até o imperador Adriano, p.28-29. 13 Martin HENGEL, Judaism and Hellenism: Studies in their Encounter in Palestine during the Early Hellenistic Period, v.1, Philadelphia: Fortress Press, 1974, p.24. 14 O livro de Joel faz uma alusão a essa prática: "Vós que tomastes minha prata e meu ouro, que depositastes em vossos templos meus tesouros preciosos" (Jl 4,5). Antigüidades, 12.250; Victor TCHERIKOVER, Hellenistic Civilization and the Jews , Massachusetts, Hendrickson Publishers, 1999, p.155.

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Para os judeus, o templo é um centro que abrange todas as

dimensões de sua vida. A localização do templo de Jerusalém sobre uma

montanha é de grande valor estratégico. Ele está dividido em vários

compartimentos destinados a atividades específicas. Além do pátio das

mulheres, dos israelitas e dos sacerdotes, e do edifício em si, incluindo o

Santo dos Santos, há salas de vestiário, áreas de armazenamento e outras

salas para fins diversos. Um palco para a bênção sacerdotal e para os

cânticos dos levitas, partes do ritual cotidiano. Há também um altar amplo

feito para o sacrifício de animais, de acordo com a legislação do Pentateuco.

O altar do incenso e a menorá estão posicionados no pátio dos sacerdotes.

Os não-judeus e as pessoas com alguma impureza permanecem na parte

externa do templo.15

Sacerdotes e levitas são divididos em vinte e quatro grupos, cada um

serve durante uma semana, fazendo o rodízio ao longo do ano.16 Em cada

grupo há subdivisões: o sacerdote sacrifica e oferece os animais; os levitas

os auxiliam e cantam salmos, enquanto se realiza o ritual. De acordo com a

prescrição da Torá, o sacerdote pertence à linhagem de Aarão (Ex 29,4-9).

As vestimentas estão de acordo com a recomendação do Pentateuco, e a

época do serviço é determinada em importantes passagens bíblicas. A

Torá17 e sua interpretação determinam as decisões acerca da realização da

lei sacrificial e sacerdotal.

As funções diárias do templo são realizadas conforme as prescrições

da Torá, que estabelece o sacrifício da manhã e do final da tarde. Os

Salmos, parte importante no ritual, são cantados pelos levitas e

acompanhados de vários instrumentos musicais, como a trombeta e o

shofar. Sacrifícios e ofertas em festas especiais, entrega dos dízimos,

sacrifícios voluntários e ofertas de expiação também fazem parte dos rituais

15 Francis SCHMIDT, O pensamento do templo de Jerusalém a Qumran, São Paulo, Loyola, 1998, p.68-69. 16 S. SAFRAI, The Temple, in: S. SAFRAI, M. STERN (eds.), The Jewish People in the First Century, v.2: Historical, Geography, Political History, Social, Cultural and Religious Life and Institutions, p.874. 17 O termo hebraico torah, traduzido para o grego nomos e para o latim lex. A Lei constitui um elemento essencial da vida israelita, no judaísmo tardio se transformou em princípio de identificação e sentido de toda a sua experiência religiosa. Cf. Xabier PIKAZA, Dicionário de la Bíblia: Historia y Palabra, Estella, Verbo Divino, 2007, p.1043.

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cotidianos do templo.18 Os tributos religiosos são para garantir o

funcionamento do templo, especialmente o culto e o sustento dos sacerdotes

e levitas (Ne 10,33-40).19 O tesouro do templo é uma conseqüência direta do

sistema teocrático e hierocrático, pois os sacerdotes são, ao mesmo tempo,

os responsáveis pelo culto e os funcionários detentores do poder.20

O fortalecimento do poder do sumo sacerdote provoca a resistência

de famílias aristocráticas influentes e ricas, como, a dos Tobíadas, uma

poderosa família da Amanítida, na Transjordânia. Essa família é responsável

pela coleta de impostos em toda a província da Síria e Fenícia por 22 anos,

de 240 a 218 a.C.21 O que favorece a ascensão dos Tobíadas é um conflito

entre o sumo sacerdote Onias II e o governo dos Ptolomeus. Onias II se

recusa a pagar as taxas ao tesouro real do Egito.22 Neste contexto, José, da

família dos Tobíadas, é designado e comissionado por uma assembléia do

povo como chefe – prostátes – para aplacar a cólera do rei lágida. "Com

esse título, ao qual estava ligado o principal cargo administrativo e financeiro

da Judéia, efetuou-se, de fato, uma transferência de poderes do sumo

sacerdote pró-selêucida para o Tobíada pró-lágida".23

José se torna o funcionário civil mais importante de Jerusalém. Ele

consegue o direito de arrendamento de impostos sobre toda a província

ptolomaica da Celessíria – Fenícia, Judéia e Samaria –, e ainda recebe uma

unidade militar para auxiliá-lo no cumprimento de sua função. José morre

por volta do ano 200 a.C., período de luta entre Ptolomeus e Selêucidas pela

posse da Judéia. O filho de José, Hircano, muito influente e hábil, continua

leal aos Ptolomeus, mas seus irmãos, juntamente com o sumo sacerdote

18 Lawrence H. SCHIFFMAN, From Text to Tradition: A History of Second Temple and Rabbinic Judaism, p.67. 19 É provável que a introdução do imposto de meio siclo pago anualmente por todo israelita masculino a partir da idade adulta, inclusive pelos judeus da diáspora, seja do tempo dos asmoneus. S. SAFRAI, The Temple, in: S. SAFRAI, M. STERN (eds.), in: The Jewish People in the First Century, v.2: Historical, Geography, Political History, Social, Cultural and Religious Life and Institutions, p.880; Ekkehard W. STEGEMANN, Wolfgang STEGEMANN, História social do protocristianismo: os primórdios do judaísmo e as comunidades de Cristo no mundo mediterrâneo, p.145. 20 Antigüidades, 12.188; André PAUL, O judaísmo tardio, São Paulo, Edições Paulinas, 1981, p.184. 21 Rainer ALBERTZ, A History of Israelite Religion in the Old Testament Period: From Exile to the Maccabees, v.2, p.537. 22 Victor TCHERIKOVER, Hellenistic Civilization and the Jews , p.129. 23 André PAUL, O judaísmo tardio: história política, p.179.

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Simão II, lideram um grupo pró-selêucida. Quando os Selêucidas vencem,

Hircano deixa Jerusalém e retorna para a Transjordânia.24 A família dos

Tobíadas exerce um papel fundamental no processo de helenização da

Judéia no sentido político, social e cultural. Ela é influente na capital,

controla o movimento dos negócios e encabeça o partido helenizante.25 É

esse grupo que incentiva o processo de difusão e implementação dos

costumes, valores e cultura grega nas regiões dominadas.

3.2. A helenização na Judéia e o empobrecimento da população

O Segundo Livro dos Macabeus é o primeiro escrito da tradição

judaica a usar os termos Judaísmo e Helenismo: "Graças à desmedida

perversidade de Jasão, um ímpio e não um sacerdote, o helenismo e a

penetração estrangeira chegaram a tal ponto que os sacerdotes já não

mostravam mais nenhum zelo pelo serviço do altar, e sim, desprezando o

Templo e negligenciando os sacrifícios, apressavam-se a tomar parte na

palestra das distribuições de óleo, proibidas pela Lei, assim que soava o

chamado do gongo" (2Mc 4,13-14; cf.: 2,21; 8,1; 14,38). Neste texto, o

helenismo é apresentado como a causa do enfraquecimento da tradição

judaica.

De acordo com Levine, "helenismo se refere à cultura milenar (grega

no sentido mais amplo) dos períodos helenístico, romano e bizantino,

enquanto helenização descreve o processo de adoção e adaptação desta

cultura no nível local".26 Não se trata de um processo homogêneo, e sim de

características peculiares a cada localidade. "O helenismo é o resultado do

encontro da cultura grega com as múltiplas e variadas culturas locais

dispostas no Mediterrâneo, no Egeu e para além desses dois mares".27 A

influência da cultura grega no Oriente é desigual, atingindo principalmente as

24 Antigüidades, 12.229. 25 Antigüidades, 12.224;239. 26 Lee I. LEVINE, Judaism and Hellenism in Antiquity: Conflict or Confluence, Massachusetts, Hendrickson Publishers, 1999, p.16-17. 27 André Leonardo CHEVITARESE, Gabriele CORNELLI, Judaísmo, cristianismo e helenismo: ensaios acerca das interações culturais no Mediterrâneo Antigo, São Paulo, Fapesp/Annablume, 2007, p.17, nota 1: comentário à definição de Levine.

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cidades próximas de centros helenísticos como Alexandria, Antioquia,

Damasco e as cidades costeiras da Fenícia e da Judéia.

O contato dos judeus com a cultura grega é anterior à chegada de

Alexandre Magno no Oriente Próximo, o que pode ser comprovado por meio

de moedas atenienses, estatuetas e outros objetos de decoração, todavia,

no período helenístico, as influências são intensificadas. A lingua grega28, as

práticas comerciais, a introdução de novas tecnologias agrícolas e a cultura

material são rapidamente introduzidas na sociedade oriental.29

Para alguns estudiosos, como Tcherikover, M. Stern e Levine, as

influências da cultura grega são externas e superficiais, na essência, os

judeus continuam apegados às suas tradições. A influência do helenismo se

torna mais forte na vida cultural dos judeus, a partir dos séculos 3 e 2 a.C.

Algumas famílias da aristocracia, por manterem contato freqüente com o

mundo helenístico ou por motivos políticos e econômicos, acolhem, com

mais facilidade, o processo de helenização. Para melhor aproveitar as

oportunidades comerciais, as famílias influentes, por exemplo, a dos

Tobíadas, adotam o novo modo de vida.

O que favorece o processo de helenização da Judéia é a fundação de

cidades gregas no Oriente. As cidades gregas estão localizadas em duas

regiões: ao longo da costa do Mediterrâneo, desde Tiro até a fronteira do

Egito; e na Transjordânia, em especial na região do mar de Tiberíades. Além

dessas regiões, há cidades isoladas na Galiléia, Samaria e Iduméia. As

cidades gregas têm sua localização próxima a um antigo centro urbano

oriental. Uma cidade oriental tem a permissão de se organizar como uma

cidade grega para receber os privilégios de uma polis. No entanto, nem

todas as cidades nativas se tornaram polis.

As cidades gregas são importantes locais de transmissão da cultura

helenística e das religiões de cunho helênico. Nas cidades gregas, vivem

mercadores, oficiais, soldados vindos do Egito, macedônios, provavelmente

28 A linguagem grega teve grande impacto na Judéia no final do período do Segundo Templo. Para Cohen, todos os judeus da Antigüidade, de algum modo foram helenizados. Cf.: Shaye J. D. COHEN, From the Maccabees to the Mishnah, Philadelphia, The Westminster Press, 1987, p.40-41. 29 Lee I. LEVINE, Judaism and Hellenism in Antiquity: Conflict or Confluence, p.20-21.

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oficiais provenientes de vários lugares, bem como sírios.30 Os imigrantes

gregos que vão para o Oriente não pertencem a um grupo de intelectuais,

mas são provenientes dos estratos mais baixos da sociedade. São soldados,

agricultores e comerciantes que buscam melhores condições de vida. Eles

organizam seu modo de vida conforme seus costumes, mas, ao mesmo

tempo, assimilam a cultura local.

As pessoas que vivem nas cidades judaicas recebem maior influência

do mundo grego e dos grupos helenizados do que a população que habita

no campo. Cada vez mais, a linguagem grega é usada pela população

urbana para as transações comerciais. Os estratos mais altos da sociedade

têm mais condições de visibilizar a adesão à nova cultura, através das novas

construções, da possibilidade de freqüentar o ginásio e a ágora – praça das

antigas polis, local onde ficava o mercado e as assembléias do povo –, e do

uso da moda.31

Nesse período, as cidades gregas, são as mais procuradas pelos

judeus interessados em assumir o novo modo de vida. Os filhos dos judeus

helenistas são enviados para as instituições de educação grega com o

objetivo de obterem melhores condições de vida e ascender socialmente no

mundo helenista. As elites judaicas helenistas se dispõem a pagar um alto

preço pelas vantagens econômicas e culturais da polis. Para elas, a

adaptação aos novos tempos não significa abandono da cultura judaica em

si, mas entendem o judaísmo como parte do novo mundo que está sendo

apresentado pela cultura helenista. Elas querem fazer a transição do antigo

modo de vida do Oriente para o estilo cosmopolita da sociedade grega.

A população camponesa que vive em pequenos vilarejos, vive da

agricultura, e os contatos com as cidades são raros, somente por ocasião da

venda de seus produtos e durante as peregrinações religiosas a Jerusalém.

O contato dos camponeses/as com os judeus helenizados e não-judeus é

esporádico e as mudanças são externas, por exemplo: adota-se o uso da

cerâmica dos gregos, das novas ferramentas de trabalho e dos

equipamentos, mas são mantidas a língua e a cultura nos moldes

30 Victor TCHERIKOVER, Helenistic Civilization and the Jews , p. 111. 31 Lee I. LEVINE, Judaism and Hellenism in Antiquity: Conflict or Confluence, p.22.

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tradicionais da cultura judaica. Sobre essa camada da população, o

helenismo exerce uma influência superficial, pois ela continua observando o

modo de vida de seus ancestrais, sem intenção de assumir a nova cultura.

Quem sustenta a cidade é a população camponesa, porém se torna o

grupo mais explorado e marginalizado na sociedade helenista. Informações

contidas nos Papiros de Zenão demonstram que a vida comercial nesse

período é intensa.32 A produção de grãos é ampliada com a introdução de

novas tecnologias, como um tipo de arado mais leve "para sulcar a terra

apenas na superfície do solo e preservar a umidade nas camadas mais

profundas. Produziam-se principalmente cereais e olivas, mas também vinho

e frutas, verduras e temperos, madeira e, especialmente, bálsamo,

destinado à produção de perfumes e medicamentos".33 A produção de

bálsamo é altamente lucrativa e está sob o controle do rei.34 O aumento da

cunhagem de moedas no período dos Ptolomeus, comprova a intensa

atividade comercial na Judéia.

O livre comércio dita o que plantar. Aumentam os impostos. As

pessoas são obrigadas a trabalhar para arcar com as inúmeras taxas.

Cresce o endividamento. Muitas famílias são forçadas a vender suas terras

como pagamento de dívidas. Inicia-se a formação de grandes proprietários

de terra, e surge a necessidade de mão-de-obra escrava para produzir mais

e mais (Jl 4,3). A maioria das pessoas do campo não experimenta os

benefícios trazidos pela nova cultura, ao contrário, sofrem com o aumento da

expropriação de produtos.

Durante o período dos Ptolomeus, o sistema de fiscalização é

ampliado. Há fiscais em toda parte. O país encontra-se dividido em hiparquia

– uma região administrativa independente, semelhante às províncias do

período persa –, que, por sua vez, subdivide-se em toparquias. A hiparquia é

governada por um hiparco e tem a presença de um ecônomo, que controla 32 Martin HENGEL, Judaism and Hellenism, Studies in their Encounter in Palestine during the Early Hellenistic Period, v.1, p.43. 33 Martin HENGEL, Judaism and Hellenism, Studies in their Encounter in Palestine during the Early Hellenistic Period, v.1, p.42; Ekkehard W. STEGEMANN, Wolfgang STEGEMANN, História social do protocristianismo: os primórdios do judaísmo e as comunidades de Cristo no mundo mediterrâneo, p.128. 34 Martin HENGEL, Judaism and Hellenism, Studies in their Encounter in Palestine during the Early Hellenistic Period, v.1, p.44.

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rigorosamente o recebimento dos impostos.35 Além da hiparquia, há também

as terras do rei, administradas pelo rei ou por grupos de clerouques, ou seja,

veteranos que prestam serviços ao Estado. A vila é considerada a menor

unidade administrativa. O oficiais mais importantes no país são os dioiketes;

espalhados por toda a região, especialmente nas cidades costeiras de Gaza,

Jafa, Acco, Sidon e Beirute. A função deles é supervisionar toda forma de

comércio, inclusive de escravos. Do ponto de vista administrativo do governo

de Alexandria, o comércio de escravos é intenso e altamente lucrativo.36

Em pouco tempo, o reino do Egito, governado pelos Ptolomeus,

consegue estabilidade e grande desenvolvimento. Quem mais lucra com o

crescimento econômico são as famílias aristocráticas. Elas obtêm melhores

chances de produção agrícola e de comércio. Outra possibilidade de

enriquecimento é o sistema de arrendamento de impostos. As taxas, os

pedágios e todos os tipos de impostos são arrendados a pessoas que

podem pagar mais. Elas recebem o privilégio de arrendar os impostos da

região que está sob a sua responsabilidade; o que coletam acima da soma

estipulada é em próprio benefício, como no caso da família dos Tobíadas.37

A divisão social na comunidade judaica é acentuada pela divisão

cultural. O grupo que desfruta das oportunidades econômicas oferecidas

pelo sistema ptolomaico e, mais tarde, Selêucida, é o mesmo que adota o

estilo de vida helenístico, o que implica aprender a língua grega, adotar

nomes e vestuários, e participar nos festivais e jogos oferecidos pela cultura

helenística. No período dos Ptolomeus e no início dos Selêucidas, embora,

por vezes, as pessoas adotam formas politeístas de saudação nas

correspondências comerciais com os gregos38, a identidade religiosa judaica

ainda não é colocada em questão.

Desde o período da reconstrução de Judá, com Neemias e Esdras

(450-398), a Torá, o Templo e o sacrifício se tornam centrais na religião

oficial de YHWH. A Torá é a revelação de Deus; tudo o que o Senhor deseja

35 Ivo STORNIOLO, Trabalho e felicidade: o livro de Eclesiastes, São Paulo, Paulus, 2002, p.21; Antonius H. J. GUNNEWEG, História de Israel: dos primórdios até Bar Kochba e de Teodor Herzl até os nossos dias, São Paulo, Loyola/Teológica, 2005, p.248-249. 36 Victor TCHERIKOVER, Hellenistic Civilization and the Jews , p.63. 37 Antigüidades, 12.224; Victor Tcherikover, Hellenistic Civilization and the Jews , p.65. 38 Victor TCHERIKOVER, Hellenistic Civilization and the Jews , p.71.

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208

a Israel, seu povo escolhido, está codificado na Lei escrita, que contém toda

a revelação.39 Alguns grupos de sacerdotes e algumas famílias aristocráticas

acolhem o helenismo, enquanto outros grupos de judeus permanecem fiéis à

Lei. As transformações culturais e as divisões sociais acabam

desembocando numa guerra civil. Porém, mesmo no período helenístico,

não se pode considerar que os estratos mais altos da sociedade tivessem a

mesma posição. Jesus ben Sirac, por exemplo, representa um grupo de

judeus da aristocracia que permanece fiel às tradições dos antepassados,

procurando conciliar a prática da Lei, o sacrifício e a justiça social,

especialmente no que se refere à solidariedade com os mais pobres.40

Recordar a história é uma ferramenta importante para entender a

formação dos diferentes grupos sociais de cada época. A cultura helenista

influencia o cotidiano das comunidades judaicas. Ao mesmo tempo surgem

grupos que procuram reler e preservar a cultura judaica, como é o caso do

grupo de escribas, que está por trás, por exemplo, do livro de Jesus ben

Sirac. A seguir, apresentaremos, em linhas gerais, o sentido da piedade da

Torá e sua assimilação na comunidade judaica no contexto helenista. É

possível ver os reflexos dessa espiritualidade na história de Judite e em

muitos escritos do final do Segundo Templo.

3.3. O seguimento da Torá e os escribas

No período dos Ptolomeus, o templo e o sistema religioso oficial

continuam fundamentados na Lei, especialmente no código da pureza e da

santidade, com a exigência de sacrifícios (Lv 11-16; 17-26). Seguir a Torá é

essencial para o judeu manter sua identidade ameaçada pelo encontro com

39 Benedikt OTZEN, O Judaísmo na Antigüidade: a história política e as correntes religiosas de Alexandre Magno até o imperador Adriano, p.92-93; Helmut KOESTER, Introdução ao Novo Testamento, v.1, história, cultura e religião do período helenístico, p.231. 40 Uma passagem de Jesus ben Sirac que ilustra sua tentativa de conciliar observância da Lei, culto a Deus e justiça social é o capítulo 34 e 35, onde lemos: "Oferecer o produto da injustiça é uma oferta defeituosa, e os dons dos que violam a Lei não poderão ser aceitos. (....) O pão dos indigentes é a vida dos pobres: quem dele os priva é um assassino. É matar o próximo tirar-lhe os meios de subsistência" (34,21.25-26). Para Jesus ben Sirac, o escriba é um perito na Bíblia Hebraica: a Torá, os Profetas e os Escritos. Esse autor é considerado, pela maioria dos estudiosos, como o promotor da sabedoria judaica dentro de um contexto helenista e, ao mesmo tempo, aberto às idéias gregas. Cf. Anthony SALDARINI, Fariseus, escribas e saduceus na sociedade palestinense, p.266.

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209

o mundo grego e sua cultura. Por isso, acentua-se na religião o enfoque da

piedade individual da Torá. Esta concepção está subjacente a vários salmos,

especialmente nos salmos 1, 19 e 119, compostos na primeira metade do

século 3 a.C.41

A piedade da Torá é considerada a fonte da segurança, da fé e da

esperança do fiel. Ela é a base do relacionamento pessoal com Deus:

"Pertenço a ti! Salva-me, pois tenho procurado os teus preceitos" (Sl

119,94). Seus ensinamentos têm o poder de dar a vida e de possibilitar o

discernimento: "A Lei do Senhor é perfeita, ela dá a vida; A Lei do Senhor é

segura, torna perspicaz o simples" (Sl 19,8; 119,144.175).

De acordo com esta piedade, a Escritura é a revelação de Deus. Tal

espiritualidade está ligada a um relacionamento carregado de emoção entre

a pessoa e a Escritura. No Salmo 119, transparecem sentimentos de amor,

alegria, deleite e temor pela Sagrada Escritura, que contém a lei escrita de

Deus. Para os adeptos da piedade da Torá, bem como para os divulgadores

dessa forma de relacionamento com Deus, o objetivo da referência

emocional à Escritura é levar a pessoa a agir a partir dos ensinamentos da

Torá. As pessoas são orientadas à observância dos mandamentos de Deus.

A Torá é o caminho de vida e a fonte de alegria: "Conduze-me pelo caminho

dos teus mandamentos, pois nisto encontro prazer" (Sl 119,35;

cf.14.27.32.33).

Um dos importantes mandamentos é a prática do direito e da justiça

com os oprimidos: “Pratiquei o direito e a justiça, não me entregues aos

meus opressores, sê fiador do teu servo para o bem, que os soberbos não

me oprimam” (Sl 119,121-122). E a fé na intervenção de Deus para salvar os

oprimidos também está presente nessa espiritualidade: “Iahweh, é tempo de

agir: eles violaram a tua lei” (Sl 119,126). O Salmo 119, portanto, aponta

dois grupos e dois caminhos: o dos piedosos, que seguem a Torá, e o dos

ímpios, que desprezam os mandamentos. Há também o grupo dos infiéis e

41 A reflexão sobre a piedade da Torá tem como base a pesquisa de Rainer ALBERTZ, A History of Israelite Religion in the Old Testament Period: From Exile to the Maccabees, p.556-563; Ekkehard W. STEGEMANN, Wolfgang STEGEMANN, História social do protocristianismo: os primórdios do judaísmo e as comunidades de Cristo no mundo mediterrâneo, p.170.

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210

orgulhosos, que se opõem ao grupo dos fiéis (v.51.61.69.78.87.95.100.139).

Para o fiel aprofundar seu relacionamento individual com Deus e discernir o

caminho do bem é necessário conhecer e assumir a tradição e a história de

Israel com Deus.

Neste período, o estudo da Torá é mais acentuado e envolve a

constante preocupação com a vivência da Torá enquanto objeto de

contemplação, pesquisa, reflexão, compreensão e aprendizagem. É por

meio do estudo da Escritura que Deus pode revelar, iluminar e ensinar a

verdade a cada pessoa. Desta forma, todas as pessoas são chamadas a se

maravilhar e a louvar a Deus por sua Torá: "Que meus lábios sejam pródigos

no louvor, pois me ensinas os teus preceitos" (Sl 119,171; cf.129.164). O

estudo individual da Torá é a fonte de onde brota a força divina e um guia

para a vida de quem a estuda.

No estudo e interpretação da Torá, os escribas desempenham um

papel importante. O vocábulo escriba não significa apenas aquele que

escreve, mas se trata de um termo técnico para um oficial público que

exerce uma atividade profissional.42 Como no antigo Oriente Médio, os

escribas de Israel aparecem freqüentemente nas passagens bíblicas como

funcionários do Estado (cf. 2Sm 8,17; 20,25; 1Rs 4,3; 2Rs 12,11; 2Rs

18,18.37; 19,2; 2Rs 22,3-10; 2Rs 25,19). Eles elaboram os documentos

administrativos, comerciais e culturais, copiam e conservam os registros

históricos e a literatura religiosa e profana. São os verdadeiros "homens de

cultura".

Com a consolidação da Hierocracia em Israel no período do Império

Persa, a Torá assume uma importância cada vez maior. Sobretudo o livro de

Esdras deixa entrever que a vida da comunidade cultual pós-exílica é

regulamentada pela Torá, e os escribas ligados à interpretação e aplicação

da mesma exercem um papel fundamental: “E tu, Esdras, segundo a

sabedoria de teu Deus, que tens em mãos, estabelecerás escribas e juízes

que administrem a justiça para todo o povo da Transeufratênia, para todos

os que conhecem a Lei de teu Deus. E deverás ensiná-la a quem não a

42 Elias BICKERMAN, From Ezra to the Last of the Maccabees: Foundations of Post-Biblical Judaism, New York, Schoken Books, 1975, p.67.

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211

conhece. Todo o que não observar a Lei de teu Deus – que é a Lei do rei –

será castigado rigorosamente: com a morte ou o desterro, com multa ou

prisão” (Esd 7,25-26). Trata-se das instruções quanto às funções dos

escribas de ensinar a Torá não só no templo de Jerusalém, mas também

nas escolas e nas sinagogas43, e incentivar a leitura da mesma no culto e

nas orações.44

No período helenístico, especialmente com a política dos Ptolomeus,

a burocracia e a produção dos documentos oficiais aumentam sensivelmente

e cresce a presença de escribas não só em Jerusalém, mas também nas

cidades e nas vilas.45 Quanto ao trabalho dos escribas com a Escritura

Sagrada neste período, Christine Schams descreve: “A ênfase do helenismo

no estudo dos textos clássicos pode ter favorecido o estudo da Sagrada

Escritura como o texto clássico do judaísmo. Conseqüentemente, o estudo

das Escrituras poderia ter ocupado uma importante parte da educação e do

estudo dos homens sábios, escolares e alguns escribas. A insistência de

Jesus ben Sirac no estudo da Torá, dos Profetas e dos Escritos dos sábios

(incluindo os escribas) pode ser entendida neste contexto (cf. Sir 38,24-

39,11)”.46

A partir do estabelecimento progressivo do culto nas sinagogas, os

escribas adquirem um importante papel na leitura e interpretação da

Sagrada Escritura no meio do povo. Considerados homens sábios e

educadores da Lei, eles se empenham na interpretação da Torá.

Considerando Simão II, o justo, como um hasideu, isto significa que, no

período que ele assume o sumo sacerdócio, a interpretação dos escribas é

aceita pelos sacerdotes. A Lei oral, alimentada pelos escribas, é declarada

pela comunidade de Jerusalém como interpretação oficial da Lei de

43 Há inscrições gregas na diáspora que comprovam a existência de sinagogas desde o século 3 a.C., e mais tarde na terra de Israel, na metade do século 1 d.C. As sinagogas eram usadas para a leitura da Torá, o ensino dos mandamentos, possivelmente para a educação das crianças, para a hospedagem de estrangeiros – judeus provenientes da diáspora –, como centro de reuniões e local para guardar diversos bens da comunidade. Ekkehard W. STEGEMANN, Wolfgang STEGEMANN, História social do protocristianismo: os primórdios do judaísmo e as comunidades de Cristo no mundo mediterrâneo, p.168-169. 44 Martin METZGER, História de Israel, São Leopoldo, Sinodal, 1989, p.139-142. 45 Christine SCHAMS, Jewish Scribes in the Second-Temple, Sheffield, Sheffield Academic Press, 1998, p.312-321. 46 Christine SCHAMS, Jewish Scribes in the Second-Temple, p.316.

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212

Moisés.47 Assim, entre os grupos que sustentam a piedade da Torá está o

dos escribas.

Os seguidores da Torá podem pertencer a um grupo que está em

oposição à divisão existente na sociedade de Judá entre os estratos mais

ricos e os mais pobres, talvez um grupo de escribas, proveniente de

diferentes estratos sociais, cuja profissão não é garantia de ascensão social;

este pode ter sido o caso de Jesus ben Sirac. Os escribas estão entre a

liderança intelectual, mas podem ser situados nas camadas médias em

termos de renda e de influência social.48 Possivelmente, alguns escribas

ligados ao seguimento da Torá vão se tornar lideranças na resistência contra

a opressão da política dos gregos e de seus colaboradores judeus. Porque,

para eles, a falta de solidariedade é contrária à prática da Lei da vida (Sl

119,136.139). Posteriormente, os escribas produziram vários livros

descrevendo a situação de opressão provocada pelas elites governantes, e,

ao mesmo tempo, insistindo na prática e defesa da Lei, este é, por exemplo,

o caso do livro de Judite.

3.4. O período dos Selêucidas e a intensificação da helenização

Em 198 a.C., os exércitos de Antíoco III derrotam os Ptolomeus na

batalha de Pânion. Em Jerusalém, há um grupo pró-selêucidas que acolhe

favoravelmente o novo rei. Inicia-se um tempo de grande alegria para os

judeus. Antíoco ordena a volta dos judeus refugiados e liberta os que tinham

sido escravizados. Decreta a abolição das taxas por três anos e reduz os

impostos. Os judeus mantêm o privilégio de viver conforme suas leis e seus

costumes. O estado Selêucida promete ajuda para a manutenção do culto e

para os reparos na construção do templo. A isenção de impostos beneficia

aos funcionários do culto e também os membros do conselho dos anciãos –

a gerousia – e os escribas.49

47 Victor TCHERIKOVER, Hellenistic Civilization and the Jews , p. 125 e 197. 48 Rainer ALBERTZ, A History of Israelite Religion in the Old Testament Period: From Exile to the Maccabees, p.561. 49 Antigüidades, 12.142; Anthony SALDARINI, Fariseus, escribas e saduceus na sociedade palestinense, p.259.

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213

Por volta do ano 190 a.C., Antíoco III sofre uma derrota contra Roma,

aliada dos Ptolomeus. O Egito, sentindo-se ameaçado pelo Império

Selêucida, alia-se a Roma. Antíoco III é derrotado na batalha de Magnésia.

O tratado de paz de Apaméia da Frígia, em 188 a.C.50, obriga-o a abrir mão

de suas propriedades na Ásia Menor e entregar seus elefantes, sua frota

marítima e pagar as dívidas de guerra. Essa derrota põe fim à ambição

política de Antíoco III e abre caminho para a desintegração de seu império. A

necessidade de riquezas para saldar as dívidas de guerra o obriga a adotar

novas estratégias, como o fim da isenção dos tributos e os saques aos

templos. Ele morre em 188 a.C. quando tenta saquear o templo de Bel, em

Elam.

Seleuco IV Filopator (187-175 a.C.), filho de Antíoco III, assume o

trono e herda a dívida de seu pai. Instigado pelas famílias aristocráticas

judaicas, ele passa a cobiçar as riquezas do templo de Jerusalém. O rei

envia a Jerusalém o ministro Heliodoro, que, encontrando forças de

resistência no templo, não consegue saqueá-lo. Algum tempo depois, esse

ministro, descontente com as medidas de Seleuco IV, mata-o na intenção de

ocupar o trono. Mas Antíoco IV Epífanes, com o apoio de Roma, é

proclamado rei em 175 a.C.51

Um grupo de judeus helenistas, membros da aristocracia sacerdotal e

leiga, vê a ascensão do novo rei como o momento propício para realizar

reformas em Jerusalém. Por essa ocasião, o sumo sacerdote Onias III é

deposto por seu irmão Jasão. Na sociedade judaica, o sumo sacerdote

exerce uma função central, transmitida por herança, dentro de uma linhagem

considerada oficial: os descendentes de Aarão. No contexto da dominação

selêucida, o sumo sacerdote tem de ser leal ao rei, portanto, além de suas

funções religiosas, ele assume também o papel político.52

Não seria possível Jasão assumir o cargo de sumo sacerdote sem a

permissão do rei. De acordo com as fontes, Jasão promete a Antíoco IV

50 Martin HENGEL, Judaism and Hellenism, Studies in their Encounter in Palestine during the Early Hellenistic Period, v.1, p.10. 51 Martin HENGEL, Judaism and Hellenism, Studies in their Encounter in Palestine during the Early Hellenistic Period, v.1, p.10; Johan MAIER, Entre los Dos Testamentos : Historia y Religion en la Epoca del Segundo Templo, Salmanca, Sigueme, 1996, p.173. 52 Benedikt OTZEN, Judaísmo na Antigüidade, p.33.

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Epífanes a soma de trezentos e sessenta talentos, acrescentando mais

oitenta talentos de outras rendas (2Mc 4,8).53 Deste modo, o sumo

sacerdote se torna um oficial do rei selêucida, totalmente dependente do seu

favor.54 O Segundo Livro dos Macabeus afirma que Jasão ainda oferece

mais cento e cinqüenta talentos para obter a permissão de estabelecer o

ginásio e a efebia e fazer o recenseamento dos antioquenos de Jerusalém

(2Mc 4,9).

A intenção do grupo de Jasão é transformar Jerusalém numa polis

grega, acabando com os privilégios conquistados desde o tempo dos persas

e abolindo as barreiras religiosas observadas pelos tradicionalistas. O

objetivo dessas reformas é, acima de tudo, superar o isolamento econômico,

político e intelectual da aristocracia de Jerusalém. Para a reforma criar

raízes, o partido reformista vê a necessidade de novos métodos de ensino,

portanto são estabelecidas as instituições gregas educacionais para garantir

a educação física e intelectual dos jovens em vista de sua integração na vida

civil. Essas instituições atendem somente os filhos dos mais ricos.55 "A

intenção dos reformadores é assegurar a situação econômica do estrato

superior por meio da introdução do direito de cidadania helenista."56

Para Antíoco IV, a helenização de Jerusalém é vantajosa, pois o seu

objetivo é conquistar o Egito. O interesse do rei vem ao encontro dos

anseios da aristocracia, que deseja o crescimento econômico e político. A

partir das reformas introduzidas por Jasão e seus partidários, os privilégios

reais concedidos aos judeus são abolidos e novos costumes, considerados

contrários à Torá, são introduzidos (2Mc 4,11). A Lei de Moisés é 53 Flávio Josefo minimiza as intrigas que acontecem ao redor do cargo do sumo-sacerdócio. Ele relata o seguinte: "O sumo sacerdote Onias morreu e Antíoco deu o sumo sacerdócio para seu irmão; pois o filho que Onias tinha deixado tinha pouca idade (....). Mas Antíoco, depois de ter ficado mal satisfeito com Jasão, tirou-lhe a dignidade e a deu a Onias, cognominado Menelau. Quando o antigo sumo sacerdote se levantou contra Menelau, que foi ungido depois dele, a população ficou dividida entre os dois; os Tobíadas ficaram do lado de Menelau, enquanto a maioria da população apoiou Jasão". Antiguidades, 12.237-240. 54 Victor TCHERIKOVER, Hellenistic Civilization and the Jews , p.161. 55 Várias fontes falam da construção do ginásio em Jerusalém, entre elas 1Mc 1,14-15 e Antigüidades, 12.241; O ginásio fazia parte da nova polis e foi construído junto à fortaleza, sobre a montanha do Templo. A juventude, filhos dos aristocratas, era obrigada a usar o pétaso – chapéu do Deus Hermes, patrono dos efébios. Hermes é considerado a divindade das lutas e das competições. Cf. Victor TCHERIKOVER, Hellenistic Civilization and the Jews , p.163. 56 Ekkehard W. STEGEMANN, Wolfgang STEGEMANN, História social do protocristianismo: os primórdios do judaísmo e as comunidades de Cristo no mundo mediterrâneo, p.133.

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215

relativizada. O templo passa a fazer parte da nova polis. As decisões sobre

os assuntos econômicos, políticos, sociais e religiosos são da

responsabilidade da aristocracia dominante e das instituições controladas

por ela.

Pouco tempo depois, por volta de 172 a.C., o partido reformista de

Jasão é suplantado por outro partido helenista mais radical, provocando uma

ruptura decisiva. Antíoco IV concede o cargo de sumo sacerdote a Menelau,

que promete ao rei 300 talentos a mais do que o usual e deporta Jasão para

a Transjordânia (2Mc 4,24). Para conseguir essa quantia, o povo é

sobrecarregado com mais tributos. O cargo de sumo sacerdócio,

considerado função hereditária, agora está comprometido com o interesse

econômico e político da aristocracia.

A intervenção de Antíoco IV no cargo de sumo sacerdote e a postura

de Menelau, que, em Jerusalém, defende o interesse dos dominadores

estrangeiros, geram uma crise no partido helenista pró-selêucida. A partir

desses acontecimentos, somente uma pequena ala continua apoiando

Menelau, enquanto a maioria da população se coloca do lado de Jasão na

luta para reconquistar a sua função. No início, o grupo de Jasão vence e

ocupa Jerusalém, obrigando Menelau e os Tobíadas a fugir para Antioquia.

Uma vez que Menelau está foragido, seu irmão, Lisímaco, que tem o direito

de sucessão, prepara um exército para defender o regime helenizante contra

a rebelião da multidão (2Mc 4,40).

As fontes descrevem duas passagens de Antíoco IV em Jerusalém.57

A primeira, em 169 a.C., quando ele se retira de uma campanha contra o

Egito por medo de entrar em guerra com os romanos; nessa ocasião há uma

repressão contra o partido que apóia os Ptolomeus e o confisco de bens dos

judeus. A segunda ocorre cerca de dois anos depois, em sua segunda

campanha contra o Egito, na qual é derrotado de forma humilhante pelos

romanos. Nessa ocasião, ele recebe a notícia da revolta na Judéia e a

considera como um ato contra a sua autoridade real. Por isso, volta e ataca

Jerusalém: "furioso, como um animal selvagem, e tomou a cidade à mão

armada. Ordenou em seguida aos soldados que abatessem sem piedade 57 Antigüidades, 12.246-248.

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216

todos os que lhes caíssem nas mãos e que degolassem os que subissem

para as suas casas" (2Mc 5,11-12). Ele recoloca Menelau no cargo de sumo

sacerdote, e Jerusalém fica sujeita à administração selêucida. Portanto,

Jerusalém deixa de ter uma posição especial e de ser o centro do ethnos

judaico. A partir do levante, Jerusalém é considerada uma cidade perigosa

para o império.

Apesar das novas medidas de Antíoco IV, o movimento de resistência

continua. A rebelião é controlada com a ajuda de mercenários mísios, sob o

comando de Apolônio, um general selêucida. Ele estabelece uma colônia

militar – a Acra – como parte da polis de Antioquia em Jerusalém e aí

estabelece tropas de ocupação selêucida. O templo se torna lugar de culto

tanto para os judeus como para os não-judeus.58 Os helenistas vêem que o

templo de Jerusalém recebe uma nova importância ao sair do isolamento –

ele é igualado aos outros santuários selêucidas.

A introdução de outros cultos no templo de Jerusalém é considerada

"abominação da desolação" pelos judeus ortodoxos (1Mc 1,54; Dn

11,31;12,11). Um dos nomes dados para o Deus de Sião é "Deus dos Céus",

ou apenas "Céus", nome que aparece no Primeiro Livro dos Macabeus. Mas

o Deus dos Céus para os gregos é Zeus Olímpico, que, no aramaico,

provavelmente é Baal Shamin, título usado pelo povo da Síria.59 Agora, a

presença do todo-poderoso é simbolizada por uma pedra sagrada sobre o

altar do sacrifício no templo. Já não existem as exigências da Lei para o

sacrifício. O porco é aprovado como animal para o sacrifício. O desejo de

Jasão e Menelau é promover uma adaptação do Judaísmo à nova cultura. A

intenção deles é preservar as características da religião judaica, adaptando-

as aos costumes gregos e acabando com a separação dos judeus, que cria

obstáculos para as atividades econômicas dos helenistas.

A sociedade judaica está dividida. De um lado, estão os cidadãos pró-

helenistas e, de outro, a antiga ortodoxia. O primeiro grupo considera a nova

ordem necessária à transformação e inovação de Jerusalém, livre da elite

58 Antigüidades, 12.253. 59 Elias BICKERMAN, From Ezra to the Last of the Maccabees: Foundations of Post-Biblical Judaism, p.109.

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217

judaica pouco liberal e do poder sacerdotal. Muitas pessoas ligadas a esse

círculo estão fascinadas com a perspectiva de obter maiores vantagens

comerciais. O grupo tradicional continua resistindo com todos os meios que

estão ao seu alcance. A principal motivação para a resistência é a

determinação do povo em manter seus costumes e sua fidelidade à Torá,

em torno da qual a comunidade judaica está organizada. Antíoco IV, com a

anuência do partido radical da helenização, decreta o abandono dos

costumes judaicos tradicionais e da observância da Lei. A perseguição

religiosa é desencadeada a partir da divisão entre a aristocracia governante:

Oníadas e Tobíadas.

A revolta popular é liderada pelos hasidim. Embora o grupo dos

hasidim seja mencionado pela primeira vez no início da revolta de Matatias,

eles possuíam uma organização anterior e eram considerados homens

"destemidos em Israel" (1Mc 2,42)60. Esse grupo tem uma longa história, que

pode remontar ao século 3 a.C. ou ao final do período persa.61 Tcherikover

afirma que os hasidim são um grupo organizado entre os escribas,

provavelmente desde o tempo do sumo sacerdote Simão, o justo, no início

do século 2 a.C., talvez o próprio Simão pode ter sido um hasidim. Nesse

período, a interpretação dos escribas é aceita pelos sacerdotes, e a Lei Oral

cultivada pelos escribas é declarada como interpretação oficial da Lei de

Moisés.62 Portanto, o grupo dos hasidim ocupa a função de intérprete

autorizado da Lei. Mas, a partir das reformas do grupo helenizante, eles se

tornam desnecessários, pois a Lei Judaica é abolida. O conflito entre os

hasidim e os helenizantes supera os motivos ideológicos de defesa da Lei: é

a luta de um grupo por sua própria sobrevivência.63 O grupo dos hasidim

conta com o apoio da maioria da população urbana de Jerusalém e lidera a

insurreição.

O projeto dos helenizantes "é a restauração de um culto puramente

mosaico – com uma concepção espiritual de Deus, sem imagens e sem ritos

60 O grego utiliza o termo ischyroi dynamei, provavelmente tradução do hebraico gibborey hayil – guerreiros valentes. Cf. John KAMPEN, The Hasideans and the Origin of Pharisaism: A Study in 1 and 2 Maccabees, Atlanta/Georgia, Scholars Press, 1988, p.113. 61 Martin HENGEL, Judaism and Hellenism, p.176. 62 Victor TCHERIKOVER, Hellenistic Civilization and the Jews , p.125. 63 Victor TCHERIKOVER, Hellenistic Civilization and the Jews , p.197.

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218

separatistas como a circuncisão, o sábado e as regras alimentares, que

provavelmente consideravam um acréscimo tardio à Lei de Moisés (....)".64

Mas esse projeto logo é enfraquecido por uma divisão entre a ala moderada,

reunida em torno de Jasão, apoiado pela família dos Oníadas, e a ala

radical, liderada por Menelau e apoiada pela família dos Tobíadas. Com a

ajuda do rei sírio, a ala radical se impõe temporariamente, mas acaba se

comprometendo ao roubar os tesouros do templo para saldar a dívida com o

rei (1Mc 1,20-28). O grupo de Jasão organiza um levante e consegue ocupar

Jerusalém. Diante desses conflitos entre diferentes grupos da aristocracia,

Antíoco IV Epífanes intervém, proibindo, em 167 a.C., a prática da religião

judaica, possivelmente com o apoio do partido helenista radical. O decreto

atinge inclusive o partido dos reformadores helenistas moderados, cujos

membros, em sua maioria, são sacerdotes, pois, ao impedir o culto

tradicional, solapa as bases de sua sobrevivência. A proibição da Lei judaica

atinge diretamente o grupo dos hasidim.

3.5. O grupo dos hasidim

O grupo dos hasidim desenvolve um papel ativo no contexto das

reformas helenísticas. Esse grupo, constituído por escribas fiéis à Torá, é

uma das lideranças de Israel. No início da revolta dos Macabeus, eles são

enumerados como um dos grupos que apóiam a revolta de Matatias,

assumida em seguida por Judas (1Mc 2,42). Porém, quando Alcimo é

colocado como sumo sacerdote, eles são descritos como ingênuos por

acreditarem no acordo proposto pelos gregos; no entanto eles são traídos

em sua confiança: "Alcimo prendeu sessenta dentre eles e os trucidou num

só dia" (1Mc 7,16). Retratar os hasidim como um pequeno grupo é uma

"visão derivada da posição pró-macabaica e antipietista do autor de

1Macabeus".65 A memória do grupo dos hasidim é muito forte entre o povo e

64 Gerd THEISSEN, Annette MERZ, Jesus histórico: um manual, São Paulo, Loyola, 1996, p.153. 65 Anthony SALDARINI, Fariseus, escribas e saduceus na sociedade palestinense, p.263.

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219

não pode ser ignorada, por isso o historiador de Primeiro Macabeus opta por

depreciá-los, retratando-os como idealistas.66

Hengel67 considera o grupo dos hasidim um grupo piedoso em

oposição ao judaísmo oficial assumido pela hierarquia sacerdotal e pela

aristocracia. Para Tcherikover, trata-se de um grupo de escribas

responsáveis pela exegese da Torá, que, sob Simão II, o Justo, torna-se um

grupo de liderança intelectual e teológica.68 Esta possibilidade é reforçada

por Kampen, que defende a possibilidade de os hasidim serem os

precursores dos fariseus.69 A descrição dos hasidim como homens

destemidos de Israel, e os primeiros (1Mc 2,42; 7,13), indica sua posição

social como líderes fiéis à Torá. O grupo de escribas mencionado em 1Mc

7,12 tem sido identificado com os hasidim de 7,13.

Enquanto o autor do Primeiro Livro dos Macabeus diminui o papel

social dos hasidim, o Segundo Livro dos Macabeus os apresenta como

judeus que fomentam as guerras e as sedições (2Mc 14,6). Para os autores

deste livro, os hasidim são populares e influentes por seu exemplo de

piedade e pureza durante o período da helenização70, e sua imagem é

usada para realçar a figura heróica de Judas Macabeu. O Primeiro Livro dos

Macabeus sugere que existe uma ligação entre os hasidim e os fariseus. Há

fortes evidências em 1Mc 7,12-13 que ligam os hasidim aos escribas. Para

Kampen, tanto os fariseus como os hasidim são encontrados nos círculos de

escribas do Antigo Judaísmo.71

Nos dois livros dos Macabeus, o termo hasidim é usado como nome

próprio para designar um grupo de pessoas. O termo hasidim pode sinalizar

todo o Israel, ou aqueles que permanecem fiéis a YHWH, até mesmo os

sacerdotes. Conforme o Primeiro Livro dos Macabeus, os hasidim são os

defensores da Torá e da aliança, grupo que faz oposição aos judeus que 66 John KAMPEN, The Hasideans and the Origin of Pharisaism: A Study in 1 and 2 Maccabees, p.115. 67 Martin HENGEL, Judaism and hellenism, v.1, p.175. 68 Victor TCHERIKOVER, Hellenistic Civilization and the Jews, p.125. 69 John KAMPEN, The Hasideans and the Origin of Pharisaism: A Study in 1 and 2 Maccabees, 214. 70 John KAMPEN, The Hasideans and the Origin of Pharisaism: A Study in 1 and 2 Maccabees, p.213. 71 John KAMPEN, The Hasideans and the Origin of Pharisaism: A Study in 1 and 2 Maccabees, p.215; Christine SCHAMS, Jewish Scribes in the Second-Temple Period, p.314.

Page 25: Breve Historico Perido Helenistico Capitulo III

220

aceitam remover a circuncisão e se aliam aos estrangeiros. Os hasidim não

aceitam o decreto de Antíoco IV. O foco do Primeiro Livro dos Macabeus

sobre os hasidim é especialmente o da defesa da Torá e da aliança cultuada

no templo. A principal preocupação desse grupo é o decreto que proíbe as

práticas da religião judaica.

Os hasidim podem ter sido uma congregação de escribas influentes

ou um novo grupo de mestres da religião oficial de YHWH. O decreto de

Antíoco III, em 197 a.C., menciona os escribas como um grupo profissional

entre os líderes judaicos, ao lado dos sacerdotes e dos cantores do templo

no período helenístico72, o que sinaliza a importância social desse grupo.

Desde o período persa, os escribas desempenham papéis ativos,

especialmente na formação do Pentateuco. Inclusive há escribas

importantes, como é o caso de Esdras, enviado pelos governantes persas

para atuar na reorganização da comunidade judaica de acordo com os

interesses do império. No final do período persa e no início do período

helenista, a profissão de escriba se desenvolve a partir desses precursores.

A missão dos escribas é elaborar os documentos religiosos,

interpretar e transmitir a Torá de Moisés. Eles, por profissão e por convicção,

preservam a tradição ancestral. No tempo de Simão II, há um grupo de

escribas que se autodenomina "piedosos", cujo desejo é se dedicar à Lei e

propagá-la, especialmente no contexto helenista (1Mc 2,42). É na defesa e

observância da Lei que os membros do partido dos hasidim, ligados aos

estratos mais altos da sociedade, encontram apoio para resistir às

mudanças econômicas e culturais propostas pelo partido helenista radical.

A descrição dos hasidim em 1Mc 2,42 utiliza uma terminologia cúltica:

synagoge de escribas. É provável que esse grupo estivesse ligado ao

templo, o que justifica sua pronta disposição em fazer aliança de paz com

Alcimo, por acreditarem nas leis e nas instituições tradicionais de Israel,

como a santidade do sacerdócio da linhagem de Aarão (Ez 40,46; 48,11; 1Cr

24,1-3). A identificação dos hasidim com um grupo de escribas favorece a

identificação dos fariseus. Tanto a literatura apocalíptica quanto o farisaísmo

72 Antigüidades, 12.142.

Page 26: Breve Historico Perido Helenistico Capitulo III

221

estão interessados na atividade do escriba. Em algumas passagens, Enoque

é apresentado como escriba (1En 12,2; 15,1; Jub 4,23).

No terceiro e segundo séculos a.C., os círculos de escribas estão

comprometidos com o ensino da Lei. Para esse grupo de piedosos, a Torá e

o templo ocupam lugar central. Portanto, o decreto de Antíoco IV, proibindo

a religião judaica, suscita uma forte reação desse grupo, que prontamente se

ergue em defesa de sua fé. Os hasidim se unem ao grupo dos Macabeus na

primeira fase da revolta, mas acabam discordando de sua política. Por isso,

a tentativa da historiografia dos Asmoneus de diminuir ou negar a

importância desse grupo. Na compreensão de Kampen, "é possível que

dentro dos círculos de escribas dos hasidim esteja a origem daquele antigo

movimento conhecido como farisaísmo".73

A política helenista acentua a divisão e os conflitos entre os vários

grupos judaicos. No século 3 a.C., a família dos Tobíadas ocupa um cargo

importante na administração dos Ptolomeus: é responsável pelo

arrendamento de impostos. Depois da ascensão de Antíoco III, essa família

passa a apoiar os Selêucidas. O sumo sacerdote Simão, o Justo, e os

piedosos assumem uma política pró-selêucida. Desiludido com as medidas

políticas, Onias III, filho de Simão, rejeita o governo dos Ptolomeus e

novamente apóia os Selêucidas. Jasão depõe o sumo sacerdote Onias III e

inicia, com a ajuda dos Selêucidas, a reforma helenista, porém logo é

deposto pelo partido helenista radical, que coloca Menelau como sumo

sacerdote (2Mc 4-5).74 Enquanto isso, os estratos mais baixos permanecem

à margem dos acontecimentos; eles vêem a confusão entre os líderes da

cidade como uma disputa de poder.

A briga entre o sumo sacerdote pró-ptolomaico e a aristocracia pró-

selêucida reforça a divisão social. O motivo inicial da reforma helenista é o

desejo de integrar o judaísmo no contexto internacional do mundo

helenístico. Desde o início, a reforma política do partido helenista visa

assegurar seus próprios interesses econômicos. A meta é obter o privilégio

73 John KAMPEN, The Hasideans and the Origin of Pharisaism: A Study in 1 and 2 Maccabees, p.222; Bernhard W. ANDERSON, Understanding the Old Testament , New Jersey, Prentice Hall, 1997, p.555. 74 Bernhard W. ANDERSON, Understanding the Old Testament , p.556.

Page 27: Breve Historico Perido Helenistico Capitulo III

222

do livre-comércio, os direitos que as cidades helenistas possuem e, ao

mesmo tempo, vincular a comunidade de Judá à cultura e à economia

internacional do mundo helenista. A reforma é um modo de afastar os

obstáculos ao desenvolvimento cultural e econômico.

A reforma toma um rumo imprevisto. A formação no ginásio e na

efebia é dispendiosa, eliminando a participação das camadas mais baixas da

sociedade e, ao mesmo tempo, afastando o partido conservador da

aristocracia, que é contrário às mudanças. Além da divisão social já

existente em Judá, a política helenizante provoca um conflito religioso. No

poder está o partido helenista; seus opositores, tanto das camadas mais

altas como das camadas mais baixas, não participam e perdem seus direitos

na nova conjuntura.

A reforma helenista tem a intenção de eliminar os escribas

conservadores – os hasidim. O partido helenista não questiona a autoridade

da Lei de Moisés, mas quer a revisão de algumas regras e interpretações

propostas desde o tempo de Neemias e Esdras, como, a proibição de

realizar o comércio no sábado, de comer com estrangeiros e de casamentos

mistos (Ne 13,15-22; Esd 10). Na origem dessas leis, estava a necessidade

de preservar a existência e a identidade do povo judeu, num contexto de

minoria e ameaça de desintegração. Porém, tais leis não têm mais sentido

no período helenístico, visto que a realidade é outra: a população vive em

permanente contato com estrangeiros dentro de Israel e na diáspora. A

eliminação, especialmente das leis que impõem separação de outros povos

possibilita ampliar o comércio, modificar o modo de vida e remover os

ressentimentos entre judeus e estrangeiros.

O grupo dos hasidim, fiel à Lei de Moisés, se opõe ao grupo dos

helenistas. O conflito se torna tão intenso a ponto de estourar uma guerra

civil, desembocando na intervenção do império selêucida. Antíoco IV

Epífanes proíbe a religião judaica, especialmente a observância da Lei, e

transforma o templo de Jerusalém em um templo aberto às nações

Page 28: Breve Historico Perido Helenistico Capitulo III

223

estrangeiras. Isso provoca o levante judaico conhecido como Revolta dos

Macabeus, em 167 a.C.75

3.6. Tempo dos Macabeus... Nova etapa da resistência

Há vários fatores que estão por trás da Revolta do Macabeus, entre

eles podemos citar "a reivindicação da Síria e Egito pela Judéia, o status

particular da lei judaica dentro do Império, a influência do mundo grego

sobre a sociedade judaica, as famílias rivais e as lealdades na Judéia, a

crescente divisão na Judéia entre ricos e pobres, governantes e povo,

freqüentemente em paralelo com a divisão entre helenizantes e ortodoxos".76

Na historiografia do Primeiro Livro dos Macabeus, o marco inicial da

revolta é o gesto de Matatias de matar um judeu que, conforme as ordens

dos emissários do rei, faz o sacrifício no altar de Modin (1Mc 2,24). Na

verdade, o movimento da revolta já existe há mais tempo, sob a liderança do

grupo dos hasidim, porém necessita de maior organização e de uma

liderança forte. Por exemplo, a fidelidade à Lei os impede de lutar em dia de

sábado, enfraquecendo-os. Quando a família dos Macabeus assume o

movimento, ela introduz duas modificações fundamentais: coloca a

necessidade de lutar no sábado para se defender e apresenta um líder para

a revolta (1Mc 2,39-41).77

De acordo com o Primeiro Livro dos Macabeus, todos os

acontecimentos em Modin, a decisão de lutar no sábado para se defender, a

incorporação dos hasidim nessa luta e a expansão do levante para o interior

estão associados a Matatias. Ao apresentar uma nova interpretação da Lei

do sábado, Matatias se opõe ao sumo sacerdote.78 O Segundo Livro dos

Macabeus ignora a função de Matatias, mas descreve a retirada de Judas

75 Victor TCHERIKOVER, Hellenistic Civilization and the Jews , p.190; Martin Hengel, Judaism and Hellenism, v.1, p.175. 76 John R. BARTLETT, The First and Second Books of the Maccabees , Cambridge, Cambridge University Press, 1973, p.6. 77 Flávio Josefo também destaca o papel heróico de Matatias. Antigüidades, 12.271-276. 78 A nova interpretação da Lei do Sábado só se tornou realidade no século II d.C. Esta posição pode ser confirmada no Segundo Livro dos Macabeus, escrito na diáspora, no início do século 1a.C. Este não menciona nada sobre essa resolução; ao contrário, enfatiza a observância do dia de descanso pelos judeus. Elias BICKERMAN, From Ezra to the Last of the Maccabees, p.99-100.

Page 29: Breve Historico Perido Helenistico Capitulo III

224

Macabeu, com outros homens, para o deserto e suas incursões nas aldeias

para reunir os judeus fiéis à Lei (2Mc 5,27; 8,1).

Nos primeiros anos, Judas Macabeu79 empreende guerra contra os

judeus. Flávio Josefo relata que "Judas, com a ajuda de seus irmãos e de

outros, expulsou os inimigos do país e matou aqueles concidadãos que

violaram as leis de seus pais, purificou a terra de todas as abominações".80

Ele procura eliminar os adeptos da reforma helenista. Aos poucos, organiza

um exército e derrota vários generais Selêucidas enviados por Antíoco com

a ordem de acabar com as revoltas na Judéia. No período de dois anos, os

exércitos sírios invadem Judá para esmagar a revolta, mas são derrotados

pelas táticas de guerra empreendidas pelo exército dos judeus.81 De acordo

com o relato do Primeiro Livro dos Macabeus e das Antigüidades Judaicas,

Apolônio faz uma primeira tentativa de sufocar a rebelião, mas é derrotado

por Judas Macabeu e seu exército. Em seguida, Seron, comandante do

exército da Síria, também é derrotado pelos judeus. Na terceira tentativa,

Lísias envia os generais Ptolomeu, Nicanor e Górgias, que igualmente são

derrotados82. Por fim, ele próprio vem à Judéia83, mas, por volta de 164 a.C.,

Judas o derrota e consegue reconquistar Jerusalém e purificar o templo,

menos a Acra.84

Diante dos acontecimentos, os governantes Selêucidas suspendem o

decreto de proibição da religião judaica. Antíoco IV faz uma proclamação

para o Sinédrio e para a nação judaica, na qual ele declara ter recebido

informações de Menelau sobre os judeus que tinham fugido de suas casas e

desejavam voltar para suas residências. Ele assegura que não haverá

punição para os que retornarem e permite que os judeus sigam suas normas

alimentares e as leis de seus ancestrais. Os direitos dos judeus desde o

tempo de Antíoco III são restaurados. O edito nem sequer menciona o grupo

79 Em geral, o tempo de Judas Macabeu é situado entre os anos 166 e 160 a.C. Victor TCHERIKOVER, Hellenistic Civilization and the Jews , p.231; Martin Hengel, Judaism and Hellenism, v.1, p.290; André PAUL, O judaísmo tardio, p.27. 80 Antigüidades, 12.286. 81 Temos os relatos do Primeiro Livro dos Macabeus 3,10-4,35 e o de Flávio Josefo, Antigüidades, 12.287-292. 82 Antigüidades, 12.298-299. 83 Antigüidades, 12.313-315. 84 Norman K. GOTTWALD, Introdução socioliterária à Bíblia Hebraica, p.417.

Page 30: Breve Historico Perido Helenistico Capitulo III

225

dos Macabeus. O fim da perseguição figura como benevolência do rei diante

da intercessão de Menelau.

O templo ainda permanece nas mãos do partido reformador. O edito

de Antíoco devolve a liberdade religiosa e coloca um fim à perseguição, mas

continua o governo de Menelau e seu partido. No final de 164 a.C., Judas

Macabeu reúne um exército e invade Jerusalém. Ele purifica o templo e

restaura o culto conforme a tradição judaica no dia 25 de Casleu, justamente

três anos após o partido da reforma ter cometido a profanação do templo

(1Mc 4,36-61; 2Mc 10,1-8).85 O Primeiro Livro dos Macabeus conclui o relato

desse acontecimento dizendo: "Judas, seus irmãos e toda a assembléia de

Israel decidiram que os dias da dedicação do altar seriam anualmente

celebrados a seu devido tempo pelo espaço de oito dias, a partir do dia vinte

e cinco de Kislev, com júbilo e alegria" (1Mc 4,59). O gesto de Judas

Macabeu proclamar uma festa é altamente significativo, pois se trata da

primeira celebração instituída por mãos humanas.86 Essa medida é

inovadora na cultura judaica, mas comum entre os gregos. Judas imita uma

prática dos inimigos, incorporando-a ao Judaísmo.

Judas se torna senhor de Jerusalém e da Judéia, mas a Acra ainda

permanece como refúgio para um grupo ligado a Menelau. É possível que as

guarnições que se encontram na Acra não tivessem forças suficientes para

agir sem o apoio do governo central. Nesse período, Antíoco IV sofre uma

derrota ao tentar saquear um templo dedicado a Diana, em Elimaida, na

Pérsia.87 Em seguida, fica doente e morre em 163 a.C. Antes, porém, instala

Filipe como responsável de todo o seu reino (1Mc 6,14-17), surgindo assim

um importante concorrente para Lísias, o antigo educador de Antíoco V

Eupátor.88 Lísias empreende uma segunda campanha contra Judas, com

uma força muito maior, incluindo elefantes de guerra. Betsur é sitiada e se

rende, e o mesmo teria acontecido a Jerusalém se Lísias, ao saber que

85 Além dos livros dos Macabeus, a purificação do templo é descrita em Antigüidades, 12.316. 86 Elias BICKERMAN, From Ezra to the Last of the Maccabees : Foundations of Post-Biblical Judaism, p.121. 87 Antigüidades, 12.354. 88 Antonius H. J. GUNNEWEG, História de Israel: Dos primórdios até Bar Kochba e de Theodor Herzl até os nossos dias, p.263.

Page 31: Breve Historico Perido Helenistico Capitulo III

226

Felipe estava para se apoderar do trono, não tivesse assinado um tratado de

paz com Judas, em 162 a.C.89

Depois de Antíoco V Eupátor ter restaurado o direito dos judeus, ele,

aconselhado por Lísias, executa Menelau, responsabilizando-o pela guerra

contra os judeus (2Mc 13,3-8).90 O novo decreto obriga todo o povo a

observar a Lei Judaica. Agora, o domínio da Torá é totalmente restabelecido.

Novos conflitos no Império Selêucida afetam a Judéia. Lísias e Antíoco V

são assassinados e Demétrio I sobe ao trono (162-150 a.C.). O novo rei

confirma a liberdade religiosa dos judeus. Mas o movimento dos Macabeus

não se contenta apenas com a liberdade religiosa, pois, apesar de todas as

vitórias de Judas, o partido helenista ainda mantém o poder, cujo centro

continua sendo a Acra. Os Macabeus querem independência completa. Por

isso, Demétrio, com a ajuda do governador Báquides, nomeia Alcimo, do

partido helenizante moderado, para o cargo de sumo sacerdote.91

O levante dos Macabeus é a continuação da revolta dos hasidim e o

resultado dos acontecimentos políticos, econômicos e religiosos na região

da Judéia.92 Com o fim da perseguição religiosa, a restauração das leis

judaicas e a purificação do templo, a revolta atinge seus objetivos e alguns

grupos se retiram da luta em busca da paz. Os hasidim são os primeiros a

reconhecerem Alcimo como legítimo sumo sacerdote. Seguro de seu poder,

ele não hesita em mandar executar sessenta membros do grupo dos hasidim

(1Mc 7,16). A partir daí, cresce a oposição contra Alcimo. Judas se apodera

do templo e impede Alcimo de se aproximar do altar. Desta vez, a divisão na

sociedade judaica é muito diferente da divisão nos tempos de Antíoco IV. O

conflito não está relacionado à Torá, mas à questão de Alcimo poder ou não

ser reconhecido como sumo sacerdote. Os antigos combatentes de Judas

agora estão do lado oposto, são inimigos. Mais uma vez acontece uma

guerra civil: "pôs-se Judas a percorrer todos os confins da Judéia, exercendo

89 Antigüidades, 12.379. 90 Antigüidades, 12.385. 91 Antigüidades, 12.386. 92 Hans G. KIPPENBERG, Religião e formação de classes na Antiga Judéia, p.84; Martin HENGEL, Jews, Greeks and Barbarians : Aspects of the Hellenization of Judaism in the pre-Christian Period, p.40.

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227

vingança contra os renegados e impedindo-os de circular pela região" (1Mc

7,24).

O levante de Judas e de seus seguidores obriga Alcimo a buscar

ajuda junto ao rei. Para sufocar a revolta, o governador envia Nicanor, um

general muito temido. Porém seu exército não consegue derrotar o exército

de Judas Macabeu. Nicanor morre no campo de batalha, sua cabeça e sua

mão direita são decepadas e penduradas perto de Jerusalém (1Mc 7,26-50).

Esta vitória também passa a fazer parte do calendário das festas: "O Dia de

Nicanor", dia 13 de Adar (2Mc 14,36). É a primeira vez na história de Israel

que um dia de guerra entre irmãos é declarado um dia festivo.

Judas Macabeu, mesmo contando com o apoio apenas de uma

pequena parcela da população, decide continuar o movimento de

resistência. Agora o objetivo é a independência política dos Selêucidas, e,

para atingir sua meta, ele conclui um tratado de defesa com Roma.93

Quando Judas se torna aliado de Roma, o governo selêucida vê a

necessidade de colocar um fim à revolta. O governador do rei, Báquides,

acompanhado por Alcimo e à frente de um exército profissional, é enviado a

Jerusalém. Os soldados profissionais são muito superiores ao exército dos

Macabeus. Diante da superioridade do inimigo, muitos seguidores

abandonam a batalha. Judas também é aconselhado a impedir a batalha,

mas ele prefere morrer lutando: "Tornou-se renhida a luta e houve muitas

baixas de uma parte e de outra. Judas sucumbiu também e os outros

fugiram" (1Mc 9,17-18).

Apesar da derrota sofrida e da morte de Judas, os Selêucidas são

incapazes de acabar com o movimento de resistência e assegurar o controle

político de Judá. Jônatas (160-142 a.C.)94, irmão de Judas, assume a

liderança da guerra. Depois de algumas batalhas, por volta de 156 a.C.,

Jônatas faz um tratado de paz com Báquides (1Mc 9,71-72). Ele recebe de

volta os prisioneiros e o direito de residir em Macmas, "onde começou a

julgar o povo e fez desaparecer os ímpios do meio de Israel". Esta é a

93 Antigüidades, 12.416. 94 Victor TCHERIKOVER, Hellenistic Civilization and the Jews , p.231-236; André Paul, O judaísmo tardio, p.30.

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228

descrição de um antigo juiz no final de sua vida: "Descansou, afinal, a

espada em Israel" (1Mc 9,73a).

Em 152 a.C., estoura uma guerra civil entre Demétrio I da Síria e

Alexandre Balas, cuja intenção é destronar o rei e tomar o seu lugar.

Demétrio faz aliança com Jônatas, dando-lhe permissão para reunir suas

forças militares e equipá-las com armas. Jônatas ocupa Jerusalém e

fortalece Sião. As tropas sírias ocupam somente a Acra e Betsur – um lugar

de refúgio. Procurando atrair o apoio de Jônatas, Alexandre Balas o

reconhece como sumo sacerdote 95 (cf.1Mc 10,17-21), função vacante desde

a execução de Alcimo, em 159 a.C. Naquele ano, na festa das tendas, pela

primeira vez, Jônatas aparece paramentado com as vestes de sumo

sacerdote. Obter essa função mediante o poder imperial é um costume

grego. O principal motivo da revolta dos Macabeus é a defesa da Torá,

porém, ao assumir o sumo sacerdócio, Jônatas age contra a Lei, pois ele

não pertence à família dos sacerdotes oficiais sadoquitas. De líder de uma

insurreição, ele se torna funcionário do Estado Selêucida, à frente de seu

país.96 Jônatas reforça a aliança com Roma e entra em contato com

Esparta. O novo governante se distancia dos ideais iniciais da revolta ao

assumir o poder político e religioso, o que gera novos conflitos na sociedade

de Judá.

3.7. Fim da resistência e a origem de uma nova dinastia

Com a aliança de Jônatas com Roma e Alexandre Balas, ele abre

caminho para o surgimento de uma nova dinastia: a dos Asmoneus, que

assume o governo da Judéia até a conquista do Império Romano, em 63

a.C. Esse nome, conforme Flávio Josefo, vem do pai de Matatias:

Asamonaios.97 A partir do momento em que Jônatas assume o sumo

sacerdócio, há uma dissidência no grupo dos hasidim. Dos leigos surge o

grupo dos fariseus, que se separa do movimento dos hasidim e se une ao

povo para exigir das autoridades judaicas um governo conforme a Lei de 95 Albert I. BAUMGARTEN, The Flourishing of Jewish Sects in the Maccabean Era: An Interpretation p.90. 96 Christiane SAULNIER, A revolta dos Macabeus, São Paulo, Edições Paulinas, 1987, p.35. 97 Antigüidades, 12.265.

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229

Moisés.98 Outros membros mais radicais se retiram para a região rural a fim

de formarem comunidades ascéticas rigorosas para praticar fielmente a Lei,

dando origem ao movimento dos essênios.99

Jônatas decide apoiar Alexandre Balas, que derrota Demétrio e

assume definitivamente o reinado (1Mc 10,48-50). Por ocasião de seu

casamento com Cleópatra, o novo rei nomeia Jônatas estratego e

governador (1Mc 10,45).100 Desta maneira, termina o período de guerra civil

na Judéia e em Jerusalém, com a vitória dos Macabeus.101 A Judéia é

reconhecida como um poder político independente. Judas atua como um

líder militar que luta contra os governantes da aristocracia e recebe apoio da

grande maioria da população. Ele próprio não fundou o Estado, mas apontou

o caminho: concentrou as forças ao redor de um líder central. Após a morte

de Judas, o povo se reúne ao redor de Jônatas, que se alia aos romanos e,

estrategicamente, aproveita as divisões internas do império selêucida,

fixando as bases para a fundação do Estado asmoneu.102

A luta para impedir a helenização do judaísmo e o abandono da Torá,

inicialmente empreendida pelo grupo dos hasidim, em seguida organizada

por Judas, toma um novo rumo. Jônatas e seus sucessores – Simão e seus

descendentes – procuram adaptar o judaísmo ao helenismo. Sob o governo

deles, a Judéia se torna um principado helenístico.103 As modificações

iniciam com o envolvimento de Jônatas na política internacional. O principal

objetivo de Jônatas é se manter no poder, o que exige que ele escolha entre

os pretendentes ao trono da Síria, mas o apoio a Alexandre Balas tira a vida

de muitos judeus. Jônatas se torna um oficial selêucida: é estratego e

98 Albert I. BAUMGARTEN, The Flourishing of Jewish Sects in the Maccabean Era: An Interpretation, p.13. 99 Norman K. GOTTWALD, Introdução socioliterária à Bíblia Hebraica, p.418. Richard A. HORSLEY, John S. HANSON, Bandidos, profetas e messias: movimentos populares no tempo de Jesus, São Paulo, Paulus, 1995, p.39. 100 Antonius H. J. GUNNEWEG, História de Israel: dos primórdios até Bar Kochba e Theodor Herzl até nossos dias, p.268. 101 Victor TCHERIKOVER, Hellenistic Civilization and the Jews , p.233. 102 Benedikt OTZEN, O Judaísmo na Antigüidade: a história política e as correntes religiosas de Alexandre Magno até o imperador Adriano, p.39; Helmut KOESTER, Introdução ao novo testamento, v. 1: história, cultura e religião do período helenístico, p.217. 103 Elias BICKERMAN, From Ezra to the Last of Maccabees : Foundations of Post-Biblical Judaism, p.139.

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230

governador de uma província. Ele recebe um título real e as insígnias

reservadas aos amigos do rei (1Mc 10,21).

A instabilidade do Império Selêucida favorece o poder de Jônatas;

mesmo quando Demétrio II derrota Alexandre Balas, em 145 a.C., ele

consegue do novo rei os distritos meridionais da Samaria (1Mc 11,1-37).

Pouco depois, Trifão, representando os interesses de Antíoco VI, filho de

Balas, ergue-se contra Demétrio II. Jônatas é confirmado em sua posição e

seu irmão Simão é nomeado estratego da faixa marítima da Judéia,

resultando na conquista de toda a região, desde o litoral da Filistéia até a

Galiléia, chegando a Damasco. Mas Trifão aprisiona Antíoco VI a fim de

ocupar o trono e, traiçoeiramente, prende e executa Jônatas, no final de 143

a.C. (cf. 1Mc 12, 39-53).104 Simão faz um pacto com Demétrio II contra

Trifão. Neste pacto, Demétrio II reconhece Simão como governador

independente da Judéia, isenta os judeus dos tributos e lhe dá autorização

para expulsar de Jerusalém a guarnição síria da Acra.105

A posição política de Simão é reconhecida. Ele empreende a

conquista de Gazara e Jafa/Jope, e com isso tem acesso ao Mar

Mediterrâneo. Ele estabelece relações diplomáticas com Esparta e Roma. É

confirmado como estratego e responsável pelo templo por uma assembléia

de sacerdotes, pelo povo, pelos chefes da nação e anciãos da região (1Mc

14,28.38). Simão é declarado um governante no estilo helenístico. A sua

posição está fundamentada no poderio militar. Qualquer transgressão é

passível de punições severas. Somente os atos de Simão são mencionados;

os demais membros de sua família que tinham participado de inúmeras

batalhas pela independência sequer são lembrados.

Simão adota uma política de expansão, submetendo vários territórios

ao seu domínio. Quando Antíoco VII assume o poder na Síria, ele exige que

Simão entregue as cidades fora da Judéia, como Jope e Gazara, e

principalmente a Cidadela de Jerusalém, ou que pague a quantia estipulada

de mil talentos de prata. Simão responde ao rei que ele apenas tinha

104 Christiane SAULNIER, A Revolta dos Macabeus, p.35. 105 Helmut KOESTER, Introdução ao Novo testamento, v. 1: história, cultura e religião do período helenístico, p.220.

Page 36: Breve Historico Perido Helenistico Capitulo III

231

reconquistado a herança de nossos pais e não um bem alheio ou uma terra

estrangeira. "Quanto a Jope e Gazara, que reivindicas, causavam elas tão

grande mal ao nosso povo e à nossa região. Por ela daremos cem talentos"

(1Mc 15,35; cf. 15,28-34). Naquele momento, o rei, envolvido numa

campanha contra Trifão, envia seus oficiais para impedir que os judeus

continuem expandindo seu território.

Simão e seus filhos Judas e Matatias são assassinados por seu genro

Ptolomeu, que deseja assumir o poder. João escapa do atentado,

assumindo, no lugar de seu pai, o cargo de sumo sacerdote. O início do

reinado de João Hircano (135 a.C.)106 é marcado pelo esforço em manter a

independência e a existência da Judéia. Antíoco VII Sidetes consegue sitiar

Jerusalém, mas outras ameaças ao seu reino o obrigam a afastar-se,

especialmente as invasões dos partos. Na batalha contra os partos, Antíoco

VII é derrotado e perde a vida. A partir dessa época, os conflitos internos no

Império Selêucida impedem que exerçam influência sobre a Judéia.

João Hircano se torna totalmente independente dos Selêucidas. O

seu desejo é reconquistar a planície e as regiões costeiras, entregues no

tratado de paz de 133 a.C. Para isso, ele organiza um exército profissional,

com soldados estrangeiros, e expande o seu território. Toma a cidade de

Mádaba e a Iduméia, antiga Edom, e "mandou circuncidar à força os

idumeus e fez deles membros da comunidade cúltica de Jerusalém".107 No

norte, toma Siquém e, em 128 a.C., destrói o templo de Garizim. Por volta do

ano 108 a.C., João Hircano conquista e destrói a antiga capital Samaria.108

Pouco depois, toma Citópolis, cidade grega situada num ponto estratégico,

onde o vale de Jezrael encontra o vale do Jordão; seus habitantes são

escravizados.109

106 Victor TCHERIKOVER, Hellenistic Civilization and the Jews , p.240; Em André Paul, há uma pequena variação de data, ele situa o governo de João Hircano entre os anos 134 e 105 a.C. O judaísmo tardio, p.34; Antonius H. J. GUNNEWEG, História de Israel: dos primórdios até Bar Kochba e de Tehodor Herzl até os nossos dias, p.370. 107 Herbert DONNER, História de Israel e dos povos vizinhos : da época da divisão do reino até Alexandre Magno, v.2, p.510. 108 Antonius H. J. GUNNEWEG, História de Israel: dos primórdios até Bar Kochba e de Teodor Herzl até os nossos dias, p.270. 109 Tessa RAJAK, Dynasty Hasmonean, in: David Noel FREEDMAN (ed.), The Anchor Bible Dictionary, v. 3, p. 71-72.

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232

Os novos governantes assumem uma postura nacionalista, mas

estabelecem uma administração à maneira dos governantes helenistas. O

seu território aumenta consideravelmente, o comércio floresce e as moedas

judaicas são semelhantes à dos Selêucidas. Além disso, João Hircano

assume o sumo sacerdócio e adapta a cultura grega ao mundo judaico.

Nesse tempo, "irrompeu um conflito interno entre o regime governante e

judaítas piedosos, sucessores dos hasidim, que haviam apoiado os

Macabeus".110 Alguns fariseus pedem que João Hircano renuncie ao sumo

sacerdócio.111 Uma vez que se trata de um governo teocrático, João Hircano

rejeita a exigência imposta pelos fariseus e opõe-se a eles, aliando-se ao

grupo dos saduceus, camada social composta por sacerdotes e anciãos –

nobreza recentemente enriquecida, formada por latifundiários, comerciantes

e descendentes de grupos sacerdotais. Trata-se de um grupo aberto ao

helenismo, fiel à dinastia dos Asmoneus.112

O grupo dos saduceus intervém na vida política do país, sobretudo

por intermédio do sumo sacerdote, considerado o chefe da nação, e do

sinédrio – o conselho supremo dos judeus , que estava nas mãos deles e

dos Asmoneus. Os saduceus atuam principalmente no templo. Na sinagoga,

estão os fariseus, defensores da tradição judaica, sobretudo da lei do puro-

impuro. O povo continua empobrecido, sem terra, sem os meios de

produção, sem direito à cidadania, sem esperanças, sufocado pelos

governantes e pelas autoridades religiosas.

João Hircano morre em 104 a.C. Seu filho Aristóbulo assume o reino

somente por um ano. Ele manda encarcerar seus irmãos e sua mãe,

deixando-a morrer de fome. Empreende campanha contra a Ituréia do Norte,

forçando seus habitantes à circuncisão.113 Nesse período, a Galiléia é

anexada à Judéia. De acordo com Flávio Josefo, Aristóbulo é o primeiro dos

Asmoneus a ser chamado de rei nas relações com as outras nações.114

Após a sua morte, Alexandre Janeu se casa com a viúva do rei, Alexandra 110 Norman K. GOTTWALD, Introdução socioliterária à Bíblia Hebraica, p.419. 111 Antigüidades, 13.291. 112 Ekkehard W. STEGEMANN, Wolfgang STEGEMANN, História social do protocristianismo: os primórdios do judaísmo e as comunidades de Cristo no mundo mediterrâneo, p.185. 113 J. Alberto SOGGIN, Storia d'Iraele: Dalle origini a Bar Kochbà, p.454. 114 Antigüidades, 13.301.

Page 38: Breve Historico Perido Helenistico Capitulo III

233

Salomé, e, com a sua ajuda, é coroado rei (103-76 a.C.).115 Ele retoma a

política expansionista de seu pai, formando um exército de mercenários e

empreendendo várias guerras contra os países vizinhos, empobrecendo

ainda mais os camponeses com a cobrança de pesados tributos e com o

recrutamento militar. Os Asmoneus assumem o governo à moda helenista, o

que acentua o conflito com os fariseus, que defendem a tradição e a prática

da Lei.

Durante o reinado de Alexandre Janeu, o conflito com os fariseus se

transforma em uma guerra civil que coloca a maioria da população em luta

contra o rei e seus partidários sacerdotais e leigos.116 Os judeus

antiasmoneus chegam a apelar para o exército selêucida, que vence o

exército judaico; porém, o nacionalismo fala mais alto e eles transferem sua

fidelidade para Alexandre Janeu. Retornando ao poder, o rei faz a sua

vingança: manda crucificar 800 fariseus, depois de ter mandado matar, na

frente deles, suas esposas e seus filhos.117 Este acontecimento pode ser

datado entre os anos 96-95 a.C.118

Antes de morrer, Alexandre Janeu aconselha a rainha Salomé

Alexandra a fazer as pazes com os fariseus.119 Hircano II, seu filho mais

velho, assume o sumo sacerdócio, enquanto a mãe exerce o poder civil. De

acordo com Flávio Josefo, "enquanto ela possuía o título de soberana, os

fariseus tinham o poder".120 Os fariseus mandam matar aqueles que

perseguiram seus antigos companheiros. A rainha mantém tropas

mercenárias e empreende guerra contra Damasco, mas é obrigada a se

retirar. Quando a rainha fica doente, recomeçam os conflitos pela sucessão.

Aristóbulo procura o apoio do partido dos saduceus e consegue apoderar-se

de vinte e oito cidades fortificadas; recruta mercenários e se prepara para

115 Victor TCHE RIKOVER, Hellenistic Civilization and the Jews , p.241; Antonius H. J. GUNNEWEG, História de Israel: dos primórdios até Bar Kochba e de Tehodor Herzl até os nossos dias, p.370. 116 Norman GOTTWALd, Introdução socioliterária à Bíblia Hebraica, 419. 117 Antigüidades, 13.380. 118 James S. McLAREN, Power and Politics in Palestine: The Jews and the Governing of their Land 100 BC-AD 70, Sheffield, Sheffield Academic Press, 1991, p.56. 119 Antigüidades, 13.401. 120 Antigüidades, 13.409.

Page 39: Breve Historico Perido Helenistico Capitulo III

234

submeter a Judéia, com o objetivo de impedir que Hircano, seu irmão, seja

coroado rei.

Em 67 a.C., após a morte da rainha Alexandra, Aristóbulo declara

guerra a seu irmão Hircano, derrota-o perto de Jericó e o obriga a renunciar.

Mas, em 64-63 a.C., Pompeu impõe o domínio de Roma à Síria e à Judéia.

Ele entra em Jerusalém, sitia e conquista a área do templo, provoca muitas

mortes, profana o Santo dos Santos e incorpora a Judéia como Estado-

vassalo de Roma. Assim, o reinado dos Asmoneus chega ao fim. Aristóbulo

é levado prisioneiro para Roma, e Hircano II é designado sumo sacerdote

com o título de etnarca, mas não de rei.121 Portanto, mais uma vez o povo

judeu estava submetido a uma nova nação estrangeira. O domínio do

Império Romano foi marcado por muita violência, medo e repressão.

A transformação interna da Revolta dos Macabeus e o surgimento da

dinastia dos Asmoneus, bem como as constantes alianças com as nações

estrangeiras e as intrigas em torno do poder, suscitam muitas indagações no

meio do povo. A crise decorrente do choque entre a cultura helenista e a

cultura judaica faz surgir novas leituras teológicas que ajudam a superar as

divisões sociais e as situações de sofrimento, apresentando uma resposta

de fé e de esperança. Ao lado da opressão econômica e cultural-religiosa, o

povo vive a experiência da impotência política, que o impede de vislumbrar

um futuro somente com os seus conceitos tradicionais de esperança.

A literatura desse período – sapiencial, nacionalista e apocalíptica –

enfatiza, sob diversos ângulos, a fidelidade à Torá. Uma das propostas será

colocar a vitória dos justos no final dos tempos – escatologização da história

– não como des-historicização ou negação fatalista da história; ao contrário,

é colocar a esperança dentro da história, apontando um caminho de

salvação.122 O livro de Judite, escrito no final do século 2a.C. ou meados do

século 1 a.C., pode ser considerado como literatura nacionalista. Na trama,

Judite é uma viúva há 40 meses, que segue fielmente a Lei, em especial as

121 Herbert DONNER, História de Israel e dos povos vizinhos: da época da divisão do reino até Alexandre Magno, v. 2, p.512. 122 Ekkehard W. STEGEMANN, Wolfgang STEGEMANN, História social do protocristianismo: os primórdios do judaísmo e as comunidades de Cristo no mundo mediterrâneo, p.173.

Page 40: Breve Historico Perido Helenistico Capitulo III

235

prescrições da pureza e do jejum. Ela representa, portanto, o grupo que

sofre as conseqüências do processo de helenização. Paradoxalmente, é ela

que, em lugar das autoridades da cidade, toma a iniciativa e vence o

poderoso exército inimigo. Sua motiva se fundamenta na certeza de que o

Deus de Israel está do lado dos fracos, e é mais forte do que os adversários

de seu povo. O grupo que está por trás desse escrito defende YHWH como

Deus justos oprimidos e a fidelidade à Torá como condição para a

sobrevivência do povo.

3.8. Diferentes compreensões da realidade: 1Enoque e Daniel

Tendo apresentado uma visão panorâmica do período helenístico na

Judéia, vamos retomar os vários movimentos de resistência que surgem

com a chegada do helenismo e as mudanças culturais, sociais e religiosas.

Na Judéia, bem como em toda a diáspora judaica, os valores tradicionais da

cultura judaica são questionados. As medidas econômicas e políticas

implantadas pelo governo dos Ptolomeus provocam endividamento geral e

formação de latifundiários. A maior parte das terras e a produção pertencem

ao rei. A produção econômica cresce, mas aumentam as formas de

recolhimento de impostos pelos grupos dominantes. Esse processo é

ampliado com o arrendamento e subarrendamento a particulares da cidade

do direito de cobrar tributos e impostos.123 Essa organização econômica

favorece o rei e os grupos dominantes.

Enquanto isso, as guerras entre os reis Ptolomeus e os Selêucidas

pelo controle da província siro-fenícia continuam. Por volta de 198 a.C. os

exércitos dos Selêucidas conseguem derrotar os Ptolomeus. As lideranças

religiosas desse período, especialmente os escribas, além de copiar

manuscritos, produzem uma nova literatura, conhecida como apocalíptica.

Essa literatura reconta os acontecimentos da história desde os inícios até o

momento em que está sendo escrita. Tais escritos apresentam uma predição

visionária de eventos futuros. Entre as características da literatura

apocalíptica, destacamos a releitura da história, a convicção de que YHWH,

123 Robert MICHAUD, Qohelet y el helenismo, Estella, Verbo Divino, 1988, p.129.

Page 41: Breve Historico Perido Helenistico Capitulo III

236

o Senhor da história, realizará o julgamento final sobre os ímpios, a defesa

da Torá e do judaísmo, o resgate dos justos e fiéis à Lei e a força da

resistência. Estas características também estão presentes no livro de Judite,

por isso, faremos uma abordagem da literatura apocalíptica desse período.

3.8.1. Narrativas gregas em Daniel e sua relação com 1Enoque 6-11

As narrativas gregas do livro de Daniel124 enfatizam a universalidade

do culto de YHWH como responsabilidade dos governantes, os quais, uma

vez convertidos, ordenam leis em favor da fé judaica, atribuindo-lhe o status

de religião do Estado. Em Daniel 4,34 encontramos: "Agora, eu,

Nabucodonosor, celebro, exalto e glorifico o Rei do céu".

Outra citação que expressa a mesma visão é Dn 6,26-27: "Então o rei

Dario escreveu aos membros de todos os povos, nações e línguas que

habitavam sobre toda a terra: 'Que vossa paz seja grande!' Eu dei ordem

para que, em toda a extensão de meu reino, se trema de temor em presença

do Deus de Daniel: porque é ele o Deus vivo, e ele subsiste para sempre.

Seu reino é indestrutível, e sua soberania durará até o fim".

As citações apresentadas retratam o governador do mundo

helenístico como instrumento de YHWH para conseguir o reconhecimento

universal da religião judaica. O texto de Daniel faz alusão a conflitos com o

culto oficial (Dn 6,8). Nesse contexto, a sobrevivência de um oficial judeu a

serviço do governo Ptolomeu depende de sua fidelidade a YHWH e a seu

124 Em relação à linguagem das histórias que estão no livro de Daniel 1-6 não existe consenso. A existência de um texto aramaico diferente é amplamente aceita, ao menos para Dn 4-6. Cf. John J. COLLINS, Daniel, Book of, in: David Noel FREEDMAN (ed.), The Anchor Bible Dictionary, v. 2, New York, Doubleday, 1992, p.29; John COLLINS, Daniel With an Introduction to Apocalyptic Literature, Michigan, William B. Eerdmans Publishing Company, 1984, p.30. George NICKELSBURG admite a existência de uma coleção independente de histórias existentes na diáspora oriental, que foi utilizada pelo autor do livro de Daniel, por volta de 165 a.C. Cf. George NICKELSBURG, Stories of Biblical and Early Post Biblical Times, in: Michael E. STONE, Jewish Writings of the Second Temple Period, p.34; Herbert NIEHR afirma que os capítulos 4-6 do texto da LXX divergem em muitos pontos do aramaico, surgindo controvérsias sobre a possibilidade de que texto preservado seja anterior ao aramaico. Cf.: O livro de Daniel, em: Erich ZENGER (org.), Introdução ao Antigo Testamento, p.450. Os capítulos 4-6 pertencem às narrativas gregas do livro de Daniel, no terceiro século a.C. Cf. Rainer ALBERTZ, A History of Israelite Religion in the Old Testament Period, v.2: From the Exile to the Maccabees, p.576. Neste trabalho, vamos adotar a possibilidade de serem antigas histórias gregas retrabalhadas posteriormente por um autor judeu, em aramaico.

Page 42: Breve Historico Perido Helenistico Capitulo III

237

rei. Aos olhos dos judeus da diáspora, o governo grego necessita de

mudanças, por isso a necessidade de membros sábios e leais dentre os

judeus dos estratos mais altos para indicar o caminho certo.125

A visão da tradição apocalíptica de Daniel é muito diferente da

tradição do autor de 1Enoque 6-11,126 que considera o governo helenístico

como a causa da exploração econômica: os gigantes "consumiam o produto

dos homens, até que foi impossível a eles alimentá-los" (1En 7,3).127 A

deificação dos governadores helenísticos provoca injustiça, violência e

derramamento de sangue: "As mulheres geraram gigantes, por isso toda a

terra está cheia de sangue e iniqüidade" (1En 9,9).

Procurando explicar a origem desse governo destrutivo, e a partir dos

ensinamentos da Torá, o autor apresenta uma releitura de Gn 6,1-4:

"Naqueles dias, quando se multiplicaram os filhos dos homens, aconteceu

que lhes nasceram filhas bonitas e formosas. Elas ficaram grávidas e deram

à luz a enormes gigantes de três mil côvados de altura" (1En 6,1; 7,2). O

nascimento dos gigantes é visto como ação dos anjos apóstatas que

rompem com as estruturas estabelecidas (1En 6,3-6). Da união sexual entre

anjos e mulheres nascem os gigantes que destroem toda a criação: tendo

consumido todos os alimentos, "os gigantes se voltaram contra as pessoas e

começaram a devorá-las. Começaram a atacar as aves, os animais

selvagens, répteis e peixes, consumindo sua carne e bebendo seu sangue.

Então, a terra clamou contra os monstros" (1En 7,3 -6).

Além de fornecer dados para o autor de 1Enoque 6-11 escrever sobre

as origens, o relato de Gênesis também favorece uma previsão do que

125 Rainer ALBERTZ, A History of Israelite Religion in the Old Testament Period - v.2: From the Exile to the Maccabees, p.577-578. 126 O processo de redação do Mito dos Vigilantes evidencia múltiplos estágios, é provável que existia alguma forma desse Mito no século 3 a.C. Cf. John COLLINS, The Apocalyptic Imagination: An Introduction to the Jewish Matrix of Cristianity, New York, Crossroads, 1989, p.33-34; George W. E. NICKELSBURG, Enoch, First Book of, in: David Noel FREEDAMAN (ed.), The Anchor Bibe Dictionary, v.2, New York, Doubleday, 1992, p.516; Josef T. MILIK apud, Ida FRÖHLICH, Enoch and Jubilees, in: Gabriele BOCCACCINI (ed.), Enoch and Qumran Origins: New Light on a Forgottem Connection, Michigan, William B. Eerdmans Publishing Company, 2005, p.141; Paulo Augusto de SOUZA NOGUEIRA, O mito dos vigilantes: apocalípticos em crise com a cultura helenista, p.147. 127 A maioria das citações dos textos apócrifos foi extraída da tradução de Alejandro DIEZ MACHO, Apócrifos del Antiguo Testamento, Madrid, Cristiandad, 1984, com algumas exceções, optamos por outra tradução.

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238

acontecerá com o poder helenístico: "Agora, pois, clamam as almas dos que

morreram, e o seu lamento chega às portas do céu, e seus clamores se

levantam ao alto, e não podem cessar diante da iniqüidade que se comete

sobre a terra" (1En 9,10; cf. 7,6; 8,4). Por isso, Deus resolve destruir, por

meio do dilúvio, toda a terra: "Toda a terra perecerá, e a água do dilúvio virá

sobre ela, e aniquilará tudo o que existe sobre ela" (1En 10,2). Deus ordena

que os arcanjos destruam "a esses bastardos, monstros e nascidos da

fornicação. Aniquila de entre os homens a esses e aos filhos dos vigilantes.

Instiga-os uns contra os outros, que eles mesmos se destruam lutando, pois

não hão de ser longos os seus dias" (1En 10,9). Ele ordena que os rebeldes

sejam aprisionados pelos anjos por setenta gerações – até o julgamento

final, quando os tormentos serão grandes (1En 10,12.13). Apenas o justo

sobreviverá (1En 10,16b; 11,2). Todos os seres humanos serão reunidos:

"Que todos sejam filhos dos homens justos, e que todos os povos me

adorem e bendigam, prosternando-se diante de mim" (1En 10,21).

Ao afirmar que a salvação de Israel e de toda a humanidade só

acontecerá por meio de um grande julgamento de Deus, o autor de 1Enoque

6-11 segue a mesma orientação da profecia escatológica. O julgamento

atingirá todas as autoridades políticas injustas, porém esse evento é descrito

com estruturas mitológicas: os anjos caídos serão aprisionados até o juízo

final (1En 10,13). Na profecia tardia já existe alusão a esse modo de agir,

vejamos: "Nesse dia, o Senhor intervirá no alto contra o exército do alto, na

terra contra os reis da terra. Serão amontoados, cativos na masmorra, serão

encerrados na prisão e, muito tempo depois, terão de prestar contas" (Is

24,21-22). O dilúvio aparece na profecia tardia como o futuro julgamento de

Deus: "As comportas do céu são abertas, os fundamentos da terra são

abalados" (Is 24,18b). A diferença é que o autor de 1Enoque 6-11, pela

primeira vez, apresenta uma completa descrição do tempo das origens e do

julgamento final. A corrupção, o julgamento universal e o resgate dos justos,

descritos na história da criação, são retomados e modelados em vista da

escatologia dos tempos futuros.

O interesse pedagógico do autor, ou autores, de 1Enoque 6-11,

provavelmente um escriba, é ajudar seus leitores e leitoras a compreender a

Page 44: Breve Historico Perido Helenistico Capitulo III

239

necessidade do fim da deificação do poder, da violência e da exploração no

governo helenístico. Não sabemos se os autores de 1Enoque, seus

seguidores e sua audiência estão organizados em uma comunidade ou em

comunidades. O fato de a coleção de 1Enoque ser desenvolvida desde o

século 4 até o século 1 a.C., mostra que essa tradição foi desenvolvida em

círculos de judeus piedosos, com algum tipo de organização.128 A posição do

grupo de 1Enoque 6-11 é muito diferente da ideologia do autor das lendas

gregas de Daniel, o que pode indicar diferentes segmentos sociais;

provavelmente, este está ligado a um círculo de oposição, distante da

capital, ao passo que 1Enoque 6-11 mostra solidariedade com as vítimas do

sistema político e econômico dos Ptolomeus e "atua entre elas, instruindo e

ensinando".129

A nova edição da narrativa da queda dos anjos coloca Azazel como o

chefe que revela aos humanos os mistérios do céu (1En 9,6). Ensina-lhes as

artes mágicas, os feitiços, a preparação de ervas e raízes, a fabricação de

espadas, facas, escudos, armaduras, o trabalho com metais e adornos: os

braceletes, o uso de cosméticos, o embelezamento das pálpebras, toda

sorte de pedras preciosas e a arte das tintas (1En 7,1; 8,1). Em sua luta

contra a cultura helenística, os judeus adotam reminiscências mitológicas da

cultura grega, como por exemplo, a semelhança de Azazel com a tradição

de Prometeu.130 O escrito retrata violência e derramamento de sangue, o

que pode refletir o período da luta dos diádocos (323-301 a.C.). Outra

possível leitura desse texto é a ênfase na relação sexual ilícita, fazendo

alusão à corrupção do sumo sacerdócio em Jerusalém. Todavia, essa

interpretação não é exclusiva, pois esse Mito pode ser aplicado a qualquer

período do governo helenístico, no terceiro século. O mito como aparece,

128 George W. E. NICKELSBURG, First Book of Enoch, in: David Noel Freedman (ed.), The Anchor Bible Dictionary, v.2, p.515. 129 Rainer ALBERTZ, A History of Israelite Religion in the Old Testament Period, v.2: From the Exile to the Maccabees, p. 581. 130 George W. E. NICKELSBURG, The Bible Rewritten and Expanded, in: Michael E. Stone, Jewish Writings of the Second Temple Period: Aprocypha, Pseudepigrapha, Qumram Sectarian Writings, Philo, Josephus, p.92.

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240

unindo a história de Azazel com Shemiaza, pode ser utilizado em contextos

posteriores à guerra dos diádocos.131

3.8.2. O Mito dos Vigilantes como advertência aos helenistas

A política expansionista de Antíoco III provoca a quarta e a quinta

guerra síria no final do século 3 e início do século 2 a.C., quando os

Selêucidas assumem o governo da província da Celessíria.132 A helenização

de uma parte dos estratos mais altos da sociedade judaica, os conflitos entre

os partidos políticos e o aumento considerável dos impostos criam um clima

de revolta na população empobrecida da cidade e do campo. Por volta do

ano 200 a.C., há muitas pessoas e grupos descontentes com o governo dos

Ptolomeus. Isso transparece na expectativa apocalíptica do fim dos tempos:

"Naquele tempo, uma multidão se levantará contra o rei do Sul e os homens

violentos de teu poder se levantarão, para cumprir uma visão, mas eles

vacilarão" (Dn 11,14). A exploração econômica interna e a política externa

são esmagadoras, a ponto de muitos pensarem que o fim do mundo já havia

chegado.

A principal fase da apocalíptica é introduzida com a quarta guerra

síria, por volta de 221 a.C., quando Antíoco III tenta se apoderar da Judéia.

Nesse período, surge o Livro dos Vigilantes (1Enoque 1-10/36) e o livro

aramaico de Daniel (Dn 2-7). Embora essa literatura tenha muitos pontos em

comum, cada uma tem suas próprias características e objetivos. Nas

tradições ligadas a 1Enoque, encontramos a descrição de grupos: aqueles

que são fiéis a YHWH – os eleitos, os justos – e os membros helenizantes

dos estratos mais altos – os maus e os pecadores (1En 1,1; 5,7). O Livro dos

Vigilantes está escrito como testamento de Enoque para o futuro. Não é

possível saber com precisão o motivo da escolha desse patriarca, talvez por

131 George W. E. NICKELSBURG, Enoch , First Book , in: David Noel Freedman, The Anchor Bible Dicitonary, v.2, p.510; John J. COLLINS, The Apocayptic Imagination: An Introduction to the Jewish Matrix of Christianity, p.39. 132 A terra de Israel é conhecida como Judéia no período persa, província da Celessíria no período helenístico, novamente Judéia nos inícios do período romano e, finalmente, Palestina, após a derrota de Bar Kokba. Neste trabalho usaremos sempre Judéia ao nos referir à terra de Israel. Cf. Shaye J. D. COHEN, From the Maccabees to the Mishnah, p.104; John L. McKENZIE, Judéia, Dicionário Bíblico, p.514.

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241

ser amigo de Deus e por seu arrebatamento ao céu (Gn 5,24). Os relatos

das visões e das viagens têm a função de garantir autoridade e importância

às suas palavras (1En 1,2; 13,8; 14,1; 17,1; 19,3; 21,1). A mensagem

apocalíptica é apresentada como um conhecimento celeste, pois o

julgamento sobre os maus não está na Torá.133

O conteúdo do Livro dos Vigilantes está alinhado com a profecia

escatológica. O livro começa com o anúncio da aparição de Deus no

julgamento: "Sairá o Santo e Grande de sua morada" (1En 1,3). A sua

chegada é "para fazer justiça, destruir os ímpios e contender com todos os

mortais pelo que fizeram e cometeram contra ele os pecadores e ímpios"

(1En 1,9). Os maus proferem palavras graves sobre Deus (1En 5,4).

Provavelmente uma referência aos helenistas, que são criticados

especialmente por suas blasfêmias, pelo desprezo às tradições judaicas e

pela adoção da cultura grega. Por causa de sua apostasia, os helenistas são

condenados: "por isso amaldiçoarei vossos dias, arruinarei os anos de

vossas vidas, se multiplicará a maldição eterna e a misericórdia não os

alcançará" (1En 5,5). YHWH faz a paz com os justos, que serão salvos no

julgamento final (1En 1,8), enquanto os maus estão condenados e não

participam da salvação reservada aos justos (1En 5,7-9).

O horizonte apocalíptico do Livro dos Vigilantes é mais abrangente

que a antiga narrativa de 1Enoque 6-11. Os apóstatas do momento presente

estão diretamente ligados com a queda dos anjos nos tempos originários. O

mesmo que Deus fez no passado a respeito dos anjos rebeldes e dos seus

descendentes, poderia se repetir com eles no julgamento final: "até o dia do

grande julgamento, em que serão julgados até que se acabe com eles" (1En

19,1c). O relato visionário de 1En 12-16 é acréscimo ao relato da queda dos

anjos (1En 6-11). Os autores reúnem as tradições recebidas com a figura de

Enoque e a tornam críveis e válidas para o momento presente. De acordo

com esse relato, Enoque é preparado para interceder junto a Deus pelos

anjos rebeldes de acordo com o pedido deles, mas Deus não esquece o mal

e a agitação que eles causam no mundo.

133 Paollo SACCHI, History of the Earliest Enochic Texts, in: Gabriele BOCCACCINI (ed.), Enoch and Qumran Origins: New Light on a Forgotten Connection, p.402.

Page 47: Breve Historico Perido Helenistico Capitulo III

242

Por fim, os autores do Livro dos Vigilantes apresentam outro relato de

Enoque sobre sua jornada celeste (1En 17-19), detalhada em um segundo

relato de viagem (1En 20-36). Enoque, guiado pelas forças divinas, sabe os

limites do mundo e as profundezas do mundo de baixo, conhece o lugar do

julgamento final, que será de tormento para os anjos apóstatas e de júbilo

para os justos (1En 22,11; 25,3-7). A localização geográfica dos

acontecimentos do fim dos tempos possibilita aos autores tornar a noção de

julgamento final mais concreta. De acordo com sua visão, imediatamente

após a morte, os seres humanos são separados até o julgamento final: os

espíritos dos justos são recompensados: tomam a água da vida; os espíritos

dos maus são colocados em lugar separado e receberão tormentos até o

último julgamento e não ressuscitarão (1En 22,10.12). O ajuste de contas é

realizado logo após a morte, portanto o Sheol é transformado num lugar de

tormento para os maus, talvez uma espécie de inferno.

Parece que um dos objetivos do Livro dos Vigilantes é fazer uma

advertência aos helenistas. Se eles não se arrependerem de sua apostasia,

após a morte, sofrerão terríveis tormentos no mundo de baixo e aflição

eterna após o julgamento final. Outro objetivo é comunicar aos fiéis a YHWH

a certeza do julgamento de Deus sobre o mundo perverso e a salvação

futura para eles: "A estes (a todos os justos), sem dúvida, dará paz (Deus),

guardará aos eleitos e haverá misericórdia para eles; serão todos de Deus,

triunfarão, serão benditos e brilhará para eles a luz divina" (1En 1,8; cf.:

5,7.9; 25,4-7).

3.8.3. O livro aramaico de Daniel e sua mensagem

Outro exemplo importante da literatura apocalíptica é o livro de Daniel,

cujo contexto é o enfrentamento da religião judaica com a política helenista,

provavelmente escrito depois da proibição do culto judaico e a profanação

do templo (167 a.C.) e antes da morte de Antíoco IV Epífanes (164 a.C.). Na

primeira parte do livro de Daniel, ele é apresentado como modelo de pessoa

fiel à Lei (Dn 1-6). Na segunda parte do livro, estão os heróis perseguidos

por Antíoco IV. Eles são considerados sábios, com a capacidade de

entender o mistério da história. "São os santos do Altíssimo" identificados

Page 48: Breve Historico Perido Helenistico Capitulo III

243

com a figura do filho do homem (Dn 7,12-13), que receberão o reino de

Deus.

O livro aramaico de Daniel 2-6 não focaliza os helenistas dentro do

judaísmo; o seu tema principal é a perseguição religiosa. O livro é destinado

às vítimas do poder opressor, com o objetivo de animá-las e encorajá-las na

fidelidade às tradições judaicas. A coleção das histórias de Daniel está

situada na diáspora de Alexandria e procura esclarecer sobre o momento

difícil que os grupos piedosos estão vivendo. Esse material descreve os

efeitos da política dos governantes sobre os justos. O herói é um sábio e um

intérprete de sonhos; a sua ação oferece elementos para a instrução

apocalíptica. Diante da desanimadora experiência do seu tempo, o autor do

livro aramaico reformula as narrativas gregas, dando um enfoque pessimista

em relação ao poder estrangeiro.134

Antes de pertencer ao livro de Daniel, a lenda dos três jovens na

fornalha ardente circulava de modo independente. Ao ser colocada no livro

de Daniel, a história é modificada para demonstrar como a exigência da

divinização do poder do estado helenístico entra em conflito com os judeus

piedosos, e para apresentar o apelo à resistência. Outra história que sofre

alterações é a narrativa de Daniel na cova dos leões (Dn 6): na versão

grega, é um conflito com oficiais do Império; na versão aramaica,

transforma-se numa composição para mostrar o totalitarismo do poder do

Estado, que não aceita mais a religião dos judeus piedosos – Daniel opta por

se manter fiel a Deus, mesmo arriscando a própria vida. Para ele, um Estado

que age de maneira absolutista não oferece nenhuma possibilidade de

colaboração. Portanto, para este grupo, a esperança dos piedosos dos

estratos mais altos de modificar o sistema a partir do apoio dos poderosos é

ilusória. A resistência dos judeus piedosos contra a helenização está

fundamentada na aliança e na fidelidade às leis ancestrais até o martírio. O

livro de Daniel expressa o sonho e o desejo dos hasidim de lutar pelo seu

povo e pela Torá.135

134 Rainer ALBERTZ, A History of Israelite Religion in the Old Testament Period, v.2: From the Exile to the Maccabees, p.584 135 Joshua EFRON, Studies on the Hasmonean Period, Leiden, Brill, 1987, p.65.

Page 49: Breve Historico Perido Helenistico Capitulo III

244

A composição narrativa estruturada sobre a lenda dos mártires recebe

uma nova perspectiva teológica sobre o futuro: a conversão do governador

helenístico e o caminho livre para o estabelecimento do reinado de Deus:

"No final dos dias, eu, Nabucodonosor, levantei os olhos para o céu, e a

consciência voltou a mim. Eu bendisse o Altíssimo, eu celebrei e glorifiquei o

eterno Vivente. Pois sua soberania é uma soberania eterna e sua realeza vai

de geração em geração" (Dn 4, 31; cf.: 3,31-33; 5,21; 6,26-28). O anúncio da

chegada do reinado de Deus possibilita ao autor do livro aramaico de Daniel

criticar o império helenista, questionando a legitimidade e a existência do

poder ante as experiências de opressão.

As histórias de Daniel (Dn 3-6) são modificadas com o objetivo de

apresentar uma crítica contra a dominação helenista; dessa forma, o autor

configura a base histórica de seus ensinamentos apocalípticos, emoldurados

pelos capítulos 2 e 7. A esperança do estabelecimento do reinado de YHWH

sobre Sião é um elemento importante na profecia escatológica do Dêutero-

Isaías (Is 52,7), e, posteriormente, na oposição profética e nos círculos

sociais mais baixos que acreditam que os governantes podem ser

derrubados de seu poder (Zc 9,1-10; 10,3; 14,3.9; Is 24,21-23). É possível

que o autor do livro aramaico de Daniel tenha se apropriado dessas

expectativas escatológicas e as transformado em uma teoria apocalíptica da

história, colocando-as sob a autoridade de Daniel, importante sábio e

intérprete de sonhos. O objetivo é reforçar, para sua audiência, a urgência

do estabelecimento do reinado de Deus.

O autor do livro aramaico de Daniel descreve a totalidade do império

grego, o "quarto império", como uma estátua gigante. A cabeça de ouro

puro, mas os pés em parte de ferro e em parte de cerâmica. Da Babilônia

até o Império Grego, o fato de os pés serem formados de material duplo

pode ser uma referência aos Ptolomeus e aos Selêucidas. O governo grego

tem um potencial destruidor: "como o ferro que tritura, ele pulverizará e

triturará todos estes" ou, como o quarto animal, ele "come, rasga e pisoteia o

resto com os pés" (Dn 2,40; 7,7). Ao mostrar os pés de cerâmica, o autor

sinaliza que o declínio do Império Grego se aproxima. Quem provocará a

destruição é o real poder de Deus: "O Deus do céu suscitará um reino que

Page 50: Breve Historico Perido Helenistico Capitulo III

245

jamais será destruído e cuja realeza não será deixada a outro povo. Ele

pulverizará e aniquilará todos esses reinos, e subsistirá para sempre" (Dn

2,44). Essa compreensão reforça a concepção de 1En 6-11, escriba dos

tempos originários, de que a história tem um fim.

A intenção do autor é apresentar as características positivas do real

poder de Deus em contraste com o império anterior. Esta tentativa é feita no

capítulo 7: a visão de Daniel. Em sua visão, Daniel descreve os quatro

reinos através da figura de animais que provocam grandes devastações na

vida do povo judeu, mas, no final, eles são julgados e destruídos por Deus.

Em seguida, Daniel vê surgir um como Filho de Homem. Ele recebe

"soberania, glória e realeza" (Dn 7,14a). O Filho de Homem é identificado

com os "Santos do Altíssimo" (Dn 7,18.25.27). A imagem do Filho de

Homem representa o humano em oposição às bestas, o que pode indicar

que o autor do livro aramaico descreve o reinado Deus com características

profundamente humanas, contrastando com os impérios precedentes.

Provavelmente, a expressão "Santos do Altíssimo" designa a comunidade

dos piedosos, vítimas do poder totalitário do Estado. Diante das experiências

de sofrimento e de impotência que o povo judeu vive por um determinado

tempo, o autor quer advertir que nenhum poder político pode ser divinizado.

O livro aramaico de Daniel é uma crítica contra o poder helenístico e, ao

mesmo tempo, anúncio de que esse poder acabará em breve. É um livro que

devolve a esperança àqueles que sofrem sob o governo dos Ptolomeus,

especialmente as camadas mais pobres.

3.8.4. O livro hebraico de Daniel e o Apocalipse Animal: novos rumos

No final do século 3 a.C., cresce o clima de revolta contra os

Ptolomeus. Em Jerusalém, os partidos políticos se dividem; formando

partidos pró-selêucidas e pró-ptolomeus, os Selêucidas acabam derrotando

os Ptolomeus. Em 197 a.C., o decreto de Antíoco III enfraquece o

movimento apocalíptico, que ressurgirá somente em 175 a.C., por causa das

reformas helenísticas. Tais reformas levam à guerra civil, cuja conseqüência

maior foi o edito de Antíoco IV, em 167 a.C., que proíbe a religião judaica.

Começa a luta dos Macabeus.

Page 51: Breve Historico Perido Helenistico Capitulo III

246

Essa efervescência social reacende o movimento apocalíptico, e os

antigos apocalipses são relidos. Por trás do Livro dos Vigilantes, do livro

aramaico de Daniel e dos escritos do período dos Macabeus, há vários

grupos de escribas com diferentes posições. Um desses grupos é o dos

hasidim, com grande influência: "homens destemidos em Israel" (1Mc

2,42b). Eles somam forças com os Macabeus no início da guerra porém,

uma parte se distancia do movimento de resistência quando consegue

liberdade para seguir sua religião e viver conforme as tradições dos

ancestrais. Entre os hasidim há várias opções políticas, às vezes, contrárias

umas às outras. Uma delas é de orientação apocalíptica, como é o caso dos

autores do Apocalipse Animal (1En 85-90) e do livro hebraico de Daniel (8-

12)136. O primeiro propõe participação ativa na luta armada, o segundo

aguarda o julgamento de Deus. Os escribas piedosos encontram-se

divididos diante da realidade: alguns reforçam o movimento dos Macabeus;

outros fogem para o deserto e não combatem em dia de sábado: "Morramos

todos em nossa retidão, diziam eles: que o céu e a terra nos sejam

testemunhas de que nos fazeis perecer injustamente" (1Mc 2,37).

O autor do Apocalipse Animal, de maneira simbólica, descreve a

Revolta dos Macabeus sob a liderança de Judas (1En 85-90).137 Os partidos

reformistas derrotam os judeus piedosos: "Eles começaram a gritar para as

ovelhas. Porém as ovelhas não gritavam, nem escutavam suas palavras,

mas eram completamente surdas, e seus olhos eram absolutamente cegos"

(1En 90,6-7). O grito das ovelhas não é ouvido. Um dos líderes mais

importantes dos piedosos, Onias III, é devorado pelos Selêucidas. A

experiência de fracasso descrita no Apocalipse Animal pode ser uma

referência à primeira fase do movimento apocalíptico, na qual o grupo de

1Enoque se coloca contra os helenistas, mas é derrotado. Em 175 a.C.,

Onias III é deposto e provavelmente assassinado em 170 a.C., o que reflete

136 O livro de Daniel foi escrito no período da perseguição de Antíoco IV, entre 167 e 164 a.C., provavelmente antes da morte desse rei. Cf. Shaye J. D. COHEN, From the Maccabees to the Misnah, p.15; John J. COLLINS, Apocalypticism in the Dead Sea Scrolls, London/New York, Routledge, 1997, p.12. 137 James C. VANDERKAM, Enoch and the Growth of An Apocalyptic Tradition, Washington, The Catholic Biblical Association of America, 1984, p. 168; John J. COLLINS, The Apocalyptic Imagination: An Introduction to the Jewish Matrix of Christianity, p.55.

Page 52: Breve Historico Perido Helenistico Capitulo III

247

a vitória do partido helenizante, enquanto os hasidim são colocados à

margem.

Na visão de uma parte do grupo dos hasidim, quem provoca a

mudança decisiva na história é Judas Macabeu. Sob a sua liderança, os

ensinamentos apocalípticos são aceitos em muitas camadas da população e

se transformam em força política para o movimento dos Macabeus: "Vi que

brotava um grande chifre a uma das ovelhas e seus olhos se abriam" (1En

90,9). Provavelmente, acreditar na força de uma das ovelhas provoca

mudanças nas pessoas que estão sendo devoradas pelas aves de rapina;

enquanto algumas suportam os sofrimentos, outras protestam: "os cordeiros

gritavam e clamavam" (1En 90,11).

O inesperado sucesso militar de Judas Macabeu é compreendido pelo

autor do Apocalipse Animal como intervenção de Deus e de seu anjo.138 De

acordo com sua visão, a guerra dos Macabeus pela libertação é antecipação

da grande batalha escatológica, na qual o povo Israel, tendo Deus a seu

lado, eliminará todos os seus inimigos (1En 90,18). Embora os hasidim,

tenham desenvolvido a literatura apocalíptica, os próprios Macabeus não

têm uma orientação apocalíptica, como é possível constatar em 1Macabeus

– usam a antiga tradição da guerra de YHWH. A influência dos escribas e

dos escritos apocalípticos contribui para dar legitimidade à guerra. Os

hasidim, que se unem ao movimento dos Macabeus, tinham a esperança de

que a revolta seria uma contribuição decisiva para a realização de suas

expectativas escatológicas, mas a história mostra que o interesse do

Macabeus é assumir o governo da Judéia.

O crescimento da violência e da exploração no período grego faz o

grupo dos hasidim apresentarem uma visão apocalíptica da história: ao

recordar que, no passado, YHWH libertou os oprimidos no Egito, eles

afirmam que ele fará o mesmo no momento presente (1En 90,13-14). Além

da resistência armada, é preciso justificar a participação dos escribas

piedosos. O Apocalipse Animal pode ter surgido de uma parte do grupo dos

hasidim, que estava comprometido com o movimento dos Macabeus. Porém,

138 John J. COLLINS, The Apocalyptic Imagination: An Introduction to the Jewish Matrix of Christianity, p.56.

Page 53: Breve Historico Perido Helenistico Capitulo III

248

esta orientação para uma resistência ativa e militar é oposta ao tipo de

resistência proposta pelo livro hebraico de Daniel, proveniente de outra

facção do grupo dos hasidim. Na visão deste, a rebelião armada é

insignificante, "apenas uma pequena ajuda", para a batalha final (Dn 11,34),

pois Antíoco IV levará ao extremo seus gestos de impiedade, mas será

derrotado numa guerra final e quem salvará Israel é o arcanjo Mikael (Dn

11,36-45; 12,1).

Para o autor do livro hebraico de Daniel, a crise provocada por

Antíoco IV e pelos judeus colaboradores é apenas um tempo de provação

religiosa, especialmente para os piedosos. De acordo com sua visão, o

militante hasidim está enganado ao assumir a guerra civil: "Entre os que

discernem, há quem cairá, para ser acrisolado, purificado até o tempo do

fim, pois ele deve chegar a seu tempo" (Dn 11,35). Somente os mestres que

resistem à sedução do ativismo político e motiva os outros a esperarem a

salvação no julgamento final resplandecerão. A opção proposta pelo

apocalipse de Daniel é a resistência religiosa e a não-violência. Ele examina

e procura discernir entre os seus colegas aqueles que participarão ou não da

salvação final: "Nenhum ímpio compreenderá, mas os que discernem

compreenderão" (Dn 12,10b).

O autor do livro hebraico de Daniel se afasta da atitude de uma facção

dos hasidim que assume a resistência militar. Ele fixa uma ética individual ao

descrever, no capítulo 1, Daniel e seus companheiros como exemplos de

judeus fiéis à Lei, que recusam os costumes de outros povos e seguem as

leis referentes à comida. Dessa forma, os capítulos 3-6 podem ser

compreendidos como exemplos de resistência religiosa. Ao colocar dois

outros apocalipses paralelos à visão de Daniel 7 (Dn 8; 10-12), o autor

minimiza o caráter político do livro aramaico, enfatizando a ação de Deus de

acabar com o poder estrangeiro e estabelecer o seu reinado, porém com um

ética escatológica individual: "Muitos daqueles que dormem no solo

poeirento despertarão, estes para a vida eterna, aqueles para o opróbrio,

para o horror eterno" (Dn 12,2). O objetivo dos autores de Daniel, que se

autodenominam maskilim, é instruir o povo e levá-lo a viver de maneira justa.

Aceitar o martírio e, eventualmente, "brilhar como as estrelas do céu" (Dn

Page 54: Breve Historico Perido Helenistico Capitulo III

249

11,33; 12,3).139 Esta visão de salvação, presente no livro hebraico de Daniel,

elimina o enfrentamento direto contra os opressores, características

presentes nas antigas histórias gregas e em 1Enoque.

O livro aramaico de Daniel e, de maneira mais clara, o Apocalipse

Animal tentam periodizar a história mundial para tornar plausível a

escatologia iminente.140 Porém o autor do livro hebraico de Daniel foi além,

colocando o fim da cólera em data marcada. A profecia de Jeremias fornece

a base para o tempo do julgamento sobre Jerusalém: 70 semanas de anos

(Dn 9,24-27; cf. Jr 25,11-12; 29,10;), ou seja, de acordo com a sua visão, o

tempo do fim está fixado por Deus. Além de invalidar a atividade política e

militar dos rebeldes, o texto desqualifica a compreensão dos militantes

hasidim de que a revolta desembocaria na batalha escatológica: "Todas as

bestas e as aves do céu deixaram de estar junto às ovelhas e foram

engolidas pela terra, que se fechou sobre eles" (1En 90,18). O autor de

Daniel situa o tempo da tribulação entre o edito de Antíoco IV (167 a.C.) e a

purificação do templo (164 a.C.): três anos e meio (Dn 7,25; 12,7; 9,27),

assegurando aos justos que a perseguição tem um tempo limitado.

No tempo dos Macabeus, os diferentes grupos apocalípticos, com

visões teológicas opostas, procuram entender o momento presente e as

alternativas. Collins pontua a importância de resistir à tentação de construir

as diferenças como conflito. Os livros de Daniel e Enoch têm suas ênfases

diferentes, mas ambos estão empenhados em resistir à crise provocada por

Antíoco IV Epífanes.141

3.8.5. Epístola de Enoque/Apocalipse das Semanas e estado Asmoneu

Os Macabeus estabelecem o Estado Asmoneu, mas não contam com

o apoio e o reconhecimento dos grupos apocalípticos influentes. Em pouco

139 Patrick TILLER, The Sociological Context of the Dream Visions of Daniel and 1Enoch, in: Gabriele BOCCACCINI (ed.), Enoch and Qumran Origins: New Light on a Forgotten Connection, p.25. 140 John J. COLLINS, Apocalypticism in the Dead Sea Scrolls, New York, Routledge, 1997, p.53-54. 141 John J. COLLINS, Response: The Apocalyptic Worldview of Daniel, in: Gabriele BOCCACCINI (ed.), Enoch and Qumran Origins, New Light on a Forgotten Connection, p.66.

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250

tempo, os governadores Asmoneus assumem o governo como os

dominadores helenistas. Os escribas de orientação apocalíptica, críticos ao

poder, são colocados à margem da sociedade, mas seu empenho em

desvelar os novos mecanismos de opressão implantados pelos Asmoneus

continua. Diante da exploração social e do favorecimento dos estratos mais

altos da sociedade em detrimento dos estratos inferiores, a apocalíptica,

como é possível constatar na Epístola de Enoque 142, incluindo o Apocalipse

das Semanas, torna-se uma teologia de resistência social.

No início do século 1 a.C., a situação social na Judéia é crítica. Um

pequeno grupo aumenta suas posses explorando os estratos mais pobres da

população – os princípios da Torá e sua proposta de solidariedade são

esquecidos (1En 99,1-2). O grupo dos ricos é apoiado pela dinastia dos

Asmoneus: "Em nossa dor, queixávamo-nos deles aos príncipes e

reclamávamos daqueles que nos supliciavam; eles, porém, não atenderam

nosso clamor, nem quiseram escutar nossa voz" (1En 103,14). Em meio ao

conflito social e religioso, o autor da Epístola de Enoque se coloca ao lado

dos estratos da população considerados inferiores. Ele acredita que Deus

estabelecerá uma nova ordem e os justos serão recompensados, motivando,

assim, a resistência dos grupos oprimidos.

No Apocalipse das Semanas (1En 93,1-10 e 91,11-17), o autor

apresenta um panorama da história, esquematizado e organizado em

períodos de semanas143, desde as origens até o conflito entre maus e justos

no Judaísmo: "Depois de mim surgirá, na quarta semana, uma grande

maldade e brotará a mentira; haverá um primeiro final e, então, um homem

se salvará" (1En 93,4). De acordo com sua visão histórica, na sétima

geração, serão escolhidos os justos: "Ao concluir serão eleitos os justos,

escolhidos da planta eterna e justa, os quais receberão sabedoria

142 A Epístola de Enoque (91-108) pode ser datada em meados do século I a.C., por volta do ano 160 a.C. O fato de Enoque ser apresentado como um escriba e misturar tradição profética, apocalíptica e sapiencial indica sua origem entre os grupos de escribas. John J. COLLINS, The Apocalyptic Imagination: An Introduction to the Jewish Matrix of Cristianity, p.52; F. CORRIENTE, A. PIÑERO afirmam que há textos desta epístola que podem ser datados no tempo de Alexandre Janeu, porém George W. E. NICKELSBURG propõe os inícios do século 2 a.C. Cf. Libro 1 de Henoc, in: Alejandro DIEZ MACHO (ed.), Apocrifos del Antiguo Testamento, v.4, Madrid, Cristiandad, 1984, p.24. 143 John J. COLLINS, The Apocalyptic Imagination, p.50.

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251

setuplicada sobre toda a criação"; "Será extirpada a iniqüidade e os

pecadores perecerão pela espada" (1En 93,10; 91,11a).

A literatura apocalíptica indica a iminente mudança da ordem social

para outra melhor, na qual não haverá injustiça e mentira: os novos céus. A

oitava era do mundo será um tempo de verdade e justiça, na qual os justos

executarão a sentença contra os violentos e os pecadores (1En 91,12).

Nesta nova ordem, as propriedades serão adquiridas por meios honestos e

justos: "adquirirão casas por sua justiça" (1En 91,13). A nona era do mundo

será o fim de todos os ímpios (1En 91,14). A décima era será o julgamento

final: nesse momento, Deus exercerá sua vingança contra todos os

vigilantes e, em seguida, haverá muitas semanas e "o pecado nunca mais

será mencionado" (1En 91,15.17).

A Epístola de Enoque faz referência à ressurreição do justo (1En

91,10; 103,4), assegurando aos piedosos a participação na salvação

escatológica: "Os que morrerem na justiça, viverão. Seus espíritos se

alegrarão e se regozijarão, não perecerá a sua lembrança ante a face do

Grande, por todas as gerações da eternidade: não temais, pois, agora seu

escárnio" (1En 103,4). Cada pessoa justa podia estar certa de que seus

amigos, parentes e ela própria, mesmo se não vivesse para ver os

acontecimentos escatológicos, receberia, após a morte, uma justa

recompensa pelas injustiças e sofrimentos vividos em sua vida. A demora da

salvação e a descrença são apagadas com a esperança da ressurreição.

No grupo dos piedosos, que acredita na escatologia universal, a

escatologia individual se torna a base do relacionamento com Deus. Assim,

o autor dessa Epístola desenvolve, pela primeira vez, uma ética com

orientação escatológica. A Epístola trata, em grande parte, dos gritos dos

aflitos contra os maus e descreve, com detalhes, a conduta social e religiosa

dos que abandonam a Lei; por isso, eles serão condenados no julgamento

final: "sua dor será grande. Em trevas, prisões e chamas, o grande tormento

entrará em vossa alma e terá grave castigo, por toda a eternidade" (1En

103,7c.8a).

Enquanto se prevê o julgamento e a condenação dos maus, os justos

são chamados à esperança, à fé, à coragem e à alegria, pois serão

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252

recompensados (1En 105,2-3). Assim, o autor quer reavivar a esperança dos

mais pobres, daqueles que estão esmagados por seus opressores: "Agora,

não temais, justos, quando virdes que os pecadores se fortificam e

prosperam em seus caminhos, nem sejais companheiros deles, mas afastais

de sua violência, pois havereis de ser sócios da corte do céu" (1En 104,6).

Os justos são chamados à fidelidade, pois eles serão os escolhidos por

Deus para colocar um fim à violência dos opressores: "Mantende a

esperança, justos, pois logo os pecadores perecerão diante de vós, e tereis

total domínio sobre eles" (1En 96,1; cf.: 95,3; 98,12).

A data e a proveniência da Epístola de Enoque são incertas,

possivelmente no tempo dos Asmoneus, em círculos estreitamente

relacionados à comunidade de Qumran.144 Em pouco tempo, os

governadores Asmoneus assumem o poder de forma absolutista, formam

um exército de mercenários, implantam uma política de conquistas e força

os povos dominados à circuncisão. Os escribas com orientação apocalíptica

novamente são colocados à margem da sociedade. Aqueles que somavam

forças com o movimento da guerrilha sofreram uma grande desilusão,

porém, resistiram e continuaram seus esforços contra os novos mecanismos

de opressão do Estado Asmoneu, especialmente contra seus efeitos, como

a exploração social, as desigualdades e o não cumprimento da Torá.

Os livros estudados ressaltam a importância de YHWH como o

Senhor da história e da Lei para garantir a identidade e a vida do povo judeu.

O livro de Judite é também um dos escritos de resistência. De maneira

irônica e dramática, a narrativa de Judite mostra a força sobre os

opressores, pois o fraco – a mão de uma fêmea – vence o comandante-em-

chefe. Uma ironia que pode divertir homens e mulheres, mas é prejudicial às

mulheres, por se tratar de mulher que mata com sua beleza.

144 John J. COLLINS afirma que a localização histórica da Epístola de Enoque é incerta e o mesmo se pode dizer de sua relação com os outros livros de Enoque. Cf. The Apocalyptic Imagination, p.53; George W. E. NICKELSBURG, First Book of Enoch, in: David Noel FREEDMAN (ed.), The Anchor Bible Dictionary, v. 2, p.512; VANDERKAM admite a possibilidade de a Epístola de Enoque ter sido escrita no final do século 2 a.C. ou início do século 1 a.C., mas descarta totalmente a possibilidade de uma data anterior ao movimento dos Macabeus. Cf. James C. VANDERKAM Enoch and the Growth of an Apocalyptic Tradicion, p.171.

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253

3.9. "Judite, filha de Merari, com beleza do seu rosto, paralisou-o" (16,6)

No livro de Judite, o motivo principal da narrativa em prosa e da

narrativa poética é a derrota de um forte e poderoso inimigo por mão de uma

fêmea. A narrativa em prosa e a poética acentuam a arrumação do corpo de

Judite "para seduzir os olhos de todos os homens que a vissem" (Jt 10,4).

Uma ironia: a beleza de uma mulher é capaz de derrotar um poderoso

inimigo. Ele e seu exército chegam com planos de invadir Betúlia, mas

acontece o inverso: eles são invadidos, primeiro, por uma mulher e, depois,

pelos filhos de Israel. A beleza de Judite lhe possibilita sair da cidade de

Betúlia e entrar no acampamento inimigo.

Judite seduz o general com sua beleza e com suas palavras de duplo

sentido, mas ele pensa que ela está em suas mãos. No livro dos Provérbios,

a mulher estranha seduz com suas palavras e sua beleza (Pr 6,25; 7,7-23),

enquanto a mulher boa só diz palavras justas (Pr 8,8). No acampamento,

Judite é uma estrangeira, bela, com liberdade de ir e vir. O comandante-em-

chefe quer, por questão de honra, ter relação sexual com Judite: "Seria uma

vergonha para nós deixar de lado tal mulher sem ter relações com ela" (Jt

12,12). Judite, por sua vez, aceita o convite e finge estar muito honrada: "isto

será para mim motivo de alegria até o dia de minha morte" (Jt 12,14). Depois

de ter bebido muito vinho, Holofernes se prostra em seu leito, Judite pega a

cimitarra e golpeia duas vezes o pescoço dele, cortando-lhe a cabeça. Judite

e sua serva voltam vitoriosas para Betúlia. Quando o eunuco de Holofernes

encontra o seu senhor sem a cabeça, grita: "Os escravos se revoltaram;

uma só mulher dos hebreus trouxe a vergonha para a casa do rei

Nabucodonosor" (Jt 14,18).

A ironia está presente em todo o livro de Judite. Ela é uma viúva sem

filhos, mas se torna a mãe de seu povo. É mulher rica, mas vive na reclusão

e em constante jejum. Vivendo numa sociedade sexista, cujos papéis de

mulheres e homens são bem definidos e separados, Judite assume, com

sucesso, ambos os papéis. Ela é fiel à Lei, especialmente às leis referentes

à comida e à purificação, mas não hesita em mentir. É mulher feminina e

bela, no entanto mata Holofernes com suas próprias mãos, pedindo a Deus

que lhe dê forças para o êxito de sua ação. O mesmo se pode dizer de

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Holofernes: ele consegue dominar todo o Oeste, mas é incapaz de derrotar a

pequena cidade de Betúlia. Querendo seduzir Judite, é seduzido por ela.

Sua espada pessoal, com a qual tinha tirado a vida de muitos de seus

inimigos, é utilizada para tirar sua própria vida.145

O livro de Judite inicia com o relato de um confronto entre poderosos:

Nabucodonosor da Assíria em Nínive e Arfaxad da Média, em Ecbátana.

Uma guerra que subjuga todos os reinos do Ocidente ao império babilônico,

menos a cidade de Betúlia, considerada um reino. O relato descreve a

ostentação de Nabucodonosor (Jt 1,1-6), a sua desonra e a sua reação146 (Jt

1,11-12; 2,6). Com sua força, ele submete vários povos, age com arrogância

e violência (Jt 3,1-9). Por trás da figura de Nabucodonosor, está Antíoco IV

Epífanes. Holofernes, general de Nabucodonosor, despreza Aquior e os

israelitas, afirmando que não há outro deus além de Nabucodonosor (Jt 6,2).

A primeira parte do livro apresenta as conquistas de Nabucodonosor e seu

general (Jt 1-7). Na segunda parte, a ação é dominada por uma mulher (Jt 8-

16). Ozias, ancião da cidade, dita o que Judite deve fazer, porém Judite

arquiteta seu próprio plano sem revelar às autoridades quais as suas

estratégias. Na primeira parte, Holofernes é recebido como herói: com

coroas e danças ao som de instrumentos (Jt 3,7); na segunda parte, a festa

é para Judite e para o Senhor (Jt 15,12-13; 16,1).147 A maior humilhação

para os inimigos é a derrota por mão de uma fêmea.

A história de Judite critica a dominação dos Asmoneus e reivindica a

necessidade de uma nova autoridade. O grupo dos Macabeus e depois dos

Asmoneus assumem formas helenistas de governo: "Qualquer povo que

quisesse sobreviver não poderia ficar isolado ou imune às influências do

helenismo e, além disso, o isolamento cultural do povo judeu implicaria uma

145 Carey A. MOORE, Judith: A New Translation With Introduction And Commentary, p.80. 146 ESLER afirma que a reação de Nabucodonosor é típica da cultura de honra e vergonha. Ele pede ajuda a todos os habitantes da terra, "mas todos os habitantes de toda a terra desprezaram a palavra de Nabucodonosor, rei dos assírios, e não se aliaram a ela para a guerra, pois o temiam" (Jt 1,11). Nabucodonosor se vinga para restaurar sua honra manchada. O autor lembra também outras tradições no Antigo Testamento similares à reação de Nabucodonosor, por exemplo, Jz 8,4-17; 1Sm 25,2-35; 1Sm 10,1-7. Philip F. ESLER, "By the Hand of a Woman": Culture, Story and Theology in the Book of Judith, in John Pilch (ed.), Essays by the Context Group in Honor of Bruce J. Malina, p.71. 147 O autor se esquece que está em Betúlia e, hiperbolicamente, afirma: "Todas as mulheres de Israel acorreram para vê-la e a abençoaram". É todo o Israel que homenageia Judite, ainda que esteja somente uma parte. Cf. José VÍLCHEZ LINDEZ, Tobias y Judit, p.442.

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ruptura com as numerosas comunidades da diáspora, espalhadas em todo o

mundo grego".148 Por isso, a literatura desse período coloca uma ênfase

especial na fidelidade à Lei. A história de Judite é um exemplo de "fidelidade

à lei, especialmente pela observância da pureza ritual, mesmo em

circunstâncias adversas. Essa é a piedade dos hasidim e tem muito em

comum com o 2Macabeus. Embora não represente nenhum grupo religioso

específico, reflete uma corrente generalizada, segundo a qual o templo, a

observância ritual e as festas especiais, como Hanuká e Purim,

desempenham um papel importante. O que é novo é o surgimento de uma

subcorrente social que contrapõe o poder da mulher piedosa ao poder de

reis e exércitos".149

O livro descreve a aparição de Judite num contexto de extremo

desespero. As autoridades da cidade não conseguem resolver o conflito. Em

1Macabeus 7, a batalha de Nicanor, um terrível general hostil ao povo judeu,

contra Judas Macabeus permite estabelecer muitos pontos em comum com

a estratégia de Judite: após ter vencido a batalha, eles decepam a cabeça e

a mão direita de Nicanor e expõem-nas em Jerusalém. O mesmo acontece

na história de Judite: depois de decepar a cabeça de Holofernes, expõe-na

em Betúlia. A maneira de agir de Judite é semelhante à de Judas Macabeu,

o que pode indicar o desejo de voltar aos tempos de Judas Macabeu e uma

crítica contra os Asmoneus, que assumem o governo à moda helenista. O

nome Judite, a judia, provavelmente Judas no feminino, representa a

reivindicação de uma nova liderança. Pode ser uma menção ao grupo dos

fariseus, que surge em oposição a Jônatas e a seus sucessores, que

assumiram o sumo-sacerdócio.150 O livro de Judite exalta a força salvadora

de YHWH, que age por meio de pessoas fracas e debilitadas, e ironiza o

poderio militar dos Asmoneus e sua política de conquista.

Para Esler, a história de Judite é um paralelo ficcional à história de

Davi e Golias. Em ambas as histórias, a essência da mensagem é que Deus,

148 Elias BICKERMAN, From Ezra to the Last of the Maccabees: Foundations of Post-Biblical Judaism, p.180. 149 Helmut KOESTER, Introdução ao Novo Testamento, v.1: história, cultura e religião do período helenístico, p.272. 150 Rainer ALBERTZ, Israel in Exile: The History and Literature of the Sixty Century B.C.E, p.38; Tal ILAN, Integrating Women into Second Temple History, p.37.

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na realização de seu plano, não se restringe a papéis e instituições sociais

estabelecidas. Ele eleva os humildes e derruba os poderosos. Judite e Davi

representam Israel como um todo: pequeno, inferior, freqüentemente

desprezado e constantemente envolvido em disputas. Porém YHWH sempre

está do seu lado, como um Deus que vem por meio dos fracos e socialmente

marginalizados e resgata-os de situações perigosas.151 Esta convicção está

presente na mentalidade do povo de Israel desde os inícios de sua formação

até o tempo das comunidades cristãs: o Deus de Israel exalta os humildes e

esmaga os opressores arrogantes. Ele toma o lado da viúva e do órfão

contra os juízes corruptos e mercadores (Sl 146,5-9; Lc 1,52). É ele que, por

mão de fêmea, elimina o todo-poderoso da Assíria (Jt 16,5) O sujeito é

Deus, Judite é instrumento.

A mulher que salva sua cidade e seu povo de um inimigo poderoso é

uma ironia que pode fazer homens e mulheres rirem, uma vez que não

representa o real. O riso apenas confirma a disparidade de gênero. Na

compreensão de Alice Bach, "o elemento cômico tem o objetivo de

assegurar ao leitor que esta história é apenas entretenimento".152 A ação da

mulher está no campo da ficção.153 Dessa forma, não questiona a ordem

social estabelecida. Na parte central do cântico de Judite há uma ironia à

guerra ao focalizar que não são os heróis convencionais que derrotam o

inimigo, mas a mão de uma fêmea. O protagonista principal é o Todo-

poderoso. Enquanto essa ironia diverte os homens ao humilhar o inimigo, ao

mesmo tempo, adverte que a mulher bela e o seu poder de sedução podem

destruir os homens, por isso a necessidade de um discurso normativo que

controle a sexualidade das mulheres. Na tentativa de compreender a

mentalidade a respeito da mulher a partir do século 3 a.C., examinaremos

alguns textos do final do Segundo Templo. 151 Philip F. ESLER, "By the Hand of a Woman": Culture, Story and Theology in the Book of Judith, In: John J. PILCH, Social Scientific Models for Intepreting the Bible: Essays by the Context Group in the Honor of Bruce J. Malina, p.99. 152 Alice BACH, Women, Seduction, and Betrayal in Biblical Narrative, p.187. 153 Em alguns escritos do período helenístico tardio, o papel das mulheres é mais valorizado, por exemplo: no livro dos Jubileus, Rebeca é mais importante do que na Bíblia; nas Antiguidades Bíblicas , talvez Débora seja a figura mais proeminente; no Testamento de Jó, a sua mulher e as suas filhas são mais importantes do que no livro bíblico e com mais destaque do que seus filhos. Porém trata-se de novelas; o protagonismo está no campo fictício. Os livros dos Macabeus, classificados como históricos, ressaltam o protagonismo de homens. Cf.: Tal ILAN, Jewish Women in Greco-Roman Palestine, p.28.