Burke, peter

1

Click here to load reader

Transcript of Burke, peter

Page 1: Burke, peter

16 — SÁBADO, 7 de abril de 2007 ESPECIAL CORREIO DO POVO

ouve um tempo em que os estudosde história eram dominados porduas correntes principais: positi-vistas e marxistas. Foi um tempobastante negativo. Ambos acredi-

tavam na verdade histórica. Ambos falavam deleis da história. Todos eram positivistas. A boahistória era vista como uma ciência objetiva eimparcial capaz de agarrar o passado. Nesseépoca, os historiadores da cultura, do cotidia-no, do social, eram estigmatizados ou ridicula-rizados. Peter Burke, 70 anos, que palestrarána próxima terça-feira no ciclo Fronteiras doPensamento, promovido pela Copesul, comapoio da PUCRS, da Ufrgs, da Uergs e da Uni-sinos, é um praticante da “nova história”. Pro-fessor titular de História da Cultura da Uni-versidade de Cambridge, ele é autor de umasérie de livros reconhecidos internacionalmen-te, entre os quais “O que é história cultural?”;“A fabricação do rei – A construção da imagempública de Luís XIV”; “Uma história social damídia, de Gutenberg à Internet”; e “Uma histó-ria social do conhecimento, de Gutenberg aDiderot” (ambos em colaboração com AsaBriggs); “Hibridismo cultural” (publicado pelaUnisinos).

Em Porto Alegre, Burke abordará um temacada vez mais em voga entre os pensadores: “Aglobalização da cultura, ou se o mundo todofosse Brasil”. Não se assustem, não se trata deuma ameaça. O historiador não defenderá cer-

tamente a exportação da violência cariocanem a difusão universal dos métodos de con-trole do tráfego aéreo desenvolvidos em Brasí-lia. Muito menos o padrão de futebol praticadopor Grêmio e Internacional no momento. Tam-pouco parece ser alguém deslumbrado com asfaçanhas do governo de Luiz Inácio. Em casode dúvida, o melhor é não ficar em casa e ir

conferir o discurso do visitante. O Brasil estáno imaginário dos europeus. O italiano Giulia-no da Empoli, por exemplo, escreveu um libe-lo deliciosamente polêmico, que sairá aindamês no Brasil (pela Sulina), com o sugestivo tí-tulo “Hedonismo e medo: o futurista brasileirodo mundo”. A idéia é a seguinte: e se o mundointeiro adotasse o estilo de vida praticado co-rajosamente pelos brasileiros?

Peter Burke conhece muito bem o nossopaís. Ele lecionou na USP, escreve para a Fo-lha de S. Paulo e é casado com uma brasileira,a historiadora Maria Lúcia Palhares. Sabe,portanto, do que estará falando. Interessam-lhe as trocas culturais, a mistura, a miscige-nação, as fusões, confusões, mesclas, cruza-mentos e tudo aquilo que, sendo característicodos processos históricos, elimina qualquer ob-sessão por pureza cultural. Na verdade, maisdo que hibridismo, Peter Burke gosta de pen-sar sobre “traduções” culturais. Afinal de con-tas, questiona, como a cultura de um lugar épercebida, interpretada, desviada, adaptada,consumida em outro lugar? Esse interminávelvaivém que resulta em contaminação e despu-rificação faz a verdadeira riqueza das nações.

A “nova história”, herdeira de uma pers-pectiva nascida na França, a Escolas dos An-nales, cujos grandes representantes foramMarc Bloch, Lucien Febvre, Jacques Le Goff,Fernand Braudel, Pierre Chaunu, GeorgesDuby e Emmanuel Le Roy Ladurie, enfrentou

os positivistas e os marxistas com os mesmosgolpes. Rejeitou a simples enumeração de da-tas, de nomes e de fatos como se fosse umaenorme linha de tempo insossa e recusoutambém as interpretações messiânicas dosmarxistas, que defendiam, por outros cami-nhos, a certeza de que um dia a história che-garia ao seu fim, o comunismo. No fundo,marxistas não odeiam Francis Fukuyama porele falar em fim da história, mas por ter colo-cado o liberalismo como estação final no lugarsagrado reservado ao comunismo. Será quePeter Burke vai colocar o Brasil como fim dahistória?

Em lugar da Estação Finlândia ou de WallStreet, a Central do Brasil. Em vez de guerrasde religião, guerras de gangues. Em compen-sação, no lugar da falta de jogo de cintura doseuropeus, a nossa mítica e subjetiva malemo-lência. Só que agora com sotaque internacio-nal trazendo benefícios para a indústria do tu-rismo. Peter Burke não diaboliza a globaliza-ção. Nem a glorifica. Se Jean Baudrillard viana global a morte do universal convertido emmercadoria, Burke acredita que ainda é cedopara julgar. Nesse sentido, ele é mais precavi-do do que o francês Guy Sorman e evita os elo-gios precoces para não ter de cair em arrepen-dimentos tardios e ineficazes. Bom narrador,vê a história como uma construção social per-manente: o passado visto pelo olhos do pre-sente.

Peter Burke, o contador da nova história

H

Peter Burke é daqueles que costumam encontrar o velho no novo. Em “A fa-bricação do rei – A construção da imagem pública de Luís XIV”, ele mostra co-mo o marketing surgiu muito antes do que se podia imaginar. Tudo foi calcula-do para que o Rei-Sol brilhasse como uma estrela sem precedentes. Mas sem-pre aproveitando exemplos do passado. “Os estudiosos dos meios de comunica-ção do século XX operam por vezes com pressupostos bastante questionáveissobre períodos anteriores, entre os quais o chamado “antigo regime”, que pre-cedeu a Revolução Francesa.“Tomemos, por exemplo, umestudo bastante conhecidosobre propaganda nos anos1920, que sugere que os‘tempos mudaram’ desdeLuís XIV, e que a ascensãoda propaganda, e a ‘novaprofissão das relações públi-cas’, é um fenômeno do sé-culo XX, estimulado pelaPrimeira Guerra Mundialmas tornado necessário pelalivre competição de idéiasnuma sociedade democráti-ca”, escreve Burke. Para logorefutar essa ingênua idéia deque inventamos o espetácu-lo. Em resumo, Luís XIV játinha uma turma de mar-queteiros de primeira linha.

As mídias é que são dife-rentes. Os marqueteiros deLuís XIV divulgavam a ima-gem do chefe por meio deestátuas, medalhas, jornaise arcos do triunfo. GeorgeBush e Luiz Inácio ocupam espaços infinitos de televisão. Se acharem pouco,podem até criar uma televisão para si mesmos. É verdade que os governantesde hoje têm uma séria desvantagem: Luís XIV era o representante de Deus;Bush tem o povo na sua cola. Dá mais trabalho agora explicar certas decisões.Em geral, contudo, as cabeças coroadas não rolam. Algumas são enforcadasem nome da glória dos outros. Nada de novo no front. Tanto em 1789 como em1917, garante Burke, os objetivos da propaganda eram os mesmos: “Celebrar aprópria revolução”. Ninguém é de ferro. Não basta mudar o mundo. É precisodivulgar isso. Peter Burke diverte-se: “De maneira similar, poderíamos dizerque a imagem de Lênin nos últimos dias da sua vida foi uma conciliação entreos ideais da Revolução Russa e a tradição dos czares”.

Deve ser por isso que Luiz Inácio quer conciliar o espírito da BBC de Londrescom o futuro brasileiro do mundo. O efeito perverso poderá ser a transfiguraçãoda BBC em A Voz do Brasil. Peter Burke é um cavalheiro. Dificilmente vai tra-tar desses aspectos menos elevados da globalização verde-amarela do planeta.Se a propaganda sempre foi a alma dos políticos, como prova o caso de LuísXIV, ao menos há um consolo para a atualidade: nenhum marqueteiro conse-guirá manter Bush mais de oito anos no posto. O Rei-Sol reinou por meros 72anos. Houve tempo, como se percebe, para muitas campanhas criativas.

De Luís XIV a BushNinguém duvida: em casa de ferreiro, espeto de

pau. Nada como um estrangeiro para redescobrir o quesempre tivemos de melhor. Peter Burke resolveu escre-ver sobre Gilberto Freyre, autor do nosso maior clássi-co, “Casa grande & senzala”. O antropólogo brasileiroGilberto Freyre, o mais brilhante de nossa história, foisempre repudiado pelo baixo clero marxista de plantãono mundo intelectual tupiniquim. Inventaram que elefazia a apologia da democracia racial e não enxergavao preconceito. Espalharam que ele não se preocupavacom as questões econômicas. Ignoraram algumas dassuas mais cristalinas observações sobre o caráter his-tórico da sociedade brasileira: “A formação patriarcaldo Brasil explica-se, tanto nas suas virtudes como nosseus defeitos, menos em termos de ‘raça’ e de ‘religião’do que em termos econômicos, de experiência de cul-tura e de organização da família, que foi aqui a unida-de colonizadora”.

Freyre foi reacionário e revolucionário, moderno eantimoderno. Desmontou o racismo, valorizou a misci-genação, rejeitou o marxismo e, melhor do que nin-guém, interpretou a originalidade da formação brasi-leira. Peter Burke, por influência da mulher, redesco-briu a genialidade desse precursor da pós-modernida-de. Antes, havia lido sobre Freyre em notas do grandehistoriador Fernand Braudel e havia até assistindo a

uma conferência do mestre pernambucano. GilbertoFreyre está na base de toda a reflexão antropológicasobre a miscigenação como um fator positivo. Ele es-creveu: “O que a monocultura latifundiária e escravo-crata realizou no sentido de aristocratização, extre-mando a sociedade brasileira em senhores e escravos,com uma rala e insignificante lambujem de gente livresanduichada entre os extremos antagônicos, foi emgrande parte contrariada pelos efeitos sociais da misci-genação”. Em conseqüência, não tivemos o racismodos Estados Unidos nem o apartheid levado pelos mes-mos holandeses que estiveram no Nordeste do Brasilpara a África do Sul.

O sociólogo francês Michel Maffesoli, grande viajan-te e grande conhecedor do Brasil, nunca duvidou dovalor extraordinário da obra de Gilberto Freyre para acompreensão da sociedade pós-moderna, cujo elemen-to essencial é a noção de miscigenação cultural, étni-ca, social e existencial. Freyre foi, segundo Maffesoli,para usar uma expressão do próprio pensador brasilei-ro, um “equilíbrio de antagonismos”. Peter Burke temuma percepção semelhante. Em artigo na Folha de S.Paulo ele confessou sua admiração pelo autor de “Or-dem e progresso” e “Sobrados e mocambos”: “Um dostraços mais surpreendentes e originais da obra de Gil-berto Freyre como historiador social é seu interesse

por aquilo que, à maneira dos arqueólogos eantropólogos, chamamos de ‘cultura mate-rial’: a história da alimentação, da vestimen-ta, da moradia e da mobília. É bem conhecidoo interesse de Freyre pela culinária, com des-taque para os doces de Pernambuco, e pelahistória e sociologia da alimentação. Seu in-teresse na história das roupas estendia-sedos trajes formais dos moleques oitocentistasaos turbantes das escravas negras. Seu tinopara o papel da moradia e da mobília na his-tória social era ainda mais pronunciado”.

Pelo viés de Gilberto Freyre há um Brasildo qual se orgulhar. É o Brasil mítico do nos-so imaginário e do nosso cotidiano que tenta-mos apagar ou desvalorizar a golpes de balasperdidas ou de teorias incapazes de aceitar acontradição como um cimento social. Talvezseja esse Brasil – da tolerância religiosa, damiscigenação, de todas as fusões possíveis –que Peter Burke pretenda analisar em sua re-flexão sobre a globalização. Seja qual for o ca-minho a ser tomado, um historiador quecompreende a relevância de Gilberto Freyre jámerece respeito. Nada como aprender comestranhos sobre as virtudes e os defeitos do-mésticos.

O retorno de Gilberto Freyre

FRONTEIRAS DO PENSAMENTO / Juremir Machado da Silva

FJN / DIVULGAÇÃO / CP

Burke fala no Fronteiras do Pensamento na terça, 10

REPRODUÇÃO / CP

Luís XIV já tinha marqueteiros de primeira linha

CP MEMÓRIA

‘Freyre foi reacionário e revolucionário, moderno e antimoderno’